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A Originalidade de Gilberto Freyre

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Academic year: 2023

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A O riginalidade de G ilberto Freyre

R oberto D aM atta

M o rto G ilb e rto F re y re, c h eg a a h o ra de a v a lia r su a o b ra . E q u e o b ra é essa ? Q u a is a s su as p rin c ip a is c a ra c te rís tic a s? Q u a l é o c e n tro d e su a o rig in a lid a d e ? O n d e ela d ife re e c o n fere co m o s e sfo rço s in te le c ­ tu a is d o s seus c o n te m p o râ n e o s? D e q u e m o d o ela m a rc a e d iv id e e ta p as n a S ocio­

logia b ra sile ira e n o n o sso e sfo rço de au to - in te rp re ta ç ã o c o m p re en s iv a ?

P a ssad o o m o m e n to te n e b ro so d a m o rte e d a v e rg o n h o sa d is p u ta p e lo c ad áv er, q u a n d o os co n h ec id o s c an ib ais b o ta m as u n h a s d e fo ra, estam o s m e lh o r p re p a ra d o s p a r a d is tin g u ir a c a rn e q u e p a ssa d o s ossos q u e ficam . A e x p eriên c ia tr a z u m in u si­

ta d o e n te n d im e n to d e u m a in stitu iç ã o m u ito c o n h e c id a d a A n tro p o lo g ia Social:

os e n te rro s d u p lo s o u s e c u n d ário s. C o m ­ p re en d e m o s, a fin a l, q u e é p reciso e n te rra r c ertas p esso as d u p la m e n te e q u e a seg u n d a v e z é o m o m e n to em q u e a so c ied a d e d o m o rto r e p ro d u z su a m e m ó ria , m en o s p o r c au sa d a co m o ção in ic ial d a m o rte , de q u e d a n e c e ssid a d e fís ic a de te r q u e d is p o r do c o rp o ; m as p e lo q u e e la deseja p e rp e tu a r d o m o rto . O e n te rro se c u n d á rio , assim , é a o casião d a av aliaç ão so cial d o m o rto . M o m en to em q u e desejam o s s a b e r se o seu r e tr a to p o d e p e rm a n e c e r o v a la d o e sa lie n te n a sala-de-visita d e n o ssas casas o u te rá q u e a m a re la r e ser ro íd o p elas tr a ç a s . . .

S erá d e s ta p e rsp e c tiv a q u e irei re a liz a r alg u m as co n sid era çõ e s s o b re a o b ra d e G il­

b e rto F reyre.

Sociólogos e a n tro p ó lo g o s n ã o e n g en d ra m a re a lid a d e e m p írica , m as q u a n d o são gen iais, in v e n ta m m o d o s esp eciais d e p e r­

ceb ê-la e to rn á-la lite rá ria . O u seja: são cap a ze s d e tra n s fo rm a r o c aó tico s o frim e n ­ to d iá rio , q u a se se m p re v iv id o co m o algo sem fo rm a, fu n d o , o rie n ta ç ã o o u se n tid o , n u m a narrativa. N u m “ o b je to ” q u e tem in íc io , m e io e fim ; n u m a “h istó ria ” c u jo sig n ificad o v a i a lé m d as d e te rm in a çõ e s se m ân tica s d a d a s p e lo s códigos q u e o rien ­ ta m o sen so -co m u m e a re fle x iv id a d e d o m u n d o c o tid ia n o . M a s o q u e foi q u e G il­

b e rto F rey re v iu q u a n d o se d e b ru ç o u so b re o B rasil? Q u e n a r ra tiv a in v e n to u q u a n d o in te g ro u os ev en to s d a n o ssa h istó ria com os da n o ssa v id a c o n te m p o râ n e a ?

G ilb e rto F rey re fo i u m g ra n d e n a rra d o r, n ã o só p o rq u e “ e screv ia m u ito b e m ” ; ou e screv ia b e m p o rq u e e ra — a fin a l de co n ­ tas — u m "so ció lo g o d e d ire ita ” e, com o ta l, p e n sa v a m elh o r e m term o s d e “ fo rm a ” d o q u e d e “ su b s tâ n c ia ” o u “ c o n te ú d o ” . 1 O u p o rq u e — sen d o v a id o so e áv id o de elogios

— se c o n sid era v a “ e s c rito r” . 2 M as p o rq u e esco lh eu fa la r do B rasil de u m a c e rta p e rs ­ p e c tiv a , d e d e n tro de u m a d a d a m o ld u ra . E o â n g u lo e sc o lh id o fo i ju sta m e n te a q u ele q u e m ais p e rtu rb a , p o sto q u e ju n ta o b io ­ g rá fic o e o e x isten cial; co m o h istó ric o , o lite rá rio e o in te le c tu a l. Se u m ríg id o u n i­

v erso c o n ce itu a i e ra (e a in d a é o g ran d e esc o n d erijo d e to d o s o s “ c ie n tis ta s so c iais”

q u e fa la m d e to te n s e tem a s, de e stru tu ra s e categ o rias cie n tífica s, e v ita n d o , co m o o D ia b o a c ru z, fa la r de si m esm os e d e suas

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so cied ad es; o “ m éto d o e n sa ís tic o ” e sc o lh i­

d o p o r F rey re, o b rig a o a u to r a colocar-se (com seu sistem a d e v alo res) n o c e n tro m esm o d a n a rra tiv a . A q u i n ão ge fa la m ais d e B rasil co m o se o “ b r a s il” fosse u m esp écim e n a tu ra l, m as se d isc u rsa s o b re a

“ re a lid a d e b ra s ile ira ” , to m a n d o -a com o um a m o ra lid a d e com a q u a l se tem in te ­ resses p a te n te s e q u e e n g lo b a o e sc rito r.

O e n sa ísta , assim ja m a is assu m e aq u ela a titu d e “ d e s in te re s sa d a ”, “ d is ta n te ” o u

“ c ie n tífic a ” , d ia n te d o se u tem a. A o c o n trá ­ rio , ele e stá se m p re a seu la d o : p o r e le e com ele. R e alm en te, e n sa io ten d e s e m p re a tra v a r u m a d u ra b a ta lh a c o n tra o e x ó tico , se n d o u m a re c u sa d o “ d isc u rso to tê m ic o ” , esse e n re d o in a u g u ra d o p elas v e rte n te s m ais ra d ic a lm e n te “ c ie n tificista s” d a A n tro p o lo ­ gia S ocial (ou C u ltu ra l) in g lesa, fran c e sa e n o rte-a m e rica n a, q u e im ag in av a o p e sq u i­

sa d o r se n ta d o n u m a p o ltro n a , m esm o q u a n d o ele p a ssa v a a n o s n a “ tr ib o ” . A q u i, c o n fo rm e se sa b e , tu d o fu n c io n a p a ra m a n ­ te r a d istâ n c ia e se r u m e le m en to cau te- riz a d o r d as p o ssib ilid a d e s d e p ro d u z ir u m d iscu rso am b íg u o , d ra m á tic o e sen su al — à G ilb e rto F rey re. U m tex to q u e co n fo rm e n os e n sin a B a k h tin , fa la e m m u ita s vozes e p a r a m u ita g ente. É c o lo n iz a d o r e “ de fo ra ” (n a m e d id a em q u e seu a u to r d ia ­ loga com m estres e colegas q u e p ro d u z e m nos c en tro s in te le c tu a is d o O c id en te, o n d e e stu d o u ); m as é tam b é m u m te x to so frid o e “ d e d e n tro ” (já q u e seu a u to r fa la p a ra si m esm o com o m e m b ro d a so cied ad e q u e e stu d a ). É u m tex to q u e p re te n d e ser “ v er­

d a d e ” e “ p o d e r” (p o rq u e se su p õ e c ie n tí­

fico e re su lta d o de p e sq u isa s), m as q u e n ã o a b a n d o n a su a s p re te n sõ e s de se r “lite ­ r á rio ” e, p o rta n to , “ p o lític o ” e “ n a c io n a l”

(sem o q u e n ã o te ria a m e n o r o p o rtu n id a d e d e ser c o n sid era d o p elas elites de su a te rra ).

O d isc u rso an tro p o ló g ico e cien tífico clássico, p o ré m , é u m a fa la “ to tê m ic a ” e cla ssifica d o ra . F ala d e f o r a p a ra d e n tro , p o rq u e acim a d e tu d o , d eseja “ p ô r o rd em no m u n d o ”. P a ra ta n to , tal d iscu rso não p o d e c o n ta r consigo m esm o co m o ta l: tem q u e se r u m d iscu rso m o rto . M as p a ra m o rre r, h á q u e se n e u tra liz a r o e sc rito r e o b je tific a r e “ n a tiv iz a r ” p a ra se m p re os n ativ o s. O p e ra ç ã o im p o rta n te q u e n o p la n o das C iên cias N a tu ra is c o rre sp o n d e à clássica se p a ra ç ão e n tre “ su je ito e o b je to ” . M as nas C iências H u m a n a s , o n d e su je ito e o b jeto estão , c o n fo rm e o b se rv o u L évi-S trauss, n u m a m esm a e scala, isso se fa z “ u n iv e rs a ­ liz a n d o ” o a u to r e , sim u lta n e a m e n te , “ lo ca­

liz a n d o ” os n a tiv o s. O q u e im e d ia ta m e n te lem b ra o fam o so e n sa io de C liffo rd G e ertz ,

sig n ific a tiv am e n te in titu la d o : “ d o p o n to d e vista d o n a tiv o ” (fro tn n a tiv e p o in t o f v ie w ) o n d e se d isc u te co m o se d ev e re a ­ liz a r u m a e tn o g ra fia ep istem o lo g icam en te sa tis fa tó ria . P a ra G e ertz , isso se ria a lc a n ­ ç a d o d e sd e q u e n ã o se p e rd esse d e vista o diálo g o (o u , co m o diz ele, u m diciletical td lk in g ) e n tre o “ m ais lo ca liz ad o dos d e ta ­ lh es lo cais e a m ais g lo b aliza d a d as e stru ­ tu ra s g lo b a is” (cf. G e ertz , 1983:59). A idéia é ex celen te. Só q u e e la a c a b a “ n a tiv izan - d o ” o n a tiv o , já q u e se d e le ita co m o e stu ­ do c u id a d o so (e re b u sca d o ) d as categ o rias lo cais, m a s n e m s e q u e r p e n sa em d isc u tir o sig n ificad o sociológico d a s “ e stru tu ra s g lo b ais” . S erão elas o ta l “ e sp írito h u m a ­ n o ” — o “ h ó sp e d e ” n ã o co n v id a d o d a o b ra de L év i-S trau ss, q u e ch eg a q u a n d o o etnó- g ra fo estav a ju s ta m e n te p re o c u p a d o em e s tu d a r B o ro ro s, N a m b iq u a ra s e P a u lis ta s?

O u se rá q u e tu d o isso “ in o c e n te m e n te ” p re ssu p õ e a id é ia d e u m o b s e rv a d o r u n iv e r­

sal, e te rn o , e q ü id is ta n te e p e rfe ito ? U m cid a d ã o do m u n d o , acim a de q u a lq u e r su s­

p e ita (e jam a is d u sc u tid o ), q u e seria tão

“ u n iv e rs a l” q u a n to R o u ssea u (q u e fa la v a fran c ê s), H eg el q u e e ra alem ão , H o b b e s q u e escrev ia e m inglês e C liffo rd G e ertz q u e é n o rte-a m e rica n o ? 3

O p o n to d e v ista n a tiv o d e G e ertz , está in te res sa d o so m e n te em fa la r do “ n a tiv o ” , p o u p a n d o siste m a tic a m e n te o su jeito q u e fa la , esse “ u n iv e rs a liz a d o r” q u e p re te n d e o p e ra r fo ra d o m u n d o e d as categ o rias h istó ric a s e c u ltu ra is . A v e rd a d e ira “ p ro v a ” das etn o g ra fia s n ã o e staria a p en a s n u m c o n h ec im e n to e x te rio r, re s u lta d o d e u m a m a rra d a d ialé tica e n tr e o h ip e rlo c a l e o su p e ru n iv e rsa l, com o q u e r G e ertz , m a s n a re v elaç ã o d a m e n ta lid a d e q u e to d o etnó- g ra fo tra z d e n tro deí si. H á u m N u e r visto p o r u m in g lês q u e ta lv e z seja m a is rev e­

la d o r d o q u e o N u e r “ re a l” e “ a fric a n o ” ,

“ e s tu d a d o ” p o r E v a n s -P ritc h ard . U m a h e r ­ m en ê u tic a n ã o d ev e fa la r so m e n te d e re g ra s cap a zes d e p ro d u z ir tra d u ç ã o e e n te n d i­

m en to . E la deve e s ta r, tam b é m , re fe rid a à d e sc o b e rta d e q u e , te n ta n d o fa la r d o lu g ar d o o u tro , p ro d u z im o s te s te m u n h o s e re v e ­ lações d e n ó s m esm o s. E sse f a ia r “o b je ­ tiv a d o ” , d o o u tro , tam b é m , n os re v e la e nos h a b ilita a e n x e rg a r o n o sso sistem a d e classificação co m o u m e sp aço lo ca liz ad o e c la ra m e n te a rb itrá rio . D e n tro dele, ag o ra p o d em o s v e r, h á u m “ n a tiv o ” u n iv ers ali­

z a d o r e c o sm o p o lita q u e n a d a m ais é do q u e u m o u tro su je ito , tam b é m , c u ltu ra l e h isto ric a m e n te c o n stru íd o . A o c o n trá rio do q u e d iz G e e rtz , u m a h is tó ria d a fe itiç a ria ,

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e sc rita p o r u m fe itice iro , é tão a p ris io n a d a p elo s h o riz o n te s m e n ta is d o e s c r i t o r .. . q u a n to W itc h c r a jt, ü r a c le s a n d M agic A m o n g th e A z a n d e é u m liv ro a p ris io n a d o pelo sistem a de categ o rias d e E vans-P rit- c h a rd . O u n iv ers alism o p e rm ite v e r c ertas coisas, m a s tal com o aco n tec e com u m a v isão lo ca liz ad a , tam b é m , n ã o p e rm ite e n x e rg a r tu d o . 4

— II —

P ois b em , é, a m eu v e r, e sta p osição e n sa ístic a, au to -reflex iv a e d ecid id am en te , de d e n tro , q u e tip ifica a Sociologia d e G il­

b e rto F rey re. P o sição c o n sc ie n te m en te a s­

su m id a , com o q u e p a ra e q u ilib ra r o n o rte- -am erican ism o e o e u ro p eísm o q u e , p a r a ­ d o x al e d iale tica m en te fo ram tão im p o r­

ta n te s p a ra a fo rm a ç ã o de G ilb e rto F rey re co m o e stu d io so (o u e stu d a n te ) d a so cied ad e b ra sile ira . R e alm en te, n u m a p assag em do p re fá c io à p rim e ira ed ição d e C asa G ra n d e

& S e n za la (p u b lic a d o em 1933), e n co n tra ­ m o s essa c o n sc iê n cia en saística q u e, a m eu ver, a n te c ip a a p e rtu rb a d o ra re la tiv iz a ç ã o e s tru tu ra lis ta . N e la , G ilb e rto F rey re a firm a q u e fa z e r S o ciologia n ã o é d e sc o b rir re ce i­

tas m as, é “ q u e re r n os c o m p le ta r: é o u tro m eio d e p ro c u ra r-se o " te m p o p e r d id o ” . O u tro m eio d e n os sen tirm o s n o s o u tro s

— n os q u e v ie ra m an tes d e n ó s ( . . . ) . “ É u m p a ssa d o q u e se e s tu d a to c a n d o em n e rv o s; u m p a ssa d o q u e e m e n d a com a vida de c ad a u m ; u m a a v e n tu ra de sen si­

b ilid a d e , n ã o a p en a s u m esfo rço de p e s­

q u isa p e lo s a rq u iv o s ” .

O u seja, fa z e r u m a Sociologia do B rasil n ã o se ria a p en a s u m ex ercício in te lec tu a l.

Isso seria v e rd a d e iro p a r a u m p ra tic a n te de u m “ d isc u rso to tê m ic o ” . P a ra u m en saís­

ta b ra sile iro q u e fa la d o B rasil, p o rém , há algo fu n d a m e n ta l q u e G ilb e rto F re y re p e r ­ ceb eu com o b á sico p a ra a t a r e f a .5 Q u e ro m e re fe rir ao fa to de q u e fa la m o s do B rasil n u m p lan o de c o n tin u id a d e em o cio n al:

u sa n d o a m esm a lín g u a q u e to d o s falam e p o d e n d o se n tir p o r d e n tro a p ro b le m á ­ tica d a so c ied a d e e d a n a ç ã o .0 O p ro b le ­ m a básico talv e z, é q u e so m o s o b rig ad o s a to m a r co n sc iê n cia e m o cio n al d a c o n tin u i­

d a d e p a ra , em seg u id a, te n ta r o sa lto in te ­ le c tu a l n a d e sc o n tin u id a d e . U m a o p e ra ç ã o c o m p lica d a q u e d isc u ti sim p lifica d am e n te com a fó rm u la d o “ tra n s fo rm a r o p ró x i­

m o em d is ta n te ” , n o m eu liv ro R ela tivi- z a n d o , m as q u e ten h o p o sto em p rá tic a n o s m eu s en saio s so b re o B rasil.

M as já é te m p o d e re fle tir m ais d e tid a ­

q u isa d o r e stu d a su a p ró p ria so cied ad e, de c erto m o d o re a liz a a e x p eriên c ia d o fe iti­

c eiro d e G e ertz , a p ris io n a d o q u e e stá p e la fa la e p elo p eso d o s v alo res q u e su a escri­

ta d esco b re, e stu d a e c e rta m e n te tem o p o d e r d e ex o rciza r. A q u i, é c erto , c o rre ­ m os o risco de te r so m e n te o “ p o n to de v ista d o n a tiv o ” m as p a re c e q u e sem essa p e rsp e c tiv a , n ã o h á tra n s fo rm a ç ã o o u m u ­ d a n ç a . . .

P e n so q u e G ilb e rto F re y re p e rce b eu isso n o seu tra b a lh o . C e rta m e n te p o rq u e foi u m v ia ja n te p reco ce e, co m o ta l, v iu o B rasil p rim e iro de fo ra (co m o o b jeto c o n ­ c e itu a i e p o r m eio de o u tra s linguagens) e, p o ste rio rm e n te , d e v o lta a o R ecife, qu is re tq m a r o B rasil c o n cre to e sen sív el, p re ­ te n d e n d o c o m p le m e n ta r as d u a s v ersõ es. É p e lo m e n o s assim q u e se p o d e l e r su a a u to ­ b io g rafia, T e m p o M o rto e O u tro s T e m p o s, o n d e G ilb e rto fa z u m e sfo rço p a r a assim i­

la r e re c o lo c a r d e n tro d o B rasil (e de sua v id a) os lo n g o s a n o s q u e v iv e u n o ex te ­ rio r. D e ste m o d o , ele n ã o assu m e a po si­

ção triv ia l d e u m in te le c tu a l b ra sile iro assim ilad o p e la “ c u ltu r a ” fra n c e sa o u am e­

rica n a. M as, ao c o n trá rio , e m b o ra ten d o v iv id o n o s E stad o s U n id o s d os 18 ao s 22 a n o s; e e n tre P a ris, L o n d res e O x fo rd dos 22 aos 23 an o s, q u a n d o r e to r n a ao B rasil e a R ecife, G ilb e rto F rey re v o lta a in d a m ais b ra sile iro , so m a n d o u m a ex p eriên cia in te le c tu a l c e rta m e n te m o d e rn a , in d iv id u a ­ lis ta e c o sm o p o lita, ao d esejo d e re to m a r u m a ligação sen sív el com o R ecife, o N o r­

d este e o B rasil. C reio q u e é essa relação d ifícil e co m p le x a e n tre o in te lec tu a l e o sensível, o d e d e n tro e o de fo ra , o viv id o e o c o n ce itu a liz ad o , o lo cal e o u n iv ers al, o q u e r e q u e r tra d u ç ã o e aq u ilo q u e faz p a r te do a r q u e se re s p ira q u e G ilb erto F re y re q u e r e s tu d a r e, e v e n tu a lm e n te , e q u i­

lib ra r, em su a o b ra . N e la, n ão tem o s nem tira d a s n a cio n alistas n em a q u e la a titu d e liv re sc a, tã o c o m u m n o s nossos in te lec ­ tu ais m al-v iajad o s q u e se re su m e em a p li­

c ar ao B rasil, fó rm u la s feitas “ lá f o r a ” . T a m b é m n ã o tem o s u m a v isão a lta m e n te n e g ativ a d o B rasil, q u a n d o se c o n fu n d e , c o n fo rm e já su g eri, a so c ied a d e com a n a cã o e, às v e ze s, com o regim e.

Sem d ú v id a , essa e x p eriên c ia crítica e p re co c e d a “ v iag e m ” 7 p e rm itiu q u e G ilb e r­

to d esen v o lv esse u m a e sc rita sem p e d a n ­ tism o, d e se n v o lv e n d o u m a Sociologia d o B rasil q u e é o rig in a l n a su a tem á tica , a b o r­

d a n d o a s o c ied a d e atra v és d e categ o rias n a tiv a s, n ã o a p a r tir de p re ssu p o s to s te ó ri­

cos fre q ü e n te m e n te m al-assim ilad o s. O re ­

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n h e cid o a té m esm o pelo s seus leito res. T ão re co n h e cid o q u e m u ita s vezes c o n fu n d ira m su as reflex õ es co m m e ra o p in iã o lite rá ria , a n e d ó tic a o u p o rn o g rá fic a . 8

— II I —

T u d o isso d e stac a a o b ra d e G ilb erto F re y re n o c e n á rio in te le c tu a l b ra sile iro . P a ra ta n to , b a s ta le m b ra r q u e n a v ira d a do sccu lo , se fa la v a d o B rasil a tra v é s de u m a lin g u ag em p a r a m é d ic a .9 N a co n cep ção de e n tã o , o a tra s o do B rasil d e c o rria d a fa m o ­ sa m is tu ra d e ra ça s q u e e ra to m a d a com o a p rin c ip a l c a ra c te rís tic a d a n o ssa fo rm a ­ ção. R e alm en te, e ra m ais fácil f a la r de

“ in ferio rid a d e s ra c ia is” (d a d as n a o rd e m d a n a tu re z a ), d o q u e d e d o m in a ç õ es sociais, p o lítica s e e co n ô m icas (d a d as n a o rd e m d a h istó ria e d a c u ltu ra )! A p a rtir, p o rta n to , de u m a c ria tiv a , m as m ed ío c re “ fá b u la das três ra ç a s ”, falav a-se d a so c ied a d e b ra sile i­

ra a tra v é s d e u m a d in âm ica p u ra m e n te bio­

lógica. C om o se n o B rasil n ã o ho u v essem se n h o res e e scrav o s, n em c o n tro les h ie rá r­

q u ico s q u e m o ld a v a m o s códigos lib e rais e cap ita lista s d e u m m o d o esp ecial, fa ze n ­ d o co m q u e tu d o se co n fo rm a sse à lógica do “ sa b e co m q u e m e stá fa la n d o ? ” e d o

“je itin h o ” . 10 P e n sa v a -se o B rasil com o u m a so c ied a d e cu jo s m ales fa ziam n a su a b io lo g ia, n ã o n a su a c u ltu ra e e s tru tu ra d e p o d e r. N ã o v o u v o lta r a d en u n cia r essa

“ fá b u la d a s três ra ç a s ” , re p e tin d o o q u e já fiz n o m e u liv ro , R e la tiv iza n d o . M as é p re ciso d iz e r q u e em C asa G ra n d e & S e n ­ zala, G ilb e rto F rey re re a liz a u m a d e m a rc h e p a ra d o x a l, n e m sem p re p e rc e b id a pelo s crítico s. É q u e , n a q u e le liv ro , e le re v este d e v e rd a d e a “ fá b u la d as três ra ç a s ” , ao m esm o te m p o q u e in ic ia su a dem o lição c rític a , to m a n d o a “ m estiçag em ” m u ito m ais co m o u m p ro c esso s itu a d o n o có d ig o histó- ric o -c u ltu ra l, d o q u e n o q u a d ro d e u m a lin g u a g e m ra c ia l. E m C asa G ra n d e & S e n ­ zala, p o r ta n to , a “ m es tiç ag e m " a p are ce d e n tro d a ló g ica d o a m b íg u o e d o p a r a ­ d o x a l. A g o ra , o B rasil n ã o e ra “ m estiç o ” , p o rq u e e sta v a su jeito a u m a re a l e b io ló ­ g ica “ m is tu ra d e ra ç a s ” , m as p o rq u e era u m a so c ied a d e “ c u ltu ra lm e n te m e s tiç a ” ; u m sistem a q u e se m a n ife s ta v a “m is tu ra n d o ” in stitu içõ e s so ciais q u e em o u tro s lu g ares e e m o u tro s tem p o s, e stav am rig id a m en te se p a ra d o s. C om o re s u lta d o , o “ m es tiç o ” p ô d e se r v isto co m o u m e le m en to p o sitiv o : co m o v a lo r social. D este p o n to d e v ista, a c o n tra d iç ã o q u e o “m e s tiç o ” acen tu a em to d o o lu g a r, p a ssa a ser s u g e rid a co m o u m p o n to c en tral d o sistem a de v a lo re s d a so­

c ie d a d e b ra sile ira .

T a l le itu ra d o B rasil só p o d e ser p o ssí­

vel, n a m e d id a e m q u e se fa z u m a ra d i­

cal se p a ra ç ão e n tre B iologia e C u ltu ra , co n ­ fo rm e a c e n tu a v a G ilb e rto e m Casa G ra n d e

& S e n za la, q u a n d o d iz:

“ A p re n d i a c o n s id e ra r fu n d a m e n ta l a d ife re n ç a e n tre raça e c u ltu ra ; a d isc ri­

m in a r e n tre o s e fe ito s d e re la çõ e s p u ra ­ m en te g en éticas e os d e in flu ê n cia s sociais, d e h e ra n ç a c u ltu ra l e de m eio.

N e ste c ritério de d ife re n c ia ç ã o fu n d a ­ m e n ta l e n tre ra ç a e c u ltu ra a sse n ta to d o o p la n o d e ste e n saio . T am b ém n o da d ifere n cia çã o e n tre h e re d ita rie d a d e de ra ç a e h e re d ita rie d a d e d e fa m ília .”

O ra , n u m m eio in te le c tu a l q u e a té h o je a in d a n ã o sa b e b e m d istin g u ir essas d im e n ­ sões d a re a lid a d e s o c io ló g ic a .11 v a le re s ­ s a lta r q u e fo i c e rta m e n te a o b ra de G il­

b e rto F re y re a q u e p rim e iro a rtic u lo u essa h istó ria q u e to d o b ra s ile iro g osta de co n ­ t a r p a ra si m esm o ; a sa b e r: q u e so m o s u m a c u ltu ra “ m estiç a ” e “ m is tu ra d a ” , u m m odo d e fa la r q u e fica e n tr e os co n ceito s (o de

“ ra ç a ” e o d e “ c u ltu ra ”), c o s tu ra n d o e p re fe rin d o a m b ig u a m e n te os d o i s . . .

M as o p ro jeto e n sa ístic o d e G ilb erto Freyre o b rig a, tam b é m , a u tiliz a r n o v o s m ate ria is . N ã o só os d o c u m e n to s clássicos do h is to ria d o r, m as, ta m b é m , os a rq u iv o s de fam ília, as n a rra tiv a s de v ia ja n te s , os a n ú n cio s de jo rn a l, as c a rta s e as m em ó ­ ria s pesso ais; além d os v a lo re s q u e a socie­

d a d e a tu a liz a em to d o s os seus nív eis de re aliz a çã o . A ssim fa z e n d o , G ilb e rto F rey re d eix a d e s e r o e le m en to m e d ic a liz a d o r e d isc ip lin a d o r d o seu p ró p rio sistem a, u m p a p el irresistív e l d os in te lec tu a is em nosso P aís. N a su a o b ra n ã o se fa la do B rasil com o u m m éd ico fa la d o seu p a c ie n te (a ex em p lo do q u e fe z N in a R o d rig u es ), nem co m o u m en g en h e iro fa la de u m a o b ra (com o fa z E u clid es d a C u n h a ), n em com o u m ju ris ta fa la d e suas leis (co m o fa z O li­

v e ira V ia n n a ); o u u m e co n o m ista d e suas cifras.

M as p o r te r e sc o lh id o o m éto d o en saís­

tic o . G ilb e rto F rey re re c u sa u m d iscu rso e ssen cialm en te n o rm a tiv o , m ed ic a liz a d o r d a su a so c ied a d e. A ssim , em vez de seg u ir o cam in h o dos ra c ista s h istó ric o s (com o N in a R o d rig u es e O liv eira V ia n n a ) o u dos m ate ­ rialistas v ito ria n o s (com o D a rc y R ib eiro ), q u e sem p re falam d o q u e nos fa lta e de com o p o d e ría m o s te r sid o , ele fa la do B rasil q u e é E sse B rasil q u e ex iste an tes de n ó s e q u e , a d e sp e ito d e n o ssa v o n ta d e .

6

(5)

c o n tin u a rá d epois de nós. E sse B rasil q u s é n osso, m as n ão foi in v e n ta d o p o r nós.

P o r tu d o isso, a S o ciologia d e G ilb e rto Freyre lib e ro u a tem á tica dos e stu d o s b r a ­ sileiro s e o b rig o u o e stu d o d o m u n d o d iá ­ rio . A g o ra se rá p re ciso d e sc o b rir com o o p e ra m essas re la çõ e s de a tra ç ã o e re p u l­

são e n tre p essoas situ a d a s e m p o siçõ es p o la ­ res d o sistem a (com o o s se n h o res e e sc ra ­ v os); o u c e rta s n o rm a s q u e se escrev em em c o n stitu içõ e s id eais (as leis d o E stado) e as re g ra s q u e se in sc rev e m n a s n ossas v id as (as leis n ão e sc ritas o u con scien tes q u e g o v e rn am o p a re n te s c o , o co m p a d rio , a a m iz ad e e o sistem a d e re la çõ e s p esso ais).

T u d o , e n tã o , p o d e ser leg itim a m e n te e s tu ­ d a d o . N ã o p re cisa m o s fo c a liz a r so m en te as co n stitu içõ e s, as d o e n ça s, os n ú m ero s o u o /-d in h e iro para sa b e r q u e u m a so cied a d e se í m an ifesta a tra v é s d e m u ito s “ m é d iu n s ” e

\ q u e fa z e r b o a S o ciologia é e s ta r p re p a ra d o p a r a d e sc o b rir o n d e o sistem a p o d e se re v e la r de m o d o m ais d isfa rça d o e in s u s ­ p eito.

F o i p o r te r trilh a d o esse cam in h o q u e G ilb e rto F re y re p ô d e s e r p io n e iro e in o ­ v a d o r ao e s tu d a r o s m o d o s de fa la r d os escrav o s (a n te c ip a n d o as a n álises d a m o d e r­

n a S ó cio lin g ü ística); o e sp aço n o b re e p o b re d as m o rad a s d e e n g e n h o d e su a te rra ; as p rá tic a s sex u ais, os ju ra m e n to s e as e x p ressõ es d e b la s fê m ia e o p ró b io ; a c o zin h a e a c o m id a . E c e rta m e n te m o str o u u m a se n sib ilid a d e ex ce p cio n a l q u a n d o e n ­ x erg o u o m éd ico su b s titu in d o o p a d re n os so b ra d o s d o B rasil p ré -re p u b lic a n o e q u a n ­ do v iu jo rn ais v e n d e n d o escrav o s, em vez de se rv irem co m o in stru m e n to s de lib e r­

d a d e n o B r a s il.12

A c o n trib u iç ã o da obra d e G ilb e rto F rey re foi, a ssim , a de re a liz a r u m v a lo r.

U m a e sco lh a q u e é p e sso a l e q u e e x p rim e asp e cto s c ru ciais d e su a e x p eriên c ia d e v id a c o m o u m b ra sile iro q u e , n a v ira d a d o sé­

c u lo , v iv eu n o s g ra n d es c en tro s d e p ro ­ d u ç ão in te le c tu a l d o s E stad o s U n id o s e d a E u ro p a . T alv ez te n h a sid o isso q u e d es­

p e rto u n ele u m a fo m e in saciáv el p e la so ­

c ie d ad e b ra sile ira (re c u p e ra n d o o tem p o q u e d e la p e rd e u ), e u m a to ta l m io p ia pelo c o n ju n to in stitu c io n a l e c o n stitu c io n a l desta m esm a so c ied a d e. A ssim , a o b ra de G il­

b e rto Freyre se c o n c e n tra q u a se q u e ex clu ­ siv a m e n te n o e stu d o d a c a s a e d a fam ília.

C om o se o B rasil fosse u m c o n ju n to de g ru p o s fa m ilia res em lu ta p o r u m p o d e r c aseiro o u p a te rn o . O b c e c a d o p e la socie­

d a d e , ele se e sq u e ce de e x a m in a r o B rasil- -N ação e tu d o o q u e e m n o sso sistem a se d e fin e co m o p e rte n c e n d o ao “ m u n d o d a r u a ”. É ra ro , p o rta n to , e n c o n tra r e m su a o b ra , a lg u m a re fle x ão m ais d e tid a so b re o q u a d ro c o n stitu c io n a l e o apa ra to legal da so c ied a d e b ra s ile ira , c o m su a s fo rm a s de g o v ern o e de c o erção ju ríd ic a . P a ra esse G ilb e rto F rey re se m p re v ia ja n te e sa u d o ­ so, n ã o h á u m B rasíí-E stad o e u m Brasíí- -G o v e rn o . H á , isso sim , u m B rasil sem p re C asa G ra n d e o u S o b ra d o : u m B rasil sem ­ p r e so c ied a d e. U m B rasil q u e é m o d o de se r e fa la r, c o m e r, g o z a r e v iv er.

T alv ez seja p o r isso q u e n e s ta o b ra se e n c o n tre u m a c o m b in a çã o tã o c o n tra d itó ­ ria (e tão “ m e s tiç a ” ) de riq u ís sim a s o b se r­

v açõ es so b re o m o d o d e v id a e as “ in fo r- m a lid a d e s ” q u e d e fin e m o e stilo b ra sile iro d e v iv er; ao la d o de u m a a u sên cia d e crí­

tic a do E stad o N a c io n a l com tu d o o q u e tem de v io le n ta d o r e m alig n o : seus d ita d o ­ re s, seus reg im es p o lítico s e seu p o d e r de d o m in a ç ão . A o a d m ira r e q u e re r re c u p e ­ r a r o tem p o p e rd id o lo n g e de su a socie­

d a d e , G ilb e rto se e sq u ece d a re alid a d e esta ta l e a d m in istra tiv a . U m a visão sensual d o B rasil, to rn a inv isív el o d u ro a p are lh o fo rm a l e in stitu c io n a l. A som a d isto tu d o , é u m a o b ra o rig in a l e m is tu ra d a co m o seu a u to r: de u m la d o , p e rd id a n u m a v a id a d e d o e n tia e q u a se p e rv ersa m en te a tra íd a p e lo elogio e p e lo p o d e r; e, d o o u tro , e te rn a ­ m e n te fa sc in a d a e a tr a íd a p e lo p e q u en o m u n d o dos h o m en s co m u n s , d os d esejos se c re to s e d os gestos h u m ild e s. E ssas coisas q u e , a fin a l de c o n ta s, d efin em os tem p o s e as c u ltu ra s .

N otas

1. C o n v é m le m b ra r q u e um m esm o a u to r p o d e s e r castigado p o r su a “fo rm a ” (caso de G ilb e rto n o s a n o s ‘60) e elo g iad o p o r seu “ c o n te ú d o ” ; e q u e essa re la ç ã o , p o d e v a ria r ao lo ngo d e u m d a d o m o m e n to h istó ric o . Jorge A m a d o e ra elo g iad o p o r seus “ c o n te ú d o s”

(“ co rajo so s” e “ p o lític o s” ) p e la s m esm as “ p essoas p o lític a s ” q u e h o je d e p lo ra m su a lite ­ ra tu ra , d e “ fácil e n te n d im e n to ” e a u te n tic a m e n te p o p u la r; lo g o u m a lite ra tu ra “ fá c il”

n o m o d o d e le r d esses c rítico s . V ale n o ta r co m o tu d o isso é c o n te x tu a i, p o rq u e a le itu ra de u m A u to r co m o “ fá c il” o u “ d ifíc il” e stá p ro fu n d a m e n te re la c io n a d a ao m o d o com o

(6)

ele se d e fin e e é d efin id o p o litic a m e n te (A lm eid a [1979] seg u in d o B o u rd ieu , e stu d o u as c o n d içõ es p o lítica s d e p ro d u ç ã o e re cep ção d a o b ra d e Jo rg e A m a d o ). É p re cisa m e n te a d e fin ição c u ltu ra lm e n te p o lítica q u e p e rm ite a a p re e n sã o d e u m a o b ra co m o sen d o dico- to m iz ad a e m “ fo rm a ” e “ c o n te ú d o ” . Isso p o sto , p o d e m o s d iz e r q u e n o caso d o B rasil, a d istin ç ã o é v ig en te em to d o s os n ív eis da so c ied a d e p o rq u e ela p e rm ite h ie ra rq u iz a r m ais fa cilm e n te o b ra s e p essoas d e a co rd o com u m a d ialé tica d e “ p o p u la riz a ç ã o / eliti- z a ç ã o ” . A ssim , q u a n to m ais avant-gard, m en o s in te lig ív e l e m ais a tra e n te p a r a c e rto tip o de in te le c tu a l q u e te m v e rd a d e iro d e sp rez o p e lo p o p u la r, n o se n tid o d e q u e o p o p u la r c o n fig u ra o re in a d o d a ig u a ld a d e e d a “ c o m o d ifica çã o ” d a v id a so cial, q u a n d o o m erc ad o d o m in a tu d o e, co m o re s u lta d o , to d o s são ig u ais p e ra n te a m e rc a d o ria e o m erc ad o (cf.

P o lan y i, 1980). A ssim , certo s tem as “ p o p u la re s ” são “ ta b u s ” . N o caso d o B rasil, p en so s o b re tu d o n a fa m ília , n a s festa s po p u la res, n as crenças religiosas e n a v id a d iária em g eral. A im p o rtâ n c ia social d estes tem as, b e m com o su a p o siç ão e stratég ic a n a e s tru tu ra d e p o d e r d o sistem a b ra sile iro , fa z com q u e sejam o b jeto d e u m d u p lo “ s e n tim e n to ” : ao m esm o tem p o q u e atra em , p o sto q u e são fu n d a m e n ta is n a e sfera c o tid ia n a , eles tam b é m re p elem , p o rq u e seu d e sv e n d a m e n to c rítico e q u iv a le a p ô r o R ei n u , re v elan d o u m a co m p lex a lin h a de p o d e re s e de c o m p en saçõ es sociais c o n stru íd a s p elo sistem a. O re su lta d o d e sta c o n tra d iç ã o é a p ia d a , o c arn a v al, o “ d eix a-d isso ” e o u tra s m an ifes taç õ es relacio n ais q u e c o n cilia n d o o p o sto s, in v e n ta m u m a “ te rc e ira m arg em d o rio ” e a d ia m c e rta m e n te a m u d a n ç a so cial lib e ra l ou b u rg u e sa (cf. o m eu A Casa & a R u a ). P o r tu d o isso, essa tem á tica e stá fa d a d a a ser to m a d a co m o fá cil d e m a is pelo s crítico s; a m en o s — é c laro

— q u e o a u to r fa le d e la p o r m eio d e “ m é d iu n s ” co m p lica d o s, u s a n d o u m jarg ã o p e sa d o , difícil o u m iste rio so — u m a lín g u a esp ecial o u se c re ta , c o n fo rm e d iria V a n G e n n ep . N ão será p o r isso q u e u m a. m esm a id éia v a le m ais em fran c ê s de P a ris, o u em in g lês d e O x fo rd d o q u e em b ra s ile iro de R ecife o u B a h ia ? P ode-se, e n tã o c o n d e n a r u m a u to r ta n to p e la fo rm a q u a n to pelo c o n te ú d o , d esde q u e se m a n te n h a o m u n d o in te le c tu a l liv re de ig u alita rism o e se m p re g o v e rn ad o p e la h i e r a r q u i a . ...

2 .. U m a categ o ria o p o sta a de “ so ció lo g o ” ; n e ste c o n te x to e q u iv a le n te a c ie n tista . N esta v isã o in g ên u a , p o sitiv ista e id ea liz ad a d o tra b a lh o d o “ e s c rito r” , ele n ã o te ria c o m p ro ­ m issos com a lógica d os “ a rg u m e n to s” , “ d e m o n s tra ç õ e s” e “ p a ra d ig m a s” . C laro q u e a o b ra dos esc rito res d e sm en te isso, po is re v ela co m o . tam b é m , eles têm lea ld ad e s co m m o d elo s, situ açõ es, a rg u m e n to s e t c . . . S e rá q u e a d ifere n ça c o n tin u a se n d o a q u e la q u e

“ s e p a ra ” o p e n sa m e n to selva g em (q u e o p e ra p o r m eio d e signos) e u m p e n sa m e n to c u lti­

va d o (q u e o p e ra p o r m eio de co n ceito s) co m o q u e ria C lau d e L év i-S trau ss a in d a d e n tro do q u a d ro p o sitiv ista tra d ic io n a l?

3. E ssas “ lín g u as u n iv e rs a is ” e stão tão estab e le c id a s q u e seus fa la n te s se esq u ecem q u e as p ossuem ! A ssim , só q u e m te m “ lín g u a ” e c u ltu ra (o u seja: o q u e é lo ca liz ad o , s in g u ­ la r, ex ó tico e v alio so co m o o b je to d e in te rp re ta ç ã o ) são os n ativ o s. B asta p e n s a r q u e g ra n d e p a r te d o q u e se c h am a (em inglês!) d e schola rsh ip , é sim p le sm e n te in te rp re ta ç ã o d e tex to s d e u m a lín g u a p a r a o u tra , p a ra v e r co m o te n h o ra z ã o . O p o n to é q u e to d o s fa la m u sa n d o u m estilo, de alg u m lu g ar. V eja-se o tra b a lh o d e R o b e rto K a n t d e L im a, A n tr o p o lo g ia d a A ca d e m ia : o u , q u a n d o o s ín d io s s o m o s nós, L im a, 1984; p a ra c o n sid e ­ ra çõ e s im p o rta n te s so b re essa q u e stã o .

4. D ir-se-ía q u e e sto u p re stes a e sc o rre g a r n o so lipsism o. P e n so , e n tre ta n to , q u e n ã o p o d e m o s e sc a p a r d o fa to de q u e som os h is to ria d o re s d e h istó ria s, n a rra d o re s d e e n re d o s q u e se n a rra m a si m esm o s, c ria d o re s d e m ito s d e m ito lo g ia s. E ssa q u e stão d a “ relati- v iz a ç ã o ” d o n o sso p ró p rio sistem a de categ o ria s se im p õ e , co m o u m p ro b le m a c ru cial d o e stru tu ra lis m o (e d a A n tro p o lo g ia C u ltu ra l em geral) e n ã o v ejo co m o n ã o e n fre n ­ tá-lo. A liás, p o u c o s tiv e ra m co rag em de fazê-lo, n a b o a e steira d e D u rk h e im (d as F orm as E le m e n ta res d a V id a R eligiosa) e d e M au ss. A m e u v e r, so m e n te do is co n te m p o râ n e o s têm a ta c a d o d e fre n te essa q u e stã o q u e , d e fa to , jaz n o c e n tro d e u m a c rític a , a p ró p ria id éia d e “ ciên cia m o d e rn a ” : M ich el F o u c a u lt e, p e lo la d o m ais a n tro p o ló g ico e c o m p a ra ­ tiv o , L o u is D u m o n t. N ã o d ev e se r p o r acaso q u e am b o s são d e sp rez a d o s, resp ec tiv a m en te, à d ire ita e à e sq u e rd a .

5. A n tes q u e , tam b é m , m e a cu sem d e n a cio n alism o d e sv a ira d o , deixe-m e d iz e r q u e o m esm o p o n to é v á lid o q u a n d o u m fra n c ê s escrev e so b re a F ra n ç a , u m ru sso so b re a R ú ssia e u m a m e ric a n o so b re o s E stad o s U n id o s. A q u i, a S o ciologia é an álise e d o c u m e n to .

(7)

tes te m u n h o e m a té ria -p rim a , sen d o sim u lta n e a m e n te c n g lo b a d o ra c e n g lo b a d a p e la socie­

d a d e.

6. C reio q u e é fu n d a m e n ta l d is tin g u ir e sp e cialistas q u e “ le ra m ” o B rasil p e la p e rsp e c ­ tiv a d a “ n a ç ã o b ra s ile ira ” (u m a e n tid a d e so ciológica e sp e cial, q u e en g lo b a ta n to o

“ E sta d o ” q u a n to o “ g o v e rn o ” e q u e tem com o u n id a d e sócio -p o lítica m ín im a , o “ in d i­

v íd u o ” co m o v a lo r e c e n tro m o ra l); e p e la so c ied a d e q u e , a o c o n trá rio , é re la cio n a l e e stá c o n s titu íd a d e u n id a d e s m u ito m ais in co n scien te s com o a “ v iz in h a n ç a ” c a “ fa m ília ”.

E co n o m istas, c ie n tis ta s p o lític o s e h isto ria d o re s e s tu d a m a “ n a ç ã o ”, r a ra m e n te fa la n d o (o u q u e re n d o c o m p re en d e r) a “ s o c ie d a d e ”. A n tro p ó lo g o s c u ltu ra is fa ze m o o p o sto ; e n q u a n to h isto ria d o re s sociais e c rítico s lite rá rio s o scilam sem s a b e r e n tre u m a e o u tra e n tid a d e . A d istin ç ã o e n tre “ n a ç ã o ” e “ s o c ied a d e ” co m o u n id a d e s sociológicas d istin ta s, é im p o rta n te , m as fo i a p en a s e sb o ç ad a em alg u m a A n tro p o lo g ia c o n te m p o râ n e a , a p e s a r d e D e T o cq u e v ille e de M a ree i M au ss (cf. M au ss, 1972 [1920-21] e D a M a tta , 1979;

1987-88). Q u a n d o n ã o tem o s c o n sc iê n cia d a d istin ç ã o , c riticam o s m u ita s v ezes a so cie­

d a d e quandQ o n o sso v e rd a d e iro a lv o é a n a çã o o u a té m esm o o reg im e q u e a g o v e rn a.

O u fazem o s o c o n trá rio , c ritic a n d o a n a çã o q u a n d o o p ro b le m a e stá n a so c ied a d e. C e rta ­ m en te q u e g ra n d e p a rte d a p ro d u ç ã o so ciológica m o d e rn a diz re sp eito a p ro b le m a s n a cio ­ n a is q u e , em v irtu d e d a im p o rtâ n c ia p o lític a d a e n tid a d e so cial (a n a çã o ) ten d e a c irc u n s­

c rev e r e d e lim ita r a d iscu ssão , d e ix a n d o m u ita s v ezes de lad o p ro b le m a s c rítico s situ ad o s n a so c ied a d e. E m g eral, q u a n d o h á essa re la çã o d ire ta e n tre q u e m e screv e e o sistem a s o b re o q u a l se escrev e, so c ied a d e e n a çã o su rg em n u m p la n o d e d ifíc il se p a ra ç ão . C reio q u e se p o d e d iz e r q u e C aio P ra d o escrev eu m ais so b re a n a çã o d o q u e so b re a so cie­

d a d e b ra sile ira . C o m G ilb e rto F re y re o c o rre o o p o sto . D e fa to , pode-se d izer, sem m ed o do ex ag ero q u e ele fo i c o n s e rv a d o r (e a té m esm o reac io n á rio ) e sc re v e n d o so b re a n a çã o , e c ria tiv o re fo rm a d o r q u a n d o lia n ossa so c ied a d e. A g ra n d e va n ta g em d o s e stu d o s fe ito s p o r “ e stra n g e iro s” é a n itid e z com q u e tais e n tid a d e s p o d e m a p a re c e r n o s seu s estu d o s.

N ã o p o r q u e te n h a m co n sc iê n cia d a im p o rtâ n c ia teó rica da d istin ç ã o , m as p o rq u e tem u m d ista n c ia m e n to q u e p e rm ite “ p in ç a r ” o q u e q u e re m “ v e r ” sem m aio res e n v o lv im en to s em o cio n ais, so ciais e p o lítico s.

7. P a ra a im p o rtâ n c ia d a “ v iag em ” co m o u m “ m é to d o ” q u e p e rm ite d e s c o b rir o d eslo­

c am en to e a re la tiv iz a ç ã o , e stim u la n d o a se n sib ilid a d e an tro p o ló g ica , veja-se o clássico d e C lau d e L éy i-S trau ss, T ristes T ró p ico s.

8. O p ró p rio G ilb e rto F rey re m e re la to u q u e , em 1933, q u a n d o Casa G ra n d e & S en za la fo i p u b lic a d o , h o u v e u m m o v im e n to p a ra q u e im a r o liv ro sob a aleg ação d e q u e era p o rn o g ráfic o . In te re s s a n te , n e ste c o n te x to , o b se rv a r os re p a ro s p u rita n o s feito s p o r A fonso A rin o s d e M elo F ra n c o , a Casa G ra n d e & Sen za la , a re c la m a r u m a fa lta de “ dignidade'"' d a lin g u a g e m d e F re y re (F o n seca, 1985:84). F o i c o m u m p ro ib ir o liv ro com o “ m u ito fo rte ” p a r a g e n te d e m in h a g eração . E stá c laro q u e o liv ro c h o cav a p o rq u e se c o n s titu ía u m a v e rd a d e ira “ d e n ú n c ia ” d as p rá tic a s ín tim a s d a s elites d o m in a n tes , m a s u m a d e n ú n c ia e sc rita p e lo la d o de d e n tro .

9. P rim e iro u m a lin g u a g e m m éd ica, d e p o is u m a lin g u ag em ju ríd ic a e p o lítica (é a í q u e está a im p o rtâ n c ia d os “ B a ch a réis” , co m o e sp e cialistas em re la c io n a r a e s tru tu ra legal co m as v o n tad e s d os seg m en to s d o m in a n te s e d os D ita d o re s ); fin a lm e n te , u m a lin g u a g e m h istó rico -eco n ô m ica d a d a p e la s v á ria s e co n o m ias p o lític a s v ig en tes, a e s q u e rd a o u a d ire ita . M as, n o ta b en e, o B rasil e s tá s e m p r e d o e n te l

10. P a ra u m e stu d o das im p licaçõ es sociais e p o lítica s d o “ je itin h o b ra s ile iro ”, veja-se o im p o rta n te e stu d o d e L iv ia N ev es de H o la n d a B arb o sa, O je itin h o B rasileiro, R io d e Ja n e iro , M u seu N a cio n a l, 1986. O “ sab e com q u e m e stá fa la n d o ? ” fo i e stu d a d o p o r m im em C arnavais, M a la n d ro s e H eróis.

11. P a ra d e m o n s tra r q u e isso n ã o é m e ra re tó ric a e q u e a id éia d e “ ra ç a ” e stá p ro fu n ­ d a m e n te in tro je ta d a n a id eo lo g ia b ra sile ira , tom e-se o e x em p lo d e u m ideó lo g o trêfego q u e p a ssa p o r in te le c tu a l in o v a d o r e v e ja -se o liv ro de D a rcy R ib eiro , T e o ria d o B rasil (1972). N e ste tex to , o a u to r re to m a , sem se d a r c o n ta a v e lh a term in o lo g ia ra c is ta , a so cied ad es com o “ p o v o s ” q u e te ria m “ m atrize s é tn ic a s” d ife re n c ia d a s ; q u e , p o r su a v ez, so fre ria m de p ro cesso s p ro fu n d o s de “ c a ld e a m e n to ” . C om isso ta l “ teoria d o B ra sil” , re fa z em 1972, o p e rc u rso ra c is ta d o sec. X I X b rasileiro .

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12. T a l co m o o c o rre u com os c o m p u ta d o re s q u e fo ra m p io n e ira m e n te u sa d o s n o B rasil p e la p o lícia p o lític a e d e f r o n te ir a . . .

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Referências

Documentos relacionados

E seguindo os mesmos pressuspostos dessa linha de pesquisa sobre a sociologia da alimentação, Gilberto Freyre, em seu livro Açúcar (1969) delineia a trajetória