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MULHER-COLÔNIA: A QUESTÃO DA AUTORIA E DA REPRESENTAÇÃO FEMININA A PARTIR DE D. NARCISA DE VILLAR, DE ANA LUÍSA DE AZEVEDO CASTRO

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FERREIRA, Patrini Viero; PAIM, Luciane de Lima; UMBACH, Rosani Úrsula Ketzer. Mulher-colônia:

a questão da autoria e da representação feminina a partir de D. Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 318-336.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

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MULHER-COLÔNIA: A QUESTÃO DA AUTORIA E DA REPRESENTAÇÃO FEMININA A PARTIR DE D. NARCISA DE VILLAR, DE ANA LUÍSA DE AZEVEDO CASTRO

PATRINI VIERO FERREIRA (DOUTORANDA) Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil (patyvii02@hotmail.com) LUCIANE DE LIMA PAIM (DOUTORANDA) Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil (lucianeletras15@gmail.com) Dra. ROSANI ÚRSULA KETZER UMBACH Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil (rosani.umbach@ufsm.br)

RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de questionar a figura da mulher em dois sentidos:

o da autoria feminina e o da função social relegada à mulher, mais especificamente no período colonial brasileiro. Neste intuito, a obra escolhida para a análise foi D. Narcisa de Villar (1859), de Ana Luíza de Azevedo Castro, e a metodologia de trabalho terá dois momentos distintos: primeiro, serão comparadas as posições de Ana Luíza de Azevedo Castro e José de Alencar dentro do cânone brasileiro; e em um segundo momento, os trechos selecionados de D. Narcisa de Villar serão analisados, na tentativa de recompor o lugar ocupado pela mulher dentro da sociedade da época.

Palavras-chave: Literatura de autoria feminina. Indianismo brasileiro. Representação da mulher. Brasil colonial.

Artigo recebido em: 30 set. 2020.

Aceito em: 23 out. 2020.

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FERREIRA, Patrini Viero; PAIM, Luciane de Lima; UMBACH, Rosani Úrsula Ketzer. Mulher-colônia:

a questão da autoria e da representação feminina a partir de D. Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 318-336.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

319 COLONY-WOMAN: THE ISSUE OF FEMALE AUTHORSHIP AND REPRESENTATION IN D. NARCISA DE VILLAR,

BY ANA LUÍSA DE AZEVEDO CASTRO

ABSTRACT: The objective of this work is to question the female figure in two senses: female authorship and the social function relegated to women, more specifically, in the Brazilian colonial period. In this sense, the writing chosen for the analysis was D. Narcisa de Villar (1859), by Ana Luísa Azevedo Castro. As for the methodology, this work will approach two distinct moments: first, the positions of Ana Luísa Azevedo Castro and José de Alencar will be compared, considering the Brazilian canon; and, in a second moment, the selected excerpts from D. Narcisa de Villar will be analyzed in an attempt to restore the place occupied by the women within the society of the time.

Keywords: Literature of Female Authorship. Brazilian Indianism. Representation of Women. Colonial Brazil.

INTRODUÇÃO

Uma das etapas mais importantes da evolução humana foi a descoberta de que o homem era um ser social. A partir de então, começaram a se formar os primeiros grupos humanos, que mais tarde viriam a ser os exemplos mais primitivos do conceito de sociedade que conhecemos. É esta sociedade, ainda hoje, que dita a maior parte dos valores que os indivíduos devem seguir: suas crenças, costumes, comportamentos e posições. É dentro do tecido social que convenções sobre temas relevantes como “raça”, “gênero” e “classe” são formuladas, e é através de um determinado mecanismo cultural que estes postulados são disseminados e colocados em prática, influenciando de forma direta não só a vida, mas também as escolhas e ideais de cada indivíduo.

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FERREIRA, Patrini Viero; PAIM, Luciane de Lima; UMBACH, Rosani Úrsula Ketzer. Mulher-colônia:

a questão da autoria e da representação feminina a partir de D. Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 318-336.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

320 Se esse processo for levado em conta, pode-se compreender o pensamento de Simone de Beauvoir ao dizer que é a partir do outro que adquirimos a capacidade de nos definir, de identificar nossas próprias características e habilidades.

Colocando essa teoria na prática, é possível concluir que o ser mulher só é definido em contraposição ao ser homem, isto é, a partir do outro. Este preceito é válido não apenas para o aspecto biológico dessa dualidade, mas também para o social, visto que a mulher apenas detém seu papel dentro da sociedade em detrimento ao do homem.

Acerca deste tema e nesta mesma linha de raciocínio, Funck considera que “a identidade, como a de gênero, a sexual, ou qualquer outra, é produto tanto da cultura e do discurso, quanto da natureza que nos identifica na materialidade do corpo” (FUNCK, 2011, p. 67). Dessa forma, fica explícita a influência direta do tecido social na construção do individual de cada pessoa, visto que é ele o grande responsável por reprimir a real essência humana ao impor identidades para o indivíduo, através da história e da cultura de cada época e ambiente.

As discussões incitadas pelos pensamentos destas duas autoras são importantes e indispensáveis, à medida que retomam os questionamentos acerca da construção e desenvolvimento do estereótipo de figura feminina frágil e submissa que se deslocou através dos tempos. Entender o conceito de mulher em jogo durante grande parte da história das sociedades ocidentais é fundamental para a discussão a que este artigo se propõe.

O material selecionado para esta pesquisa foi o livro D. Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro, autora indianista do período romântico brasileiro, que acabou sendo pouco conhecida ou valorizada dentro do cenário literário no país. Com o intuito de questionar não apenas o papel da mulher na sociedade colonial brasileira, época em que se passa o enredo de D. Narcisa de Villar, mas também levantar reflexões a respeito da autoria feminina no Brasil, este artigo dividir-se-á em duas partes, além das considerações finais. Em um primeiro momento, a posição de Ana Luísa de Azevedo Castro no cânone brasileiro será comparada à ocupada por José de Alencar, autor de mesma escola e período, bem como suas obras aproximadas, para entendermos as possíveis diferenças no tratamento dos dois escritores e as motivações das mesmas. Logo após, passar-se- á para a análise dos trechos selecionados dentro do romance D. Narcisa de Villar, na tentativa de reconstruir o papel da mulher dentro da sociedade, mais especificamente durante o período do Brasil-colônia.

Aproximando realidade e ficção, este artigo propõe-se a buscar as condições e fatores que, de alguma forma, fizeram diferença na construção do imaginário feminino no decorrer das épocas. A visão de inferioridade e a exclusão da mulher dos principais aspectos da vida em sociedade traduziam uma hierarquia sociocultural quase que exclusivamente formada por homens, e é dentro deste cenário que os esforços femininos para se libertar e alcançar sua própria voz ganham força e relevância em todos os âmbitos.

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321 AUTORIA FEMININA: UMA REALIDADE OCULTADA

Em toda e qualquer área, o feminino é, na grande maioria das vezes, visto através de um prisma deturpado de inferioridade e fraqueza, que joga a mulher em um turbilhão de julgamentos e rotulagens nem sempre justas ou dignas. Dentro do âmbito literário, a necessidade de uma reestruturação nos conceitos já canonizados é perceptível com ainda mais facilidade.

Por muito tempo, falar sobre a vida das mulheres era um trabalho árduo, levando em consideração os escassos dados e a ausência frequente de informações. Segundo Caxeta e Barbato (2004), as informações a respeito das mulheres, até o começo do século XX, “eram obtidas, sobretudo, no espaço doméstico, através de cartas e diários, inclusive, [e] sabe-se que muitos foram destruídos pelas próprias mulheres, geralmente casadas, para se adequarem aos padrões socioculturais do silêncio e quietude femininos”. O feminino sempre foi visto como o segundo sexo, e a grande parte dos detalhes que absorvemos sobre a feminilidade dentro da literatura advém de homens, sendo esta uma visão estereotipada e fragmentada, que nem sempre corresponde à realidade concreta das mulheres.

Levando em conta que a literatura é uma fonte de conhecimento não só sobre a sociedade em si, mas também sobre o próprio ser humano em sua essência, pode-se chegar à conclusão de que, ao longo dos tempos, houve uma extrema dependência do feminino com relação às convenções e normas sociais pré- estabelecidas, como destacado por Jonathan Culler no capítulo “Leyendo como una mujer”, parte integrante do livro Sobre la desconstrucción (1998).

Se uma mulher quisesse ser realmente respeitada perante a sociedade, ela precisava não apenas do ritual do matrimônio, mas também dos dotes considerados fundamentais em uma dama, tais como submissão, passividade e elegância. De alguma forma, essas regras estipuladas reverberaram também na literatura, fazendo com que, por muito tempo, as fronteiras do literário fossem praticamente inalcançáveis às mulheres. Ainda segundo Culler (1998), essa proibição está ligada principalmente a uma espécie de necessidade masculina de proteger seu lugar e sua identidade de tudo que a mulher poderia vir a significar, ou seja, manter intacto o estatuto de dominante do imperialismo masculinista, capaz de comandar o imaginário feminino a partir de sua visão e de seus juízos de valor.

Trazendo essa discussão para o âmbito nacional, pode-se dizer que a história brasileira é permeada, assim como ocorre com grande parte dos países colonizados, por um esforço sem medidas em prol de uma independência total e, mais do que isso, da criação de uma identidade nacional desligada da metrópole colonizadora, que ressaltasse as diferenças não só políticas, mas também culturais do país.

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322 Como ressalta Rita Terezinha Schmidt (2000), nesse processo de independência, a literatura aparece, principalmente a partir do século XIX, como um dos fatores mais importantes para a construção da identidade nacional desejada. Bárbara Loureiro Andreta e Anselmo Peres Alós (2014) reforçam a importância da instância literária no processo de unificação e diferenciação brasileiro, afirmando que “a literatura se institucionalizou como um instrumento pedagógico de viabilização da nossa diferença cultural em razão de sua força simbólica para sustentar a coerência e a unidade política da concepção romântica da nação como ‘o todos em um’”. Dessa forma, construir uma nação passava pela importante tarefa de construir uma literatura própria, que traduzisse simbólica e ideologicamente os ideais e características brasileiras.

Foi durante o período de construção da identidade nacional, no qual a literatura se constituiu como fundamental para a afirmação de um país que buscava legitimar sua cultura através de uma imagem de autonomia, coesão e unidade, que nasceu o cânone literário, cujo estudo, de acordo com Zahidé Lupinacci Muzart (1995), “está ligado, pois, a várias coisas, principalmente à dominante da época: dominantes ideológicas, estilo de época, gênero dominante, geografia, sexo, raça, classe social e outros” (p. 86). Essa união de obras, indispensáveis à cultura brasileira, já demonstrava desde o início uma das características que perdurariam como máximas dentro do cenário literário nacional: a inexistência, no campo autoral, de nomes femininos em oposição à abundância dos masculinos, associados fortemente ao ideal de detentores do conhecimento e do saber cultural.

Nesse processo de construção de uma literatura nacional, que estava aliado desde o princípio aos ideais românticos carregados de ufanismo, o feminino foi completamente esquecido. A importância dada às mulheres dentro da nação emergente se restringia à sua capacidade reprodutora. Dessa maneira, elas eram transformadas em meras coadjuvantes, cuja participação como parte ativa e importante do país nunca foi nem sequer cogitada. O nacional constituiu-se como um domínio estritamente masculino, no qual as figuras dos pensadores, críticos e escritores eram as porta-vozes da cultura, da cidadania e da hegemonia. O resultado dessa visão patriarcalista e restritiva foi a quase total exclusão da autoria feminina, principalmente a partir do século XIX, considerada desimportante e relegada à condição de não participante da gama de textos que constituíam a literatura dita nacional.

Apesar de ocultas ou simplesmente esquecidas, o número de mulheres escritoras nesse período é significativo e relevante no cenário nacional, como observa Constância Lima Duarte (2007), podendo ser comprovado a partir de informações bibliográficas e do resgate e da reprodução de páginas perdidas das obras. Para Duarte, a recuperação das obras e nomes destas escritoras traz

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a questão da autoria e da representação feminina a partir de D. Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 318-336.

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323 consigo não só a possibilidade de questionamento da cultura hegemônica, mas também a inserção da mulher como sujeito ativo no discurso literário e a reelaboração da tradição literária brasileira.

É dentro dessa gama de autoras quase extintas do âmbito da literatura no Brasil que se insere Ana Luísa de Azevedo Castro, da qual se tem poucos dados. A partir de um artigo escrito por J. Galante de Sousa, sabe-se que a autora faleceu no Rio de Janeiro, em 29 de janeiro de 1869, com cerca de 46 anos. Antes disso, fora professora e diretora de um colégio no Rio de Janeiro e sócia-honorária da Sociedade Ensaios Literários. Essas informações, de acordo com Muzart (1989), deixam à vista que “Ana Castro parece ter sido uma mulher independente e consciente de seu valor como pessoa humana” (p. 230).

Seu único romance, D. Narcisa de Villar, foi editado no Rio de Janeiro, em 1859, pela Tipografia de F. de Paula Brito. Antes de sua publicação em formato de livro, a história já havia sido lançada como folhetim no jornal A Marmota, no Rio, durante o período de 13 de abril a 6 de julho de 1858. Vale destacar aqui o fato que influenciou decisivamente para a comparação que este tópico traz com o autor José de Alencar: D. Narcisa de Villar foi publicado entre os títulos Iracema (1865) e O guarani (1857) do autor, o que acaba por ressaltar as diferenças não apenas de escrita e enredo, mas também de tratamento dado às três obras. Para a publicação do romance, a autora se utilizou de um pseudônimo, “Indígena do Ipiranga”, prática muito comum entre as mulheres que insistiam em adentrar um universo literário eminentemente masculino.

Já a partir deste fato vemos uma disparidade entre Ana Luísa de Azevedo Castro e José de Alencar: enquanto para o último, segundo Colaço e Pimentel, “era fundamental que seu nome estivesse ligado às suas obras, pois consistia numa forma de elevar, ainda mais, o nome da sua nobre família – Alencar era filho do senador José Martiniano Pereira de Alencar”, para Castro ocorria o inverso, sendo essencial que ela protegesse sua face, tanto pela sua condição social mais baixa, quanto pelo contexto patriarcal, que relegava a mulher à margem da sociedade, principalmente no que se refere ao contexto artístico.

Além disso, era lugar-comum para as mulheres, dentro da literatura do período, a posição de “narratárias”, isto é, instância à qual o autor se refere nas narrativas, como estratégia argumentativa. Dessa forma, como afirma Muzart (1995), “a mulher, no século XIX, só entrou para a História da Literatura como objeto”. Ainda nessa linha da mulher como objeto, Anselmo Peres Alós (2004) constata que:

(...) praticamente durante toda a produção literária do período romântico, mas em especial durante a fase indianista, a mulher tem espaço apenas como objeto representado, e não como um sujeito autoral capaz de produzir representações

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FERREIRA, Patrini Viero; PAIM, Luciane de Lima; UMBACH, Rosani Úrsula Ketzer. Mulher-colônia:

a questão da autoria e da representação feminina a partir de D. Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 318-336.

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324 culturais, de forma a colaborar com o projeto de construção de uma identidade coletiva sob a égide do nacional. (p. 1)

D. Narcisa de Villar rompe com esse paradigma, e apresenta Ana Luísa de Azevedo Castro como primeira romancista catarinense. Ainda assim, o romance inicia-se com uma nota, intitulada “Ao Público” e escrita em primeira pessoa, com um tom que se pretende objetivo, na qual a autora critica a vaidade de algumas escritoras que mal compõem um poema e já se acham “poetisas consumadas” (p.

5). Além disso, nessa “nota”, a autora clama pela benevolência do leitor para uma obra escrita aos dezesseis anos de idade por ela, ressaltando assim a dificuldade de ser mulher e ter intenção de competir em um mundo monopolizado por homens.

Nessa passagem inicial, a escritora valoriza de forma intensa a recepção do público, deixando entrever em suas palavras a consciência de que, sem leitores, uma obra não sobrevive; por último, mas não menos importante, ela confessa publicar essa obra depois de muitos anos, vencendo sua “extrema timidez” (p. 5).

De acordo com Muzart (1989), essa publicação tardia de sua obra não se deve tanto à timidez da autora, mas sim “às condições da mulher no século XIX. Na verdade, romances de autores homens, de menor valor, foram impressos bem antes deste” (p. 231).

Adentrando no “Prólogo”, temos o eixo inicial da história: a lenda associada à Ilha do Mel, um pequeno território no arquipélago da barra de São Francisco Xavier do qual “ninguém se approxima della á noite, porque dizem que a ilha é mal assombrada, e muitos afirmam terem ali visto visões medonhas, capazes de matar de susto a uma dúzia daquelles bons lavradores”1 (CASTRO, 1859, p. 7). Esta lenda foi contada, depois de alguma insistência e até mesmo de uma ameaça, pela índia Micaela à narradora do romance, ainda em sua infância, que a reconta agora com suas próprias palavras, visto que “nos é impossivel referil-a com o tom e termos caracteristicos com que ella nos contou, perdoe-nos o leitor que a substituamos pela nossa linguagem, guardando todavia certas expressões que pertencem inteiramente á narradora” (CASTRO, 1859, p. 9). Aqui já é perceptível a intenção de valorização da língua e de expressões indígenas, bem como de sua tradição oral, como próprias e singulares, mais uma tentativa de construir para o país uma identidade sólida e única, diferenciando-o da metrópole colonizadora.

Em seu livro Iracema, Alencar acrescenta um tópico intitulado “Carta ao Dr.

Jaguaribe”, no qual também faz menção à singularidade da linguagem indígena, dando ênfase à grande tarefa do escritor, em sua opinião:

1 Cabe destacar que, para este estudo, foi utilizada a primeira edição do romance e, por isso, decidiu-se não atualizar a ortografia da linguagem usada pela autora.

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325 Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as idéias, embora rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução está a grande dificuldade; é preciso que a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara;

e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem. O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores particularidades de sua vida.

E nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro, é dela que há de sair o verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino. (ALENCAR, 1991, p. 3-4)

Mais adiante, nessa mesma “carta”, Alencar, diferente do que acontece com a narradora do romance de Castro, admite-se conhecedor da língua indígena, uma vez que a utiliza de forma original em seu livro, realizando nele sua ideia de literatura nacional:

Este livro é pois um ensaio ou antes amostra. Verá realizadas nele minhas idéias a respeito da literatura nacional; e achará ai poesia inteiramente brasileira, haurida na língua dos selvagens. A etimologia de nomes das diversas localidades, e certos modos de dizer tirados da composição das palavras, são de cunho original. (ALENCAR, 1991, p. 5)

Outra semelhança guardada entre os livros de Alencar e Castro advém de O guarani, onde também encontramos um “Prólogo” iniciando a obra, no qual o narrador conta de onde se originou a história a ser contada nas páginas seguintes:

Minha prima. — Gostou da minha história, e pede-me um romance; acha que posso fazer alguma coisa neste ramo de literatura. (...) Assim, não me julgo habilitado a escrever um romance, apesar de já ter feito um com a minha vida. Entretanto, para satisfazê-la, quero aproveitar as minhas horas de trabalho em copiar e remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário desta casa, quando a comprei. Estava abandonado e quase todo estragado pela umidade e pelo cupim, esse roedor eterno, que antes do dilúvio já se havia agarrado à arca de Noé, e pôde assim escapar ao cataclisma. (ALENCAR, 1996, p. 1)

Cabe destacar uma diferença significativa entre as duas obras: enquanto em O guarani o narrador constitui-se como um ser masculino, no livro de Ana Luísa de Azevedo Castro esse narrador é substituído por uma voz feminina, que corresponde, em um primeiro momento, à narração oral da índia Micaela e, logo após, à transcrição dessa narrativa pela narradora culta, responsável por colocar

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326 a história em palavras. Fica explícita, dessa maneira, uma das características mais marcantes na obra de Castro, que é a valorização e a exaltação da figura feminina, tanto como heroína quanto como protagonista. De acordo com Andreta e Alós, essa representação feminina nas obras da autora merece destaque por inúmeros motivos, entre os quais figuram a autoria feminina, em uma época em que a mulher possuía sua voz e escrita silenciadas; e também a questão da representação (tanto da figura da mulher branca, de origem europeia, quanto da mulher indígena, antecedendo a representação desta última pelo romance canônico brasileiro, feita por José de Alencar em Iracema).

O enredo de D. Narcisa de Villar narra a história de amor entre Narcisa e Leonardo, sendo ela uma jovem de família europeia abastada e ele um índio nativo do Brasil. Por conta dessa diferença, os irmãos de Narcisa não aceitam essa união, insistindo em casar a moça com um rico coronel português, por conveniência. Os dois jovens amantes fogem juntos e são perseguidos pelo noivo e pelos irados irmãos, e após isso, são alcançados e assassinados pelos perseguidores, dando ao desfecho da história um final que pode ser comparado ao trágico. Ao longo de todo romance, como destacado por Muzart (1989), nota-se uma preferência pelos índios, qualificados, no livro de Ana Luísa de Azevedo Castro, como “povo infante”

(p. 11), “gente de coração tão simples” (p. 8), contrapondo-se aos conquistadores.

Déspotas, bárbaros, tiranos e cruéis, ao final os portugueses acabam transformando-se em verdadeiros demônios, sendo caracterizados de forma totalmente pejorativa. O maior exemplo disso é a personagem de D. Martim de Villar:

D. Martim de Villar era um dos tyranuos mandados ao Brasil em quem recahira a má escolha do governo portuguez. O bárbaro tratamento e despotismo, que elle exercia sobre seus numerosos administrados, faziam-no odiar por essa gente de coração tão sensível e a quem elles chamam selvagens. Finalmente, a religião e costumes, a instrucção dos pobres indios, que compunham a sua colônia, nenhum peso tinham em seus cuidados. O que lhe merecia attenção era o proveito que delles podia tirar, deixando o resto a cargo de subalternos viciosos que ensinavam aos infelizes o gosto pelas orgias e corrupção. Longe pois de attrahir sobre si as bênçãos de seus subditos, somente havia feito nascer o temor, em vez do respeito em todos os corações. Natureza egoísta, orgulhosa e fria, elle julgava essa espécie nascida para a submissão e trabalho, e suas penas nenhuma sensibilidade achariam naquella alma dessecada pela ambição, qúe presumia com desdém, que os pezares não deviam tocar a entes incapazes de reflectir. (CASTRO, 1859, p. 13)

Esta forma de caracterização dos portugueses acaba por opor-se ao que ocorre com as obras de Alencar, nas quais estes são descritos como guerreiros

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327 honrados e valorosos, cheios de brios e moral. Um exemplo disso pode ser encontrado em uma passagem de O guarani, na qual temos a descrição da personagem de D. Antônio de Mariz:

Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo.

Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta. (ALENCAR, 1991, p. 6)

Entre Peri, personagem de O guarani, e Leonardo, personagem de D. Narcisa de Villar, há também diferenças significativas, advindas da forma como os indígenas são retratados nas duas obras. Enquanto Leonardo é descrito com qualidades como “doçura”, “humildade” e “obediência”, Peri é descrito como

“selvagem”, e suas maiores qualidades encontram-se em suas formas “esbeltas e flexíveis”, que permitem a ele movimentos “ágeis” e “ligeiros”. Leonardo possuía modos distintos de Peri, uma vez que foi educado e instruído com carinho por Narcisa, enquanto este último ocupava apenas a posição de servo de Cecília, a quem adorava e por quem nutria uma paixão oculta. Dessa forma, enquanto Peri é o típico exemplo de um indígena nativo, guerreiro rápido e acostumado à vida de servidão, Leonardo é descrito de forma mais sensível e delicada, dotado de características que, comumente, eram atribuídas às figuras femininas. Segundo Andreta e Alós, a figura de Leonardo, filho de uma indígena com um português, também pode ser contrastada com Moacir, personagem de Iracema, uma vez que, diferente deste último, a personagem de Leonardo não deixa de ter contato com sua herança cultural nativa.

A personagem de Narcisa, descrita por Muzart (1989) como “a heroína romântica pura, bela e virtuosa, porém com consciência de seu estado de dominada” (p. 232) aparece como uma crítica ao casamento por conveniência, visto como negócio. Cabe destacar que a crítica apresentada nesse ponto por Ana Luísa de Azevedo Castro antecede às reveladas por autores canônicos como o próprio José de Alencar, em Lucíola (1862) e Senhora (1875). Na descrição física de Narcisa são perceptíveis traços firmes, marcantes e detalhados, que a elevam à posição de rainha, admirada e fascinante:

Seu pescoço alvo e longo como o da gaivota de nossas margens, era ornado de collares de diamantes, cujos laços lhe cobriam o alvo collo; seus cabelos pretos e lustrosos como as azas da jacutinga, eram suspensos no alto da fronte por flores de pedras de muito custo. Seu talhe fino e esbelto como o do beija-flor, era desenhado pelas longas o profundas piegas de seu vestido de cabaia azul com flores de prata; seus pés

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328 calçavam uns sapatinhos de setim branco, de salto, que tornavam ainda mais majestoso o seu andar de rainha. Ah! que era a mais bella virgem de todo o bairro!

(CASTRO, 1859, p. 16)

Por esse trecho selecionado, é visível o espelhamento de Narcisa, uma estrangeira, na identidade nacional ainda em construção e denunciada através das comparações com elementos locais presentes na caracterização da personagem, esforço que representa a veia nacionalista tão difundida na época em questão.

Narcisa era descrita como portadora de uma fisionomia “doce e meiga” (p. 13), semblante “pensativo” (p. 14) e sorriso “melancólico” (p. 14), bem como caridosa e capaz de atos e modos “benévolos” (p. 15) para com o povo. Fica claro, desse modo, que a autora busca dar “um destaque relevante à mulher representada em Narcisa, dotando-a de ares de superioridade, tanto de coração como de beleza física”

(SOUZA e SILVA, 2014, p. 5).

Por fim, cabe destacar também a inversão na equação racial que ocorre ao aproximarmos D. Narcisa de Villar e Iracema: enquanto no primeiro temos a indígena que corresponde à personagem feminina e o masculino sendo associado ao português europeu, na obra de Castro acontece o oposto, uma vez que a personagem feminina é definida como estrangeira, ao passo que o nativo é formulado na personagem masculina. Com essa escolha, fica clara a visão da mulher como objeto de deleite e/ou moeda de troca em negociações de conveniência, inclusive quando a figura feminina em questão é branca, o que acaba por definir essa situação em torno de uma questão de gênero, e não de posição social.

Se os elementos de construção textual em comum entre Castro e Alencar (a saber: elementos linguísticos que se associam às paisagens brasileiras, personagens de mesmas origens, modos similares de construção do texto, mesma vertente romântica indianista, linha de pensamento que se aproxima do nacionalismo) forem levantados e levados em consideração, fica difícil compreender o motivo de a obra da autora ser ainda tão desconhecida e não incluída no cânone literário brasileiro.

Porém, se o preconceito que as mulheres enfrentavam na época para adentrarem um mundo literário quase que exclusivamente dominado por homens for colocado na balança, essa exclusão ganha não só motivação, mas também interesses políticos e sociais. Portanto:

Ao negar o estatuto da autoria às mulheres do século XIX, realiza-se um duplo movimento de exclusão e silenciamento no estabelecimento da categoria brasileiro:

exclui-se as diferenças referentes às categorias identitárias de gênero e de raça. À mulher é negando o espaço de produtora de capital simbólico, enquanto ao índio é

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FERREIRA, Patrini Viero; PAIM, Luciane de Lima; UMBACH, Rosani Úrsula Ketzer. Mulher-colônia:

a questão da autoria e da representação feminina a partir de D. Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 318-336.

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329 negada a possibilidade de outra modalidade de representação que não a do projeto indianista, cujo expoente maior é José de Alencar. Dadas as devidas proporções, mulheres e índios estavam submetidos a processos análogos de dominação: o patriarcalismo e o etnocentrismo. (ALÓS, 2004, p. 3)

Dessa forma, uma leitura atenta da obra de Ana Luísa de Azevedo traz uma severa crítica e uma certa espécie de resistência à sociedade patriarcal dominante e hegemônica, à medida que dá voz às minorias femininas e indígenas, para que lutem contra as violências de todos os tipos que foram vivenciadas por eles durante o século XIX no Brasil. No próximo subtítulo, será realizada uma análise a partir da perspectiva da função social da mulher na sociedade do século XIX, bem como sua posição dentro da hierarquia cultural, e assim, a visualização de como essa hegemonia masculina funciona também na ficção, ao retratar a realidade, ficará, até certo ponto, esclarecida.

A MULHER COLONIZADA: O LUGAR DA FIGURA FEMININA NO BRASIL COLONIAL DO SÉCULO XIX

Antes de adentrar a fundo na análise literária, é preciso esclarecer a importância de se levar o contexto em que determinada obra se insere em consideração no trabalho com ela. O crítico e estudioso Antonio Candido ressalta o valor de uma contextualização literária, acentuando a ideia de que seria impossível dissociar obra e contexto, o que acarretaria não apenas em uma quebra da integridade total da obra, mas também em uma interpretação equivocada da mesma. A influência de fatores socioculturais e políticos dentro da obra dar-se-ia principalmente nas instâncias ligadas à estrutura social, valores e ideologias.

Candido (2006) ainda enfatiza que uma análise literária não pode deslocar seu interesse para elementos sociais que formam sua matéria, para circunstâncias do meio que influíram na sua elaboração ou para sua função social ao invés de se debruçar sobre a obra em si. Para o autor, não é possível existir literatura enquanto não houver uma congregação entre meios expressivos (palavras e imagens) e homens integrantes de um determinado grupo, em determinados lugar e época. Tomando esses pressupostos como base, pode-se afirmar que o estudioso acredita na transposição de elementos da realidade externa, de fatores sociais para obras literárias, enfatizando, ao mesmo tempo, que não se pode restringir essa obra a apenas esses aspectos, ou correr-se-á o risco de simplificá-la de forma demasiada. É, portanto, indispensável tomar o cuidado de encarar os elementos externos ao texto como partes integrantes e não como o todo de uma obra. É

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330 necessário ter em mente que só é possível a compreensão completa de uma dada obra se, antes, entendermos a função desses fatores sociais intrínsecos a ela.

O enredo de D. Narcisa de Villar se passa no Brasil-colônia, época que vai de 1500 a 1822 e na qual as mulheres eram vistas de uma forma pejorativa, como indivíduos distantes do tecido social, e não participantes ativos da sociedade na construção cultural. Como bem definiu Ana Carla Menezes de Oliveira (2012), “a mulher ocupava uma posição peculiar, afetando grandemente sua imagem durante anos. Mantendo-se em segundo plano em relação ao homem, tanto econômica como socialmente, a mulher permaneceu à margem da sociedade e da historiografia brasileira” (p. 3).

Por conta disso, as mulheres na sociedade colonial brasileira não tinham direitos ou voz, e eram obrigadas a aceitarem sem questionar as vontades de seus pais, maridos e, no caso da personagem Narcisa, responsáveis (seus irmãos).

Vistas como meros objetos, as figuras femininas eram muitas vezes usadas como moeda de troca em negociações de conveniência entre famílias, sendo o casamento o verdadeiro fim para as moças: “Dom Martim de Villar muito desejava estreitar as relações que tinha com uma rica e nobre casa de Lisboa, cujo actual representante tinha sido seu companheiro de estudo. Casar sua irmã com o seu antigo condiscipulo era para elle o fim desejado de um de seus bellos planos” (CASTRO, 1859, p. 28).

Cabe destacar aqui que grande parte destas uniões se davam através de acordos, sem o consentimento da mulher, que deveria se resignar a aceitar seu destino e ser obediente e servil a seu marido, como era o esperado:

Porem, sem que ja tal cousa se suppozesse, o noivo desejado se apresentou n'um bello dia em sua casa, com as mesmas pretenções do seu antigo camarada: era elle o coronel Pedro Paulo, rico nobre, e de bom nome, que de tão longe vinha pedir a mão de D.

Narcisa de Villar: esta alliança que vinha achar tão forte apoio na vontade de D.

Martim, o fez dispor de sua irmã, como senhor, e não era preciso para a conclusão desse negocio o consentimento inútil, como pensava elle, d' uma menina que mal sabia o que fazia. De mais, sua irmã, criada no isolamento, havia adquirido o caracter dócil e brando das pessoas só acostumadas á obediência. (CASTRO, 1859, p. 29)

A partir desse trecho, é possível notar que a opinião da mulher dentro de negociações de casamento ou de qualquer outro assunto não era levada em conta, nem ao menos ouvida, mesmo que esse assunto a envolvesse diretamente. As moças eram criadas para serem submissas às vontades daqueles que detinham o poder sobre elas e não poderiam jamais questionar suas intenções.

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331 Caso o casamento não fosse arranjado até determinada idade, a alternativa para as moças era o convento. Por trás desse destino, havia a intenção de que o dote, parte da herança da donzela, não se perdesse:

(...) e não podendo, no Brasil, estabelecer em Portugal a donzella de Villar, como requeria a gerarchia de seu nascimento e o desejava a sua ambição, tinha tencionado fazel-a entrar em um convento, assegurando a sua sorte. Assim a rica herança que a joven perceberia, não seria jamais desencaminhada da família. (CASTRO, 1859, p. 28) Narcisa é uma personagem forte e confiante, que luta na medida do possível pelo que acredita, e nela encontramos indícios de uma resistência à tirania de seus irmãos, o que acaba despertando os piores sentimentos em seu irmão:

O homem grande tinha um gênio irascivel; acostumado a ser sempre obedecido, não tolerava a mais pequena recusa, e tanto mais isso o irritava, quanto mais inferior era a posição de quem o contrariava. E, pois, se sua irmã tivesse aceitado a sua proposta complacente, não teria visto as faíscas ardentes de seus olhos que se tornaram ferozes como o clarão que lança a labareda que começa a atear-se. (CASTRO, 1859, p. 56) Desacostumado a ser desobedecido, o senhor de Villar não sabia lidar com a recusa de sua irmã em casar-se com o pretendente por ele escolhido. Era nessas horas que seu caráter cruel e inescrupuloso vinha à tona. A personagem é um retrato da opressão a que as mulheres estavam submetidas durante a era colonial do país.

Narcisa pode, ainda, ser vista como um símbolo da luta feminina pelos seus direitos de, principalmente, governar sua própria vida e escolhas, à medida que se recusa a cumprir as vontades de seus irmãos e permanece fiel a seus valores:

— Não, dice ella, como fallando comsigo, não me heide casar com esse homem, porque não o posso enganar. Estas palavras sorprehenderam a D. Martim, que não menos admirado estava da transformação que vira na joven D. Narcisa, apresentando um contraste tão repentino. (CASTRO, 1859, p. 57)

Por outro lado, a personagem criada por Castro era consciente de sua posição de submissão dentro daquele contexto social, e apesar de sua vontade, compreendia que nada podia fazer contra as imposições de seus irmãos. Por vezes, apenas o que lhe restava era implorar, na esperança de ser atendida:

— Ora, accrescentou o fidalgo encolhendo os ombros: trata-se por ventura de amor em um casamento?

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— Senhor, não tracte desse modo o destino da mulher; não queira roubar o único bem que esse ente sensível pôde achar no sacrifício da liberdade de sua vida inteira.

(CASTRO, 1859, p. 58)

A crítica ao casamento por conveniência, que faz da mulher uma mercadoria e extingue seu direito de exercer seu desejo de forma livre, está presente em grande parte da obra de Castro, e se impõe nos discursos de Narcisa, insuflados de força e coragem:

— Ah! exclamou a moça exaltando-se: não me consultaram; sou eu a única que tudo ignoro de um facto que sabel-o-ha talvez até o mais obscuro dos criados que me servem, porque dispozeram de mim como de um fardo, que se mercadeja! Se querem agora a minha presença, é para que o comprador veja melhor a qualidade do estofo que ajustou pelo preço que se chama dote! Ah! e querem, depois de toda esta profanação do mais sagrado de todos os actos da vida da mulher, que hajam casamentos felizes? Irrisão! D. Martim mordeu os lábios até ferir sangue, ouvindo fallar assim a donzela. (CASTRO, 1859, p. 58)

Nesse trecho, está presente mais uma vez o desejo de ser dona de suas próprias escolhas, de ser responsável por seu próprio destino, no sentido de existir uma reclamação da personagem por não ter sido consultada sobre seu possível casamento.

Apesar de não ser a protagonista da obra, Ephygenia é também uma personagem que merece destaque dentro do livro de Ana Luísa de Azevedo Castro.

Ainda muito jovem, a índia foi seduzida por D. Luís de Villar, irmão de Narcisa, acabando grávida e abandonada. Com receio do preconceito que seu filho enfrentaria na tribo, procurou por D. Luís e conformou-se em viver como escrava nas terras de sua família, onde a criança que esperava não sofreria o desprezo de seu próprio povo:

Abatida pela dôr e pela doença, a desgraçada mãi afrouxou de actividade; não podendo fazer longas marchas paia poupar seu filhinho, ella parou algum tempo num sitio em que achou commodos para vida; foi ahi que a tua gente a apanhou e a trouxe para a vivenda dos brancos, onde ella se resignou a viver na escravidão:

essa mãi desamparada que procurava incansável o pai de seu filho, sou eu, a quem fizeste baptisar com o nome de Ephygenia, e teu filho com o de Leonardo! (CASTRO, 1859, p. 109)

Nesse trecho, é explicita a relação de dominação e escravidão a que estavam submetidos os índios em relação aos colonizadores. As mulheres nativas eram

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333 muitas vezes seduzidas pelos portugueses e depois abandonadas, obrigadas, como aconteceu com Ephygenia, a trabalhar para esses mesmos homens para sobreviver. Vistas apenas como objeto sexual, as mulheres indígenas não eram consideradas pelos colonizadores como ventres dignos de gerar um filho legítimo de seus senhores.

Em outro trecho selecionado, a tentativa de mais uma vez calar a voz feminina aparece novamente:

— Retira-te daqui, infernal embusteira, gritou D. Luiz sahindo dessa espécie de espasmo em quê tinham cahido todos os circumstantes ao ver a indígena: queres eom tua historia atenuar o crime dessa desgraçada que tu induziste ao erro, com teus sortilegios? Vai-te, não te conheço, nunca te vi! (CASTRO, 1859, p. 109)

Aqui, D. Luiz tenta de todas as formas driblar o discurso confessional de Ephygenia, que o compromete como homem. Chamando-a de “embusteira”, a personagem masculina procura desacreditar a figura feminina perante os outros presentes, para que suas palavras não sejam levadas em consideração.

Ao final da história, Narcisa é também assassinada, como punição para sua desobediência e insubmissão:

— Sim, tu morrerás, mulher indigna, acudio D. Martim, que prostergaste todas as leis da honra e da nobreza, entregando-te a um homem sem nome e sem nascimento;

porém em consideração í minha qualidade não morrerás como esse cão; has de morrer como christã, para que tua alma não se perca na Eternidade. Ah! o castigo do teu crime começa neste momento pela tua vergonhosa confissão. (CASTRO, 1859, p. 112) Fica claro a partir dessa decisão de D. Martim que as escolhas da mulher eram nulas: se não se resignasse a obedecer e acatar as ordens de quem detinha poder sobre ela, sua única alternativa era a morte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Ana Luísa de Azevedo Castro é um marco importante dentro da literatura brasileira, não apenas por ser um dos primeiros romances de autoria feminina na história do país, mas também porque denuncia e critica a violência a que estavam submetidas as minorias da época, como os indígenas e as próprias mulheres. D. Narcisa de Villar faz-nos questionar ainda os fatos já internalizados em nosso intelecto por conta de outros textos literários, como os de José de

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334 Alencar, que nos traz a imagem do colonizador como um guerreiro honrado e valoroso, e não como tirânico e cruel.

Repensar o cânone brasileiro com base em romances como o de Ana Luísa de Azevedo Castro torna-se uma tarefa indispensável, no sentido de compreender que a inclusão ou exclusão de obras dentro desse conjunto literário não se dá por mero acaso nem segue critérios fixos de qualidade. Existem interesses e motivações ocultas por trás dessas decisões, por parte daqueles que detêm o poder para manutenção de uma ideologia patriarcalista, que se torna cada dia mais clara e mais perversa.

Apesar de todos os direitos já conquistados e do espaço já ganho por essas minorias dentro da sociedade atual, ainda há muito a ser feito e adquirido. Trazer à luz autoras esquecidas e tirar suas obras das gavetas do esquecimento é um passo fundamental para iniciar a caminhada longa e árdua até a evolução social e a igualdade entre gêneros e raças.

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SOUZA, Elis Regina Guedes de; SILVA, Marcelo Medeiros da. Gênero e indianismo no Brasil colonial: D. Narcisa de Villar na sala de aula. Universidade Federal da Paraíba, 2014.

PATRINI VIERO FERREIRA é graduada desde 2016 em Letras – Português e Literatura – Licenciatura, pela Universidade Federal de Santa Maria. Nessa mesma instituição, concluiu seu mestrado em Estudos Literários no ano de 2018, orientada pela professora e doutora Rosani Úrsula Ketzer Umbach. É atualmente doutoranda em Estudos Literários pela universidade já citada, dentro da linha da Literatura Comparada. Seus interesses de pesquisa giram em torno da literatura de cárcere, destacando-se as temáticas da autoria, da violência, do autoritarismo e da crítica social.

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FERREIRA, Patrini Viero; PAIM, Luciane de Lima; UMBACH, Rosani Úrsula Ketzer. Mulher-colônia:

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Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 07 dez. 2020.

336 LUCIANE DE LIMA PAIM é mestre em Letras, pela Universidade Federal de Santa Maria (2018), licenciada em Letras/Português e Literaturas da Língua Portuguesa, pela mesma instituição (2015). Participante e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo – UFSM, sob a coordenação da professora doutora Rosani Ketzer Umbach. Doutoranda em Letras, pela linha de pesquisa Literatura, Comparatismo e Crítica Social, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal de Santa Maria. Desenvolve pesquisas que abordam as temáticas de violência de gênero, crítica social, autoritarismo e memória. Dentre suas publicações estão o artigo "Do abandono à decadência: Duzu-Querença e sua vida de abusos, violência e miséria” (Entre parênteses, 2017) e o capítulo de livro

"Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer: as mulheres violentadas de Olhos d’água, de Conceição Evaristo" (Literatura, exclusão e resistência, 2020).

ROSANI ÚRSULA KETZER UMBACH é mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (1991) e doutora em Literatura Alemã Contemporânea pela Freie Universität Berlin (1997), com pós-doutorado pela Universidade de Tübingen (2005). Atualmente é professora titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), atuando na graduação e no Programa de Pós-graduação em Letras, na linha de pesquisa Literatura, Comparatismo e Crítica Social, e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Dentre suas publicações estão o artigo

“Tortura e violência de Estado em dois contos de Caio Fernando Abreu” (Teresa, 2017) e o capítulo de livro “Da experiência individual à memória cultural”

(Literatura, exclusão e resistência, 2020).

Referências

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Assim, visa discutir, a partir da obra Coração na aldeia, pés no mundo, de Auritha Tabajara 2018, a escrita indígena de autoria feminina como resistência aos desmandos sofridos por