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ILC Cadernos: Revista do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa — ILCML

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Academic year: 2023

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O romance Miguel e os Demônios adota em sua composição a maioria dos traços distintivos de um roteiro cinematográfico. É um romance dividido em oito capítulos/partes que se dividem dentro de cada capítulo. O romance satiriza desde o início sua estratégia composicional, com termos técnicos marcando a decupagem de um roteiro.

O fade-out representa uma ruptura significativa na narrativa e é acompanhado por um corte na trilha sonora: após tal transição, cabe redefinir as coordenadas temporais e espaciais da sequência que se inicia. Percebe-se, então, que Mutarelli utiliza uma fonte típica de narrativas cinematográficas em seu texto literário. Esse procedimento de inserção de uma memória a partir de um procedimento específico de linguagem visual aparece em outros momentos, quando a imagem de Miguel criança brincando com um cachorro podre aparece na narrativa, como em: “Sépia.

A referência a um fato passado é feita, por meio de flashback, por exemplo, às vezes de forma primordialmente literária (como o uso de tempos verbais), o que difere de um apelo ao visual. Assim, a referência à escrita cinematográfica é de facto estilística, uma vez que a analepse do fragmento se dá pela utilização de verbos no seu pretérito, ou seja, a ausência do elemento ‘sépia’ no início do fragmento não prejudicaria para que o leitor reconheceria que este é um fato anterior na história. Fresco” é portanto uma ferramenta que, através da inserção de dados cinematográficos, marca a ruptura da cena ao mesmo tempo que funciona como ruptura da acção dramática.

Além disso, esta assimilação não é uma característica heterogénea que constitui um tecido orgânico, mas em muitos casos um ornamento numa estrutura que acaba por ser convencional.

O efeito de cinema em Miguel e os demônios

Portanto, a simulação audiovisual proposta pelo romance acaba, por vezes, como tal, ou seja, como possibilidade estilística, uma vez que o texto não se constitui sem o seu caráter essencialmente literário. Além disso, a condição humana que está sob influência da violência é objetivada, pois descrever/mostrar é negar a proximidade com o objeto – o que poderia ser feito contando/contando. Em princípio, o fragmento enfatiza como o agenciamento narrativo que veicula os fatos - como em “Miguel tem expressão contraída” e “Miguel começa a caminhar em direção ao carro” - se hibridiza com o do autor-roteirista, uma vez que tais frases se caracterizam como por exemplo possíveis notações de rubrica em um script.

Um facto que, mais uma vez, através da lacuna, ou seja, da conclusão deixada em aberto, pretende dar à cena um tom comovente e sublinha também o facto deste narrador estar hibridizado com um argumentista-narrador, o que acaba por ser uma notação de uma rubrica. Contudo, esta estratégia, como noutros casos, também provoca a interrupção da história pela inserção do procedimento icónico, que não encontra referência na materialidade da realidade. Com isso, em termos de delimitação das possibilidades do texto literário, podemos compreender que os meios de dramatização da ação utilizados na história de Mutarelli não se limitam à alusão aos procedimentos das narrativas audiovisuais, pois há também a presença de elementos típicos histórias literárias. fontes, como dito, quando o narrador assume o foco onisciente intrusivo do autor e se intromete nos pensamentos e sentimentos de Miguel, o que não pode ser feito simplesmente por meio de imagens, como no trecho: “Pedro e Oswaldo apoiam Miguel no sepultamento coletivo.

Este resultado não se deve apenas a factores externos ao texto literário (como o facto de ter sido publicado como romance), mas a aspectos linguísticos que lhe são intrínsecos. A princípio Miguel chega a Cibele depois que a múmia foi encontrada bem no prédio onde funciona um bordel onde trabalha uma travesti. Se há procedimentos claros na linguagem cinematográfica e no roteiro, desde o fato de cada ação ou fala ser disposta em falas (cada fala corresponde a uma ação/fala) como seria num roteiro, além, novamente, de recorrer ao Na expressão “em sépia” há elementos que não poderiam ser expressos na produção cinematográfica, como as impressões de Miguel registradas pelo narrador: “ele tenta se esconder”.

Há também um certo didatismo supérfluo por parte do narrador, como em “Miguel entende a mensagem” e, pouco depois, o personagem diz: “Claro. Mesmo que se constate que esta referência ao termo técnico não encontra visibilidade, ela serve para criar uma ligação entre as duas passagens que se situam lado a lado - embora pareçam basicamente não relacionadas. Teríamos aqui sim um processo ideológico nesta montagem, pois a partir dela se pode interpretar que Miguel, por extensão, atribui a Cibele o estado de degradação do cachorro desde a sua juventude, mas está satisfeito com isso, da mesma forma que ficou satisfeito ao inalar o cheiro da decomposição do animal.

Sem pretender debater se esta obra se enquadra ou não nas definições do teórico, pode-se verificar que os elementos fantásticos nela contidos se manifestam através de uma irrealidade que afeta a vida. Cenas de exorcismo comumente reproduzidas em narrativas cinematográficas como Rosemary's Baby (1968), de Roman Polanski, ou O Exorcista (1973), de William Friedkin, são citadas, por exemplo, a partir do uso de passagens bíblicas e expressões latinas que diziam Carlos, além de transformar aquele personagem através de uma "expressão de besta" com a cabeça completamente voltada para trás. Dessa forma, a presença do foco da câmera, que é verificada no diálogo entre Miguel e seus colegas (Pedro e Bitola), quando falam sobre a morte de Augusto, é outra estratégia que enfatiza a violência da narrativa, uma vez que ela não tem dada voz desde as vítimas, cabe ao leitor julgar por si mesmo quais sentimentos e sensações está vivenciando neste momento.

Porém, o trecho final do romance, que começa após um espaço vazio e faz uso do recorrente processo de recorte e fragmentação, assume um caráter um tanto diferente do anterior. Porém, a veia poética de Miguel e os demônios inclui um aspecto muito mais voltado para o cômico: um humor negro que ele usa para reproduzir com uma risada desagradável.

Considerações finais

Esta realidade da técnica, dos mais diversos suportes, é aceite como um facto intransponível e não mais como fonte de renovação e de experimentação estética - até porque, no contexto do modernismo/vanguardas modernas, ou seja, da década de 1920. 30, era a literatura que ainda mantinha o status de “grande arte”. Em Miguel e os Demônios, em muitos momentos, a atração cinematográfica resulta não numa visualidade, mas na referência a processos audiovisuais específicos que só fariam sentido a partir de uma tradução. A impressão é que o narrador de Mutarelli, para dialogar com o cinema, para ser imaginativo, deve imitar a forma de um roteiro.

Da tão evidente denúncia das estratégias composicionais e da referência a procedimentos que não se traduzem em linguagem literária, mas como interrupções com efeito icônico, talvez o que se deseje seja justamente a criação de uma escrita cinematográfica que não pretenda transformar-se em filme adaptação. mas parece, antes, um roteiro de romance para um filme não feito. Poderíamos dizer que isto seria, por um lado, reconhecer, com alguma amargura ou ironia, a inadequação da literatura nos tempos pós-modernos; por outro lado, alienar-se, comicamente, em favor de um desejo insaciável de adaptação às estratégias de mercado. Desta forma, este romance apela à audiência suscitada pelo cinema e pela cultura contemporânea em geral, inundada pelos mais diversos suportes – como os videojogos, os videoclips, as séries televisivas e até a saturação das imagens disponíveis nas redes sociais – mas não o faz. a constitui, pois o que existe é uma simulação dos recursos compositivos das narrativas cinematográficas, funcionando como simulacro de um possível roteiro ou filme.

Assim, a literatura tenta criar a ilusão do simultâneo e do cinematográfico com uma série de artifícios, o que ainda é uma convenção, uma simulação, ou seja, um processo de composição. 3 O termo “tecnologia icónica” é utilizado por Jeanne-Marie Clerc e achamos interessante traduzi-lo num sentido mais amplo de tecnologia derivada de fontes audiovisuais como a cinematografia e a televisão. O termo apareceu originalmente entre as décadas de 1930 e 1940, em contraste com os filmes A produzidos pela grande indústria cinematográfica de Hollywood.

5 Por “roteiro” entendemos uma escrita que apresenta as mesmas características do roteiro cinematográfico, embora normalmente com uma estrutura menos complexa, ou seja, sem termos técnicos específicos ou indicações cênicas detalhadas. 6 Norman Friedman (2002) estabelece essa diferença entre contar (contar) e mostrar (mostrar) – diferença que, segundo Ligia Chiappini Moraes Leite (2002), tem a ver com a intervenção ou não do narrador – a partir do que ele entende como a contradição entre resumo e cena nas narrativas literárias: enquanto no resumo predominamos a função da narração, que é contar sumariamente os acontecimentos, resumi-los, na cena - termo que tem origem no modo dramático - o que prevalecerá a função de mostrar, ou seja, os acontecimentos são mostrados ao leitor/espectador sem a intervenção de um narrador, portanto a ênfase está nas descrições e nos diálogos. 8 Para Friedman (2002), na literatura o termo cena, em que predomina a função de mostrar, é caracterizado pelo momento da história em que a ação dramática coincide com a ação narrada, verificável principalmente pela presença de descrições e diálogos, e se opõe ao termo resumo, que se refere a um resumo dos acontecimentos e no qual prevalece a função de narração/narração.

Calvino, Ítalo (1990), Seis Propostas para o Próximo Milênio: Lições Americanas, traduzido por Ivo Barroso, São Paulo, Companhia das Letras. Clerc, Jeanne-Marie (2004), "Literatura Comparada Face às Imagens Contemporâneas: Cinema, Fotografia e Televisão", traduzido por Maria do Rosário Monteiro, in Compândio de literatura comparada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 263-298. Field, Syd (1995), Manual do Roteiro: Fundamentos do Texto Cinematográfico, traduzido por Alvaro Ramos, Rio de Janeiro, Editora Objetiva.

Jameson, Fredric (2004), Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios, 3ª edição, organizado e traduzido por Ana Lúcia de Almeida Gazzola, Rio de Janeiro, Editora UFRJ. Metz, Christian (1972), Significação no cinema, traduzido por Jean-Claude Bernardet, São Paulo, Perspectiva. 1980), Linguagem e Cinema, traduzido por Marilda Pereira, São Paulo, Perspectiva.

Referências

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Naquele momento, vivi a sorte e o privilégio de poder fazer à autora as perguntas que queria sobre a sua obra, a obra pela qual eu estava tão apaixonada, que me ocupava as noites e os