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O DIREITO À CIDADE E À CONSULTA PRÉVIA DOS POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES TRADICIONAIS NA REVISÃO DA LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA

MUNICIPAL

Joaquim Shiraishi Neto1 Thayana Bosi Oliveira Ribeiro2

RESUMO: O presente artigo, diante da atual discussão que ocorre em São Luís-MA sobre a revisão do plano diretor municipal, tem o objetivo de refletir sobre o direito à cidade e à participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais na forma da consulta prévia, livre e informada. Pretende-se trazer elementos para a edificação de um pensamento crítico e a concretização da devida participação na construção da cidade como obra, e não como mercadoria, em prol das pessoas, sendo respeitadas as diversidades, a autodeterminação, e não em função do capital.

Palavras-chave: direito à cidade. plano diretor. povos indígenas e comunidades tradicionais. participação popular.

consulta prévia.

ABSTRACT: This article, regardding the current discussion in São Luís-MA on the review of the municipal land-use plan, aims to reflect about the right to the city and the right to participation of indigenous peoples and traditional communities in the form of prior, free and informed consultation. It is intended to bring elements for the edification of a critical thinking and the concretization of the proper participation in the construction of the city as a work, and not as a merchandise, for the benefit of the people, being respected the diversities, the self- determination, and not according to the capital.

Keywords: right to the city. city land-use plan. indigenous peoples and traditional communities. popular participation. prior consultation.

1 Atualmente é professor visitante na Universidade Federal do Maranhão - UFMA, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCsoc-UFMA). Colaborador do Mestrado Profissional em Gestão de Áreas Protegidas na Amazônia (MPGAP-INPA). Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR.

Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade – NUPEDD. Email: shiraishineto@gmail.com

2Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da UFMA. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade – NUPEDD. Email:

thayana_bosi@hotmail.com

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1 INTRODUÇÃO

Em consonância ao contexto vivido atualmente em São Luís-MA onde se encontra em discussão a revisão do plano diretor da cidade, o presente artigo tem o objetivo de trazer reflexões sobre o direito à cidade e o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas e comunidades tradicionais para que estes possam ser observados nesse processo de revisão da legislação urbanística municipal.

Importante esclarecer que o citado processo de revisão foi iniciado em São Luís- MA no ano de 20143, mas que porém foi duramente questionado, em várias instâncias, pela sociedade civil, por povos e comunidades organizados ainda em movimentos como o Movimento em Defesa da Ilha, além de outros grupos4.

Eram apontados os riscos que esse processo de revisão da legislação urbanística municipal, pelo modo como estava sendo conduzido e pelo conteúdo de suas propostas, representava à sociobiodiversidade local, em especial aos povos indígenas e comunidades tradicionais que habitam na cidade5. Assim, após denúncias e representações,

3O Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257 de junho de 2001 que regulamenta o capítulo constitucional sobre a política urbana, prevê no §3º do seu art. 40 que o plano diretor deve ser revisto pelo menos a cada 10 anos. O plano diretor de São Luís, por sua vez, data de 2006, sendo necessário, portanto, que ocorresse a sua revisão até 2016.

4 Eram denúncias quanto ao número pré-estabelecido de audiências públicas que seriam realizadas durante o processo de revisão, apenas 15, quanto à condução das audiências públicas, o conteúdo tecnicista dos expositores representantes da prefeitura, o escasso tempo para discussão, a ínfima divulgação acerca da realização das audiências, o pequeno quórum dos moradores que se faziam presentes nelas, a escolha de locais de difícil acesso para a realização dessas audiências, etc. Em relação ao conteúdo, criticavam que eram identificadas propostas de modificações pontuais nas legislações vigentes, dentre as quais se destacava a referente ao zoneamento da cidade. Em suma, havia a proposta de subdivisão e expansão das zonas industriais – as zonas industriais e mistas seriam subdivididas em zonas de porto e retroporto, zona industrial de logística, e zona industrial de grande porte – a partir da incorporação de outras zonas que até então possuíam usos diversos, como zonas rurais, zonas residenciais, e zonas que se encontravam oficialmente sem classificação.

Salienta-se ainda que não constava nos mapas dessa revisão a delimitação da Reserva Extrativista Tauá Mirim, já aprovada pelo governo federal desde 2007 e instituída de fato pelas comunidades desde 2015, e que havia, ademais, a expansão dos usos e produtos permitidos nas zonas industriais, abrindo o leque de possibilidade para instalação de empresas poluentes, antes restringido. Além de outras críticas como, por exemplo, a falta da abordagem de questões importantes como o saneamento básico, o tratamento de resíduos sólidos, e a mobilidade urbana, arguições também sobre a real necessidade de expansão das zonas industriais, sobre a lógica de desenvolvimento que estava sendo imposta, as consequências ambientais, dentre outros.

5 São Luís-MA é considerada berço de grande herança étnico-cultural, com a presença de vários povos e comunidades que vivem na região metropolitana (SANT’ANA JÚNIOR, 2016). Enfatiza-se que mais recentemente foram identificadas no relatório sucinto produzido por grupos e núcleos de pesquisa vinculados à Universidade Federal do Maranhão - UFMA, a presença de povos e comunidades em torno da Resex de Tauá Mirim, bem como de espaços sagrados e de tradições ancestrais, sítios arqueológicos, terreiros de religiosidade de matriz africana, além de outros elementos importantes tanto para a continuidade dos grupos tradicionais como igualmente de valor imensurável para o país como um todo, por serem símbolos de resistências das minorias quilombolas, indígenas, etc. (GEDMMA; NERA; NEGO; NUPEDD, 2016). Por outro lado, aponta-se também a riqueza de ecossistemas e a biodiversidade da cidade, interligada aos modos de vida dos povos e comunidades, e que seria também afetada pelas propostas de subdivisão e expansão das zonas industriais do município.

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ficou determinado pelo Ministério Público Estadual que todo o processo devia ser reiniciado pela prefeitura6.

Nesse contexto que o presente artigo cientifico vem trazer elementos para a edificação de um pensamento crítico e a concretização da devida participação popular, em específico dos povos e comunidades, na construção da cidade como obra, e não como mercadoria, em prol das pessoas sendo respeitadas as diversidades, e não do capital.

Para tanto, esclarece-se que o artigo tem como referencial metodológico a teoria de Bourdieu (1989) que desfaz o paradigma da independência do direito e o expõe como produto de funcionamento de um campo de lutas.

Por fim, aclara-se que o artigo é estruturado em três tópicos. No primeiro é discutida a ideologia do planejamento urbano e o direito à cidade, no segundo é abordada a participação popular na elaboração, fiscalização e revisão do plano diretor, e no último tópico é abordado o direito à participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais na forma específica da consulta prévia.

2 IDEALISMO DO PLANEJAMENTO URBANO E O DIREITO À CIDADE

Com o advento da CF/88 foi delegado aos governos municipais o poder, por meio da elaboração de legislações próprias, de estabelecer o planejamento territorial e sob quais condições se considera que a função social da cidade e da propriedade foi cumprida, tendo em vista o equilíbrio entre os interesses individuais e os interesses sociais, ambientais, técnicos, culturais, e outros dos diversos grupos que fazem parte da cidade (FERNANDES, 2002).

Explica-se que uma, senão a mais importante, dessas legislações municipais é o plano diretor. Trata-se de iniciativa de lei que pertence ao prefeito, elaborada por órgão de planejamento da prefeitura, e submetida à Câmara dos Deputados para aprovação, sendo que é garantida a participação popular durante o processo de elaboração, na fiscalização e revisão.

Porém, deve-se acentuar que a partir desse novo marco legal os debates jurídicos passaram a enfatizar o direito à cidade e ao ordenamento urbano como um direito fundamental. Nesse contexto, o planejamento urbano vai adquirindo um ar místico, bom,

6 Ficou determinado que deveria ser dissociada a revisão do plano diretor, que deve acontecer primeiro, da lei de zoneamento que deve ser revisada posteriormente, e devem ser atendidas as recomendações da população e da nota técnica expedida por perito no âmbito do inquérito movido no Ministério Público Federal sobre o assunto - Inquérito Civil nº 1.19.000.00154712015-90.

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correto e necessário para solucionar o caos instalado na cidade. Há uma surpreendente confiança que envolve o planejamento urbano em ideologia (MARICATO, 2002; VILLAÇA, 2005; SHIRAISHI; LIMA, 2009).

Villaça (2005, p.10) percebe que existe na sociedade uma ideia generalizada de que “o plano diretor (na concepção ampla) é um poderoso instrumento para a solução de nossos problemas urbanos, na verdade indispensável, e que em grande parte, se tais problemas persistem é porque não se têm conseguido ter e aplicar esse miraculoso plano”.

No entanto, Shiraishi Neto e Rosirene Lima (2009, p. 58) também observam que o planejamento urbano tem sido interpretado como uma ferramenta positiva e natural,

“desprovida de qualquer tipo de interesse que possa maculá-lo”, mas consideram que, ao contrário, o planejamento na verdade “esconde na sua prática pretensamente técnico- cientifica o seu profundo caráter ideológico e político”.

Alertam (SHIRAISHI; LIMA, 2009) que o processo de formulação do ordenamento, planejamento e desenvolvimento urbano – de maneira diversa das percepções defendidas nas discussões jurídicas, que se direcionam simplesmente à efetivação das novas políticas urbanísticas dispostas na CF/88 e no Estatuto da Cidade como direito fundamental – consiste, na realidade, em um campo de lutas travadas no âmbito do espaço municipal.

Nesse campo de lutas, diversos atores duelam para que a sua compreensão de cidade prevaleça sobre as demais. De tal maneira, denota-se que as legislações urbanísticas municipais não deixam de ser imbuídas por discursos e práticas políticas e ideológicas e podem representar, ainda que não declaradamente, a sobreposição de alguns estilos de vida sobre outros. É abafada a existência de conflitos, de múltiplos interesses de diversas coletividades, e dificultada a participação de determinados grupos na definição e construção da cidade.

Desse modo, ressalta-se que as cidades brasileiras não apresentam problemas simplesmente pela falta de planos urbanísticos, ou pela má qualidade do plano, mas “porque seu crescimento se faz ao longo dos planos aprovados nas Câmaras Municipais, e seguem interesses da política local e grupos específicos ligados ao governo de plantão”

(MARICATO, 2002, p.124).

Nessas condições, pensado o caráter ideológico do planejamento urbano, faz-se oportuno deter-se na delimitação sobre o que está em jogo, afinal, nesse campo de disputas pela definição da cidade. Para ser respondida tal inquietação, aborda-se as concepções de David Harvey (2013) que explica que o direito à cidade é um dos mais preciosos, contudo também um dos mais negligenciados, direitos humanos.

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Em sua concepção (HARVEY, 2013), o direito à cidade se interliga ao direito de refazermos o espaço, a nós mesmos, e aos outros, pois, ao definirmos as cidades, estamos definindo como desejamos viver e quais serão as condições de vida do outro. Em suas próprias palavras: “a questão do tipo de cidade que desejamos é inseparável da questão do tipo de pessoas que desejamos nos tornar. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos [...]” (HARVEY, 2013, p.48).

No entanto, o autor (HARVEY, 2009, p.269) constata em suas pesquisas que “as cidades foram regidas pelo capital, mais do que pelas pessoas”. De tal forma, evidencia-se que temos sidos “refeitos muitas vezes sem sabermos como ou por que” (HARVEY, 2009, p.

49).

Harvey (2009) verifica que o capitalismo exerce poderes sobre a definição da cidade pois tem na construção de infraestruturas, empreendimentos industriais, empresas ligadas ao agronegócio, e outras, destinadas à exploração de recursos naturais, investimento em ativos imobiliários, dentre outras atividades especulativas ligadas ao espaço territorial, uma forma rentável de aplicar o excedente do capital com objetivo de dar continuidade ao seu objetivo de crescimento perpétuo.

Acontece que, pela ótica capitalista, o excedente de capital deve ser reinvestido para que sejam gerados cada vez mais excedentes, num ciclo interminável de crescimento composto. Dessa maneira, o planejamento urbano vem sendo considerado também uma saída rentável ao capital, ocorre a transformação dos imóveis, da urbanização em um mercado, um meio pelo qual se obtém lucro.

Contudo, deve-se ponderar que o aumento da compra de ativos imobiliários, dentre outros métodos que impliquem na manipulação mercadológica do espaço, tornam não a cidade melhor, mas sim, mais cara (HARVEY, 2009). Além de que, para a construção dessa arquitetura, os grupos com menor poder aquisitivo, e que têm outras perspectivas de vida, outras formas de compreender e se relacionar com o território, são preteridos, expulsos das suas terras à favor de usos capitalistas. Dentre estes grupos, destaca-se os povos indígenas e as comunidades tradicionais.

Convêm então questionar se, e como, é possível contornar o controle capitalista sobre o território e concretizar o direito à cidade, em especial o direito à cidade dos povos indígenas e comunidades tradicionais?

3 PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PLANO DIRETOR

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Compreende-se que para a condução de uma urbanização diferente deve-se requerer um planejamento urbano que leve em consideração as opiniões e contribuições das pessoas, que dê voz aos diferentes grupos, num processo participativo e de empoderamento da cidade para todos e não para o dinheiro.

Logo, a garantia de participação no planejamento urbano, deve ser encarada não como um simples requisito burocrático e formal a ser cumprido para aprovação da legislação municipal. Adverte-se que não pode ser concedido aos indivíduos o poder limitado de decisão, de transformação do espaço. Não pode uma inadequada participação ser convertida em elemento legitimador das decisões capitalistas sobre o local. A gestão democrática deve ser entendida, sim, como princípio fundamental da urbanização em benefício de todos, e deve concretizar o direito à cidade.

Uma vez que se percebe que, ao definirmos a cidade, definimos a nós mesmos e ao outro, conclui-se que tal definição deve advir de escolhas conscientes feitas pelas pessoas. Considera-se que o direito à cidade deve ser restituído às pessoas, principalmente às minorias constantemente ameaçadas, exploradas e exterminadas.

Vale, portanto, ponderar sobre a participação que vem sendo efetivada quanto ao planejamento urbano nos municípios brasileiros. Em especial, analisar a participação dirigida aos povos indígenas e comunidades tradicionais que vivem nas cidades, que são grupos vulneráveis, vêm historicamente sofrendo o desapossamento de suas terras e são possuidores de identidades e direitos próprios.

Esclarece-se que, no intuito de efetivar a devida participação popular na elaboração, fiscalização e revisão do plano diretor, o Estatuto da Cidade exige que sejam realizadas audiências públicas e debates envolvendo a população e associações representativas de vários segmentos. O Estatuto determina também que seja garantido o acesso de qualquer interessado e a publicidade dos documentos e informações produzidas.

Nelson Saule Júnior (2002), no entanto, complementa que a participação não pode se limitar ao mecanismo de audiências públicas e à publicidade das informações e documentos, elementos que são obrigatórios. Põem-se em evidência, por outro lado, que é necessário também proporcionar os meios apropriados para a participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais que habitam nas cidades.

De antemão afirma-se que as referidas audiências públicas, se realizadas indevidamente, podem não resultar na concretização da participação, nem do direito à cidade da população como um todo, tal qual as audiências públicas até então realizadas foram alvo de tantas críticas no processo de revisão do plano diretor de São Luís-MA por

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terem significado antes o “mal cumprimento” de uma exigência legal para a aprovação do projeto de lei e não terem efetivado um processo realmente participativo e concretizado o direito à cidade de todos. Assim como as audiências públicas não são o meio adequado de participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais.

4 CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA PREVISTA NA CONVENÇÃO Nº 169 DA OIT

Verifica-se que o artigo 7º da Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT prevê que os povos7 deverão ter o direito de decidir sobre suas prioridades, no que tange ao processo de desenvolvimento adotado, naquilo que afete as suas vidas, bem-estar espiritual, terras e no que possa de algum modo alterar seu próprio sentido de desenvolvimento.

Entretanto, de acordo com a mesma Convenção, em determinados casos o direito à participação garantido aos povos deve ocorrer, mais especificamente, na forma da consulta prévia, livre e informada. Como o artigo 6º da Convenção nº169 expressamente designa, os governos deverão consultar os povos, com o objetivo de se chegar a um acordo ou obter o consentimento, toda vez que se considerem medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los diretamente, como é o caso das legislações municipais sobre o planejamento urbano que definem a cidade e que, dessa forma, também influem na vida dos cidadãos, nas suas relações, etc.

Aclara-se, primeiramente, sobre a consulta prévia, livre e informada que se trata de “uma modalidade sui generis de participação, diferenciando-se dos instrumentos convencionais, como audiências públicas, em razão de seu fundamento no direito à autodeterminação e “que não se reduz a uma atuação político-partidária e nem de natureza individual” (ALMEIDA; DOURADO, 2013, p.13).

As audiências públicas, por exemplo, apesar de, em teoria, permitirem participação mais livre dos cidadãos, não os limitando a responder sim ou não, não são suficientes e adequadas aos objetivos da Convenção nº 169, posto que, direcionadas de

7Indica-se que a Convenção nº 169 da OIT pode ser considerada um dos principais instrumentos internacionais de direitos humanos voltado especificamente à proteção dos povos indígenas e tribais. Que no Brasil a Convenção foi promulgada através do Decreto nº 5.051 de abril de 2004, e que vem-se adotando uma interpretação latu senso da expressão “povos indígenas e tribais” para que o teor protetivo do tratado internacional recaia tanto sobre os povos quanto sobre as demais comunidades que vivem no país (SHIRAISHI NETO, 2014). Ademais, no entendimento dos autores do presente artigo, a Convenção nº 169 da OIT, como tratado internacional de direitos humanos, deve ter aplicabilidade imediata no país como norma materialmente constitucional.

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forma geral a um público indistinto, não atendem às peculiaridades que são cumpridas na consulta prévia, livre e informada que é voltada especialmente aos povos indigenas e comunidades tradicionais (ALMEIDA; DOURADO, 2013).

De forma geral aponta-se que a consulta deve ter como objetivo a fluência de um diálogo, propiciando espaço adequado para que os povos e comunidades digam ao outro quais fatores são indispensáveis à sua identidade e porque se posicionam contra determinada medida.

Que a consulta, assim, não pode ser restringida a um único encontro ou reunião, que os povos e comunidades devem receber as informações de forma prévia às tomadas de decisões, sendo respeitado o tempo necessário de cada grupo para assimilir os dados e discutir internamente.

Os povos e comunidades podem, inclusive, constituir suas próprias fontes de informação e assessorias técnicas e jurídicas para formarem e apresentarem as suas opiniões. Importante que se providencie também a tradução das informações para a língua dos povos e comunidades envolvidas, tudo com a devida publicidade, e que se respeite o princípio da razoabilidade, dentre outros (AYLWIN, 2013).

Por último, é importante acrescentar que o processo de consulta prévia deve também ser documentado. Deve ser livre de qualquer pressão, seja econômica, física ou moral, e deve ser realizado de boa-fé, com o sincero objetivo de se chegar a um acordo ou obter o consentimento, com a apresentação de informações verdadeiras e completas, e de forma adequada às circunstâncias.

Em relação à temática, Aylwin (2013) compreende ainda que deve haver a consulta sobre a própria consulta para que seja elaborado um planejamento e procedimentos adequados, com prazos que levem em conta os próprios processos internos de deliberação da comunidade, mecanismos que incentivem a participação, com o oferecimento de assistências necessárias, dentre outras, para que se alcance os melhores resultados possíveis. Por fim, enfatiza-se, que a não aplicação da consulta prévia, livre e informada pode acarretar a ilegalidade e a anulação das medidas tomadas.

De tal modo, considera-se que o planejamento e o ordenamento da cidade é medida legislativa capaz de afetar diretamente os povos e comunidades que habitam nos municípios e, assim, torna-se essencial que na sua elaboração, execução e revisão haja a aplicação da consulta prévia, nos ditames da Convenção nº 169 da OIT.

Posto ainda que a consulta, com suas pecualiaridades, distinta das audiências públicas e das demais formas de participação, busca atender as necessidades dos povos e

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comunidades viabilizando o seu empoderamento sobre a questão e a tomada de decisão consciente.

Nesse mesmo direcionamento, a Corte Chilena, por exemplo, já julgou que a falta de realização da consulta prévia antes da atualização do “Plan Regulador Comunal” – que corresponde à lei de desenvolvimento urbano daquele país – viola o direito à igualdade, posto que não iguala as comunidades tradicionais para os efeitos do poder de decisão (AYLWIN, 2013).

Reforça-se, por último, que se deve ter atenção e cuidado para que nem os instrumentos participativos previstos na CF/88, no Estatuto da Cidade, nem a consulta prévia, livre e informada, garantida aos povos indigenas e comunidades tradicionais, prevista na Convenção nº. 169 da OIT, sejam transvertidas e, de ferramentas contra- hegemônicas, convertam-se na prática em meros requisitos formais, legitimadores dos interesses capitalistas. Trata-se de uma falsa aparência de gestão democrática e de participação nas decisões.

5 CONCLUSÃO

A partir da Constituição Federal de 1988, o planejamento urbano passa a ser embasado na função social da propriedade e da cidade, sendo os municípios os principais atores na construção de legislações urbanísticas municipais, com destaque para o plano diretor como a principal legislação.

Contudo, percebe-se que os agentes do direito passam a buscar a aplicação do planejamento urbano como direito fundamental que vai assumindo, nesse sentido, um ar místico, neutro, técnico, imparcial, em busca de solucionar os problemas da cidade em prol do bem estar de todos os cidadãos.

Denota-se, entretanto, que na verdade a definição do planejamento urbano é um campo de disputas local onde vários grupos, e o Estado, lutam para que a sua concepção de cidade prevaleça sobre a dos demais. Observa-se, porém, que a cidade e os cidadãos têm sido regidos pelo capitalismo numa lógica de crescimento composto perpétuo, e que os grupos mais vulneráveis que detêm outras formas de viver e se relacionar com os territórios, dentre estes os povos indígenas e as comunidades tradicionais, sofrem pressão para liberar o mercado de terras para usos rentáveis da cidade.

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Encontra-se em jogo o direito à cidade como direito humano, pois compreende- se que ao definirmos a cidade, definimos a nós mesmos, como desejamos viver, e como desejamos que o outro viva.

Nesses termos, expõe-se que a participação dos cidadãos na elaboração, execução e revisão das legislações urbanísticas municipais, em especial quanto ao plano diretor, corresponde a um importante mecanismo na efetivação do direito de todos à cidade.

A participação popular quanto ao planejamento urbano deve ser encarada como forma de empoderamento e decisão da população sobre a cidade, e não apenas como um requisito formal para a aprovação da legislação municipal. Os cidadãos devem ser, de fato, ouvidos e levados em consideração.

Todavia, ressalta-se que as audiências públicas, que são os mecanismos participativos comumente aplicados nos processos de formulação, aplicação e revisão do plano diretor, não são o instrumento adequado para efetivar a participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais que vivem na cidade. Aliás, aplicada indevidamente, como vêm sendo criticadas quanto à revisão do plano diretor de São Luís-MA, as audiências públicas podem representar uma aparência de participação e democratização das decisões e legitimar a dominação capitalista da cidade.

Entende-se, conforme estabelecido na Convenção nº 169 da OIT, que nesse caso que implica em mudança legislativa capaz de afetar diretamente os povos, deve ser aplicada a consulta prévia, livre e informada, que contém peculiaridades voltadas a atender especificamente os grupos tradicionais, é fundamentada na autodeterminação e tem o objetivo de se chegar a um acordo ou obter o consentimento, sob pena de ser reconhecida a ilegalidade e a anulação das medidas tomadas8.

A consulta prévia pode, nessas condições, se devidamente aplicada, constituir uma ferramenta contra-hegemônica, que possibilite freiar a dominação capitalista do espaço, em prol dos que têm formas de vida diferenciadas da capitalista.

8 Acentua-se que há ainda discussões que apontam que a Convenção nº 169 da OIT na verdade promulgou em

seu texto uma forma branda de participação exigindo o objetivo sincero, e não a obrigatoriedade, de se chegar a um acordo ou consentimento (GARAVITO, 2012). Por outro lado, a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas de 2007 já estabelece, de forma mais protecionista, que nos casos que impliquem na remoção dos povos de suas terras deve ser obtido o consentimento prévio, livre e informado. Frisa-se também sobre a necessidade de aplicação devida da consulta para que não venha a representar uma falsa participação.

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REFERÊNCIAS

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