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5 A LÓGICA DO CAMPO E AS MUDANÇAS INSTITUCIONAIS DO SCI ENTRE

6.3 Visões dominantes sobre interesse público

Os agentes do controle interno e da gestão expressam a visão sobre interesse público, de forma diferenciada. Os agentes da gestão tendem a compreender as suas ações como oportunidade de contribuir com a sociedade, com o bem comum, mas sinalizam que a definição do que é ou não o interesse público é alcançada nas disputas políticas e não pela decisão deles (EG-01; EG-02; EG-08; EG-10). Para esses agentes, atender o interesse público significa executar as políticas, conseguir formas de realizar o que está proposto no orçamento, mesmo que não seja de forma completamente aderente ao que está definido nas regras oficiais.

Por seu lado, os agentes de controle interno entrevistados percebem que o Estado existe para servir ao cidadão e para oferecer garantias individuais e coletivas, privilegiando o bem comum e os valores universais. Consideram, também, que ao controle interno compete cuidar para que o interesse público seja priorizado nas práticas desses agentes. Nesse sentido, eles se veem como instrumento de defesa dos interesses da sociedade. Como esta não tem como controlar a administração pública, dada a complexidade dos processos e das relações em seu interior, cabe ao controle interno auxiliar o Estado a cumprir o seu papel.

“A gente entrega os recursos públicos ao Estado e espera que o

Estado cumpra o seu papel. Eu me sinto como esse ente, que deve cumprir o seu papel da melhor forma possível” (, CI-01-IP, entrevista concedida à autora da tese, 2009).

Sobre como identificar o interesse público, os agentes do controle interno expressaram que ele se apresenta como interesse definido pela sociedade, expresso em leis específicas ou em princípios que regem a administração pública. Os gestores são percebidos como os que têm o dever de objetivar esse interesse em serviços e bens.

“O interesse público é definido pela sociedade. As pessoas têm uma

necessidade e querem suprir aquela necessidade ... e o gestor, com as

leis e toda estrutura administrativa, tem que dar essa resposta.” (CI-

17-IP, entrevista concedida à autora da tese, 2010).

“Não se pode conceder que um poder legislativo, constituído de

pessoas que estão representando o povo, elabore leis que não visem atender as necessidades daqueles que eles estão representando. Eu acho, é lógico, que nós temos leis ... letra morta, digamos assim, leis que não pegam ... mas, eu acho exatamente que as leis que não pegam

... não foram elaboradas atendendo o interesse público” ( CI-11-IP,

entrevista concedida à autora da tese, 2010).

Dessa forma, as leis são entendidas como mecanismos de definição dos interesses da sociedade e o processo legislativo como aquele que oficializa e legitima a vontade da sociedade. Ao controle compete a identificação de situações desfavoráveis ao interesse público que possam estar ocorrendo na administração.

Essa tarefa de identificação do desvio das práticas dos agentes em relação ao interesse público não é percebida como tarefa simples. As dificuldades decorrem de vários fatores. Em primeiro lugar, a despeito do discurso de que a maioria dos gestores é honesta, ficou evidenciada a visão de que o risco de práticas autointeressadas no setor público é elevado, porque a administração ainda tem vícios e deficiências e, também, porque o gestor público, em geral, não tem interesse ou autonomia para solucionar alguns problemas. A percepção expressa uma perspectiva moral, em que o alinhamento entre a conduta dos agentes e o suposto interesse torna-se uma variável dependente da honestidade desses agentes. Também emerge uma visão instrumental, quando a possibilidade de desvio é apresentada como decorrente da fragilidade da gestão. Nesses termos, a função de fiscalização e controle da administração pública é entendida como mecanismo de combate aos dois riscos.

Como limites para o controle auxiliar na diminuição dos problemas de desvios foram citados o fato de se trabalhar por amostragem e a impunidade elevada relativamente a fatos

evidenciados pelos órgãos de controle, o que incentivaria os agentes públicos a burlarem os imperativos legais.

“Tem muitos gestores que ainda não têm essa mentalidade e a

impunidade também incentiva o gestor a cometer essas irregularidades. Eu acho que ele realmente compactua com isso. Eu acho que ele é incentivado e, sabendo que dificilmente será apanhado, dificilmente haverá uma auditoria naquele setor ... então ele faz ... isso é aquela mentalidade. Por exemplo, se eu fosse para um lugar desse, e eu já tive essa oportunidade, já trabalhei com restos a pagar, eu sei como fazer a coisa, que é difícil pegar, ele não deixa rastro, para a auditoria inclusive, eles não deixam rastros ... ele joga, 90% de probabilidade de não ser apanhado, acabou” (CI-08-IP, entrevista concedida a autora da tese, 2009).

“Cada um tem o seu mecanismo (de defesa de seus interesses) ...

agora a sociedade (brasileira) criou os seus ... leis que são criadas para defender o interesse público. O que é uma licitação? Se você pensar bem, é um processo através do qual você tenta garantir que o Estado compre melhor e mais barato. Por que a licitação virou um monstro? Porque esse processo é fraudado por uma série de mecanismos, os fraudadores vão continuar existindo no planeta, criou-se ... o pregão ..., no entanto, as pessoas fraudam o pregão” ( CI-07-IP, entrevista concedida à autora da tese, 2010).

Percebe-se que a visão anteriormente apresentada de que a maioria dos agentes é honesta não impede a percepção de que interesses em burlar as normas e de práticas privilegiando outros interesses que não os do bem comum ainda são frequentes na área pública. Dessa forma, percebe-se a illusio de seus integrantes, quando se veem como

defensores dos interesses da sociedade, em virtude de exercerem um trabalho que visa ao alinhamento das práticas dos agentes públicos a valores universais. A função do controle interno é percebida como esforço para fazer com que os agentes públicos se interessem em investir no jogo estatal e essa percepção desperta o interesse dos agentes em investir no campo.

“Eu alcancei essa atividade, eu comecei a ver esse horizonte, muito

menos formal do que parecia ser, era um papel, alguém que era um auditor (público) num país como o nosso, um país cheio de problemas e principalmente erros, dolos e corrupção, é uma coisa fantástica” (CI- 02-IP, entrevista concedida à autora da tese, 2009).

“Depois que a gente entra aqui e talvez aqui, mais diferente do que ali

e acolá, isso aqui é uma cachaça, né? Porque, a maioria das pessoas que trabalham aqui, elas acabam se viciando no trabalho, não pelo trabalho em si, mas pela dimensão do órgão, pela importância do órgão, pelo grau de penetração desse órgão dentro do governo, isso não tem volta, é difícil” (CI-12-IP,entrevista concedida à autora da tese, data).

A noção de defesa do interesse público permite a percepção de que o trabalho do controle interno pode conduzir à separação entre bons e maus gestores. O objetivo é a responsabilização e exoneração desses últimos e auxílio aos bons gestores, para torná-los mais efetivos e regulares em seus atos.

Pelos depoimentos dos agentes do controle interno, verifica-se que os aspectos simbólicos que envolvem a função motivam os agentes a fazer o que fazem e a permanecer na carreira que escolheram. Trata-se da já citada illusio do campo, especialmente relacionada ao poder de contribuir com a sociedade.

“É claro que existem maus gestores, esse gestor não está preocupado

com interesse público, ele está preocupado com interesse dele. Agora o bom gestor, ele pode ter uma limitação na sua condição, ele ao decidir, com universo de conhecimento dele disponível e de informação disponível que ele tem, ele toma a melhor decisão possível, então o que o controle tem que fazer também é isso, entendeu? Sentar com ele ... como é que você tomou essa decisão? Por

que você tomou essa decisão?” (CI-10-IP, entrevista concedida à

autora da tese, 2010).

“Eu ... poderia há muitos anos atrás, ter feito uma opção ... eu não

teria, pegando a parte corretiva de alguma etapa que, na gênese foi mal concebida e na gênese eu tenho possibilidade de influenciar ..., então na questão salarial pura ... provavelmente eu teria uma remuneração maior, mas por uma questão pessoal, defendendo esses valores mais profundos dos direitos dos cidadãos é que eu cada vez mais eu tenho certeza de que eu estou onde eu deveria estar. Que coisa chata, mas é isso” (CI-17-IP, entrevista concedida à autora da tese, 2010).

Considerando que a doxa e a illusio mais relevantes no campo relacionam-se ao interesse público, é importante saber como os agentes distinguem esse interesse. As respostas a essa questão levam ao entendimento de que o alinhamento à lei é um parâmetro, mas detecta-se a percepção de que a conformidade legal pode não significar que o interesse público esteja sendo atendido e que a diferença é alcançada pelo controle interno.

“Você tem situações em que, a administração ... pode ... advogar uma

causa, fazer uma coisa, inclusive, ferindo normativos legais, porque ela acredita que aquilo dali pode permitir atingir os objetivos de Estado, os objetivos que a administração se propõe ... o Estado se propõe a atender determinada ou fazer determinada política pública,

para atender determinada população” (CI-12-IP, entrevista concedida

à autora da tese, 2010).

“Quando há um visível conflito entre o interesse público e a lei, muda-

se a lei, contextualiza-se o fato de tal maneira que se mostre que o gestor responsável, enxergando o interesse público tomou uma decisão que contraria a norma em defesa da sociedade ... e tem mais ... se isso começar a ser permanente é porque a norma está errada. Você não deve ultrapassar o sinal luminoso ... mas se você tiver uma pessoa baleada dentro do carro, que morre em vinte minutos ... você vai ligar a ... buzina e vai ultrapassar tudo ... você contrariou a lei ... não há nenhuma dúvida, mas em benefício do interesse da sociedade ou do individuo que está à morte ali dentro. Então, eu acho que, no exercício da lei, ... o que deveria competir aos ... julgadores, essencialmente ...

esse tipo de orientação geral” (CI-07-IP, entrevista concedida à autora

da tese, 2010).

“Olha, a gente diz até que, em auditoria, em princípio, você buscaria a

legislação, as referências, faz aquela coisa de cara crachá ...você testa se há conformidade ...você não discute a elaboração da política em si ..., mas todas elas têm um objetivo social” (CI-09,entrevista concedida à autora da tese, 2010).

Por esses depoimentos, o trabalho do agente do controle interno inclui a revisão dos atos administrativos para verificar a adesão à lei, pois, em tese, as condutas devem estar previstas em lei. No entanto, como a questão é o interesse público, em tese, os gestores podem optar pela não conformidade legal quando existir justificativa relevante, considerando que o interesse da sociedade e a finalidade da política pública podem não estar alinhados à previsão da norma, em contextos específicos.

Nesses termos se,no caso da verificação do alinhamento à conduta prevista em lei, o auditor pode se posicionar, por meio da postura cara crachá, no caso da distinção do interesse público, o problema ganha dimensão subjetiva

“Interesse público é a razão de ser do Estado” (CI-11-IP, entrevista

concedida à autora 2010).

“É o interesse da sociedade” (CI-10-IP, entrevista concedida à autora

“É o interesse do ser humano” (CI-07-IP, entrevista concedida à

autora, 2010).

“É atender uma política pública para o cidadão” (CI-09-IP, entrevista

concedida à autora da tese, 2010).

“E um principio ... e princípios são princípios, você pode usar ao seu

favor tanto como ao seu desfavor ... e no caso o interesse público tem um pouco disso, você tem situações em que a administração, na leitura dos normativos que existem, ela pode ... advogar uma causa, fazer uma coisa, inclusive, ferindo normativos legais, porque ela acredita que aquilo dali pode permitir atingir os objetivos de Estado, os objetivos que a administração se propõe ..., o Estado se propõe determinada política pública, para atender determinada população. Isso tem a ver com interesse público, ou seja, na minha opinião, conceituando interesse público, seria alguma coisa do tipo, tendo como panorama, como base, os normativos legais, você exercer o papel do Estado, tomando determinados cuidados para que em determinadas situações você possa, inclusive, fazer uma leitura, uma interpretação a seu favor, pra levar adiante, e atingir os seus

propósitos, não seus, mas os propósitos da administração” (CI-12-IP,

entrevista concedida à autora da tese 2010).

“No ponto de vista dos sanitaristas, o interesse público é colocar esse

dinheiro lá no município, no ponto de vista da população o interesse público é ver as ações de saúde funcionando. Então parece que, quando se olha na esfera central, esse interesse público é um pouco

divergente” (CI-16-IP, entrevista concedida à autora da tese 2010).

Um entrevistado indicou quatro pontos que, segundo seu juízo, gestores e agentes do controle deveriam considerar para pensar o atendimento ao interesse público: 1 responder se o que se vai fazer com o recurso público é efetivamente necessário, tendo em vista a missão do órgão e o objeto da despesa. Para ele, na maioria dos processos de despesa pública, a necessidade, que é a justificativa principal, nunca está colocada explicitamente; 2. a segunda exigência seria a questão de preço. O preço justo caminha junto com a demanda. A dispensa do processo licitatório e o consequente risco de pagamento de preço mais elevado só podem ocorrer em situações excepcionais, previstas na lei; 3. o terceiro ponto é a capacidade de prestar contas e de demonstrar que o ato é impessoal. Então todo gestor deve ter assentamento do que faz, para ser capaz de comprovar aquilo que pagou e a impessoalidade dos seus atos, além de justificar, nos processos, as razões que embasaram as suas decisões; 4. a quarta questão diz respeito à utilização do bem ou serviço, pois a qualquer despesa pública deve corresponder a satisfação de necessidades da sociedade.

“Então fora desses pontos você fica estudando o que é, o que pode e o

que não pode ... mas quase tudo pode ou tem jeito ... porque no fundo ... o que sai fora desse eixo aqui é procedimental, não é ... essencial do

interesse público”( CI-14-IP, entrevista concedida à autora da tese,

2010).

Observa-se, pelos depoimentos dos agentes apresentados neste item, que eles se afastam da visão de que são um controle do gestor, para se apresentarem como defensores dos interesses da sociedade e que, nas suas práticas, buscam aplicar critérios que acreditam lhes propiciar condições de diferenciar o que pode e o que não pode ser feito pelos administradores públicos. Essa crença, somada ao aspecto formal dos trabalhos por eles realizados, faz com que a hexis incorporada seja a da autoridade, característica que se revela nas roupas e nas formas de relacionar com os demais agentes públicos. Em geral, usam roupas formais, como ternos, e se expressam como quem pode diferenciar o que está ou não alinhado à lei e ao interesse público, quando das avaliações realizadas segundo competência que lhes reserva a própria Constituição.

No próximo item, apresenta-se a análise de um conjunto de constatações, de forma a explicitar alguns elementos da interface entre agentes do controle interno e gestores públicos que constituem o posicionamento oficial do ponto de vista final, nessa esfera estatal, sobre o alinhamento à norma e/ou ao interesse público. Essa análise possibilita compreender que também a visão de defesa do interesse público ainda não pode ser assumida como a melhor interpretação para o campo.