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Voltando à metodologia Os vários capítulos: «pode alguém ser quem não é?»

Realizei trabalho de campo antropológico em 2012, durante 6 meses e por mais 5 meses em 2014. Conheci algumas das pessoas em 2002 e em 2004, o que me permitiu ensaiar uma análise mais diacrónica dos seus percursos e identificações, através da minha observação ao longo dos anos. Privilegiei a observação participante com recurso aos diários de campo, bem como o recurso às entrevistas e histórias de vida e de família, nomeadamente pelo registo audiovisual. Realizei mais de 10044 entrevistas e cerca de 40 histórias de vida e de família. Observei as socialidades do quotidiano de sujeitos de diferentes estatutos étnicos e socioeconómicos, numa variedade de lugares e situações. Assim, estabeleci contactos com pessoas de diferentes proveniências e estatutos, de diferentes regiões e localidades de residência, com diferentes atividades ocupacionais, de diferentes idades e géneros. Em 2012, residi em três bairros no distrito de Água-Grande: na cidade capital e arredores, primeiramente com Rosa e os filhos, uma família forra considerada «uma boa família» (seguindo a expressão local) e posteriormente com Maria, os filhos e a sobrinha, uma descendente de cabo-verdianos com um percurso de ascensão. Residi ainda, em 2012 e depois em 2014, em duas pensões familiares no centro da capital. Habitei também em São João dos Angolares, de onde era a sobrinha de Maria.45

Como já foi referido, parti da premissa de que a etnicidade só é apreensível em relação (Eriksen 1993:10), pelo que analiso as interações observadas em diferentes contextos relacionais, dando conta das dinâmicas do fenómeno étnico num vasto leque de interações, do qual também participo. A etnografia que apresento baseia-se no acompanhamento das mesmas pessoas em diferentes «lugares» e localidades.46Guiam-me as socialidades diárias - os quotidianos das mesmas - que ocorrem no quintal de Rosa, na casa de Maria, com José nas

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Como em todas as teses, julgo, faltou-me analisar uma série de dados recolhidos que pretendo recuperar futuramente.

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Aí residi em dois bairros distintos, com a família de Joana, sobrinha de Maria, descendente de angolares e cabo- verdianos, e mais tarde com as freiras (angolanas e espanhola), residentes na mesma localidade.

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Como a Cidade-capital, e alguns dos seus subúrbios (São Marçal, Vila Maria, Quinta de Santo António, Água- Arroz); Guadalupe, Neves, São João dos Angolares, Sto. Amaro, Trindade, Caixão Grande, Bombom, Almas, Santana, Ribeira Afonso, Morro Peixe, Madalena. Ainda algumas roças como Monte Café, Agua-izé, Bernardo Faro, Mendes da Silva, Castelo.

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roças e na cidade, entre outros lugares.

A par do quotidiano, observei ainda alguns «eventos», como por exemplo o transe protagonizado por crianças na escola preparatória da cidade, a cerimónia de homenagem às vítimas do massacre de 1953, os festivais de celebração da independência de São Tomé, o aniversário da cidade, entre outros. A convivência diária com as pessoas com quem residi – e outras, com quem apenas convivi – possibilitou o estabelecimento de laços de confiança e empatia que facilitaram o acesso a uma série de práticas e discursos, a que de outro modo, acredito, dificilmente teria acesso. Assim, observei relações estabelecidas em zonas, vilas, luchans,47glebas de forro, quintais, nas roças, antigas sanzalas, antigas casas de feitores e administradores. Ainda em lugares como os quintais, a beira da estrada, o mercado central, a praia, a beira de praia, as vendas, o lar de idosos, os outros mercados, os bares e cafés, os lotes cultivados, os lotes abandonados, o museu, os salões de estética, as cerimónias oficiais, as escolas, os hotéis, os festivais, a praça de motos, a praça de táxis, as festas de domingo, as roulotte de fast food, as aulas de capoeira, o parque popular da cidade, o bar dos pescadores, as igrejas, os gabinetes dos curandeiros, a rádio local, a galeria de arte da cidade. Descrevo assim as relações entre Rosa e os seus familiares e as visitas diárias e as outras menos frequentes ao seu quintal, bem como as visitas que Rosa e sua filha, Josefina, efetuam. Ainda os percursos que realizei com estas mesmas pessoas a outros lugares; as visitas às roças com Josefina, Rui, José; as visitas ao sul com Rosa e Arlindo, Rui e Gustavo, as visitas aos «lugares chiques» da capital com Josefina, Maria, Gustavo e Rui, as visitas aos subúrbios com Maria, a sua mãe, uma antiga contratada de Cabo Verde que reside num subúrbio da capital; as visitas ao curandeiro com Josefina e Rui; o passeio a Fernão Dias com Josefina; a visita a uma forra ilustre, com Rosa e Josefina; as visitas ao lar de idosos, as visitas a várias localidades com Rui, Gustavo, Josefina, José; pessoas que vou apresentando ao longo do texto e à medida que surgem.

Assim, a estrutura dos capítulos corresponde aos diferentes lugares e casas onde residi e pessoas com quem convivi, aos encontros que vou tendo e presenciando, com e sem etnicidade «dentro». O fio condutor desta investigação são as próprias socialidades e os vários lugares de interação que me vão guiando a argumentação. Relaciono vozes e contextos, com o objetivo de ciar uma etnografia dialógica, como serão todas, na qual a minha presença não é ignorada ou tornada invisível. Eu apareço em campo - ou a representação que de mim fazem - enquanto antropóloga, mulher, branca, portuguesa. Eu, tal como qualquer outra pessoa, sou tão étnica quanto, e é também em relação que me apercebo das minhas identificações, mais ou menos

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São terras relativamente isoladas classificadas como zonas di forro, onde se situam, muitas das vezes, as glebas (cf. Feio, 2008:57).

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relevantes. Como diz Eriksen «[…]anthropologists themselves belong to ethnics groups or nations […]. The concept of ethnicity can be said to bridge two important gaps in social anthropology: it entails a focus on dynamics rather than statistics, and it relativizes the boundaries between ´us` and ´them` […] » (1993:10). Resolvi manter um diálogo aberto com as minhas outras experiências e investigações, uma vez que revisito conversas, hipóteses, entrevistas (usadas e nunca usadas), diários, o que me permite aprofundar certas questões e discuti-las à luz de um novo prisma de análise. Senti a necessidade de rever um leque de interações que estabeleci nas ilhas em 2004, no âmbito de pesquisa de campo para o mestrado, e também em 2002, a primeira viagem às ilhas. Julgo que de algum modo a investigação e o texto que dela resulta, é enriquecido com estes percursos ao passado da minha pesquisa, atribuindo-lhe uma perspetiva longitudinal e diacrónica. Analiso assim, a muito presente disputa da terra, que é também a disputa a um lugar onde pertencer. Observo as manifestações políticas do dia-a-dia e que surgem onde e entre quem não seria de esperar. Observo as pertenças pelas visitas regulares que se fazem e de que se é alvo; o estabelecimento de laços de entreajuda e interdependência; as relações transnacionais, nomeadamente com Portugal; o tópico da civilidade e evolução, presente, como já referido, nas conversas do quotidiano.

Analiso as comunalidades - presentes nos meus diários de campo– bem como as apostas na diferença entre sujeitos com o mesmo e com diferentes estatutos. Observo o que me surge em campo: os tópicos da fé e a frequência de determinados lugares, as práticas alimentares e determinados produtos de consumo, e os lugares onde estes ocorrem; a partilha de conhecimentos tradicionais ligados à terra, à cura e à saúde (corporal e espiritual); o capital social e cultural; um leque diversificado de representações. Surgem modos de pertencer e de diferenciação, relacionados com fenómenos como as migrações, as emigrações e as imigrações. Analiso tópicos como as vizinhanças; as histórias contadas à noite, no quintal (as sóias), que abordam assuntos que também expressam identificação e alteridade. Das temáticas da «nostalgia do império», ao subtema «eu tenho um português» aos discursos relacionados com o massacre de Batepá e as resistências ao colono, nomeadamente contadas na 1ª pessoa. Observo os lugares que se escolhem para viver, os percursos de quem sai da roça «para ir sair na cidade» e as vontades praticadas de quer «ser cidadão» (formulação local). As ideologias hegemónicas sobre «quem é quem e de quem faz o quê», segundo as diversas etnoteorias e os estatutos das pessoas, e a par, as recentes valorizações – ambíguas – de certas categorias como cabo- verdiano e descendente. Tenho como fio condutor os diferentes modos de viver a etnicidade e outras identificações, observando como se «aprende a ser» nas casas das famílias certas, questionando-me quando e como pode alguém ser quem não é.

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CAPÍTULO 2 - «SÃO TOMÉ EM MIM É COMO SANGRAR CLOROFILA» E OUTROS

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