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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

3.2 Acirramento do desamparo

3.2.1 Vulnerabilidade e incerteza

Com a disseminação do liberalismo no século XIX e, sobretudo, do neoliberalismo na década de 1980, concomitantemente à derrota do projeto socialista de promover a igualdade

efetiva entre os cidadãos e à crise do Estado de Bem-Estar Social, chega ao fim a crença na reinvenção de si e do mundo pela revolução coletiva. Há a falência das instâncias de mediação, inclusive dos Estados-nação. A família deixa de ser lugar de proteção e os laços sociais se tornam mais fluidos. Estamos diante do silenciamento da alteridade, da ausência de hospitalidade e de acolhimento, que potencializam a vulnerabilidade e a desnarcização das subjetividades (BIRMAN, 2012).

Se o indivíduo contemporâneo não pode mais contar com a proteção do Estado e da família, nem com a mediação e a solidariedade do outro, cabe somente a ele a realização de seus empreendimentos. Tem-se um Estado mínimo e cada indivíduo é uma microempresa. Para o sociólogo Alain Ehrenberg (2000), a crise das sociedades disciplinares não significa o fim de pressões sociais. A perda de padrões e de guias externos “privatiza” a existência, transformando cada indivíduo em único “proprietário” da sua vida. Uma crise identitária então o acomete.

O homem soberano, semelhante a si mesmo, do qual Nietzsche anunciava a vinda, está em vias de se tornar uma realidade de massa: não há nada acima dele que possa lhe indicar o que ele deve ser, pois ele se pretende o único proprietário de si mesmo. Pluralismo moral e não conformidade a uma norma única, liberdade de construir suas próprias regras no lugar de vê-las se impor: o desenvolvimento de si torna-se coletivamente uma questão pessoal que a sociedade deve favorecer30. (EHRENBERG, 2000, p. 151, tradução minha)

O autor cita uma série de mudanças sociais ocorridas no final do século passado que teriam reforçado a sensação de precariedade do indivíduo contemporâneo, como a diminuição das garantias de estabilidade das carreiras, que se tornam voláteis, e o enfraquecimento das fronteiras hierárquicas na família e das diferenças simbólicas entre gêneros e gerações. Ainda assim e embora fale de crise identitária, Ehrenberg nos alerta para que não lamentemos o fim do controle disciplinar. Não se trata de uma perda, e sim de uma multiplicação de referências – novos saberes, filosofias, religiões, mídias – com os quais o indivíduo se confronta hoje, aumentando os seus sentimentos de insegurança e fragilidade. Fica difícil para ele fabricar a si mesmo e a sua história sem poder contar com referências estáveis de apoio.

Em “O mal-estar na civilização”, Freud afirma: “O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança” (FREUD, 1930/1996, p. 119). A crítica de Freud é a de que a condição necessária à construção e à

30 L’homme souverain, semblable à lui-même, dont Nietzsche annonçait la venue, est en passe de devenir une réalité de masse : il n’y a rien au-dessus de lui qui puisse lui indiquer qui il doit être, car il se prétend le seul propriétaire de lui-même. Pluralisme moral et non conformité à une norme unique, liberté de se construire ses propres règles au lieu de se les voir imposer: le développement de soi devient collectivement une affaire

personnelle que la société doit favoriser. Un type de sujet, moins discipliné et conforme que « psychique », c’est-à-dire enjoint de se déchiffrer lui-même, surcharge le paysage.

sustentação da cultura foi a renúncia dos indivíduos à satisfação de pulsões ligadas à sexualidade e à agressividade. Nesse sentido, a vida segura em sociedade tornou irrealizável o programa de tornar-se feliz, imposto pelo princípio de prazer. Isso explicaria o desconforto que domina o campo dos relacionamentos humanos e o adoecimento neurótico daqueles que não suportam a frustração imposta pelas restrições sociais.

Só que os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais. (BAUMAN, 1998, p. 10)

O trecho acima, do livro “O mal-estar da pós-modernidade”, escrito por Bauman quase 70 anos após Freud ter escrito o seu, enuncia o seu argumento principal em relação à passagem da sociedade moderna à pós-moderna: enquanto a primeira se caracteriza pela escassez de liberdade em prol da estabilidade e da durabilidade dos projetos de vida, a segunda se define pela soberania da liberdade nas escolhas individuais, à custa, porém, de uma vida sob condição permanente de incerteza e indeterminação, já que não há mais projeto identitário dado ou modelos de conduta externos. Os três ideais da modernidade citados por Freud – beleza, pureza e ordem – não teriam sido abandonados, mas devem agora ser perseguidos com espontaneidade e esforço individuais.

Na modernidade, o processo de construção de identidade por cada indivíduo era gradual e definitivo, porque já havia um esquema concluído da identidade antes mesmo de ela começar a ser erigida. A vida era planejada a partir de um conjunto finito e rígido de possibilidades, e mudava pouco. As tentativas e os esforços individuais para empreender alguma mudança tinham pouco resultado diante da solidez das estruturas sociais. Atualmente, porém, a identidade de cada indivíduo parece estar em constante reconstrução e os projetos de vida não se ancoram mais em terreno estável.

Viver livre em um mundo maleável e incerto é experiência diferente de uma vida subordinada à tarefa de construir a identidade em um mundo ordenado. Ambas produzem mal-estares, embora diferentes. Para Bauman, o mal-estar próprio da pós-modernidade é provocado pelo sentimento de incerteza, que parece dizer respeito à falta de solidez e continuidade que caracteriza tanto as estruturas sociais como os projetos de vida individuais e os laços sociais e afetivos.

O sentimento dominante, agora, é a sensação de um novo tipo de incerteza, não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas igualmente a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e erros da maneira de viver. (...) O mundo pós-moderno está

se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível. (BAUMAN, 1998, p. 32)

Benilton Bezerra Jr. (2009, 2010) desenvolve um argumento parecido: sem normas que ordenem desejos e ações, e estimulado a se desvencilhar de roteiros predeterminados, o sujeito se vê, então, desamparado diante da tarefa complexa de constituir sua identidade com seus próprios recursos.

A contrapartida dessa sensação de precariedade que domina o sujeito contemporâneo é a necessidade de reconhecimento social, que deixa de estar garantido a priori e pode falhar. O indivíduo ganha autonomia em relação a modelos de conduta externos, mas, paradoxalmente, se torna dependente da aprovação do outro (BEZERRA JR., 2009; EHRENBERG, 2010; PINHEIRO et al, 2006).

Jurandir Freire Costa (2005) entende que essa contradição na relação com o outro pode ser entendida como, por um lado, menosprezo do indivíduo pelo outro próximo, em seu papel de avaliá-lo, e, por outro, idealização e necessidade do outro anônimo, de cujo reconhecimento ele necessita para estar seguro do valor de seus ideais. Ehrenberg chama de “autonomia assistida” essa combinação de liberdade e dependência que caracteriza o indivíduo contemporâneo.