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O filósofo inglês John Locke (1632-1704

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Academic year: 2023

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SEGUNDO TRATADO DO GOVERNO CIVIL E SUAS INFLUÊNCIAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO

Caroline Brito dos Reis1 Clerislânia de Albuquerque Sousa2 Erika Braga Ribamar Siqueira3 Philippe Magalhães Bezerra4 Thaisse Craveiro de Souza Oliveira5

RESUMO: O filósofo inglês John Locke (1632-1704), trouxe em sua obra intitulada Segundo Tratado do Governo Civil, inúmeras temáticas que influenciaram o nosso ordenamento jurídico. Tais reflexos podem ser percebidos no que se refere ao processo de representação popular, onde são percebidas influências na obra de Locke, onde este defendia aspectos relacionados à representatividade e alternância de poder. Sua obra também destaca as limitações ao exercício do poder, as quais podem ser percebidas na nossa Carta Magna, assim como, aspectos inerentes a necessidade de tributação para que a sociedade civil possa ser mantida.

Palavras-chave: Sociedade civil, poder, constituição.

ABSTRACT: The English philosopher John Locke (1632-1704), brought in his work titled Second Treaty of Civil Government, numerous themes that influenced our legal order. These reflections can be perceived in what is a refere to the process of popular representation, where they are perceived influences in the work of Locke, where he defended aspects related to the representativeness and alternation of power. His work also highlights the limitations to the exercise of power, which can be perceived in our Charter, as well as inherent aspects of the need for taxation so that civil society can be maintained.

Keywords: Civil society, ruling, constitution.

1 INTRODUÇÃO

O filósofo inglês John Locke (1632-1704) é considerado um ideólogo da doutrina político-econômica liberal e das ideias iluministas. O autor inglês também foi um dos estudiosos que se deteve sobre a ideia de empirismo, isto é, de que a busca dos

1 Jornalista, Mestranda em Planejamento e Políticas Públicas / Uece - carol8as@gmail.com

2 Secretária Exec., Mestranda em Planejamento e Políticas Públicas / Uece - clerislania@gmail.com

3 Advogada, Mestranda em Planejamento e Políticas Públicas / Uece - erikabr1310@yahoo.com.br

4 Advogado, Mestrando em Planejamento e Políticas Públicas / Uece - ph_magalhaes@hotmail.com

5 Contadora, Mestranda em Planejamento e Políticas Públicas / Uece - thaissinhacs@gmail.com

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conhecimentos deveria ser realizada mediante as experiências vivenciadas pelos indivíduos, contrapondo-se à ideia de que essa busca deveria ser feita por meio de especulações ou deduções. Logo, segundo o autor, as experiências devem ser baseadas na observação dos fenômenos existentes, não creditando a elementos como a fé as explicações científicas necessárias para a compreensão dos fenômenos científicos.

Locke também se notabilizou por contestar a teoria dos direitos divinos do rei, visto que defendia que o Estado deve respeitar as leis naturais e civis embora admitisse a supremacia do Estado. Vale apontar que as leis naturais regem a vida dos indivíduos que viviam no estado de natureza, isto é, numa sociedade em que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve prejudicar o outro em sua vida, saúde, liberdade ou posses.

O estado de natureza é contrastado com a “sociedade civil”, da qual difere pela

“falta de um juiz comum com autoridade”. Locke acreditava que o estado de natureza poderia gerar conflitos entre as pessoas e que, por essa razão, o estabelecimento de um governo, mas não de um governo absoluto, seria a solução adequada. A sociedade política começa a existir, portanto, quando os homens concordaram em desistir de seus poderes naturais e erigir uma autoridade comum para decidir disputas e punir ofensores, o que só pode ser realizado por meio da existência de acordo e consentimento.

Vale ressaltar que no pacto original os homens não abrem mão de todos os seus direitos. Eles só renunciam a tanto de sua liberdade natural quanto seja necessário para a preservação da sociedade; abrem mão do direito que possuíam no estado de natureza de julgar e punir individualmente, mas retêm o remanescente de seus direitos sob a proteção do governo que concordaram em estabelecer. Logo, o autor versa sobre esse pacto firmado entre os indivíduos e o Estado que erigiu a sociedade civil e que legou ao filósofo inglês o reconhecimento como sendo um autor contratualista.

Para Locke, a formação de uma sociedade política desenvolvida por um grupo de homens deve ser promovida com o estabelecimento de um poder legislativo. Um dos limites para o poder legislativo, segundo o autor, é que ele “não pode tomar de nenhum homem parte alguma de sua propriedade sem seu próprio consentimento”.

Locke explica que a origem dos poderes legislativo e executivo da sociedade civil é julgar, através de leis estabelecidas, a que ponto as ofensas devem ser punidas quando cometidas na comunidade social, e também determinar por meio de julgamentos ocasionais fundamentados nas presentes circunstâncias do fato, a que ponto as injustiças de fora devem ser vingadas, em ambos os casos empregando toda a força de todos os membros sempre que for necessário (LOCKE, 1978). Para o autor, “o legislativo não é o único poder supremo da comunidade social, mas ele permanece sagrado e inalterável nas

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mãos em que a comunidade um dia o colocou”, tendo o legislativo como primeira lei natural fundamental a preservação da sociedade e das pessoas que nela se encontram.

O legislativo é, segundo a visão do autor, o poder supremo em toda comunidade civil, quer seja ele confiado a uma ou mais pessoas, quer seja permanente ou intermitente, contudo tem limitações, visto que não pode arrogar para si um poder de governar por decretos arbitrários improvisados, podendo decidir os direitos do súdito somente através de leis permanentes já promulgadas, e não pode transferir para outras mãos as atribuições do poder de legislar.

Para Locke, não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis, pois elas poderiam se isentar da obediência às leis que fizeram, isto é, ele defende com essa ideia uma noção que seria mais conhecida através de Montesquieu: a existência de uma separação dos poderes.

Contudo, para o autor só existiria um poder máximo, que é o legislativo, ao qual todos os outros estão e devem estar subordinados, visto que esta qualidade de legislatura da sociedade só existe em virtude de seu direito de impor a todas as partes da sociedade e a cada um de seus membros leis que lhes prescrevem regras de conduta e que autorizam sua execução em caso de transgressão.

Ele aponta que os homens passam do estado de natureza para aquele da comunidade civil, através da instituição de um juiz na terra com autoridade para dirimir todas as controvérsias e reparar as injúrias que possam ocorrer a qualquer membro da sociedade civil; este juiz é o legislativo, ou os magistrados por ele nomeados.

Outro aspecto que se pode destacar é a defesa do autor em favor da propriedade privada ao ponto de ele considerar que nem mesmo o poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento, pois a preservação da propriedade, para ele, é um dos objetivos da instituição de um governo. Propriedade esta que só está absolutamente segura se houver leis boas e justas que estabeleçam os limites entre ela e aquelas de seus vizinhos.

Para compreender mais sobre o trabalho desse autor, foi analisado nesse artigo o livro Segundo tratado sobre o governo civil aos olhos de três questões que permeiam o sistema democrático em vigor atualmente no Brasil e que serão apresentadas ao longo dessa pesquisa. São elas: a organização do sistema eleitoral e a alternância de poder, as limitações ao exercício do poder legislativo e a questão da necessidade de tributação para a manutenção da sociedade civil, temas cruciais para a vida em sociedade.

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2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Organização do sistema eleitoral e alternância de poder

Os primeiros pontos que merecem destaque na obra de Locke e que nitidamente encontramos influência em nosso ordenamento jurídico nacional diz respeito ao processo de representação popular. Nosso sistema constitucional tradicionalmente privilegiou a democracia indireta, através da escolha de representantes regularmente eleitos pelo povo, sendo a participação direta uma exceção exercida através dos plebiscitos, referendos e iniciativas populares de projetos de lei, como pode-se inferir do art. 01º da Constituição Federal:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui- se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Partindo dessa premissa, encontramos no Segundo Tratado do Governo Civil de Locke referências a três aspectos que reputamos dignos de análise, quais sejam: 1) alternância de poder por meio de eleições periódicas; 2) organização do processo eleitoral por um Poder externo àquele que está sendo eleito; e 3) representatividade das comunidades menores dentro de um contexto mais amplo.

Locke se debruça nos aspectos acima ventilados referindo-se basicamente sobre o Poder Legislativo, que segundo o autor seria o Poder supremo da sociedade civil, e quando toca no ponto relativo à alternância de poder e periodicidade do processo formal de escolha dos representantes, assim dissertou:

“Se o poder legislativo ou qualquer de seus elementos se compuser de representantes que o povo escolheu por um período determinado, e que depois deste retornam para o estado original de súditos e só têm participação no legislativo se forem escolhidos outra vez, é preciso também que o povo proceda a essa escolha, seja em ocasiões predeterminadas ou quando for para isso convocado;

(LOCKE, 1978)”

Observa-se claramente na passagem acima que o autor se refere a representantes que terão mandatos por período determinado, cuja as respectivas escolhas serão também em períodos predeterminados, além de se referir também ao instituto da

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reeleição desde que legitimamente amparada em escolha popular. A referida regra de alternância e periodicidade encontra guarida em nossa Carta Magna, quando o primeiro artigo do capítulo relativo à organização do Poder Legislativo assim dispõe:

Art. 44. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Parágrafo único. Cada legislatura terá a duração de quatro anos.

(Carta Magna, 1988, grifo nosso).

Observa-se de forma bem clara que o constituinte optou pela periodicidade do exercício do poder, colocando nas mãos do povo o direito de, a cada quatro anos, manter o legislador no exercício das funções por mais quatro anos, ou retirá-lo para dar lugar a um novo legislador. Ressalte-se ainda que para o Poder Legislativo não há limite para a reeleição, ou seja, o deputado ou senador pode ser reeleito por sucessivas vezes, diferentemente do que ocorre com o Poder Executivo, cuja possibilidade de reeleição é limitada. Dessa forma, a renovação periódica dos quadros do Poder Legislativo como forma de controle a avaliação periódica sugerida por Locke em sua obra revela-se prática já consagrada no ordenamento jurídico brasileiro.

Para compreendermos de que forma o ordenamento constitucional nacional acabou sim por ter uma configuração muito parecida com o proposto por Locke, temos que lembrar que a divisão de poderes do Estado trazida pelo autor previa a existência de 3 Poderes: o Legislativo, o Executivo e o Poder Federativo. Não tínhamos então o que hoje chamamos de Poder Judiciário, porém, as funções que Montesquieu confiou ao Poder Judiciário, na sistemática proposta por Locke seriam exercidas pelo Poder Executivo, ou seja, ao Poder Executivo cumpria a missão de executar as leis em sentido bem amplo, inclusive resolvendo conflitos decorrentes de seu eventual descumprimento.

Concluímos então que há uma aproximação bem significativa de parte das funções do Poder Executivo de Locke com o Poder Judiciário de Montesquieu. Nessa perspectiva, Locke atribui ao Poder Executivo a missão de organizar os períodos eleitorais, como uma forma de atribuir a organização dos pleitos eleitorais a um Poder que estaria um pouco mais distante do campo da política.

Essa foi a mesma opção do constituinte brasileiro que atribuiu ao Poder Judiciário, através da Justiça Eleitoral a mesma missão, pois além da função jurisdicional típica, a Justiça Eleitoral tem uma função administrativa de organização do processo democrático de escolha dos representantes do povo, desde a fase de alistamento eleitoral até o processo de apuração de votos.

Ainda sobre o processo de escolha de representantes e mais precisamente sobre representatividade, Locke manifesta uma preocupação com esse ponto em relação às

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possíveis modificações fáticas de cunho demográfico nas regiões e os eventuais reflexos no campo da representatividade, nos seguintes termos:

“As coisas do mundo seguem um fluxo tão constante que nada permanece muito tempo no mesmo estado. Assim, o povo, as riquezas, o comércio, o poder, mudam suas estações, cidades poderosas e prósperas se transformam em ruínas e se transformam em locais abandonados e desolados, enquanto outros locais ermos se transformam em países populosos, repletos de riquezas e habitantes. (LOCKE, 1978)”

Seguindo nessa linha de raciocínio, Locke correlaciona essa mudança no estado das coisas com a eventual desproporção no número dos representantes escolhidos:

Entretanto, nem sempre a evolução segue um ritmo igual e o interesse privado freqüentemente mantém costumes e privilégios depois de desaparecida a sua razão de ser, e em seguida, em governos em que o poder legislativo se compõe em parte de representantes escolhidos pelo povo, esta representação se torna muito desigual e desproporcional às razões que a haviam de início instituído. (LOCKE, 1978)”

Locke não chega a apresentar uma solução para tal situação de desproporcionalidade, mas admite que alguma modificação deve ser feita, porém reputa tal problema de difícil solução, considerando que qualquer saída passaria pela alteração da própria constituição:

“...todo mundo admite que é preciso encontrar uma solução; mas a maioria acha difícil encontrar uma, pois como a constituição do legislativo é o ato fundamental e supremo da sociedade, antecedente em si a todas as leis positivas e inteiramente dependente do povo, nenhum poder inferior pode modificá-lo. (LOCKE, 1978) ”

Percebe-se que uma análise sutil das colocações de Locke acerca de questões eleitorais, guardam sim uma similitude com as opções do constituinte brasileiro, e os preceitos básicos de alternância de poder por meio da periodicidade das eleições, organização dos pleitos eleitorais e representatividade proporcional das regiões foram pontos tratados claramente por Locke e todos com as respectivas correlações em nossa Carta Magna.

2.2 Limitação ao exercício do poder legislativo

Locke pondera que, em sendo o Poder Legislativo a fusão dos poderes dos membros da sociedade, constitui-se em um poder supremo, porém, não arbitrário, porquanto é limitado ao que as pessoas detinham quando do estado de natureza. Daí

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porque, conclui ser vetado ao Poder Legislativo a edição de decretos arbitrários improvisados, ao tempo em que exalta a importância de legislações permanentes para a consecução da justiça. Afinal, no seu entender, somente seria compreensível abrir mão da liberdade do estado de natureza em razão de regras que definissem expressamente o direito e a propriedade.

Em outros termos, Locke privilegiava o que hoje se nomina de segurança jurídica, por gerar a confiança de todos no Estado, legitimando-o. No atual Estado de Direito, a segurança jurídica constitui-se em um de seus pilares. É certo que mudanças da realidade social ao longo do tempo estimulam e findam por trazer alterações legais, o que não traz demérito ao raciocínio até aqui tecido. Entretanto, sucessivas alterações legislativas dissociadas da transformação social respectiva e, até mesmo, na contramão desta, fragilizam o pacto social prestigiado por Locke.

O que se verifica ao longo dos anos, é que a perenidade da legislação entendida por Locke como elemento fundante desse contrato social não é prestigiada no ordenamento jurídico brasileiro como deveria, acarretando instabilidade para as relações sociais.

De início, tem-se a Constituição Federal, um texto que já sofreu 96 emendas em seus 28 anos de existência, a caracterizar uma banalização do conceito de rigidez que lhe é ínsito, ao menos em teoria. Da mesma forma, dentre as tantas Propostas de Emenda à Constituição em trâmite nas casas legislativas, destaca-se a de nº 67 de 2016, cujo propósito é, nesse cenário de crise política, modificar o prazo de escolha do Presidente e Vice-Presidente da República em caso de vacância do cargo. Se de um lado exsurgem dúvidas quanto à existência de vedação na legislação vigente para a pretensão descrita, de outro, seu debate e eventual acolhimento restam contaminados pelo casuísmo diante do cenário político que vem se desenhando há muito, antes da apresentação da proposta.

O ideário da legislação permanente construído por Locke também é desafiado pela edição de medidas provisórias, que passam ao largo das disposições constitucionais estampadas no Texto de 1988. Os requisitos cumulativos de relevância e urgência deveriam passar por um efetivo controle político e jurídico exercido, respectivamente pelo Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal, este último quando provocado.

Ocorre que, ao longo dos anos, Presidentes da República têm utilizado este instrumento de forma excessiva e, por muitas vezes, arbitrária, ultrapassando os limites da discricionariedade administrativa. E mais, esta burla não pode ser imputada unicamente à mora legislativa, mas também ao apetite voraz da Presidência da República em resolver questões comezinhas diversas, ampliando, de forma reprovável, uma função que lhe é atípica. Um verdadeiro estado de exceção no dito Estado Democrático de Direito.

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A edição dessa espécie normativa importa em alterações legislativas imediatas, passível de precariedade trazendo insegurança jurídica não recomendável ao ordenamento jurídico, mormente quando ausente o estado de necessidade e verificada a excessiva edição de medidas provisórias. Desta feita, a visão de Locke em relação à extensão do Poder Legislativo ressoa nas normas que compõem o ordenamento jurídico brasileiro, todavia, é deturpada em termos práticos.

2.3 A necessidade da tributação para manutenção da sociedade civil

Para John Locke, a propriedade era um direito natural do homem, existente já no estado de natureza, situação em que não há um governo estabelecido, e os homens, em estado de liberdade e igualdade, submetem-se tão somente às leis da natureza. Assim, devido à ausência de uma organização social, não havia, nas relações, a presença de um agente dotado de imparcialidade e investido de autoridade para conciliar os conflitos existentes. Cada indivíduo possuía legitimidade para “aplicar as leis” e “promover a justiça”, decidindo os próprios atos e dispondo de suas posses de acordo com sua conveniência.

A concepção de que cada homem nasce igual, livre e independente, contudo, induziria à necessidade de organizar e estabilizar as relações sociais para minimizar a então situação de insegurança e risco ao direito à propriedade, ou seja, a tudo que ao homem pertença, condição inerente ao indivíduo. É daí que decorre a necessidade de institucionalizar um poder governamental, que possua legitimidade e esteja submetido a normas vigentes e aplicáveis de igual maneira para todos, pois, quem não estiver submetido às leis promulgadas conforme a vontade da maioria não se encontra em um estado de sociedade civil, mas no estado de natureza que lhe antecede.

O convívio em sociedade é estabelecido a partir de um pacto social em quem os membros se submetem ao que for decidido pela maioria e Locke destaca que a conservação da propriedade foi um dos motivadores para os homens abdicarem da liberdade do estado de natureza para submeterem-se ao governo civil, conforme é exposto pelo trecho “Nenhuma sociedade pode existir ou subsistir sem ter em si o poder de preservar a propriedade”. (Locke, 1978, p.58).

Assim, por meio do pacto social, os homens renunciam da incerteza própria do estado de natureza e concordam em abdicar das suas liberdades irrestritas pela submissão a leis claras, pré-estabelecidas, conhecidas pelo povo e aplicadas de maneira impessoal, visando garantir a propriedade e a segurança. Atualmente, o princípio da legalidade é tido

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como um dos pilares do estado democrático de direito. Tal qual defendido por Locke, as leis devem ser pré-estabelecidas, instituídas pelo povo ou por representantes eleitos por estes, e aplicadas por agentes imparciais incumbidos dessa função. Ademais, o princípio da legalidade estende-se a todos os ramos do direito, inclusive no direito que o Estado possui de arrecadar recursos para sua manutenção por meio de tributos.

Além dos aspectos relacionados à legalidade tributária, cumpre ressaltar que Locke reconhecia a necessidade de que os integrantes da sociedade civil contribuíssem

“com uma parte correspondente de seus bens” para manter as atividades da máquina estatal do governo, existente para viabilizar sua proteção, in verbis:

É verdade que os governos não poderiam subsistir sem grandes encargos, e é justo que todo aquele que desfruta de uma parcela de sua proteção contribua para a sua manutenção com uma parte correspondente de seus bens. Entretanto, mais uma vez é preciso que ela mesma dê seu consentimento, ou seja, que a maioria consinta, seja por manifestação direta ou pela intermediação de representantes de sua escolha; se qualquer um reivindicar o poder de estabelecer impostos e impô-los ao povo por sua própria autoridade e sem tal consentimento do povo, está assim invadindo a lei fundamental da propriedade e subvertendo a finalidade do governo.

Como posso me dizer proprietário de algo que outra pessoa possa por direito tomar quando bem entender? (LOCKE, 1978, p. 74)

Por óbvio, o Estado demanda recursos para seu funcionamento e para consecução dos seus objetivos, em benefício da sociedade. São as normas jurídicas que impõem ao Estado o dever de satisfazer certas necessidades públicas, de modo que estas constituem deveres legais da Administração Pública, a quem compete fazer tudo que a lei expressamente determina ou autoriza. Assim, não é possível imaginar a prestação dos serviços públicos sem que o Estado disponha de recursos para financiá-los.

O poder de tributar do estado decorre de sua soberania. Do excerto colacionado acima, é possível extrair, contudo, o entendimento do autor acerca da necessidade da definição de limites para o poder de estabelecer impostos, seguindo a lógica de defesa do direito natural à propriedade e a previsão de normas que devem reger uma sociedade civil.

Locke, em suas linhas escritas, revelava grande preocupação em combater a ideia de, eventualmente, o poder central vir a invadir o direito à propriedade do homem e se apoderar de seus bens. Entendia que isto “equivaleria a privá-los de toda a propriedade”, contrariando a principal razão que levou os homens a se organizarem em sociedade civil e se submeterem a um poder central, qual seja, a proteção desta mesma propriedade.

Assim, tendo em vista que o governo não dispõe do direito de invadir e se apoderar, na forma que bem entender, dos bens dos indivíduos, formata-se a ideia de imprescindibilidade da legalidade também para as atividades tributárias, de modo que a

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imposição de tributos/impostos deve observar o consentimento do povo, cuja manifestação pode ocorrer de forma individual ou ser atribuído/outorgado a representantes eleitos, que, em nome destes, delinearão as leis, o exercício do poder de tributar e os seus limites, conforme defende o autor:

O poder legislativo não deve impor impostos sobre a propriedade do povo sem que este expresse seu consentimento, individualmente ou através de seus representantes. E isso diz respeito, estritamente falando, só àqueles governos em que o legislativo é permanente, ou pelo menos em que o povo não tenha reservado uma parte do legislativo a representantes que eles mesmos elegem periodicamente. (LOCKE, 1978)

Está claro, portanto, que somente aqueles que são legitimamente habilitados, ou seja, aqueles aos quais o povo concedeu o consentimento para falar em seu nome, possuem as prerrogativas de legislar, instituir e estabelecer a forma que ocorrerá atividade tributária, conforme as delimitações de competências definidas para cada ente (poder) governamental. Pensar diferente disso seria tender para a arbitrariedade e insegurança jurídica, típicos de atividade de confisco e ao poder despótico. Aliás, Locke entende que investidas de um poder arbitrário, que viole ou destrua a propriedade, é causa que justifica dissolução do governo.

Voltando à realidade contemporânea, no ordenamento jurídico brasileiro, a definição de tributo encontra-se positivada no artigo 3° do Código Tributário Nacional, que o conceitua por meio das características que lhe são inerentes, dentre as quais, considerando o objeto do presente estudo, destaca-se sua natureza compulsória, sua instituição mediante lei e sua cobrança mediante atividade administrativa plenamente vinculada:

Art. 3°. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída por lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Verifica-se que as referidas características do tributo, ressaltadas no parágrafo anterior, possuem íntima relação com as ideias de John Locke comentadas até aqui.

Primeiramente, a natureza compulsória do tributo obriga a todos os integrantes da sociedade, independente de sua vontade individual, tendo em vista que foi instituído por lei que, por sua vez, foi aprovada consoante manifestação da vontade da maioria, atribuída e desempenhada por seus representantes eleitos, tese da democracia representativa em que nos inserimos. Cumpre comentar, ainda quanto à natureza compulsória e o princípio da legalidade tributária, que Locke defendia de maneira expressa que, em uma sociedade civil, ninguém estaria acima de leis promulgadas, isso seria realidade inerente ao estado de

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natureza, como já dito. Da mesma forma, o Estado não pode invadir e subtrair do patrimônio individual nada além do que lhe é devido, ou estaria caracterizado o confisco tributário.

A previsão de que a cobrança dos tributos é atividade administrativa plenamente vinculada, por sua vez, visa minar qualquer margem de discricionariedade da autoridade administrativa, ficando esta inteiramente subordinada ao comando legal, ou seja, a cobrança do tributo será sempre vinculada a uma norma, o que intenta proteger os indivíduos e não deixá-los à mercê de agentes públicos que, ainda que sejam legitimamente habilitados, poderiam vir a exceder o poder que a lei lhes conferiu.

Ante o exposto, o princípio da Legalidade decorre da necessidade de consentimento do povo para a imposição de obrigações. A preocupação com o princípio da legalidade é tamanha que a Constituição Federal, além de trazê-lo expressamente, no art.

37, como princípio da administração pública, prevê, no inciso II do art. 5°, que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Não bastassem tais previsões, ainda dispõe sobre especificamente sobre a legalidade tributária em seu art.

150, inciso I, que veda aos entes federados exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

O desafio que se impõe, portanto, desde os tempos de formatação de uma sociedade civil a que se refere Locke até o contexto dos dias atuais, é que o Estado constituído consiga equilibrar, no ordenamento jurídico, na resolução dos conflitos e na execução das atividades estatais, a proteção às garantias individuais e a satisfação das necessidades da coletividade sob sua responsabilidade.

3 CONCLUSÃO

A obra de Locke contempla os primeiros “ritos”, se assim podemos classificar, da formação da sociedade civil. O estado da natureza e o direito a propriedade já sinalizavam uma prévia dos acontecimentos que estariam por vir. Com o surgimento da sociedade civil, também fazia-se necessária a criação de leis para que fossem seguidas e todos pudessem viver com o maior nível de segurança possível.

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Locke defendia a criação de uma sociedade política liderada por homens a qual seria estabelecida de um poder legislativo. Sendo assim, podemos ratificar um dos aspectos da obra de Locke que podem ser percebidos em nosso ordenamento jurídico, conforme enfatizado anteriormente nesse artigo: o processo de representação popular, o qual pode ser visto no parágrafo único do art 1º da Constituição Federal. Outro ponto a ser mencionado, diz respeito a limitação ao exercício do poder legislativo, onde em sua obra Locke disserta sobre a constituição do poder supremo, no entanto, não arbitrário. Apesar das inúmeras referências da obra de Locke, o nosso ordenamento jurídico possui inúmeros níveis de instabilidade.

Por fim, outra conexão a ser feita com a obra de Locke, trata da necessidade da tributação para a manutenção da sociedade civil. Pode-se perceber que Locke defendia que ninguém (em uma sociedade civil), estaria acima das leis, assim como, ao Estado não era permitido tirar o patrimônio nada além do que deve ser. Tal conexão com nosso ordenamento jurídico pode ser enfatizada através do princípio da Legalidade. Apesar da publicação da obra original ser do século XVII, são notórias as inúmeras influências do Segundo Tratado do Governo Civil para a construção do nosso ordenamento jurídico, o que torna a obra de Locke atemporal.

REFERÊNCIAS

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https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496301/000958177.pdf?sequence=1 Acesso em 15 de maio de 2017.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 292 p.

CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almeida, 1995.

LOCKE, Jonh. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Editora Vozes, 1978. Disponível em: http://www.xr.pro.br/if/locke-segundo_tratado_sobre_o_governo.pdf Acesso em 15 de maio de 2017.

REZENDE, Renato Monteiro de. É Constitucional a PEC das Diretas? Análise da

conformidade da PEC nº 67 de 2016, com o art. 60, §4º da Constituição Boletim Legislativo:

Núcleo de Estudos e Pesquisas as Consultoria Legislativa. N. 64. Maio/2017. Disponível em https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/boletins- legislativos/bol64. Acesso em 05 jul.2017

SOUZA, Luis Henrique da Cruz. Os limites do Poder Político em John Locke.

Departamento de Filosofia. Universidade de Brasília: 2014

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