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Não existiam personagens similares no âmbito específico do que viria a ser o choro cumprindo a função exercida por Vagalume e Orestes Barbosa para a constituição do samba na década de 1930. Jornalistas-foliões com larga passagem pelas redações, ranchos carnavalescos, festas populares e composições esporádicas de canções foram figuras caras àquele que se tornaria o “mundo do samba”. Mas que, como acabamos de ver, de uma forma ou de outra também participavam dos choros quando o choro ainda não era bem o gênero choro. Ao contrário de suas

ações em prol do samba, esses personagens não demonstraram o mesmo esmero com as definições, limites e normatizações gerais do futuro gênero choro, mas tão-somente do que estava naquela ocasião sendo definitivamente denominado samba. Não obstante, houve um agente que se preocupou com o registro de um universo musical do século XIX no qual ele próprio teria tomado parte. Não era jornalista, não tinha acesso às estações de rádio nem o domínio da escrita, mas lhe sobrava vontade de registrar os “fatos e personagens de outrora” em historietas das quais muitas vezes se tornava o protagonista. Trata-se de Animal, ou Alexandre Gonçalves Pinto (cerca de 1870 – cerca de 1940). Este obscuro personagem lançou em 1936 um livro de memórias onde incluía 285 nomes de personagens a quem ele chamava pela alcunha de “chorões”. O livro é o Choro – Reminiscências dos Chorões Antigos, cuja tiragem inicial foi de 10.000 exemplares. Lembro que este livro, ao contrário dos outros dois que tratavam do samba, possuía propósitos e inserções distintos naquela figuração, a começar pela manifesta diferença de posição social de Animal em relação aos dois jornalistas integrados ao universo das manifestações populares. Animal era um anônimo carteiro de segunda classe, um funcionário público sem possibilidades de se comunicar através dos veículos de imprensa. Não passava de um músico diletante, partícipe das manifestações que tomavam corpo desde o século XIX, desejoso de registrar suas memórias e, de lambujem, os nomes, as biografias disponíveis em sua lembrança e algumas situações que envolviam os alvos de sua “homenagem”. Mesmo assim, talvez este seja o livro que maior repercussão deva ter alcançado dentre os três, dada a sua recepção por meio dos intelectuais integrados ao universo do samba e do “nascente” choro das décadas posteriores, como Lúcio Rangel e os articulistas ligados à Revista da Música Brasileira, que o transformariam em objeto de culto e de consulta constante, pois único documento histórico a discorrer sobre vários dos “eleitos” até então esquecidos da memória cultural carioca-nacional.112 O que os estudiosos não costumam ressaltar neste livro aparentemente ingênuo, despretensioso e “neutro”, pois apenas escrito para “registrar o passado”, é a normatividade que ele contém, que o torna de fato um registro histórico de importância crucial no que tange à análise sociológica daquilo que teria antecedido e, depois, se tornado o choro. As costumeiramente elogiadas “deliciosas histórias contadas por Animal”113 devem ser lidas a partir de um prisma em que se possa vislumbrar o modo pelo qual Animal teria sido um pioneiro na arte demarcatória de um gênero musical que iniciava a sua ascensão, ainda que nem ele considerasse de fato o choro um gênero. Da mesma forma, não me interessaria neste ponto da análise visualizar Animal enquanto um “produto” ou uma “expressão” dos anos trinta e de sua armação político-econômica-cultural. Há 112

Ainda que o referido livro não tenha sido explicitamente citado na Revista da Música Brasileira, é inegável a influência exercida por ele nos artiguetes desenvolvidos por quem quer que se arriscasse a dissertar sobre o choro, como Mariza Lira, Cruz Cordeiro, Lúcio Rangel etc. No livro de Lúcio Rangel, “Sambistas e Chorões” de 1962, no entanto, a obra de Animal é explicitamente citada e elogiada. Muitos outros agentes perpetuariam a memória das memórias de Animal após a década de 1960.

113 A Revista Roda de Choro, que circulou entre os anos de 1995 e 1997, abrigaria uma coluna que se proporia a

“resgatar” as histórias de Animal de modo ficcional, como se o próprio retornasse para escrever mais alguns de seus “deliciosos” casos envolvendo os “chorões”. À frente analisarei esta revista.

algo mais importante em seu escrito O Choro..., pois nas entrelinhas faz-se possível depreender o modo pelo qual suas memórias foram utilizadas adiante como parâmetro de instituição daquilo que o choro deveria ser ou não, e não apenas do que ele teria sido no passado. Não me importaria em razão disso discutir única e exclusivamente a validade ou a veracidade histórica dos relatos de Animal, muito menos os critérios analíticos ou a pretensa idiossincrasia de sua visão. O que procuro em Animal, com efeito, é ressaltar aquelas passagens que se tornariam trans-históricas a partir daqueles autores que o tomaram como critério de verdade, afirmações e observações estas que até os nossos dias ainda dariam a tônica da reprodução dos discursos em jogo no campo da MPU.114

Animal deixa claro logo no início sua posição subalterna no universo intelectual, desculpando-se a todo instante pela linguagem simples (PINTO, 1978: 9). Mais do que isso: rende homenagens a personagens prestigiosos da época, tal como demonstra o convite feito ao cabotino Catulo da Paixão Cearense para escrever o prefácio e corrigir os eventuais erros gramaticais do livro. Este último declinaria do convite, alegando contar demasiados desmazelos na redação de Animal, tornando-se, portanto, impossível a empreitada, o que apenas uma reescrita completa daria cabo, segundo suas escusas. Não deixa de enviar a Animal, no entanto, um de seus poemas como consolo, poema que o humilde carteiro aposentado estampa logo na abertura de sua obra como trunfo, publicando ainda na íntegra a carta em que o “grande” Catulo lhe desfere algumas poucas humilhações ao rechaçar o convite. Animal tenciona compensar as necessidades de caracteres gramaticais com a virtude de descrever alguns fatos inéditos de 1870 em diante que versariam sobre os “chorões do luar” (PINTO, 1978: 10) e os locais onde imperavam “a sinceridade, a alegria espontânea, a hospitalidade, a comunhão de idéias e a uniformidade de vida” (PINTO, 1978: 10), qualidades já esquecidas nos tempos hodiernos, segundo o autor. A esses “chorões da velha guarda”, que na maioria das vezes tocavam por prazer e, no máximo, por faustosos repastos, oferece o livro, em sua “reminiscência e louvor” (PINTO, 1978: 10). Logo de início, percebe-se a construção e/ou a confirmação de uma verdade emergente: enquanto as mãos ingênuas do carteiro nada mais faziam do que registrar suas memórias, a escolha do título principal do livro, choro, complementaria na posteridade a consecução do processo que se constituía na época, ou seja, a operação que transformava a palavra choro em estilo musical e, mais tarde, em gênero. Embora Animal utilizasse a designação choro em ao menos quatro sentidos, conforme verifiquei em seção anterior, não o fazia expressamente com o intuito de assinalar um estilo musical. Tudo leva a crer que sua intenção primeira foi a de registrar o título do livro enquanto o conjunto dos personagens que faziam parte das festas e do ambiente que tinha por fim a reprodução desinteressada sobretudo do estilo “(...) polca que é, como o samba, uma tradição brasileira (...)” (PINTO, 1978: 112). Curiosamente, até mesmo o samba, do modo como Animal o retrata em diversas páginas poderia, por extensão, ser 114 Para se verificar esta asserção, basta consultar a referida Roda de Choro. Além da forma de inserção assinalada,

incorporado ao que ele denominava choro, o que de fato demonstrava que, ao menos para este personagem presente desde o século XIX nos ambientes boêmios, choro consistiria em um termo global relacionado aos estilos presentes nas manifestações musicais populares cariocas, pertencentes a qualquer formato dentre aqueles citados.

Haveria, no entanto, uma grande modificação operada a partir do relato de Animal. Esta pode ser considerada, para os propósitos da análise, a contraposição temporal– talvez pioneira no âmbito do choro propriamente dito – entre um estilo de execução ou de festa relativos a períodos distintos. Ao que denomina “os choros de antigamente” ele confere a qualidade de “verdadeiro” em contraposição aos de “hoje” (PINTO, 1978: 155) – que, logicamente, deveriam ser considerados “falsos”, porém não em sua totalidade. O saudosismo de Animal inauguraria aqui uma divisão interna que principiava por circunscrever as manifestações de sua época que se vinculariam, de uma forma ou de outra, às de antanho, bem como quais os critérios e requisitos que estas deveriam cumprir para poder ser consideradas legítimas herdeiras dos “nossos primeiros paes” (PINTO, 1978: 64). Animal descreve o que seria o “choro verdadeiro”: criações executadas por flauta, violões, cavaquinhos, oficleide e trombone, que deveriam tomar lugar nas casas e festas “descompromissadas”. Além desta demarcação em termos instrumentais e territoriais, o carteiro, quando principia suas descrições biográficas, mais especialmente com o “(...) rei da música daquele tempo (...)” (PINTO, 1978: 12), Calado, elogia aquilo que também viria a ser consagrado como uma verdadeira instituição do gênero que estava em vias de se constituir: o improviso. Animal daria importância ao fato de Calado compor melodias de bate pronto, e tudo isso sem se fazer de rogado, alcançando assim graus de maestria e humildade que deveriam ser perseguidos por todos aqueles que desejassem reproduzir o que havia de verdadeiro. Outras qualidades são listadas – e logo requeridas – por Animal, como o zelo pelos objetos do passado, o que faz elogiando aqueles poucos que possuíam cadernos com as escritas das partituras dessas músicas “antigas”. Também entre alvos de louvor incluíam-se o “dom” da composição de novas obras populares, a leitura de partituras à primeira vista, ter uma voz maviosa para cantar “modinhas” quando se abrisse o espaço para tal feito nas festas de choro, e o mais importante, conhecer e executar as composições antigas, ou seja, dominar a própria tradição que constituía a partir de então o universo musical do choro. Tudo isso ao mesmo tempo em que Animal ressalta as qualidades escolares dos que teriam estudado música, ainda que para isso precisasse ele mesmo se rebaixar, pois se considerava um bom músico, porém “de orelhada”, logo, situado em um nível de mestria incomparável ao daqueles “(...) músicos scientíficos (...)” (PINTO, 1978: 20). Animal ressalta ainda positivamente, e por diversas vezes, os contatos que alguns dos chorões mantinham com a música erudita ao executarem muitas dessas composições em seus instrumentos. Cita alguns casos específicos, como o de Cupertino, que trocou as manifestações populares ao violino pelas composições de Paganini (PINTO, 1978: 22), o da

própria Chiquinha Gonzaga (PINTO, 1978: 159), executante corrente ao piano de Verdi, Puccinni e Paganini, e de Sátiro Bilhar, que “(...) além do choro conhecia música clássica (...)” (PINTO, 1978: 52).

Chorando “(...) pelas tradições que os anos não trazem mais (...)” (PINTO, 1978: 15). Animal reunia em seu panteão, talvez também pela primeira vez, as figuras do passado, ou seja, do tempo “verdadeiro”, com aqueles que ainda pugnavam pela continuidade da tradição. Mesclava as gerações dos Escolhidos em seu relato, iniciando aqui o trabalho de agrupar sob uma mesma alcunha que carregava uma valoração positiva consigo – chorões – os músicos e compositores de outrora, reprodutores de inúmeros estilos e seus herdeiros. Os personagens do passado com os quais teve contato, aqueles que considerava os criadores do que entendia por choro e por isso merecedores de suas declamações seriam Calado, Viriato, Alfredo Vianna, pai de Pixinguinha e seu amigo íntimo, Rangel, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Silveira, Luizinho, Anacleto de Medeiros, Quincas Laranjeiras, Henrique Alves de Mesquita, Catulo da Paixão Cearense, Irineu de Almeida ou Irineu Batina, professor de Pixinguinha, Alberto Carramona, Sátiro Bilhar, Patápio Silva, os já mencionados eruditos Duque Estrada Meyer e Pedro de Assis, entre outros. Como se pode ver, Animal não perde tempo em vincular nomes mais conhecidos por sua esfera de ação nas artes eruditas ao princípio do choro, angariando desde seu suposto início um prestígio que elevaria anos mais tarde o gênero musical à condição de fonte do que há de mais puro e erudito em termos de produção popular. Animal também fazia questão de trazer à tona as atividades “chorísticas” do maestro Villa-Lobos (PINTO, 1978: 193) e mesmo de seu amigo Catulo (PINTO, 1978: 73), destacando as contribuições desses personagens célebres nas atividades em que o próprio Animal participara. Dentre os de “hoje”, passíveis de elogio e de serem enquadrados como chorões verdadeiros ou continuadores dos de “ontem”, conforme a terminologia de Animal (PINTO, 1978: 115), figuravam nada menos do que Pixinguinha, Benedito Lacerda, Luperce Miranda, Américo Jacomino, o Canhoto, João Pernambuco, Ratinho e Jararaca, Bonfiglio de Oliveira, Luiz Americano, entre outros dos nomes que permanecem no altar do gênero musical. O traço de continuidade tecido entre essas gerações foi uma das principais contribuições para a construção de um domínio musical restrito que terminaria denominado choro. Neste primeiro esboço que mais tarde seria aperfeiçoado pelos agentes que finalizariam o trabalho de delimitação, Animal oscilava em construir uma fronteira que separasse alguns dos personagens que não fariam parte diretamente do universo dos típicos chorões. Por exemplo, em relação aos estilos musicais polca, valsa, quadrilha, xote, mazurca etc. e seus agentes, Animal os enquadraria sem problemas dentro de uma categoria maior, um tanto quanto indefinida, denominada choro. Havia outros estilos, contudo, que não cabiam imediatamente nesta denominação, a se seguir a proposição de Animal. Um dos casos pode ser ressaltado através da modinha, também presente e permitida nas festas de choro. Aliás,

estilo este que gozava da estima de Animal, quem, segundo ele próprio, possuiria uma boa voz para sua cantoria (PINTO, 1978: 141). Porém, o carteiro aposentado deixa claro muitas vezes nas entrelinhas que a execução de modinhas se tratava de algo rebaixado em relação ao solo de flautas nos bailes e festas de choro, geralmente permitida somente após ter se esgotado o repertório das obras instrumentais. Por conta da maior dificuldade apresentada, esta última atividade requeria uma maior desenvoltura e conhecimento formais do chorão, o que terminava por criar uma inflexão na escala de valores de Animal entre os estilos instrumentais e versificados que, não obstante, conviviam nas reuniões de outrora. Contudo, penetrando-se um pouco mais neste universo por intermédio de algumas anedotas relatadas por Animal, era possível entrever também que o flautista ou o solista em geral possuía uma posição hierárquica superior aos acompanhantes dos instrumentos harmônicos. Isto quem demonstrava contraditoriamente era o próprio Animal, violonista, cavaquinista e cantor de modinhas, ainda que prestasse maior reverência aos estilos instrumentais citados sob a designação maior de choro. Lundu, samba, jongo e macumba eram estilos que poderiam às vezes se organizar ao redor da modinha, não cabendo de forma imediata na designação “choro” enquanto reunião de estilos, mas sim no sentido de festa. Mesmo assim, torna-se evidente aqui o difícil papel de organizador do qual Animal sem querer tinha se auto-incumbido: as classificações de tais estilos seguiriam no mais das vezes critérios de localização territorial ou social e de personagens que capitalizavam uma posição no âmbito artístico em vez de limites musicológicos propriamente ditos, conforme os que vieram a ser adotados. O que já estava contido no discurso de Animal claramente, por outro lado, era o temor pelas formas de música estrangeiras e barulhentas de “hoje”, para ele irritantes (PINTO, 1978: 74), ou os “(...) sambas e marchas que têm glorificado alguns cantores modernos (...)” (PINTO, 1978: 57), logo, distantes das tradições prezadas e relevadas por ele.

Animal, entretanto, não se demonstrava arredio a nenhum estilo a priori, glorificando alguns artistas amiúde marginalizados. Quando ele versava, por exemplo, sobre um Francisco Alves, ele deixava claro tratar-se do “(...) príncipe da melodia, da canção, do samba e da modinha (...)” (PINTO, 1978: 133), afirmação que deixaria Vagalume de cabelo em pé. De Sinhô, personagem central vinculado ao domínio do samba na década de 1920, ele reproduz o título de “(...) rei do querido e estimado samba (...)” (PINTO, 1978: 192). Com respeito a esses personagens, Animal expressa tanto a sua posição subalterna, ao reproduzir os lugares comuns de época, quanto a relativa distância que a sua “especialidade” tomava do gênero samba, possuidor de melhores dissertações e dissertadores mais qualificados para destrinchar suas minúcias do que ele. Cita ainda com ressalvas de que fazem parte dos universos conexos do samba e da modinha, portanto passíveis de serem enquadrados em seu livro O Choro..., personagens como Patrício Teixeira, a quem roga voltar ao samba e à modinha, deixando de lado a moda das emboladas, China, o irmão de Pixinguinha,

“cantor de modinhas e lundus apimentados” (PINTO, 1978: 80), porém identificado como “chorão”, Mocinho, Bahiano, J. Thomaz, Eduardo das Neves, Caninha, Donga, a quem diz ser o autor de um dos “primeiros sambas que abrio com chave de ouro as portas das gravações” (PINTO, 1978: 263) e, inusitadamente, o “grande Vagalume” (PINTO, 1978: 253), autor de Na Roda do Samba. Aliás, a este último personagem Animal dedica uma atenção toda especial: diz tratar-se também de um “chorão”, pois era amigo de todos os chorões, deixando à mostra aqui a existência de uma delimitação no nível grupal entre o samba e o choro. Ademais, Animal elogia seu livro e sua vida boêmia, fatores que o elevariam aos seus olhos. É bom lembrar que Animal freqüentava os ranchos carnavalescos, no caso, um que dedicou determinada nota biográfica num jornal em homenagem a seu sócio emérito Vagalume, o rancho-escola Ameno Resedá. Animal chegou até mesmo a presidir uma dessas agremiações, a Pragas do Egypto, revelando possuir familiaridade muito grande com essas organizações e seus membros. Eis algumas das marcas do reconhecimento e a interpenetração indelével que a circulação desses personagens nesses meios terminaram proporcionando entre os compositores, cantores, agentes etc. do samba e do choro. Até então, em outras palavras, até as investidas de Vagalume e Animal, dificilmente se poderia dizer que ambos estariam atuando em ramos distintos da produção musical popular. Após a produção de suas próprias obras, no entanto, riscavam com giz seus domínios de atuação simbólica que, não obstante, não deixavam de se entrecruzar e de se sobredeterminar.

Esses contatos também ocorriam espacialmente já desde o século XIX em outras paragens, principalmente nas casas em que determinadas festas relatadas por Animal tomavam lugar entre 1890-1908. De acordo com Animal, o choro não contaria com apenas um “berço”, da mesma forma que o samba, isto é, a casa da Tia Ciata. Animal cita ao menos três locais que plausivelmente poderiam ser considerados seus “berços”, como a casa de Manoel Vianna, “onde habitaram os nosso primeiros paes” (PINTO, 1978: 50), a casa de Durvalina, a casa do Paschoal, o quarto de Raymundo (PINTO, 1978: 78) etc. Animal dá a conhecer ainda alguns dos locais em que essas manifestações eram predominantemente levadas a cabo, como a Cidade Nova, a região da Praça Onze e do Estácio de Sá, corroborando a hipótese de que a indistinção entre as manifestações populares era latente, vez que toda esta região congregaria reconhecimento a posteriori por abrigar o samba em seu princípio. Revela ainda a arbitrariedade na escolha do local primevo das “origens” do samba, que poderia ser qualquer outra casa do período em que existissem as festas animadas pelos “chorões” do século XIX, que, vistos anistoricamente, como amiúde os intelectuais engajados costumam proceder no estabelecimento de suas “verdades”, não largavam mão de ser sambistas, haja vista que dada distinção apenas veio a irromper à frente.

A obra de Animal, portanto, teria sido massivamente utilizada para a criação e legitimação das verdades posteriores que demarcariam a formação do gênero musical em pauta. Neste ponto,

seria interessante ressaltar que o autor se posicionaria, tanto em termos sociais quanto temporais, exatamente na transição dos chorões “espontâneos” ou diletantes, dos quais fazia parte a grande maioria retratada por ele situada no século XIX, para aqueles que conseguiriam penetrar o florescente universo das gravações do início do século XX. Embora muitos dos últimos proviessem das fileiras de funcionários públicos, do correio, telégrafo, indústria, caminho de ferro, exército etc.,