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Adaptação De Dois Irmãos: O Roteiro Como Mídia Qualificada

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Academic year: 2023

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REICHMANN, Brunilda T.; LEMOS, Anuschka R. Adaptação de Dois irmãos: o roteiro como mídia qualificada. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 21-46.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

21 ADAPTAÇÃO DE DOIS IRMÃOS: O ROTEIRO COMO MÍDIA QUALIFICADA

Dra. BRUNILDA T. REICHMANN Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE)

Curitiba, Paraná, Brasil (brunilda.reichmann@gmail.com) Dra. ANUSCHKA R. LEMOS Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTPR) Curitiba, Paraná, Brasil (anuschkalemos@gmail.com)

RESUMO: Este artigo aborda en passant o início do romance Dois irmãos, de Milton Hatoum (2000), a série homônima de Luiz Fernando Carvalho (2017) e se volta para o roteiro de Maria Camargo (2017). Considerando que roteiros são obras raramente publicadas, lidas ou interpretadas, Bráulio Mantovani sugere o oposto em relação ao roteiro de Camargo: “Um trabalho de adaptação colossal e memorável que deve ser lido e/ou estudado” e, sem sombra de dúvida, ele está correto. O roteiro de Dois irmãos é uma obra que levou 15 anos para ser concluída e publicada. Nosso olhar sobre o roteiro, neste artigo, volta-se para dois tópicos:

primeiro, consideramos questões referentes ao próprio roteiro como mídia auxiliar [assisting medium] ou mídia qualificada [qualified medium], e relacionamos questões do mercado editorial aos conceitos de Lars Elleström; e, como segundo ponto, voltamos a atenção para duas sequências do Episódio 1 do roteiro, nos quais a ancoragem temporal e afetiva, apoiada em conceitos de Roland Barthes, confere um ritmo sensível à narrativa fragmentada de Milton Hatoum e prepara o texto para o processo de transmidiação (Elleström) e possível estudo.

Palavras-chaves: Adaptação audiovisual. Roteiro. Mídia auxiliar/qualificada.

Cenas de ancoragem.

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REICHMANN, Brunilda T.; LEMOS, Anuschka R. Adaptação de Dois irmãos: o roteiro como mídia qualificada. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 21-46.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

22 ADAPTATION OF DOIS IRMÃOS: THE SCRIPT AS QUALIFIED MEDIUM ABSTRACT: This paper deals en passant with the beginning of the novel Dois irmãos, by Milton Hatoum (2000), the homonymous series by Luiz Fernando Carvalho (2017), and focuses on Maria Camargo's script (2017). Considering that scripts are rarely published, read or interpreted, Bráulio Mantovani suggests the opposite in relation to Camargo’s text: “A colossal and memorable adaptation work that must be read and studied” and, without a doubt, he is correct. The script of Dois irmãos is a work that took 15 years to be concluded and published. Our focus on the script lies, in this paper, on two topics: first, we consider issues regarding the script itself as an assisting or a qualified medium, and then we relate issues from the editorial market to Lars Elleström’s concepts; and, as a second topic, we turn our attention to two sequences from Episode 1 of the script, where the temporal and affective anchoring, supported by Roland Barthes’ concepts, provides a sensitive rhythm to Milton Hatoum’s fragmented narrative and prepares the text for the process of transmediation (Elleström) and possible analysis.

Keywords: Audiovisual Adaptation. Script. Assisting/Qualified Medium. Anchoring Scenes.

INTRODUÇÃO

A typical film adaptation [...] does not represent its source novel – it is not a film about a novel; rather, it represents the story, characters, and so forth that were earlier represented by the novel.

I call this kind of media transformation transmediation.

Lars Elleström

Roteiro é uma mídia que quer ser uma outra mídia.

Parafraseando Pasolini

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REICHMANN, Brunilda T.; LEMOS, Anuschka R. Adaptação de Dois irmãos: o roteiro como mídia qualificada. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 21-46.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

23 Neste artigo, tratamos en passant do início do romance Dois irmãos, de Milton Hatoum (2000) e do Episódio 1, tanto do roteiro de Maria Camargo como da série homônima de Luiz Fernando Carvalho, ambos de 2017. Apresentamos, então, algumas reflexões sobre o potencial de um roteiro audiovisual, como um texto com uma proposta estética, cuidadosamente desenvolvido e publicado, com qualidades intrínsecas de um produto cultural e literário na contemporaneidade.

Sobre o roteiro de Camargo, Bráulio Mantovani, um dos roteiristas de Cidade de Deus, escreve: “Um trabalho de adaptação colossal e memorável que deve ser lido e estudado” e, sem sombra de dúvida, o roteiro, publicado no mesmo ano do lançamento da série, com comentários da autora e fotos da produção audiovisual, é um destaque dentro da trajetória transmidiática do romance.

Dentro dessa abordagem, incluímos pontos relacionados ao mercado editorial de roteiros e averiguamos se roteiros audiovisuais e cinematográficos podem ser considerados mídias qualificadas ou mesmo pertencentes a um novo gênero literário. Em seguida, destacamos questões estéticas, de apelo sensível na linguagem audiovisual, ainda na sua forma escrita. A criação de cenas que revelam questões marcantes na narrativa roteirística, mas não existem no texto literário ou são recriadas a partir do texto fonte, é um exemplo do potencial criativo e singular da autora. Ou seja, pensamos na passagem de um roteiro, geralmente visto como mídia auxiliar, para um estatuto de mídia qualificada, considerando tanto seu fortalecimento como produto cultural quanto seu potencial estético.

A maioria dos roteiros é abandonada assim que o filme ou a série é finalizada; outros, no entanto, tornam-se visíveis, impactantes; são publicados, lidos e/ou analisados. A diversidade nos processos de adaptação, no que se refere à criação e ao destino dos roteiros, é bastante variada. Alguns poucos exemplos são suficientes para demonstrar essa diversidade: os roteiros de A mulher do tenente francês, de Lavoura arcaica, de Adaptação, de Cidade de Deus, de Dois irmãos. John Fowles, autor de A mulher do tenente francês (1969), visualizava a adaptação do romance para o cinema mesmo antes da publicação da obra. No entanto, teve que esperar 10 anos para conseguir que um leitor perspicaz, o dramaturgo Harold Pinter, que não é roteirista, percebesse a impossibilidade de filmar os elementos do romance como tinham sidos publicados. O roteiro de Pinter, publicado em 1981, reestrutura completamente o texto ficcional para que ele possa ser bem sucedido na grande tela e para o grande público. A filmagem de Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, não segue qualquer roteiro, aliás, não foi escrito roteiro para a filmagem do romance. Luiz Fernando Carvalho dá a cada um dos atores uma cópia do romance para que se familiarizem com o texto durante poucos meses, enquanto esperam no setting que está sendo preparado para filmagem.

Além disso, ele inclui na filmagem cena do conto “Menina a caminho”, do mesmo autor, tornando a produção híbrida. O filme Adaptação (2002), leva à tela a

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24 angústia do roteirista ao tentar adaptar O ladrão de orquídeas, de Susan Orlean, um texto não-ficcional, para o cinema, deixando-o cativante para o grande público sem utilizar recursos da indústria cinematográfica norte-americana. O título do texto fonte é ignorado completamente por Charlie Kaufman e dá lugar ao assunto prioritário do trabalho do roteirista – a adaptação. O roteiro é publicado também em 2002. O roteiro de Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Bráulio Mantovani, baseado na obra de Paulo Lins (1997), mesmo tendo passado por doze versões durante quatro anos, foi alterado pelas improvisações dos atores no momento das filmagens. O roteiro, publicado em 2003, é a versão adaptada após a produção do filme. Já no caso de Dois irmãos, o roteiro é resultado da paixão e do estudo aprofundado do texto e do contexto onde se passa a narrativa, e levou 15 anos para ser finalizado. Além disso, também é um roteiro comentado pela própria autora, com fotos da produção audiovisual, concluída no mesmo ano de 2017.

O MERCADO EDITORIAL / O ROTEIRO VS O ROMANCE E A SÉRIE

É importante destacar que dos seis filmes destacados acima, cinco deles tiveram os roteiros publicados para o grande público. Há anos questiona-se o valor literário de roteiros, por vezes indagando-se se podem ser consumidos como uma obra “independente”; em outras, considerando o roteiro mais um produto de um mix de mídias sobre a mesma narrativa, junto com DVDs, trilhas sonoras e o próprio texto literário. Já em 2000, Barbara Korte e Ralf Schneider escrevem um artigo sobre a publicação de roteiros pelo mercado editorial inglês e eles afirmam:

Como um texto publicado, então, o roteiro parece definitivamente ter encontrado espaço no sistema literário. Como a peça de teatro publicada, o roteiro publicado é um fenômeno do mercado de livros contemporâneo cada vez mais atendido por editoras literárias tradicionais. (p. 104, nossa tradução)1

Os autores ainda destacam que o número de roteiros registrados pelo British Library Catalogue até 1975 era de 165. Já de 1975 a 2000, o número aumentou para 617. (p. 92).2 Ainda assim, o número de roteiros publicados é significativamente menor do que as adaptações de textos ficcionais para outra mídia, principalmente o cinema.

1 Versão em inglês: As a published text, then, the screenplay definitely seems to have gained foothold within the literary system. Like the published stage play, the published screenplay is a contemporary book market phenomenon increasingly catered for by traditional literary publishers. (2000, p. 104)

2 Não encontramos informação com relação ao número de roteiros publicados após 2000.

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REICHMANN, Brunilda T.; LEMOS, Anuschka R. Adaptação de Dois irmãos: o roteiro como mídia qualificada. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 21-46.

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25 Vera Lúcia Figueiredo, pesquisadora que discorre sobre as influências que ocorrem entre o mundo literário e o audiovisual, por outro lado comenta que “o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do livro, ou se quisermos, o mercado editorial parece ter descoberto o filão das publicações derivadas de filmes” (2007, p. 12). A abertura de um mercado editorial para os roteiros, geralmente considerados mídias auxiliares em processos de produção audiovisuais, pode interferir na transformação desses textos para mídia qualificada, ideia que será trabalhada adiante. Como comenta Figueiredo (2007):

Se os roteiros que, em princípio, seriam escritos utilitários para um público restrito, parecem se submeter a uma outra convenção de leitura a partir do movimento editorial para a sua publicação em livros, o texto literário, associado em sua edição a um produto audiovisual, seja através de fotos, notas introdutórias ou pela inclusão do roteiro no mesmo volume, parece também sucitar um tipo de recepção diferente, já que todos esses elementos interferem na leitura. (p. 13)

Ao nos determos sobre o roteiro versus o texto fonte e o artefato audiovisual, propomos aqui três premissas bem simples, mas fundamentais: 1) a materialidade do roteiro e do texto ficcional é a mesma, mas as características e os objetivos de cada artefato são diferentes; 2) a materialidade, as características e os objetivos do roteiro e do artefato audiovisual são diferentes; e 3) o roteiro pode ser considerado mídia auxiliar, mídia qualificada ou mídia “premeditada” (planejada, elaborada e cuidadosamente trabalhada), mas não mídia fonte ou mídia alvo.

Tanto o texto, ficcional ou não, como o roteiro, quando publicados, são

“tipos semelhantes de mídia”; textos impressos em uma página ou superfície plana sensível à impressão. Em outras palavras, são sinais gráficos/caracteres do alfabeto visíveis que permitem a leitura. Como afirma Elleström: “Às vezes a adaptação é, na verdade, entendida também como transferência entre tipos semelhantes de mídia [texto e roteiro], o que a torna um fenômeno tanto intramidiático quanto intermidiático” (2017, p. 205). No entanto, vale lembrar que o roteiro é um texto verbal que descreve imagens e sons – ou seja, por mais que seja escrito, ele anuncia o audiovisual, podendo provocar uma leitura imagética e sonora sem precisar das imagens e dos sons. O mesmo pode ser dito do romance, que possibilita a visualização imaginária das imagens descritas em suas páginas.

Já a mídia audiovisual pode ser considerada uma materialização da leitura tanto do texto ficcional como do roteiro. Sobre a mídia filme, Elleström diz que

[…] agora é compreendida […] como uma combinação de signos visuais, predominantemente icônicos (imagens) mediados sobre uma superfície plana, e de som na forma tanto de ícones (como música), índices (sons contiguamente

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REICHMANN, Brunilda T.; LEMOS, Anuschka R. Adaptação de Dois irmãos: o roteiro como mídia qualificada. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 21-46.

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26 relacionados a eventos no filme), e símbolos (como a fala) e de todos eles se espera o desenvolvimento em uma dimensão temporal. (ELLESTRÖM, 2017, p. 222) A recepção do público leitor a um romance, depende do horizonte de expectativas desse leitor e/ou da comunidade interpretativa da obra, quando ela alcança as prateleiras das livrarias. O roteiro geralmente não se torna público, é escrito por um ou mais escritores/roteiristas e, apesar de ter a mesma materialidade do romance, muda de formato e contém informações técnicas sobre a produção audiovisual, orientando, assim, tanto o diretor como os outros membros da equipe de filmagem. O roteiro é, portanto, tanto um texto ficcional adaptado como um texto com informação/formatação técnica, com um destino traçado, que extrapola a sua existência e aponta para o processo de transmidiação.

O ROTEIRO COMO MÍDIA AUXILIAR / QUALIFICADA

Um dos primeiros questionamentos que vem à mente de alguns pesquisadores que se voltam para a análise de roteiro, é que este, classificado como mídia auxiliar por Elleström, é também incluído como exemplo de mídia qualificada pelo mesmo autor. “Obviamente, todos os estudiosos da adaptação estão bem conscientes da existência de mídias auxiliares, como roteiros e libretos, o importante é que eles geralmente não são considerados como fonte de adaptação”, nem como mídias autossuficientes ou independentes. (ELLESTRÖM, 2017, p. 210, ênfase acrescentada).

Recuperemos então o que Elleström considera mídia qualificada:

Uso o termo mídias qualificadas para denotar tipos de mídia (tanto artísticas quanto não artísticas) que são histórica e comunicativamente situadas, indicando que suas propriedades diferem dependendo de parâmetros como tempo, cultura, preferências estéticas e tecnologias disponíveis. A mídia qualificada inclui tipos como música, filmes, programas de rádio e artigos de notícias. (ELLESTRÖM, 2017, p. 183, ênfase acrescentada)

E, na citação abaixo, o roteiro é incluído como um exemplo de mídia qualificada:

[...] adaptação envolve apenas mídias que são distribuídas de forma independente e apreciadas como obras acabadas por si mesmas e não as mídias que estão auxiliando o processo de produção. Isto significa que mídias qualificadas como partituras, scripts e libretos, concebidas para serem transmidiadas e que possuem as qualidades que as tornam menos aptas a serem apreciadas por não

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27 especialistas, não são tratadas como mídias fonte para adaptação. (ELLESTRÖM, 2017, p. 209, minha ênfase)

Jack Boozer, também citado por Elleström, escreve que os roteiros adaptados não são considerados artefatos finais e que raramente são publicados;

e acrescenta que a análise de roteiros não é um trabalho intelectual realizado com frequência:

[...] uma obra de ficção ou drama normalmente tem um único autor e uma facilidade maior de ser consumida no formato de publicação, assim como um filme adaptado pode ser reconhecido como uma entidade acabada na tela. O roteiro adaptado, no entanto, não teve nenhuma existência comparável como um artefato acabado para o público consumidor (com exceção das transcrições publicadas)”.3 (ELLESTRÖM, 2017, p. 209, ênfase acrescentada)

Considerando as citações acima, é necessário compreender como o roteiro, objeto de nosso artigo, pode ser considerado mídia auxiliar e mídia qualificada ao mesmo tempo. Qualquer roteiro adaptado, utilizado apenas como texto intermediário entre uma mídia fonte e uma mídia alvo no processo de transmidiação, é considerado apenas uma mídia auxiliar. Algumas características fazem com que essa mídia auxiliar passe a ser considerada qualificada: a publicação de um roteiro parece ser um dos requisitos fundamentais, mas não seria a única característica para qualificar a mídia. A publicação só se justificaria como resultado da inclusão de outras características, ou seja: o roteiro teria que ser “premeditado” (para utilizar novamente um conceito de Elleström), isto é, precisa ser “planejado, elaborado e cuidadosamente trabalhado”; além disso, e talvez mais importante, o roteiro deve ser uma recriação artística resultante de trabalho estético planejado e não apenas uma “replicação” integral ou parcial do texto fonte, caso isso fosse possível.

Resumindo, o roteiro é uma mídia auxiliar no processo de transmidiação, mas pode se tornar uma mídia qualificada a) se for planejado, elaborado e cuidadosamente trabalhado; b) se for resultado de uma leitura sensível, criativa e registrar uma proposta estética no processo de adaptação/recriação e c) se for publicado independentemente e estiver disponível para leitura e análise. Ver diagrama abaixo:

3 O roteiro de Dois irmãos estaria entre as “exceções das transcrições publicadas”.

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28 Diagrama das autoras.

O ROMANCE / O ROTEIRO / A SÉRIE O conflito

O romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, tem início com um capítulo não numerado, que relata os últimos momentos de Zana, a protagonista, texto entre o capítulo 1 e a epígrafe – versos do poema “Liquidação”, de Carlos Drummond de Andrade:

A casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis todos os pesadelos

todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas

com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis [...]

Nem esses versos nem informações sobre a decadência e a morte de Zana constam no roteiro de Maria Camargo, mas reaparecem nas cenas iniciais da série, quando um escritor dá início à datilografia do romance e esta é ilustrada com a imagem da casa abandonada de Zana. O escritor, no início anônimo, é o neto não

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29 reconhecido de Zana e Halim, filho de um dos gêmeos e Domingas, a empregada índia. Quando Nael inicia a datilografia, vemos apenas a máquina, as teclas, as letras sendo impressas no papel e ouvimos o som da datilografia e, em V.O.4, as palavras sendo pronunciadas à medida que vão sendo datilografadas. Do capítulo inicial do romance, Luiz Fernando Carvalho insere algumas frases acompanhadas por cenas com imagens da já mencionada casa de Zana abandonada e vazia5; de Zana com idade avançada, sentada sobre a cama, com expressão de desespero e expectativa; de Zana jovem e bela a se mirar no espelho veneziano da sala; a imagem do pai, há muito falecido, refletida no espelho com a bandeja do restaurante Biblos nas mãos; de Halim no sofá, largando seu narguilé e levantando-se para abraçar a esposa amada; da alegria e dança do casal; da rede vermelha, agora desbotada, velha e abandonada na varanda; do jovem Omar (o gêmeo caçula) na rede ainda nova com a intensa cor vermelha do passado. São cenas de um passado mais feliz, apesar dos conflitos, do que do momento final de Zana. O som da datilografia de início forte e nítido esmaece e dá lugar a uma música nostálgica que acompanha a projeção das cenas.

Na série as últimas palavras do poema de Drummond são eliminadas, e o conflito é deslocado para a volta do filho Omar, quando no romance o conflito é expresso pelo questionamento angustiado de Zana, que vive momentos alheiros à realidade: “Meus filhos já fizeram as pazes?” (HATOUM, 2006, p. 10)6. Resumindo, o início da filmagem, na série, inclui a epígrafe de Drummond e algumas frases soltas do capítulo introdutório. As frases na série são significativas das afeições de Zana:

Antes de abandonar a casa, Zana via o vulto do pai...

imaginava o sofá cinzento da sala onde seu amado Halim largava o narguilé para abraçá-la...

E ali no alpendre, lembrava a rede vermelha do filho Caçula, o cheiro dele, o corpo que ela mesma despia na rede onde ele terminava suas noitadas.

Sei que um dia meu filho Omar vai voltar...

O rosto [de Zana] que fora tão belo agora sombrio, abatido.

Sei que um dia ele [Omar] vai voltar...

A mesma frase eu ouvi, como uma oração murmurada, no dia em que ela desapareceu na casa deserta. (00:00-01:16:29, incluindo os versos de Drummond)

4 V.O. – Abreviação de voice over, escuta-se a voz, mas não se vê quem fala.

5 Irônica a casa deserta filmada, totalmente vazia e abandonada, até de seus pecados, varridos pelo vento encanado. A diferença com a casa descrita por Drummond acorda a sensibilidade do leitor que se surpreende com a diferença.

6 Todas as citações do romance Dois irmãos são documentadas no texto com o número da página apenas.

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30 Yaqub e Rânia, os outros filhos do casal, são esquecidos, apesar de Rânia ser a filha que permanece junto à mãe até o final. Ainda na série, a figura de Yaqub é subtendida como um dos filhos que deveria fazer as pazes com “o meu filho Omar”. No capítulo não numerado do romance, nenhum dos nomes é mencionado, mas Zana quer saber se seus “filhos já fizeram as pazes?”. O “Caçula” é incluído no início da prosa ficcional, apesar de ele ter nascido apenas alguns minutos depois de Yaqub; nascimento este que, de certa forma, determina a dedicação exagerada de Zana para com o gêmeo que nasceu com uma aparente debilidade e, ao mesmo tempo, prenuncia a proximidade e o afastamento da mãe e de seus filhos:

Yaqub e Omar nasceram dois anos depois da chegada de Domingas à casa. Halim se assustou ao ver os dois dedos da parteira anunciando gêmeos. Nasceram em casa, e Omar uns poucos minutos depois. O Caçula. O que adoeceu muito nos primeiros meses de vida. E também um pouco mais escuro e cabeludo que o outro.

Cresceu cercado por um zelo excessivo, um mimo doentio de mãe, que via na compleição frágil do filho a morte iminente. (p. 50)

O tratamento diferenciado entre os filhos não se limita aos primeiros meses, segue por toda a vida. Na realidade Yaqub torna-se “filho” de Domingas, e Omar,

“o queridinho da mamãe”. Essa diferença na criação dos irmãos é enfatizada no romance, no roteiro e na série. É sem dúvida a origem da posterior incompatibilidade entre os gêmeos, que leva a desastrosas consequências, sendo a destruição da família, a principal delas. As paixões – o amor exacerbado de Halim por Zana, de Zana por Omar, e o ódio mortal entre os gêmeos ditam os acontecimentos da narrativa.

O narrador “oficial” e as narrativas orais

No romance, um narrador anônimo, que mais tarde reconhecemos ser Nael, o narrador “oficial” do texto ficcional, dá início à narrativa. Estou designando este narrador de oficial, porque há outras vozes narrativas no texto, as de Domingas e de Halim, como podemos constatar nas citações abaixo:

Foi Domingas quem me contou a história da cicatriz no rosto de Yaqub. [...] A minha história também depende dela, Domingas. (p. 20)

Isso [o desejo de Zana viajar para o Líbano para trazer Yaqub de volta] Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final. (p. 23)

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Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

31 Durante todo o texto, Nael deixa claro que partes da história, acontecimentos que antecederam seu nascimento e compreensão do que estava acontecendo, lhe foram narradas também por Halim.

Eu gostava de ouvir as histórias [de Halim]. Hoje, a voz me chega aos ouvidos como sinos da memória ardente. Às vezes ele se distraía e falava em árabe. Eu sorria, fazendo um gesto de incompreensão: “É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo”. Ele dava um tapinha na testa, murmurava: “É a velhice, a gente não escolhe a língua na velhice. Mas tu podes aprender umas palavrinhas, querido”. (p.

39)

Essas narrativas “orais” são necessárias para que Nael conheça os acontecimentos anteriores ao seu nascimento e preencha as lacunas na diegese de Dois irmãos. No romance, no roteiro e na série, a narrativa cobre, de forma anacrônica e fragmentada, desde o momento em que Zana, ainda adolescente, ajuda seu pai no restaurante Biblos em Manaus (1920), cerca de duas décadas antes do nascimento de Nael, até o final da diegese em 1980. Significativo o fato de que a maioria dos acontecimentos narrados por Domingas – que não tinha voz (a não ser por observações curtas, geralmente respostas a perguntas que lhe são feitas) – são narrados em discurso indireto livre, enquanto que a maioria dos acontecimentos narrados por Halim são registrados em discurso direto, tendo como ouvinte o narrador Nael. Mas, na casa, longe do barco com Nael, Halim tampouco tem voz. Ele foi quase totalmente silenciado por Zana desde que esta impôs condições para se casar com ele. A jovem totalmente adormecida para as paixões da vida, torna-se uma mulher com determinação apaixonada e

“desequilibrada”. É como declamador de gazais7 na juventude e nos momentos de intimidade com Zana, além de poucas reprimendas a Omar, que escutamos a voz de Halim. Ele observa e recrimina, mas não consegue se posicionar com autoridade diante do amor exacerbado entre Zana e Omar. Quando Nael já tem idade suficiente para compreendê-lo, Halim passa a ser o narrador oral de histórias da família, além de Domingas.

Maria Camargo, na escrita do roteiro, não inclui os versos de Drummond nem o capítulo introdutório do romance, palavras que impregnam o texto de dramaticidade trágica. Na Cena 1 do Episódio 1, deparamo-nos com uma cena lírica situada em 1930, quando os gêmeos têm 8 ou 9 anos. A cena seria filmada embaixo da água, onde até o conflito entre os meninos no colo da mãe, representado pelos pontapés, é suavizado pela densidade da água. Essa cena lírica será repetida sob outras ângulos em outras cenas do Episódio 1, alinhavando a narrativa anacrônica, com largos pontos líricos.

7 Gazal ou ghazal é um poema lírico de cunho amoroso ou místico, que remonta à poesia árabe do século VII.

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Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

32 Na série, a presença do escritor ficcional – ainda não sabemos quem seja ele –, estabelece um distanciamento duplo com o leitor, como se dissesse, vejam esta é a filmagem de uma história que estou escrevendo. Você, espectador, vê minha escrita, escuta a minha voz e os sons da minha datilografia, mas eu o mantenho à distância do trágico final de Zana e do conflito central da narrativa – o ódio e a hostilidade entre os gêmeos. No decorrer da filmagem, no entanto, as narrativas de Domingas e Halim também são necessárias para que Nael, o escritor, consiga incluir acontecimentos que não testemunhou. A primeira cena em que ouvimos Halim (O.S.)8, ele está em um barco no Rio Negro, observando o desvelo de Zana pelo filho Omar. A seguir a narrativa salta cerca de 30 anos e Halim conta histórias da família, sentado na proa de um barco, de costas para o espectador e para alguém que chama de “rapaz”, enquanto procura pelo filho Omar, já adulto, que fugira de casa.

HALIM (O.S.)

[Anos 1930] Duelo, melhor falar de rivalidade. Alguma coisa que não deu certo entre os gêmeos... ou entre eles, o pai e a mãe. (0:2:51-0:2:52)9

[...]

[Anos 1960] Parece que o diabo torce para que a mãe escolha um filho, rapaz... Mas não quero falar sobre isso. Para um velho como eu. É melhor recordar o que foi bom... lembrar só do que me faz viver mais um pouco, entendes?

[...]

Além do mais, há certas coisas que a gente não deve contar a ninguém.

NAEL (V.O.)

Ele calou sobre a cicatriz. Calou também sobre mim, sobre minhas origens, sobre Domingas. Mas me fazia revelações aos pedaços... (0:2:52-0:2:59)

Na série, vemos os rostos dos personagens. Os dois meninos que saltam do barco para dentro das águas do Rio Negro e alcançam a mãe que, de vestido branco, elegante e leve, caminha na água em direção ao barco, onde estão Halim e Rânia. Os meninos sobem no colo da mãe e os chutes dos meninos, dentro da água, são suavizados e lenteados. É a voz da mãe que corta os primeiros momentos com agressividade – o grito por Domingas, sempre estridente e autoritário, e a repreensão a Yaqub, expressões repetidas algumas vezes.

Domingas!

Yaqub, pare com isso, meu filho.

Domingas! (02:06-02:17)

8 Nael ainda entre a infância e a adolescência que está na popa e conduz o barco a motor.

Nós espectadores não vemos Nael neste momento.

9 As cenas dos anos 30 e dos anos 60 são contíguas no roteiro e na série.

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REICHMANN, Brunilda T.; LEMOS, Anuschka R. Adaptação de Dois irmãos: o roteiro como mídia qualificada. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 21-46.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

33 O ROTEIRO

Não há ocultamento na realização da série, o espectador vê os atores na sua completude; não sabe quem representam, mas os veem. No roteiro acontece o contrário. Na Cena 1 não vemos os rostos das pessoas, apenas a parte inferior do corpo, até que o peixe fisgado seja puxado e subamos com ele à superfície. No entanto, sabemos pelo nome e idade registrados no roteiro, quem os atores estão representando. Há outros momentos no texto que propõem perguntas semelhantes: quem são? quem está falando? A roteirista esconde principalmente o rosto, mas revela o nome das personagens e apresenta as relações de conflito entre elas. Além de ser gravada embaixo d’água, a proposta do roteiro, na Cena 1, reverte o plano americano, no qual a gravação captura principalmente a parte superior do corpo, visando se aproximar de expressões do rosto e ações dos braços.

No roteiro vemos a parte inferior dos corpos em movimento dentro da água, deformados pela refração da luz na água. Propondo a gravação de partes do corpo que não identificam as personagens, Camargo sugere que as personagens podem representar qualquer laço ou relação afetiva; pelo acolhimento da mulher e pelos chutes dos meninos para afastar o outro, a cena proposta sugere que há tanto amor quanto animosidade entre eles. Propondo a gravação da parte inferior dos corpos dentro da água, Camargo sugere o predomínio da sensualidade e sexualidade, dos laços afetivos, sobre o bom senso das personagens.

Além de suscitar a curiosidade do leitor ao esconder o rosto das personagens, a autora respeita a fragmentação da narrativa, mas fortalece o conflito principal já revelado na Cena 1 e nas cenas 58, 71, 77 do Episódio 1. São todas tomadas da mesma cena sob perspectivas diferentes e embaladas pela fala de Halim em V.O., que descreve as relações conflituosas entre mãe e filhos. A narrativa de Halim sobre o passado que o narrador Nael desconhece, nas cenas 2, 38, 49, 72, 81, desenvolve a segunda sequência de ancoragem no roteiro. Essas cenas de ancoragem, fixam elementos da diegese ao mesmo tempo que liberam as fragmentações que existem entre elas. Em um primeiro momento, interpretamos essas sequências de ancoragem como um recurso meramente estrutural e estilístico, para só depois resgatarmos o conceito de fixação/ancoragem de “cadeias flutuantes de significado” de Roland Barthes.

A ideia de fixação/ancoragem, proposta por Barthes (1990) ao pensar a flutuação de sentidos de imagens, visa pensar o texto verbal como uma âncora aos sentidos possíveis que uma imagem pode propor. Apesar de o autor trabalhar essa questão principalmente em relação às imagens fotográficas, é evidente a força da proposta também na sugestão de imagens em movimento, pois estamos falando do roteiro.

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REICHMANN, Brunilda T.; LEMOS, Anuschka R. Adaptação de Dois irmãos: o roteiro como mídia qualificada. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 21-46.

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34 Toda imagem é polissêmica e pressupõe, subjacente a seus significantes, uma

“cadeia flutuante de significados”, podendo o leitor escolher alguns e ignorar outros.

A polissemia leva a uma interrogação sobre o sentido [...] Desenvolvem-se, assim, em todas as sociedades, técnicas diversas destinadas a fixar a cadeia flutuante de significados. (BARTHES, 1990, p. 32)

A ideia de ancoragem pode ser pensada, portanto, nas cenas selecionadas, de pelo menos duas formas distintas. Primeiro, pela fala de Halim, tanto em V.O.

na primeira sequência, como em narração direta na segunda, as palavras direcionam o sentido das imagens, destacando os conflitos entre os irmãos desde que nasceram. Como afirma Barthes, a mensagem verbal (aqui, no caso, a fala) orienta a interpretação. Em um segundo momento, em um movimento contrário à

“elucidação de sentidos” que Barthes promove, podemos pensar a sequência de cenas como uma recuperação rítmica e temporal da cadência afetiva dos personagens centrais. Quando a narrativa de eventos passados toma conta, voltamos às águas, às pernas disformes, aos conflitos fundamentais ou então ao barco, aos dois personagens que não pertencem à volúpia das águas. Poderíamos considerar as duas sequências, então, como uma proposta criativa do roteiro para ancorar o mundo sensível dos personagens, em um eterno retorno às turbulências e, como pensamos de início, à fragmentação da narrativa.

Os pontos esparsos na técnica de ancoragem são distantes, auxiliares, visando a um futuro artefato primoroso. É como se a roteirista dissesse: muitas vezes você se sentirá perdido, mas lhe darei pontos de fixação para que você não se perca e possa juntar as partes. Irônico porque esses pontos, como as estacas das palafitas no Rio Negro, vão revelar a decadência e destruição da família na diegese, ao mesmo tempo que preservam a atemporalidade e permanência da narrativa como obra de arte. Tanto no cenário que tem início com a Cena 1 (1930) como no cenário que tem início com a Cena 2 (1960), as personagens estão nas águas do Rio Negro. Na Sequência I (cenas 1, 58, 71 e 77), Zana, Yaqub e Omar estão dentro da água e Halim e Rânia permanecem no barco parado sobre as águas. "As águas, massa indiferenciada, representando a infinidade dos possíveis, contêm todo o virtual, todo o informal, o germe dos germes, todas as promessas de desenvolvimento" (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1998, p. 15). Na Sequência 2 (cenas 2, 38, 49, 72, 81), o barco está em movimento sobre o mesmo rio e os personagens são Halim e Nael. Eles não estão imersos na água, mas, possivelmente, na busca infrutífera por Omar. Podemos associar o personagem Omar às águas do mar, agitadas, em constante movimento, quebrando na praia como no colo da mãe. Utilizando o rio, o pai não vai encontrar o filho. Luiz Fernando Carvalho, em entrevista sobre a série, comenta que “o livro é um rendado de tempo, espaço, memórias, afetos e a adaptação conseguiu ser a síntese disso”

(Caderno, 2017).

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35 Diagrama das autoras.

EPISÓDIO 1 – PRIMEIRA SEQUÊNCIA DE ANCORAGEM (1930): O CONFLITO REITERADO10

CENA 1: EXT. RIO NEGRO/PRAIA, DEBAIXO D’ÁGUA – DIA

A Cena 1 se passa debaixo d’água, cuja escuridão é penetrada por raios do sol. Vemos o fundo do barco, pernas de meninos, uma mão de criança pequena que alcança a água, pernas torneadas de mulher caminhando em direção ao barco, pernas semelhantes de meninos alcançando a mãe e subindo no colo dela. De acordo com De Vries (1984) “a água está relacionada com a lua e as emoções:

Vênus nasce da água do [...]; o inconsciente, na qual um monstro pode estar à espreita para atacar o eu racional (seguro) [...]; o mais claro símbolo da mãe” (p.

494). Por sua vez, o fogo (os raios de sol que perfuram a água) estaria relacionado à sexualidade: “a. apresentado especialmente como uma chama apontando para baixo; vida erótica [...] relacionada à espada (= raio de sol) compartilha sua natureza ambivalente: destruição física e energia espiritual [...]” (p. 187-188)11.

10 As referências ao roteiro de Maria Camargo, serão documentadas apenas com o número da página da publicação.

11 Versão em inglês: “[…] water related to the moon and the emotions: Venus is born from water [...]; the unconscious, in which monsters may be lurking to attack one's rational (safe) self [...]; the clearest mother-symbol. […] Fire: sexuality: a. presented essentially as

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36 No colo da mãe, acontece o embate entre os meninos, gestos suavizados pela densidade da água. Outras pernas de mulher entram na água, a mulher pega um dos meninos e o leva para fora do rio. Camargo não mostra nenhum rosto, mas vai dando os nomes das personagens. Na cena temos a família formada pelo pai Halim (35/40 anos), pela mãe Zana (25/30 anos), pelos filhos gêmeos Yaqub, Omar (8/9 anos), pela filha Rânia (4 anos) e por Domingas (20/25 anos), a jovem empregada índia. Sobre a cena, Camargo diz: “Embora não esteja no livro, a cena poderia estar lá – e vai reaparecer neste e em outros capítulos, sob outras perspectivas” (p. 14, nota de rodapé).

A Cena 1 é sincopada pelo fisgar do peixe que, primeiro, morde a isca de Halim, depois se debate enquanto é fisgado e finalmente é puxado para fora d’água – “vamos com ele até a superfície” (p. 14). Ainda de acordo com De Vries:o peixe representa “vida, abundância de fertilidade: a. relacionado à fertilidade do Rei Pescador [...] c. intimamente associado à sexualidade (uma forma fálica)” (p. 187- 188).12 Na mitologia, quando Osiris foi cortado em 14 pedaços, Isis (sua mãe-irmã- esposa) juntou suas partes, com exceção do falo, que foi engolido por um peixe. A presença do peixe sendo fisgado, se debatendo e retirado da água parece apontar para o resumo da trajetória de Halim – ele foi fisgado por Zana, se debateu quando ela demonstrou desejo de ter filhos e só para de se “debater” ao morrer, quando é içado para fora da vida. Essa cena é finalizada com a reflexão de Halim (O.S.):

“Duelo, melhor falar de rivalidade. Alguma coisa que não deu certo entre os dois meninos... ou entre eles e nós” (p. 14). Na Cena 2, início da segunda sequência (1960), Halim tira o peixe do anzol e o coloca na cesta com vários outros peixes.

Trinta anos se passaram.

O duelo já tinha sido simbolicamente anunciado quando os raios de sol penetram a água. Elementos opostos, a água elemento essencialmente feminino e simbólico do inconsciente e da mãe, é penetrada pelos raios de sol, representando o fogo, a sensualidade e a sexualidade, que ilumina a escuridão das águas, mas é vencido por ela. Esses elementos estão intimamente e, de certa forma, inversamente relacionados às personalidades de Zana e Halim. É Halim que, de início, aparece como um ser com a sensualidade e sexualidade exacerbadas; Zana é cativada por ele e acorda para uma vida de volúpia, não sem antes determinar como será o dia a dia desta vida. Na cama e na rede Zana é presa fácil de Halim até que ela se torna a face feminina da luxúria; na lida cotidiana Halim é dominado pelo temperamento de Zana, os perfurantes raios de sol se diluem. Desde o dia, nos anos 1920, em que Zana diz ao pai Galib: “Vou me casar com esse Halim”, ela

a flame pointing downwards; erotic life [...] related to the sword (= sun-ray) it shares its ambivalent nature: physical destruction and spiritual energy [...] (p. 489; 187-188)

12 Versão em inglês: “Fish: life, fertility abundance: a. related to the fertility Fisherman- King [...] c. intimately associated with sexuality (a phallic shape)” (p. 188).

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37 determina como será a vida do casal, sucumbindo e unindo-se apenas à exacerbada sexualidade de Halim.

CENA 58: EXT. RIO NEGRO/PRAIA, DEBAIXO D’ÁGUA – DIA

Mesma cena, dando ênfase às pernas dos meninos em luta e às pernas de Domingas que os aparta, ainda embaixo d’água. Agora é Nael (V.O.) que afirma:

“Halim não queria filhos; aliás, se dependesse dele, não teria nenhum. Ninguém na casa além dele e de Zana” (p. 39). Mas, no momento em que concordou com as condições de Zana para casar-se com ele, Halim anula a expressão da sua racionalidade e submete-se às determinações dela. Quando Galib, pai de Zana, que volta para o Líbano logo após o casamento, morre, Zana deseja formar uma família e fica obcecada pelo desejo de ter três filhos. Ela tem os três filhos contra a vontade de Halim.

CENA 71: EXT. RIO NEGRO/PRAIA – DIA

Vemos agora a mesma cena por cima da água. Os rostos são revelados. Zana se dirige ao marido, mas Omar interrompe o seu caminho e cobra para si a atenção da mãe. Yaqub alcança sua mãe também, mas Omar não quer dividi-la com o irmão e ambos se atracam e caem na água. Zana chama por Domingas, que leva Yaqub para fora da água, enquanto Omar agarra-se novamente ao corpo da mãe.

Nael continua em V.O.: “Cresceu [Omar] cercado por zelo excessivo, pelo mimo doentio da mãe” (p. 47).

CENA 77: EXT. RIO NEGRO/PRAIA – DIA

A mesma cena é mais uma vez apresentada, desta vez sob a perspectiva de Halim. Ele está pescando, com Rânia no barco, quando Zana caminha nas águas do rio em direção a ele, mas os filhos interrompem a aproximação de Zana.

Repentinamente ela não tem mais olhos para Halim. Nael arremata em V.O.:

“Quando Rânia nasceu, [Halim] já tinha até se acostumado com o espaço limitado da alcova. Mas Halim desconfiava que jamais haveria paz na família” (p. 49).

Nas quatro tomadas da mesma cena, a roteirista reitera, por meio da ancoragem dramática e temporal, os conflitos do romance de Hatoum – a animosidade entre os dois irmãos, a preferência da mãe por um dos filhos, a consciência nítida de Halim que perdeu a exclusividade do amor de Zana e que, de alguma forma, o amor entre Zana e Omar expressava-se de modo excessivo. Halim torna-se o observador das cenas de amor intenso entre a mulher e o filho Omar à medida que ele cresce. O sonho de Halim, narrado em um fragmento entre as cenas de ancoragem, sonho no qual o quarto do casal está em chamas, lembra os raios de sol que penetram as águas da Cena 1, e despertam a ira do pai contra a presença física de Omar na cama entre ele e a amada. É a única outra cena dos anos 1930 no Episódio 1 que não faz parte das cenas de ancoragem:

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38 Halim dorme tranquilamente abraçado à Zana. Ao lado da cama um candeeiro está aceso e o mosqueteiro que cobre a cama começa a ser devorado pelo fogo.

A fumaça se espalha no quarto, o fogo engole rapidamente o tecido. Halim começa a tossir e se remexe, inquieto. Halim desperta assustado. Em torno dele não há fogo, apenas o silêncio da noite, entremeado por sons de pássaros noturnos e pelo apito de um barco, ao longe.

No meio da cama, entre ele e Zana, dormindo placidamente agarrado à mãe, está Omar, 8 anos. Halim, muito alterado, sacode o garoto adormecido que abre os olhos, sem entender bem. (p. 48)

Halim sai de casa revoltado, descalço e de pijamas, e caminha até o rio. “Os filhos haviam se intrometido em sua vida e ele nunca se conformou com isso” (p.

49). A proposta de Halim, para situações semelhantes, é fazer amor com Zana diante dos filhos, uma proposta desesperada e desequilibrada para a dor e o medo que sente e pela inépcia e impotência em afastar Omar e Zana.

EPISÓDIO 1 – SEGUNDA SEQUÊNCIA DE ANCORAGEM (1960): O RIO, O BARCO, O NARRADOR E O NARRATÁRIO ou A BUSCA INDIFERENTE E INFRUTÍFERA

Essa sequência tem início em um dia de 1960, com Halim em um barco no Rio Negro, do dia até a noite, quando regressa para o porto. As cenas que compõem a sequência são: 2, 38, 49, 72 e 81.

CENA 2: EXT. RIO NEGRO/DENTRO DO BARCO – DIA

No início da Cena 2, Halim tira o peixe do anzol. Está com 65/70 anos.

Ainda é um homem vigoroso para a idade. Ao redor de Halim apenas o rio e o verde da floresta. Não há mulheres ou crianças no barco. O barco é conduzido por alguém que não vemos. Este alguém é o narratário das histórias de Halim e futuro autor ficcional e narrador do romance:

HALIM

Parece que o diabo torce para que a mãe escolha um filho, rapaz. Mas não quero falar sobre isso. Para um velho como eu, é melhor recordar o que foi bom...

lembrar só do que me faz viver mais um pouco, entendes?

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39 Halim coloca o peixe em uma cesta já repleta de peixes – o tempo passou desde aquele peixe da Cena 1. Halim continua a pescar e a narrar...

HALIM (CONT’D)

Além do mais tem certas coisas que a gente não deve contar a ninguém.

[...]

NAEL (V.O.)

Ele calou sobre a cicatriz. Calou também sobre mim, sobre as minhas origens, sobre Domingas. Mas fazia revelações aos pedaços...

Cerca de 30 nos se passam entre a primeira e a segunda cenas, mas apesar do tempo e das circunstâncias terem se alterado profundamente, o espaço e a atividade de Halim parece indicar uma continuidade entre as sequências. Estamos novamente no Rio Negro, Halim está pescando, acompanhado por Nael, que não vemos, mas sabemos quem é pela inclusão do seu nome (o espectador da série não saberá quem escuta Halim e quem fala em V.O.). São momentos nos quais Halim narra acontecimentos na família anteriores ao nascimento de Nael que, na Cena 2, está com cerca de 15 anos. Nesta sequência, novamente o simbolismo das águas é uma das principais forças que move a narrativa:

É preciso dizer que o uso das águas ao longo da trama é muito significativo.

O tempo, sendo construído pela imagem simbólica de um rio, corre sempre para frente e, nele, somos levados por sua correnteza. Não se pode remar contra, pelo menos não sem se cansar ou ser vencido. Também é bonita a imagem “roseana” de estarem os dois, durante essas longas conversas, neto e avô, numa “terceira margem” do rio, visitando trechos escolhidos dessas águas, desse tempo, fluido. (MOURA, 2018, p. 155)

Essas duas sequencias, ambas com Halim sentado em seu barco pescando, remetem à lenda do Rei Artur, na qual o Rei Pescador, também conhecido como o Rei Ferido ou Rei mutilado, é o último em uma linhagem acusada de manter o Santo Graal. Apesar das várias versões da história, o Rei Pescador está sempre ferido na coxa ou na virilha e é incapaz de ficar em pé. O ferimento é interpretado como uma ferida genital e tudo o que ele pode fazer é pescar em um pequeno barco no rio perto de seu castelo. Há implicações, nas primeiras versões, de que o reino e as terras sofrem como ele, e estudiosos e críticos sugerem que sua impotência afeta a fertilidade da terra e a reduz a um deserto árido.13 Essa referência estabelece um elo com a inépcia e a impotência de Halim de ter Zana só para si,

13 Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Fisher_King.

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40 seu desejo desde a juventude; de controlar o comportamento desregrado do filho Omar; de impedir o amor, com laivos incestuosos, entre mãe e filho.

Sobre a Cena 2, Camargo escreve:

O narrador da série, como do livro, é Nael. Além de nos contar o que viu, ele fala também do que ouviu de outros personagens a longo da vida, sobretudo de Halim.

De um modo diferente do que acontece no romance, porém, aqui as conversas de Halim e Nael se concentram em tempo e espaços específicos: no rio, dentro de um barco, enquanto procuram por algo ou alguém.

Mas por que estão navegando? O que buscam? Quem é o menino que acompanha Halim? Em que época isso se passa? Essas informações são introduzidas pouco a pouco – pois a situação que, no livro está concentrada no que corresponderia ao episódio 6 da série, no roteiro é propositadamente ampliada, estendida. Isso permitiu um mergulho mais profundo na memória de Halim e na intimidade entre os dois personagens.

Uma inspiração Coração das trevas [Heart of Darkness], livro de Joseph Conrad que inspirou o filme Apocalipse Now, de Francis Coppola. (p. 15, nota de rodapé)

CENA 38: EXT. RIO NEGRO/DENTRO DO BARCO – ANOITECER

Na Cena 38, o roteiro retoma a situação da Cena 2 e Halim, além de narrar acontecimentos passados, declama gazais em árabe. Está anoitecendo e Halim está perdido nas memórias do dia em que recitou versos árabes para Zana, no restaurante de Galib, pai dela. A desenvoltura de Zana ao servir as mesas, sua beleza juvenil, sua total indiferença a qualquer rapaz presente no restaurante, seu amor pelo pai, são confrontados pela paixão avassaladora de Halim. Convencido por amigos, ele decide declamar gazais para a bela jovem Zana, no restaurante, diante de todos que lá almoçam. Ela, então, o “vê” pela primeira vez. Halim, agora no barco com Nael, rememora e revive em transe o momento em que se declara a Zana.

NAEL (V.O.) (CONT’D)

Eu não compreendia os versos quando ele falava em árabe, mas ainda assim me emocionava.

HALIM

Palavras de Abbas... Valiam mesmo muito mais do que chapéus, rapaz.

(uma pausa)

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41 O que eu fiz pra conquistar essa mulher, a ânsia e o transe que tomaram conta de mim naquela manhã. (p. 33)

Abbas14 é o amigo de Halim que o dissuade da ideia de comprar um chapéu para dar de presente a Zana e o convence a declamar gazais para conquistá-la. Ele é também o escritor dos versos. Com gazais declamados em voz alta, diante de todos os clientes do restaurante de Galib, Halim conquista sua amada e os versos árabes passam a ter uma importância fundamental no relacionamento amoroso e na vida do casal. Halim sempre seduz Zana para fazer amor com ele recitando gazais – é a linguagem secreta que acende uma paixão incontrolável entre marido e mulher.15

CENA 49: EXT. RIO NEGRO/DENTRO DO BARCO – NOITE

A noite cai e o barco segue seu curso. Halim continua falando com alguém que não vemos, mas sabemos quem é. Na verdade, como diz a roteirista, ele fala mais consigo mesmo.

HALIM

Ah, essas paixões na província! É como estar no palco de um teatro, ouvindo a plateia vaiar dois atores, os dois amantes... e quanto mais vaiavam, mais eu perfumava o lençol da primeira noite. (p. 37)

Essa Cena 49 segue uma cena de 1920, na qual Halim sorri ao ouvir as vaias e protestos das beatas que se colocam contra o amor e o casamento de Halim e Zana, pois ele é muçulmano e ela, católica, e precede a cena na qual Halim espalha orquídeas brancas no quarto onde eles passarão a primeira noite, na casa de Galib. Nada é aleatório no roteiro de Camargo. Cada cena, cada repetição, cada avanço, cada recuo na narrativa e nas cenas são cuidadosamente trabalhados.

Sobre a Cena 49, Camargo escreve:

Na primeira versão dessa cena, Halim e Nael conversavam num bar, em outro momento que não o da procura por Omar – tal como no livro. Essa tentativa foi descartada em nome da concentração dramática e do impacto visual que a busca no barco poderia provocar. (p. 37, nota de rodapé)

14 É também o nome do talentoso poeta e cineasta iraniano, Abbas Kiarostami (1940-2016).

15 Esses versos e as expressões de carinho expressas em árabe ecoam as palavras da mãe da família libanesa em Lavoura arcaica, quando ela acorda André, o filho preferido, antes dos irmãos, para ele ir para a igreja. As mãos da mãe percorrem o corpo do menino, enquanto sussurra palavras de carinho em árabe e, mais tarde, André aponta esses momentos como o início da derrocada da família.

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42

CENA 72: EXT. RIO NEGRO/DENTRO DO BARCO – NOITE

Na Cena 72, Halim acende o cigarro de palha que enrolara na Cena 49 e o acende. É noite fechada e o motor do barco o faz avançar em direção à cidade. Na noite, na escuridão simbólica da vida do casal – a presença do amor desvairado de Zana por Omar invade o pensamento de H

HALIM

A Zana só tinha olhos pra ele [Omar], por qualquer coisa achava que o Caçula ia morrer... de asma, de febre, de qualquer coisa... era uma desculpa, eu sabia que não ia acontecer nada com ele.

[...]

Pobre do Yaqub, pobres de nós.

Durante a vida dos meninos, Halim coloca-se ao lado de Yaqub, já que a mãe não lhe dava atenção. Quando Omar quebra uma garrafa e corta rosto de Yaqub ao vê-lo beijar Lívia, a menina pela qual estava interessado, Halim decide enviá-los para o Líbano para que sozinhos aprendam a zelar um pelo outro. Nem Zana sabe como aceitou uma sugestão dessas, só que no dia em que ambos estão no porto, prontos para embarcar no navio, ela solta apenas a mão de Yaqub e mantém a mão de Omar presa na sua. Sobre essa cena criada por Carvalho, Mantovani escreve:

Com esta publicação, ninguém vai se esquecer de quando o apito do navio soa com urgência no porto de Manaus, e Zana segura as mãos dos filhos e tudo que a gente vê dos gêmeos são as mãos e Halim encara com olhar inquisidor até que Zana por fim, lenta mas decididamente, solta uma das mãos e faz a sua escolha... (Orelha da primeira capa do roteiro)

E Yaqub segue sozinho para o Líbano e lá permanece por 5 anos. Acontece, no entanto, que a escolha de Zana já tinha sido feita no dia do nascimento dos gêmeos, quando a parteira lhe avisou que o segundo gêmeo provavelmente não sobreviveria. Apesar de não explicar o amor excessivo de Zana pelo Caçula durante toda a vida, justifica seus primeiros cuidados, cuidados esses que aumentam com o passar o tempo ao invés de diminuir e desequilibram ainda mais a estabilidade emocional da família.

CENA 81: EXT. RIO NEGRO/PORTO DA ESCADARIA – NOITE

O motor se aproxima do pequeno porto. Sob a luz do candeeiro, Halim, agora está imóvel, silencioso, perdido em pensamentos.

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43 NAEL (V.O.) (CONT’D)

Sim, de fora e às vezes distantes, mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final.

Revela-se, finalmente, o rosto de quem conduz o barco, o ouvinte é Nael, 15 anos.

(p. 51)

De personagem (filho de Domingas com um dos gêmeos / neto de Zana e Halim nunca reconhecido) para ouvinte, para testemunha, para escritor, para narrador... essa é a trajetória de Nael no romance de Milton Hatoum, no roteiro de Maria Camargo e na série de Luiz Fernando Carvalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Afastando-nos de considerações finais tradicionais, gostaríamos de concluir este artigo dizendo que as sequências de ancoragem 1 e 2 vão assinalando a narrativa fragmentada com pontos de apoio e de fixação lírica e temporal entre os fragmentos. Percebemos, ao ler o texto de Maria Camargo, a paixão e o carinho que teve com o texto ficcional, além da preocupação com os leitores ao comentar sobre o processo de adaptação do romance e sobre as modificações realizadas pelo diretor e pelos responsáveis pela edição das cenas. No final do Episódio 1, Camargo escreve:

No primeiro tratamento do roteiro, duas sequências ainda estavam aqui, no fim do primeiro episódio: o carnaval e a briga dos gêmeos. Nesta versão final, mais curta, permaneceu apenas um insert da briga como prenúncio do que virá e tudo o mais foi transferido para o episódio 2. Durante o processo e montagem, na ilha de edição, porém, as cenas acabaram sendo trazidas de volta para o episódio 1. (p. 51, nota de rodapé)

Entre as cenas da primeira e segunda sequências no Episódio I temos várias cenas dos anos 1940 que cobrem o retorno de Yaqub do Líbano, depois de cinco anos de afastamento, e várias cenas de 1920, quando Halim se apaixona por Zana no restaurante Biblos de Galib, em Manaus, casa-se com ela e tem filhos.

Chegamos, portanto, ao momento de encerrar estas considerações e o faremos com as observações de Camargo sobre as últimas cenas do último episódio do roteiro. Ela escreve:

É sempre bom ter em vista um ponto final para a história antes de começar sua escrita, ainda que ele possa mudar ao longo do caminho. Em Dois irmãos, para

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REICHMANN, Brunilda T.; LEMOS, Anuschka R. Adaptação de Dois irmãos: o roteiro como mídia qualificada. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 21-46.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

44 além do desfecho da trama, fiel ao original, havia “um ponto de chegada”: a imagem do encontro das águas e a narração final aparecem, desde o princípio, como destinos certos. A reflexão de Nael foi, talvez, a primeira e rara certeza durante o longo processo de adaptação. Há muitas razões para essa escolha, mas o motivo mais definitivo e simples de entender é irracional: o trecho sempre me fez chorar.

(p. 329, nota de rodapé)

Ancorando os fragmentos narrativos de uma diegese dramática e densa, que cobre seis décadas, dos anos 1920 a 1980, Camargo recria, com vistas a um processo transmidiático, a história, os personagens, o espaço e o tempo que anteriormente faziam parte apenas do universo ficcional criado pelo romancista Milton Hatoum em Dois irmãos. A última cena do último episódio do roteiro, nos leva de volta à Cena 1, de 1930, do primeiro episódio. Nael nos diz: “Naquela época tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento. [...] Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras. [...] Foi o que me disse um dia o velho Halim. FIM DO ÚLTIMO EPISÓDIO” (p. 328-329).

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

CADERNO. Entrevista com Milton Hatoum, Maria Camargo e Luiz Fernando Carvalho. Disponível em: http://app.cadernosglobo.com.br/banca/volume- 11/index.html. Acesso em: 12 set. 2020.

CAMARGO, Maria. Dois irmãos – Roteiro da série. São Paulo: Editora Cogobó, 2017.

CAÙ, Marisa Castanho. O roteirista como escritor, o roteiro cinematográfico como literatura. Revista Rebeca – revista brasileira de estudos de cinema e audiovisual.

2017. Disponível em: https://rebeca.socine.org.br/1/article/view/372. Acesso em: 12 set. 2020.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro:

Livraria José Olympio Editora, 1998.

DOMINGOS Ana Cláudia Munari; KLAUCK, Ana Paula; MELLO, Glória Maria Guiné (Orgs). Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017.

ELLESTRÖM, Lars. Modalities. Disponível em:

https://link.springer.com/chapter/10.1057/ 9780230275201_2. Acesso em: 11 ago. 2020.

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