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(1)SANTOS, Enedir da Silva dos

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SANTOS, Enedir da Silva dos. O interdito da sexualidade feminina na narrativa de Márcia Denser:

transgredir para resistir. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 19-34.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 03 set. 2019.

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O INTERDITO DA SEXUALIDADE FEMININA NA NARRATIVA DE MÁRCIA DENSER: TRANSGREDIR PARA RESISTIR

Dra. ENEDIR DA SILVA DOS SANTOS SECRETARIA MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO (SMSJRP)

São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil.

(enedirss@hotmail.com)

RESUMO: Erigidos sobre ideais de transgressão e resistência, os textos de Márcia Denser (2003) desestruturam os estereótipos que subalternizam o feminino à superioridade masculina em vários sentidos: neste caso, a autora emprega o erotismo para desconstruir o interdito da virgindade feminina como ideal de pureza. Os interditos, postos por Bataille (1987) como regras que regulam o comportamento humano, desde sempre compreenderam o ser feminino como submisso ao poderio masculino e, numa sociedade machista-patriarcalista como a nossa, revestiram-se de múltiplos discursos autoritários e autorizados para condenar a mulher que ousasse contrapor-se a essas regras. Narrados ácida e sarcasticamente, os textos descontroem essas regulamentações, subvertendo-as a partir da vivência sexual feminina, resultando em narrativas que transgridem os ditames sociais.

Palavras-chave: Narrativa. Erotismo. Interdito. Autoria feminina.

Artigo recebido em: 13 maio 2019.

Aceito em: 19 jun. 2019.

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SANTOS, Enedir da Silva dos. O interdito da sexualidade feminina na narrativa de Márcia Denser:

transgredir para resistir. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 19-34.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 03 set. 2019.

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THE FEMALE SEXUALITY INTERDICT IN THE NARRATIVE OF MARCIA DENSER: TRANSGRESS TO RESIST

ABSTRACT: Erected on ideals of transgression and resistance, the texts of Márcia Denser (2003) deconstruct stereotypes that subordinate the feminine to male superiority in several ways: in this case, the author uses eroticism to deconstruct the interdict of female virginity as an ideal of purity. The interdicts, established by Bataille (1987) as rules that regulate human behavior, have always understood the feminine subject as submissive to masculine power and, in a macho-patriarchal society such as ours, they have taken on multiple authoritarian and authorized discourses to condemn women who dared to oppose these rules. Narrated acidly and sarcastically, the texts deconstruct these regulations, subverting them from the viewpoint of female sexual experience, resulting in narratives that transgress social dictates.

Keywords: Narrative. Eroticism. Interdict. Female authorship.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As proposições que norteiam este trabalho partem da ousadia de refletir sobre os interditos como proibições socialmente assimiladas, que, conforme os apontamentos de Bataille (1987), possuem caráter ilógico e imensamente variável quanto aos objetos. Aqui, refletiremos sobre a presença dos interditos e suas rupturas nas narrativas produzidas por Márcia Denser durante a década de 1980.

Importante frisar que as rupturas, como veremos, referem-se, principalmente, ao tratamento que o enredo da autora dá a questões do universo feminino, principalmente aqueles que envolvem o exercício da sexualidade.

Em consonância com as proibições assimiladas, constitui-se como elemento de análise a atuação da autora durante os anos da ditadura militar em que ela assume uma postura política de desmanchar o estereótipo da mulher, empregando a sexualidade como elemento de transgressão. Nesse ínterim, o discurso da autora ecoa e reivindica um lugar de poder, pois “discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”

(FOUCAULT, 1996, p. 10).

A ótica masculina, dominante no contexto social, delimita lugares subalternizados às mulheres. Que ótica é essa? É a ótica preponderante,

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21 veiculada pela mídia e que expõe o corpo feminino como mercadoria, hipervalorizando modelos estéticos e estereótipos de fragilidade. O que reforça tal delimitação? A multiplicidade discursiva: religiosa, política, social. Assim, partindo do pressuposto de que os interditos atuam como normas que orientam o comportamento humano e, focalizando, especificamente, o feminino, analisaremos sua transgressão como uma manifestação de resistência da mulher à cessão de sua existência enquanto construtora de sua própria identidade.

Enquanto construtora de uma identidade que alcance a representatividade, há que se pensar no lugar social ocupado pela mulher e por sua voz, principalmente no que diz respeito à autoria feminina. Há certa desvalorização da palavra por ela emitida em nossa sociedade, isso porque, diante do alicerce de exclusão machista, é difícil contrapor-se e levantar as demandas que acometem as mulheres, talvez até mais do que isso, é difícil que se veja com seriedade questões como o assédio, violências de vários tipos, dentre outras. São inúmeras as tentativas de diminuir e desimportantizar a voz feminina.

Logo, a opção de Márcia Denser em usar o erotismo e a sexualidade para desfazer estereótipos se opõe à subalternidade da mulher, conferindo-lhe por meio do discurso uma voz que não se conforma com o que delimitaram que ela fosse, mas está constantemente buscando caminhos para erigir-se socialmente.

Ocupando no terreno literário um lugar de fala que contraria as normas patriarcalistas, a autora se empodera por expor sua ficção, ao mesmo tempo em que confere importância e empoderamento as suas leitoras.

Em seus textos, encontramos os interditos como uma série de regulações sociais ligadas ao comportamento atribuído ao feminino, principalmente no que tange ao exercício da liberdade sexual e às transgressões advindas de uma vivência que desconstrói as regulações impostas como marcas estereotípicas:

são narrativas em que o erotismo configura-se como uma atividade de exposição transgressiva por nutrirem-se ambos, interditos e transgressão, de uma violência social que impulsiona a resistência.

Dessa forma, o diálogo entre o interdito e a transgressão simboliza o conflito político em torno do gênero. Isto porque há um erotismo que agride por evidenciar a violência não apenas do desejo sexual a ser sempre saciado, mas a proximidade com a violência absorvida e consentida pela assimilação dos papeis sociais de cada um: homens – dominadores, fortes e sexualmente insaciáveis;

mulheres – dominadas, frágeis e submissas aos ditames religiosos, físicos e comportamentais.

A prosa produzida pela escritora paulista ilustra o que Sartre (2004) aponta como a capacidade do escritor de lidar com os significados, isto porque

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22 a autora cria personagens que transpõem o caráter social repressivo e as apresenta em enredos que promovem um novo olhar sobre o feminino. Artífice da palavra compõe cenários em que mulheres empoderadas escolhem seus próprios destinos, não sem refletir sobre o peso que a sociedade lhes imputa, mas também sem negligenciar suas próprias realizações em prol dos cerceamentos sociais.

Nesse contexto, a narrativa de Denser usufrui da representação para promover uma mudança social: longa, árdua e necessária, num país que ainda vê na vítima a culpa pelo estupro. Seus textos apresentam um erotismo rebelado, que por si e acrescido pelo adjetivo rebelado, configura-se como uma infração à regra dos interditos por ser uma atividade humana da qual o homem tem medo, pois coloca em xeque o inconfessável, o socialmente condenável (BATAILLE, 1987).

Além de Bataille, amparam as reflexões presentes neste texto Jean Paul Sartre (2004), Marilena Chauí (1984), Foucault, entre outros que permearão e possibilitarão o feitio deste trabalho em que se procura analisar a relação entre o interdito, sua ruptura no contexto da escrita feminina.

POR QUE MÁRCIA DENSER?

No território literário, Márcia Denser se consolidou com uma prosa bastante provocativa, principalmente, se focalizarmos o erotismo, material muito empregado na obra analisada, mas também presente em coletâneas organizadas por ela, como Muito prazer (1982) e O prazer é todo meu (1984). Sua estreia nesse território se deu em 1977 com o livro de contos Tango fantasma.

Da década de 70 para cá, a autora escreveu contos, romances, crônicas e, ultimamente, tem se embrenhado como comentarista política em várias redes sociais.

Embebida pela metrópole – cenário que individualiza todos os seres – sua prosa traz sempre personagens femininas marcantes, dentre elas Diana caçadora, quiçá a mais emblemática pela autonomia de suas atitudes. De maneira geral, as personagens da escritora vivenciam diferentes relações sexuais isoladas do comprometimento matrimonial, maternal, entre outros.

Suas protagonistas femininas vão do envolvimento lesbiano à sugestão do incesto e mesmo da pedofilia; tudo regado a um empoderamento advindo de um posicionamento que nega o encarceramento da sexualidade da mulher em alcovas ou sussurros.

A criação de personagens femininas fortalecidas e de homens que são vitrines da degradação humana revela o percurso de praticamente todos os escritos da autora e também a primeira transgressão ao interdito: uma mulher

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23 criando ficção, cujo erotismo grita, negando-se ao silenciamento moldado pela sociedade. Sobre a literatura que produz, Márcia Denser reverbera: “Nos anos 1980, representou um avanço para uma literatura dita feminina e feminista no Brasil, uma vez que representa a mulher como sujeito da ação e não como objeto do homem e do texto do homem [...]” (DENSER, 2010, p. 53).

As narrativas construídas pela autora são marcadas por um erotismo que beira a marginalidade da pornografia pela explicitude como as ações são narradas. A transgressão efetiva-se pela desconstrução do papel atribuído à mulher no campo comportamental, pois ela adentra o campo sexual como um expoente das tensões culturais que norteiam e delimitam a postura feminina disseminada pela sociedade burguesa patriarcalista e cristã. Assim, há um deslocamento da sexualidade que não repousaria apenas no campo da libido, recaindo sobre a simbologia do desejo, em consonância com o pensamento de Marilena Chauí de que “A sexualidade não se confunde com um instinto, nem com um objeto (parceiro), nem com um objetivo (união dos órgãos genitais no coito). Ela é polimorfa, polivalente, ultrapassa a necessidade fisiológica e tem a ver com a simbolização do desejo” (CHAUÍ, 1984, p. 15).

Poderia parecer que a atividade ou a representação sexual se bastaria, entretanto, o erotismo assume um caráter político, visto que “o que diferencia o erotismo da atividade sexual simples é uma procura psicológica independente do fim natural encontrado na reprodução e na preocupação das crianças”

(BATAILLE, 1987, p. 11). A procura psicológica presente em Denser é a necessidade de resistir, de transgredir e, consequentemente, existir no contexto social.

Apoiados pela função do prosador apontada por Sartre (2004), absorvemos Márcia Denser como uma escritora engajada, pois se a princípio suas personagens não passam de ilustração da realidade, diante dos olhos do leitor, tornam-se objetos ressignificados, desviados dos ditames sociais que estereotipizam. Assim, inicialmente, temos o choque com personagens que desafiam e quebram as regras; em segundo plano, ilumina-se um caminho possível para se desvencilhar das amarras sociais:

A arte da prosa se exerce sobre o discurso, sua matéria é naturalmente significante: vale dizer, as palavras não são, de início, objetos, mas designações de objetos. Não se trata de saber se elas agradam ou desagradam por si próprias, mas sim se indicam corretamente determinada coisa do mundo ou determinada noção. Assim, acontece com freqüência que nos encontremos de posse de determinada idéia que nos foi comunicada por palavras, sem que nos possamos lembrar de uma só das palavras que a transmitiram. A prosa é antes de mais nada uma atitude do espírito; há prosa quando, para falar como Valéry, nosso olhar atravessa a palavra como o sol ao vidro. (SARTRE, 2004, p. 18-19)

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24 O engajamento de Denser pode ser transvisto pelo modo como a narrativa é construída; a articulação dos elementos constituintes do texto que convergem para repassar uma imagem da mulher que não era usual, mesmo em outros textos de autoria feminina. Narrador, personagens, espaço, tempo, todos confluem para que a mulher não apareça atrelada a limitações ou tenha sua liberdade cerceada de alguma forma.

Pelo contrário, há um misto de cinismo e sarcasmo que acrescenta agressividade ao apelo sexual das narrativas, de modo que seja num beco da grande metrópole, seja nos espaços dominados pelos parâmetros burgueses, uma mulher dona de seu próprio corpo, usufrui dele para extrair prazer e exalar sua postura de resistência, como a protagonista do conto “O animal dos moteis”:

[...] É bobagem. Penso: sinto-os pulsar aqui dentro, cegos, surdos, solitariamente, me tocando até a loucura, me penetrando até a loucura.

Certo, o prazer também é meu, mas duplamente solitário, uma tarefa que cumprimos tão distraidamente, tão alheamente como um violino que se tocasse a si próprio num dormitório de quartel, tarefa da qual só poderia, só deveria, nascer amor e música, no entanto... (DENSER, 2003, p. 71)

As reticências do parágrafo citado revelam o teor de esvaziamento da relação sexual e apresentam-nos dois interditos transgredidos pela escrita da autora: o primeiro, a protagonista assume sentir prazer numa relação ocasional, algo impensável para as mulheres educadas sob os padrões patriarcais; o segundo, apresentar sexualidade cujo intuito único de satisfazer fisicamente a ambos, como preenchimento momentâneo do vazio, ou seja, as relações sexuais se dão em pé de igualdade, neste caso, entre homem e mulher.

Como bem expôs Foucault (1998) acerca da austeridade sexual, na verdade, trata-se de um exercício de poder e uma prática de liberdade em que o homem tem justificadas suas experimentações sexuais, enquanto à mulher, premia-se com o privilégio do matrimônio, de ter sido escolhida para o vínculo familiar. Nesse contexto, o que a escrita de Denser faz é desatar os laços que prendem a mulher no campo social, oferecendo-lhe liberdade para subverter seu lugar.

Seja pelo uso de vocábulos que, sarcasticamente, seriam inapropriados para uma moça bem criada da sociedade paulistana. Seja pela postura de caçadora que se sabe dominadora ante sua presa, o fato é que Márcia Denser tem uma escrita bastante provacativa, o que coloca o leitor em conflito consigo por intermédio da abordagem temática de sua narrativa.

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25 A RELAÇÃO ENTRE O EROTISMO, O INTERDITO E A TRANSGRESSÃO:

FORMAS DE RESISTÊNCIA

O erotismo, em Bataille (1987), é uma atividade essencialmente humana e interior, por isso, vivida nesse sentido, afasta-nos da animalidade instintiva.

Por ser uma atividade oriunda da racionalidade, o erotismo coloca em questão os interditos culturais/sociais que nos limitam e, estes, só têm razão de existir se forem transgredidos: assim, num século em que o apelo imagético é explorado ilimitadamente, a exposição que tange mais ao pornográfico por ser apenas exibição e, menos ao erótico que se embrenha pela sugestão, é um exemplo de conformidade ao interdito?

Ambos não são conformidades, mas maneiras diferentes de resistir. A questão é que não se pode observá-los isoladamente; é preciso considerar de onde parte tanto a pornografia, cogitada por Maingueneau (2010) como característica do masculino e o erotismo, segundo o mesmo autor, atribuído ao feminino pelo caráter sugestivo.

O interdito apresenta-se cotidianamente no viver humano numa diversidade de situações que envolvem a regulação comportamental, desde a relação com a morte, até o exercício da sexualidade, daí o caráter variável asseverado por Bataille e reforçado pela observação de que se procura uma conciliação de coisas que a princípio são inconciliáveis, tais como o respeito à lei e a violação ou o interdito e a transgressão (Bataille, 1987).

Em Denser, ponderando que o exercício da sexualidade feminina sempre foi objeto de preconceito, cercada de pudores e condenação, encontram-se narrativas que utilizam ora a explicitude da pornografia, ora a sugestividade do erotismo, em que se percebe que o texto não apenas promove uma ruptura com o interdito social de silenciamento diante da sexualidade feminina, como iguala homens e mulheres nas possibilidades dessa vivência.

Seria falso supor, porém, que tanto desarranjo existencial componha um quadro de lamentações, uma sequência de confissões soníferas. Nada disso, o texto de MD alcança uma ironia tão cruel e tão sensível, que, sem perceber, estamos sorrindo, ou mais: estamos dando uma boa gargalhada. Aí se encontra uma das magias cultivadas no caldeirão de MD: a competência de transformar situações de uma penúria emocional e material lamentáveis em picadeiro, espécie de circo no qual, ora no centro do palco, ora na plateia, obrigamo-nos voltar os olhos e os ouvidos para o alto, para aquele mo(vi)mento único no qual o trapezista encena o célebre salto-mortal. E somos nós, na verdade, aquele corpo em voo.

(AJZENBERG, 2003, p. 11-12)

Dentre os interditos apresentados até agora na escrita de Márcia Denser, talvez nos falte esclarecer que o erotismo constitui-se como uma dupla

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26 transgressão em sua obra: considerando-se, primeiramente, o lugar social ocupado pela mulher que ousa escrever com um erotismo escancarado, igualando homens e mulheres no usufruto da vivência sexual; posteriormente, por trazer à tônica textual, um erotismo que também resulta da violência do meio sobre o feminino. De acordo com as palavras de Foucault (1996), os interditos regulam socialmente os discursos e os comportamentos, todavia, eles não atuam da mesma forma com todos, ele é mais um dos integrantes do que o autor considera processos de exclusão:

[...] O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala [...]. (FOUCAULT, 1996, p. 9)

A regulação do discurso de Denser é diminuída, justamente, quando a autora evoca o sarcasmo do narrador que conduz as personagens à transgressão do comportamento instituído.

Impossível ficar ali, melhor resignar-me, com elegante desencanto, a conduzir mais esse visitante pelos labirintos de mim mesma, que incluem e permitem a velha e a nova cidade noturna; revisitar ainda e mais uma vez meus fantasmas, assomando por detrás do aceno cúmplice de algum garçom amigo, a piscadela maliciosa daquele maître que finge cortejar o que não passa de mais uma presa que lhes ofereço em troca das contas penduradas, dos intermináveis pileques, dos pequenos escândalos discretamente abafados, sempre gentis, obsequiosos e silenciosamente; a grosseira irreverência que, a tênue película do sorriso profissional, apenas reforça a máscara implacável de inquisidores que julgam a mim, minhas misérias, minhas loucuras, esse crime inafiançável pago noite após noite, entorpecida e inconsciente, em apenas uma noite todo o mês de trabalho deles, porque infinitas noites nós debicamos as migalhas que a louca nos atira para aplacar sua consciência, se tivesse alguma [...]. (DENSER, 2003, p. 54) Observa-se no excerto acima que o narrador rompe com qualquer delicadeza ou esperança – uma narrativa crua que poderia ser adjetivada como naturalista – um soco no estômago do leitor que buscasse uma escrita feminina açucarada. A crueza é um retrato da opressão social e manifesta-se agressivamente nas construções frasais, no emprego de palavras chulas e dos adjetivos que mais sugerem ofensa e desprezo do que subalternidade e acolhida.

Dessa maneira, a narrativa de Denser coloca a mulher no centro de uma questão política em que se desconfinam do corpo feminino as exigências biológicas reprodutivas, colocando-o no mesmo patamar de vivência sexual que

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27 o masculino, consoante à liberdade de expressar-se e, com isso, resistir, tanto social, quanto sexualmente, fatores que vão ao encontro das considerações de Judith Butler sobre o gênero e o sexo:

Se o gênero consiste dos significados sociais que o sexo assume, então o sexo não adquire significados sociais como propriedades aditivas, mas, ao invés disso, é substituído pelos significados sociais que adota; o sexo é abandonado no curso dessa assunção e o gênero emerge não como um termo em uma permanente relação de oposição ao sexo, mas como um termo que absorve e desloca o “sexo”, a marca de sua substanciação plena no gênero ou aquilo que, do ponto de vista materialista, pode constituir uma plena dessubtanciação. (BUTLER, 2000, p.

158, itálicos do original)

Acima, pudemos ver que o deslocamento sexual exercido pelas protagonistas de Márcia Denser provoca a dessubstanciação do ser feminino, distanciando-o do estereótipo consolidado pela sociedade patriarcal. Além da liberdade de usufruir dos prazeres e sentir as consequências sociais que a indistinção do movimento sexual possibilita, as protagonistas são seres em experiência, num diálogo contínuo entre a repressão e a transgressão, sentindo interiormente o peso incarregável da batuta social, mas, concomitantemente, transgredindo a música orquestrada pela sociedade patriarcal, como mostra a crítica explicitada pela personagem Diana Marini “Tigresa”:

Segurei seu rosto no ar a caminho de um beijo estúpido, quase com carinho, quase com pena. Depois larguei e esfreguei os dedos. Estavam grudentos.

Oleosos. A frase veio como uma flecha:

– Minha cara odalisca, vocês são todas iguais. Na hora, sempre tiram o cu da seringa. Boa viagem. E manda um beijo pro teu marido – virei as costas e fui andando, subindo a rampa da garagem. Escutei a porta do elevador se fechar:

ela subira. Voltara pra mamãezinha, pro papaizinho, pro maridinho. Ótimo.

(DENSER, 2003, p. 179-180)

Bataille (1987, p. 30) afirma que na violência e na morte que a representa encontra-se um duplo sentido: “de um lado o horror nos afasta, ligado ao apego que inspira a vida; do outro, um elemento solene, ao mesmo tempo assustador, nos fascina, introduzindo uma inquietação suprema”. Transpondo essa observação para o texto de Denser, podemos vislumbrar que também há um duplo sentido promovido pela narrativa: de um lado, a contraposição comportamental da mulher nos causa certo horror por contrariar tudo o que conhecemos como limites e normas sociais; de outro, causa-nos fascínio perceber que a transgressão que se esgueira pela sexualidade é muito mais que

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28 insinuação de quebra de tabus, na verdade, é manifestação de resistência ante a opressão machista.

Diana caça suas presas sexuais (masculinas) mas suas armadilhas são os ditos ardis “femininos”, porque ela aparentemente se submete aos homens com quem vai para a cama, embora tenha uma grande consciência crítica de sua posição, enquanto mulher, frente ao desejo masculino. O comportamento sexual de Diana assume uma dimensão subversiva porque ela se furta ao controle social do corpo feminino e recusa seu lugar no sistema de procriação e transmissão de valores econômicos e ideológicos. Entretanto, são as reflexões cínicas de Diana narradora, assim como o próprio estilo narrativo de Denser, que desestabilizam o sistema dominante de gêneros porque expõem criticamente as hipocrisias da sociedade brasileira (em particular de seu vasto segmento burguês) e problematizam as relações amorosas e sexuais entre homens e mulheres. A narrativa de Denser torna óbvia a maneira como os atos mecânicos, o interesse próprio e o gosto pelo poder impossibilitam a expressão autêntica de Eros.

(PINTO-BAILEY, 2010, s/p., aspas do original)

Inquietante perceber como as mulheres que povoam a narrativa de Denser estão conscientes do peso de ser quem são. Empregam tal consciência para desestabilizar lugares pré-estabelecidos, dessubstanciando-os, conforme ideias de Butler, o que evidencia que, explorado em composições imagéticas como a que veremos no texto a seguir, o jogo metafórico que ilustra o interdito no comportamento feminino não age como limítrofe, mas como motivação primeva para a transgressão.

LUZ VERMELHA: O SARCASMO DA TRANSGRESSÃO

Em diferentes campos sociais, muitos tabus em relação ao comportamento feminino têm caído por terra devido ao advento de bandeiras feministas e lutas que ultrapassaram o século XX, mas conservam-se atuais.

No conto “Luz vermelha”, a protagonista Madalena encara um desses tabus: a perda da virgindade. Sabe-se que a vivência sexual feminina, devido a preceitos religiosos e sociais, fortemente embasados por heranças patriarcais, sempre foi regulada para manter certos ideais de pureza e castidade. Em torno disso, o rompimento do hímen simbolicamente representava violação dessa pureza e, consequentemente, um momento de violência que se desdobrava em ações que iam desde humilhação pública, até o isolamento em manicômios, quando ocorria antes do matrimônio.

O interdito em relação à perda da castidade é derrubado no melhor estilo de Denser: numa narrativa em que um sarcasmo ácido se esgueira pelos becos

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29 do texto construindo sentidos que extrapolam a tessitura das palavras. Por exemplo, o nome da protagonista é Madalena, personagem que já apareceu em outras narrativas, construída à luz da prostituta bíblica; o título do conto que evoca desde o sangue obtido pela ruptura do hímen e sinal da pureza, até as casas de prostituição identificadas pela luz vermelha.

Além disso, o narrador utiliza a acidez de seu discurso para descontruir toda e qualquer sacralidade que poderia envolver a castidade, o ato sexual, a própria religião. E como o faz? Por diferentes caminhos:

- Debocha e reduz a perda da virgindade a uma sequência decorada de emissões, dando-lhe mínima importância ou mesmo, utilizando-a para afrontar as exigências sociais, como se pode ver nos trechos:

Madalena teria dezenove anos quando aconteceu de verdade. Engraçado é que acabou se distraindo dos fatos principais.

Atravessaram toda noite e parte da madrugada se agarrando, no escuro. Sentia um certo nojo, curioso ao ser penetrada por aquele membro rijo, parte alheia e desconhecida, encaixando-se dentro dela e, no entanto, sem ter nada a ver.

Distraiu-se com a fungação nos ouvidos, cadenciando o impulso das emissões:

uma fungada, uma emissão, outra fungada, mais emissão, fungada, fungada, fungada: toda molhada. Depois: respiração acelerada, contração, respiração quase normal, contração rápida, respiração pausada, retração total, e se esvaía em mornas espumas pegajosas inundando o lençol. Depressa! Toalha na esquina das coxas! De bruços, ele já dormia. Do outro lado. (DENSER, 2003, p. 237)

[...] E, vejam só, pondo as manguinhas de fora! Até ontem não passava duma gorducha míope chupando o dedo, agora taí, se esfregando nos machinhos!

Velhas chupadas, adorariam estar no meu lugar, se tivessem cu pra isso. O cu sob medida. E, mesmo assim, não haveria mais tempo. Sobrariam anos, rugas, celulite, marido, filhos, preconceitos, a puta que o pariu etc. Chega! Pára de olhar essa silhueta recortada no teto, gritando pra não fazer isso, não fazer aquilo, isso não tem mais importância...agora eu sou mulher. Pode espernear, berrar, sombra recortada, amordaçada, domesticada e sombra: não machuca mais.

(DENSER, 2003, p. 238-239)

- Aproxima símbolos sagrados e profanos num jogo antitético e irônico para ampliar a ruptura dos interditos ligados ao comportamento feminino, dessacralizando qualquer resquício de apelo religioso:

Nada a fazer, por enquanto ela fitava a luz vermelha do abajur. Ridícula. Mania que esses caras têm de botar luz vermelha no apartamento. E...incrível!

Lembrava o oratório na entrada da casa de sua avó, a mesma luzinha, clareando misticamente, debaixo para cima, o rosto duma Nossa Senhora do Perpétuo

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SANTOS, Enedir da Silva dos. O interdito da sexualidade feminina na narrativa de Márcia Denser:

transgredir para resistir. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 19-34.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 03 set. 2019.

30 Socorro, nome infernal que inventaram pra santa! Com o tempo consegui rir de todas essas coisas. (DENSER, 2003, p. 238)

- Manifesta certo desprezo pelo masculino, dirimindo a importância do falo na relação heterossexual.

[...] Inútil é até cantar baixinho, só pra te encher o saco, A Canção do Primeiro Homem que você nunca me deixou dançar por ser música de adulto. Sei. O primeiro. Tá vendo esse cara aí, dormindo? Foi o primeiro. E daí? Pra mim, plenamente confundido com tantos outros homens, borbulhantes, indefinidos nos terraços, nos portões, esquecidos nos muros escuros, dentro dos automóveis [...] (DENSER, 2003, p. 239).

- Compara a penetração peniana ao valor do dedo para a criança. Ao fazê- lo, ao mesmo tempo em que desvaloriza a penetração sexual adulta, valoriza o ato de chupar o dedo, conferindo-lhe um prazer que o ato heterossexual não consegue alcançar.

[...] Ei! Agora me ocorreu: ainda durmo, quer dizer, na verdade não durmo, eu DEITO com um negócio, igual o dedo, enfiado. Muito maior, claro, mas por que não consegue preencher essa merda de buraco barroco no meio das minhas coxas? Que não quer consolo e nem tem sossego? Não se trata dum problema anatômico, mas, sei lá, continua sendo o mesmo que mamar o dedo, bombear saliva e, ainda assim, porque permaneço acordada? Fitando essas sombras no teto, fantasmas bruxuleando já não metem medo, sentindo a saliva escorrer, despejada e morta lá dentro, as mornas espumas pegajosas, despejadas e mortas. Então foi pra isso que substituí o dedo? E mudei o buraco de lugar? De pernas para o ar? E cadê a emoção? Mas por que, apesar de tudo, nunca quis possuir eu mesma um dedão desse tamanho? E ficar sem buraco? Perder as profundezas? Boiar na superfície? Não. Mas que profundezas são estas, Santo Deus, se nada me sacia? (DENSER, 2003, p. 240, maiúsculas do original) Na citação acima, observamos que ao comparar a penetração com o chupar o dedo, o narrador apresenta a oposição criança x mulher, ou seja, infância em que os ideais patriarcalistas ainda não afetaram totalmente o comportamento e maturidade, em que já o delimitaram. Dessa forma, a criança buscaria no dedo na boca o consolo para quando o medo fosse uma ameaça; ele a levaria ao sono, ao descanso, gerando conforto que o ser inocente procuraria.

Entretanto, a mulher adulta, dotada e educada para conformar-se aos parâmetros instituídos, apenas se deita, exercendo o protocolo, tentando em vão reencontrar o consolo ou completude que a penetração peniana ofereceria, não

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SANTOS, Enedir da Silva dos. O interdito da sexualidade feminina na narrativa de Márcia Denser:

transgredir para resistir. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 19-34.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 03 set. 2019.

31 encontra e a penetração se resume a uma sequência quase ensaiada, o encontro entre carnes.

A narrativa ratifica a desimportância do falo na relação heterossexual e, consequentemente, ergue-se como transgressão diante de uma sociedade falocêntrica, em que os ideais machistas determinariam até o momento certo para o rompimento do hímen.

Portanto, “Luz vermelha” configura-se como mais um exemplo de como a acidez do texto de Denser emprega o erotismo como um desconstrutor do estereótipo idealizado para a mulher na sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na escrita de Denser, a transgressão aos interditos que cerceiam o comportamento feminino é uma constante, perpassando as temáticas abordadas pela autora. Suas protagonistas são seres em movimento por grandes metrópoles, que empregam o erotismo, muitas vezes explícito e obsceno, preconizando as considerações de Maingueneau (2010), como forma de desautorizar o discurso vigente, desconstruindo a imagem da mulher embasada pela subalternidade aos anseios machistas.

Observemos que, na obra da escritora, a postura das mulheres é libertária, autônoma, mesmo diante de todo o preconceito que delimitava o comportamento ideal para homens e mulheres, desfazendo o que Maingueneau classifica no feminino como uma relação problemática com a sexualidade: “A doxa atribui ao homem uma libido liberada, de certa maneira, espontânea, e à mulher, uma relação problemática com sua própria sexualidade, que se presume que ela deve descobrir” (MAINGUENEAU, 2010, p. 65).

As narrativas se embrenham por uma vivência socialmente inesperada da sexualidade feminina, às vezes violenta quanto à transposição dos modelos, como em “As bonecas”: conto em que a personagem protagonista se mutila numa espécie de masturbação e o narrador focaliza o caráter transgressivo que catapulta o texto para questões de representação da mulher;

consequentemente, para a resistência feminina ante o estabelecimento desses modelos.

As personagens de Denser não pedem licença para existir, pelo contrário, ocupam lugares que lhes foram negados, empunham a voz própria ou pelo filtro do narrador para se empoderar e promover certo incômodo, pois enfrentam os interditos sociais, evidenciando lugares outros, antes impossíveis para as mulheres.

A linguagem empregada pela autora confirma a insubmissão aos paradigmas impostos pela sociedade machista patriarcal: a empunhadura de palavras chulas pela voz das personagens, a construção textual que

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32 desestrutura os pilares dos interditos, principalmente quando representados pela escrita de autoria feminina.

[...] a escritora toca no âmago do difícil processo de libertação que vem sendo enfrentado pela Mulher pós-moderna: a inevitável inadequação entre a

‘liberdade’ conquistada e a estrutura tradicional ainda vigente no Sistema Social.

[...] A força de sua escrita se revela desde o livro de estreia, que se inclui entre nossos raros livros eróticos ‘femininos’ que, optando pela ‘linguagem do corpo’, não descambam para o sensacionalismo fácil, para a pornografia ou para o cinismo. (COELHO, 2002, p. 396)

Nesse sentido, “Luz vermelha” ilustra essa transgressão ao desconstruir com sarcasmo o interdito da perda da castidade: centrado na primeira relação sexual de Madalena. Na narrativa, há certo prazer em transformar o que seria satisfação em uma comparação que revela a desimportância do falo como elemento essencial de prazer numa relação heterossexual. Mais do que isso, a penetração não passa de um ato mecânico que não oferece nada mais que uma sequência coreografada e que gera insatisfação.

Essa desimportância dialoga com a postura de resistência da protagonista por ela esvaziar o ato sexual de qualquer sentimentalidade, como seria esperado do estereótipo comum da personagem feminina, o sexo, mesmo que num momento emblemático como a primeira vez, resume-se a uma experiência. Esse também é um traço típico da escrita de Denser: as personagens dialogam com o meio em que vivem e destituem suas ações de sentimentos, imbuindo-se apenas a vivência ilimitada das experiências cotidianas que se apresentam.

A forma como a narrativa é construída para transgredir os interditos sociais ilustra as palavras de Foucault (1999) sobre a sexualidade humana e sua exposição sobre como é preciso subverter o poder que existe e pesa sobre a sociedade para poder ser resistência além do exercício sexual: “Não se trata somente de dizer o que foi feito — o ato sexual — e como; mas de reconstituir nele e a seu redor, os pensamentos e as obsessões que o acompanham, as imagens, os desejos, as modulações e a qualidade do prazer que o contém”

(FOUCAULT, 1999, p. 62).

Diante do que construímos neste texto, consideramos que a narrativa escrita por Márcia Denser exemplifica como a literatura produzida por mulheres não se conforma com os parâmetros comportamentais instituídos, mas coloca a linguagem a serviço da transgressão, consequentemente, convertendo-se em resistência perante a sociedade, justamente por não conjuminar com o silenciamento socialmente imposto à mulher.

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SANTOS, Enedir da Silva dos. O interdito da sexualidade feminina na narrativa de Márcia Denser:

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33 [...] Na verdade, há um inequívoco lastro ético/crítico alicerçando sua escritura violenta e despoliciada (voluntariamente despojada da discrição). É esse lastro que impede que a vulgaridade tenha entrada em sua ficção. Com muita garra e domínio da linguagem ficcional, Márcia Denser assume, na literatura, a consciência do corpo e sua materialidade, cuja grandeza ou miséria é decidida menos por sua concretude que pelo espírito (ou frêmito metafísico?) que a trespassa. Daí que suas narrativas oscilem entre o êxtase da descoberta do corpo liberado até a loucura e a dissecação impiedosa da condição de objeto a que a mulher se reduziu ainda mais através dessa pretensa libertação. (COELHO, 1993, p. 252)

Na esteira das ideias de Foucault (1999), os contos da autora reconstroem, a partir da vivência sexual, o panorama de silenciamento que incidiu e ainda incide sobre a mulher, todavia, exprimem o não consentimento com tais parâmetros, promovendo a subversão do silêncio em denúncia transgressiva e resistente.

A partir da liberdade de gênero vislumbrada, a narrativa atua como um lastro de empoderamento tanto da voz da autoria, quanto da leitora. Constrói- se nas transgressões aos interditos como um foco reflexivo de uma nova forma de ver a mulher e considerar sua atuação social.

Portanto, é transgressiva porque se faz contradição diante dos parâmetros socialmente instituídos; é resistência por erguer-se como uma voz que não apenas delineia a discordância, mas emprega a representação da literatura para questionar e buscar lugares outros de poder.

REFERÊNCIAS

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Tango fantasma: duas prosas reunidas. Cotia: Ateliê, 2003. p. 9-12.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre:

L&PM, 1987.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In:

LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogia da sexualidade. Trad.

Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 9. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

COELHO, Nelly N. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo:

Siciliano, 1993.

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34 ______. Dicionário crítico de escritoras brasileiras: 1711-2001. São Paulo:

Escrituras Editora, 2002.

DENSER, Márcia. Diana Caçadora & Tango Fantasma: duas prosas reunidas.

Cotia, SP: Ateliê Cultural, 2003.

_______. Márcia Denser. ______. Teresa: Revista de Literatura Brasileira. São Paulo, vol. 10/11, n. 34, p. 53, 2009-2010.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Trad. de Maria Thereza da C. Albuquerque. 8. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.

______. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Trad. de Maria Thereza da C. Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.

______. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de A. Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.

MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. Trad. de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2010.

PINTO-BAILEY, Cristina Ferreira. O desejo lesbiano nos contos de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Mulheres e Literatura, vol. 8, 2004. s/p.

Disponível em: < http://litcult.net/o-desejo-lesbiano-no-conto-de-escritoras- brasileiras-contemporaneas/>. Acesso em: 10 abr. 2019.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Trad. de Carlos F. Moisés. 3 ed.. São Paulo: Ática, 2004.

ENEDIR DA SILVA DOS SANTOS é mestre e doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2008/2018). Atualmente, é diretora escolar da rede municipal de São José do Rio Preto. Trabalha com literatura de autoria feminina e, dentre suas publicações, estão os artigos “A resistência feminina em Contos de amor rasgados, de Marina Colasanti”

(Cadernos do IL, 2017), “A opressão materna em Selo das despedidas, de Heloneida Studart” (Graphos, 2018), e o capítulo de livro “As narrativas de Marina Colasanti, Maria Amélia Mello e Márcia Denser: o erotismo como combate à repressão social feminina” (Mulheres e literatura brasileira, 2017).

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