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DEBATES CONCEITUAIS EM TORNO DO CUIDADO E DE SUA PROVISÃO

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Academic year: 2023

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Diante disso, não há consenso na literatura sobre uma única definição de cuidado; é um conceito multidisciplinar que atravessa vários campos da academia. Considera-se que cuidar e receber cuidados é uma tendência positiva, que deve ser garantida para que as pessoas vivam melhor e cultivem relações de cuidado umas com as outras. A inclusão da noção de cuidado nas democracias ocidentais também significa a revisão do conceito individualista baseado na noção de polis formada por cidadãos livres, independentes e autônomos.

A primeira é que as necessidades de pessoas em diferentes posições sociais competem entre si, levando os mais privilegiados a usarem seus privilégios para escolhas de cuidados, geralmente privados, ignorando as necessidades de cuidados de pessoas menos privilegiadas - estas, por sua vez, muitas vezes são as que agem como cuidadores para que eles trabalhem. Assim, apresenta-se a ideia de que, se queremos democracias plenas, com igualdade entre todos os cidadãos e justiça em todos os âmbitos da vida, é preciso rever o conceito de cuidado e sua distribuição na sociedade e responsabilizar os cidadãos pela sua disposição. Se algum tipo de cuidado for prestado, a divisão entre quem cuida e quem recebe deve ser a mais equitativa e justa possível.

Na obra de Tronto, ao lado de uma visão mais idealizada da relação de cuidado, que não implica hierarquia, há também a denúncia de que a forma como a sociedade hoje organiza o cuidado gera e agrava muitas desigualdades. A primeira etapa, identificação das necessidades de cuidado (cuidar de), gera atenção; a segunda, a assunção de responsabilidade e a percepção de que algo deve ser feito para atender a essas necessidades (cuidados), gera responsabilidade; o terceiro, a própria tarefa de cuidado (cuidado), competência; e, por fim, o ato de receber o cuidado e ter a necessidade atendida (recebimento do cuidado) gera responsividade. A autora descreve as condições para a concretização dessa realidade: (a) o cuidado é valorizado como trabalho, independentemente de ser realizado dentro ou fora da família, independentemente de ser remunerado ou não; (b) aqueles que necessitam de cuidados (incluindo crianças, idosos, pessoas com deficiência e doentes crônicos) são reconhecidos como membros plenos da sociedade, com direitos, voz e posição social e, portanto, influenciam as decisões sobre seus cuidados; e (c) aqueles que realizam trabalho de cuidado têm reconhecimento social e direitos equivalentes aos de outros trabalhadores (Glenn, 2000, p. 88).

Uma vez que existem grupos que atualmente carregam uma grande carga de trabalho de cuidado, como mencionado anteriormente, é essencial ouvir suas vozes e considerar suas perspectivas.

Cuidado como trabalho

O conceito de gênero e feminismo busca romper com a naturalização da distribuição de papéis e lugares sociais e a consequente manutenção do status quo, onde a crítica à divisão sexual do trabalho é um dos pilares da teoria feminista. A naturalização da divisão sexual do trabalho faz crer que se trata de uma organização que sempre existiu. Becker sistematizou esses princípios e teorizou sobre a eficiência econômica da divisão sexual do trabalho (Abramo, 2007; Pinheiro, 2018; Razavi, 2007).

O pensamento feminista marxista enfatiza o fato de que a divisão sexual do trabalho é parte central da engrenagem capitalista: para que um homem possa se dedicar ao trabalho remunerado, a mulher deve fornecer trabalho doméstico gratuito. Desde finais do século XVIII, o pensamento económico, ao associar progressivamente o trabalho ao mercado e ao salário, contribuiu de forma muito decisiva para a desvalorização económica do trabalho doméstico. A construção da divisão sexual do trabalho pressupõe, como visto, separação e hierarquização: portanto, as atividades exercidas pelas mulheres são menos valorizadas.

A identificação das tarefas domésticas e de cuidado com as mulheres fez com que, quando essas atividades foram mercantilizadas ao longo do século XX, seus empregos fossem amplamente ocupados por mulheres. A mesma evidência pode ser observada ao longo da pirâmide social e/ou ocupacional, de forma que a divisão sexual do trabalho se cruza com a divisão racial do trabalho (Gonzalez, 2020). 7 “No entanto, a divisão sexual do trabalho não encontra limite nas vantagens de classe e raça – ela influencia as mulheres a serem mulheres, mesmo que isso não signifique os padrões comuns daí decorrentes” (Biroli, 2016, p. 721). A autora lembra ainda que mesmo os homens não constituem um grupo homogêneo.

Apesar de serem “beneficiárias da exploração do trabalho doméstico feito pelas mulheres”, elas não se beneficiam tanto com isso (Biroli, 2016, p. 734). 8 Trata-se de um debate conceitual que busca delinear os contornos do trabalho assistencial, cuja concepção varia de acordo com a perspectiva teórica adotada. Mesmo nos países mais igualitários, as mulheres continuam a assumir a maior parte das tarefas domésticas e de cuidado, apesar dos progressos.

Essas pesquisas também servem para evidenciar a chamada "dupla jornada", a sobrecarga de trabalho entre as mulheres que continuam com afazeres domésticos e também atuam no mercado de trabalho. Novamente, a ideia de que a divisão sexual do trabalho produz gênero é confirmada aqui, e um processo de retroalimentação ocorre, porque as normas de gênero mantêm a divisão sexual do trabalho. A sociologia do trabalho e a economia têm historicamente visto o trabalho como aquelas atividades que produzem bens e serviços que podem ser mercantilizados.

Muitos já apontaram as consequências da divisão sexual do trabalho e da dupla jornada das mulheres – que pode se transformar em tripla se quiserem estudar, se capacitar ou se envolver em atividades comunitárias ou partidárias. As mulheres têm mais dificuldade de entrar no mercado de trabalho e quando rompem essa barreira ficam em desvantagem.

Cuidado como objeto de políticas públicas

Historicamente falando, pensar em políticas assistenciais parece fazer sentido apenas em um contexto de separação entre produção e espaços domésticos, estados salariais e bem-estar social. As atividades de cuidado às pessoas frágeis eram, em si, vistas como responsabilidade das mulheres e não como atribuições governamentais ou institucionais. Os serviços de atenção aos idosos fazem parte de uma fase muito mais recente na evolução das políticas sociais e estão presentes de forma abrangente em poucos países, especialmente os escandinavos.

Uma obra que caracterizou as análises dos estados de bem-estar social e desde então se tornou referência foi a de Esping-Andersen, publicada em 1990. Sua persistência é tal que o modelo está presente até nas tipologias de regimes de bem-estar elaboradas no final do século XX. . Em sua crítica ao trabalho de Lewis, Jenson (1997) argumenta que o trabalho não remunerado não pode ser confundido com o trabalho de cuidado.

Não é muito proveitoso propor uma análise dos regimes de segurança social acrescentando apenas a componente do trabalho não remunerado. Portanto, se os estudos clássicos e comparativos dos estados de bem-estar relegavam a família a um papel marginal, as críticas das estudiosas feministas chamavam a atenção para a importância do trabalho de cuidado familiar e da família como instituição central na sociedade. debate sobre a produção do bem-estar (Martínez Franzoni, 2005). Em trabalho de 2000, Daly e Lewis propuseram o conceito de "assistência social" a partir da leitura do cuidado como categoria de análise do estado de bem-estar.

No primeiro caso, cabe examinar a infraestrutura assistencial, que inclui a oferta de serviços e benefícios assistenciais (para as pessoas que recebem cuidados ou para quem cuida), a economia política da oferta, onde os diferentes atores (família, mercado, estado e sociedade civil) e a contribuição de cada um para a carga total do cuidado. A oferta pública de cuidados é muito limitada, tornando as famílias a principal rede de proteção social. Apesar dos avanços na cidadania social, ainda é comum a identificação entre políticas assistenciais – ou políticas familiares – e políticas para as mulheres, bem como a visão de que as políticas assistenciais se destinam apenas às famílias mais pobres.

Dado este contexto político e cultural, os políticos familiares e tutores foram consistentemente identificados como políticos das mulheres e vice-versa. É necessário solicitar com tato que sejam atendidas as exigências de cuidado para liberar a mulher para outras atividades. Esse paradoxo se traduz em opções políticas que diferem entre valorizar o trabalho doméstico e recompensar as famílias/mães por seu trabalho de cuidar, por um lado, e oferecer serviços de cuidado cada vez mais abrangentes e de qualidade, por outro.

Hirata & Kergoat, 2007; Pinheiro, 2018), mas as desigualdades de renda entre as mulheres enfraquecem a demanda por políticas assistenciais. Na América Latina, a imagem de um diamante parece mais apropriada do que a imagem de um triângulo para indicar a prestação de assistência social.

Considerações finais

Com vistas a garantir a ação do Estado, há demandas para incorporar o cuidado como um direito social – o direito de ser cuidado e de cuidar – e o quarto pilar da seguridade social (Knijn & Kremer, 1997; Montaño Virreira , 2010; Pautassi , 2010). Isso representará uma visão diferenciada das necessidades dos indivíduos ao longo de suas vidas e também contribuirá para retirar a família do centro da política social e assistencial. O foco no atendimento como direito universal de cidadania também impede que públicos mais ou menos merecedores elejam as políticas ofertadas, que muitas vezes acabam sendo arbitradas segundo critérios polêmicos e reduzindo o alcance da oferta e do atendimento.

Por fim, pensar o cuidado como direito inalienável remete à sua concepção como dimensão ética da vida humana e da vida em sociedade, conforme apresentado na primeira seção deste capítulo. Considerando a quantidade de cuidados que devem ser prestados para que a sociedade continue funcionando, e a responsabilidade continuada das mulheres por grande parte desses cuidados, pode-se dizer que gerir o cuidado é, de fato, uma chave para reproduzir desigualdades ou quebrar o status quo. 34 vulneráveis ​​e para a organização social e econômica como um todo, deve-se ressaltar a importância do Estado no papel dos serviços assistenciais, ou seja, a importância do cuidado como objeto de políticas públicas.

Mudanças no trabalho, família e políticas públicas na América Latina: justiça, maternalismo e co-responsabilidade (n. 114; pp. 103-117). Transversalidade de gênero nas políticas de atenção: uma análise comparativa das políticas de atenção à infância no Brasil, Argentina e Uruguai durante a virada à esquerda. Entre a família, o Estado e o mercado: mudanças e continuidades na dinâmica, distribuição e composição do trabalho doméstico e do cuidado (Doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo).

Nosso cotidiano de trabalho: Determinantes do trabalho doméstico masculino e feminino no Brasil (Dissertação de doutorado). Os desafios do passado no trabalho doméstico no século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da Pnad Contínua.

Referências

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