www.rbceonline.org.br
Revista
Brasileira
de
CIÊNCIAS
DO
ESPORTE
ARTIGO
ORIGINAL
Saber
do
corpo,
do
político
e
da
política:
notas
sobre
indivíduo
e
sujeito
Raumar
Rodríguez
ae
Alexandre
Fernandez
Vaz
b,∗aInstitutoSuperiordeEducac¸ãoFísica,FaculdadedeHumanidadeseCiênciasdaEducac¸ão,UniversidadedaRepública(UdelaR),
Montevidéu,Uruguai
bBolsistadeProdutividadeemPesquisadoCNPq-Nível1D,DepartamentodeMetodologiadeEnsino,CentrodeCiênciasda
Educac¸ão,UniversidadeFederaldeSantaCatarina(UFSC),Florianópolis,SC,Brasil
Recebidoem3dejulhode2014;aceitoem18defevereirode2015
DisponívelnaInternetem5deoutubrode2015
PALAVRAS-CHAVE
Corpo; Política; Indivíduo; Sujeito
Resumo Nestetrabalhodiscutem-seasimplicac¸õesteórico-metodológicasdousodasnoc¸ões de indivíduo esujeito nasciências humanas e sociais.A partir dessa primeira discussãose introduzumasegunda,envolvidadesdeoinício,sobreosaberdocorpoeassuasrelac¸õescom apolítica.Porfim,odesenvolvimentodasreflexõeslevaatocarnatensãoentreouniversal eoparticular,nessainstânciaquesepodechamarculturajudaico-cristã.Aquestãosecoloca porsuarelevânciaecontemporaneidadeeobserva-sequeocorpoestánocentrodadiscussão política.Essadiscussãosempresupõe,deum modooudeoutro, queumsaberdocorpose colocaemjogoequetalsaberestáarticuladocomapolítica,emsuadimensãoinstitucional ounoquedizrespeitoaosseresfalantescomotais,ouseja,oscorposfalantes.
©2015ColégioBrasileirodeCiênciasdoEsporte.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Todosos direitosreservados.
KEYWORDS
Body; Politics; Individual; Subject
Cognizanceofthebody,thepoliticalandthepolitics:notesonindividualandsubject
Abstract Thispaperdiscussesthetheoreticalandmethodologicalimplicationsoftheuseof thenotionsofindividualandsubjectintheHumanandSocialSciences.Thenweintroducea seconddiscussion,involvedfromthebeginning,concerningthecognizanceofthebodyandits relationswiththepolitics.Finally,thisreflectionapproachestheuniversalandtheparticular tension in thisinstancethat canbe called Judeo-Christian culture. The issuearises for its relevanceandcontemporaneity,notingthatthebodyisatthecenterofpoliticaldiscussion.
∗Autorparacorrespondência.
E-mail:alexfvaz@uol.com.br(A.F.Vaz).
http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2015.08.014
Thisdiscussion alwaysimplies, inoneor anotherway, thataknowledgeofthebody isput intoplay,andthatsuchknowledgeisarticulatedinpolitics,initsinstitutionaldimensionor regardingtospeakingbeingsassuch,i.e.speakingbodies.
©2015ColégioBrasileirodeCiênciasdoEsporte.PublishedbyElsevierEditoraLtda.Allrights reserved.
PALABRASCLAVE
Cuerpo; Política; Individuo; Sujeto
Conocimientodelcuerpo,delopolíticoylapolítica:notassobreindividuoysujeto
Resumen Este artículo trata sobrelas implicaciones teórico-metodológicas deluso delas nociones de individuoy sujetoenlas ciencias humanasy sociales.A partirde esaprimera discusiónseintroduceunasegunda,implicadadesdeelprincipio,relativaalconocimientodel cuerpoysusrelacionesconlapolítica.Porúltimo,eldesarrollodelasreflexionesseacercaal temadelatensiónentrelouniversalyloparticular,enesainstanciaquepuedellamarsecultura judeocristiana.Estacuestiónsetieneencuentaporsurelevanciaycontemporaneidad,yse consideraquelacuestióndelcuerpoestáenelcentrodeladiscusiónpolítica.Esadiscusión siempresupone,deunmodouotro,queunconocimientodelcuerpoentraenjuegoyqueese conocimientoestáarticuladoenlapolítica,ensudimensióninstitucionaloenloquerespecta alossereshablantesencuantoatales,esdecir,loscuerposhablantes.
©2015ColégioBrasileirodeCiênciasdoEsporte.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Todoslos derechosreservados.
Estamaníadelafraternidad,dejandodeladoelresto,la libertadylaigualdad,noesmocodepavo---convendría verloquehaydebajo(Lacan,2004,p.121).
EmmemóriadeIrenePreobrayensky.
Sujeito e indivíduo são duas categorias estabelecidas nasciênciashumanase sociais, demodoque aseu redor, em um ou outro caso, diversas disciplinas organizam-se teórica e empiricamente. Na maior parte das vezes as diferenc¸as que entresi carregam as expressões implicam ‘‘incomensurabilidadedeparadigmas’’,comorezaa conhe-cidaexpressãodeThomasKuhn,oquesignificaqueembora possasetratardeuma‘‘mesma’’disciplina,falarem indi-víduo ou sujeito produz, em última instância, disciplinas diferentes,jáqueosobjetos,tantoteóricosquanto empíri-cos(inclusivenasuadimensãofenomênica),mostrar-se-ão distintamente.Quemvêumindivíduonãonecessariamente vêumsujeito,quemvêumsujeitonãovê,porsi,um indi-víduo.Umcaso exemplar ailustrara incomensurabilidade deparadigmaséadistânciaentreapsicologia,como disci-plinadoconhecimento,eapsicanálise,comosabereprática terapêutica.
Masaquestãoémaiscomplexa:háteoriasdoindivíduo eháasdosujeito.Tambémencontramosdistânciasentreos sujeitosantropológico,sociológicooupsicológico,do intera-cionismosimbólico,apenasparaficaremalgunsexemplos, eosujeitododesejo.
Nessequadrocoloca-seapresenc¸adocorpoe,talvez,de um‘‘saberdocorpo’’,enquantoocorpoédiferentedo orga-nismo,porquesetratadocorpofalantedeseresfalantes, docorpodesejoecomeleafala,portanto,édeumsaber quesetrata.Comela,asdimensõesdopolíticoedapolítica, como‘‘lac¸osocial’’e‘‘realdahistória’’,respectivamente.
O presente trabalho procura, considerando o acima exposto e em caráter exploratório, operar com as implicac¸ões teórico-metodológicas do uso das noc¸ões de indivíduoesujeitonasrelac¸õesentresaberdocorpo,o polí-ticoeapolítica.Comissoprocurarecolocaroproblemada políticaeoindivíduoeascondic¸õesdepossibilidadedeum edeoutronocontemporâneo.
Na primeira parte do texto, revisamos as inflexões das humanidades e das ciências sociais, produto do péri-plo do estruturalismo e do chamado pós-estruturalismo. Nasequênciaintroduzimos algunsproblemas que se apre-sentam à relac¸ão entre corpo e política, a partir da considerac¸ão que observa o judaico-cristianismo não só como conjunc¸ão, mas como disjunc¸ão. Nesse percurso, deparamo-noscomoproblemadouniversaledoparticular, dolimitadoedoilimitado.Combasenessasconsiderac¸ões, pensamosa políticacomo umaquestão deseresfalantes, portanto,umaquestãoquenãosepodepensarsemocorpo. Coloca-se então uma chave paraa distinc¸ão entre indiví-duo e sujeito: a linguagem não é só uma ferramenta de comunicac¸ãoentreindivíduos,mas,esobretudo,acondic¸ão de possibilidadede quehaja sujeito. Dessemodo, nofim exploramosoproblemadarelac¸ãoentrevontadeepolítica.
Primeiro
tempo:
de
um
pós-estruturalismo
‘‘antiestruturalista’’
o colocacomoummomentoimprescindíveldaconstruc¸ão teórica,eoutroqueorechac¸a,considerando-oatalponto obsoletoquesupõequeeledeveriaseresquecido,ficando abreveimpressãodenãomaisqueumgoleamargono per-cursodasteorias.Grandepartedospensadoresquecontinua atradic¸ãoquetemamarcadeMarxsecolocanaprimeira posic¸ão;umcontingenteimportantede‘‘pós-modernos’’na segunda.
Comosesabe,nãoéexatamenteamesmacoisafalarde Marxe/oudemarxismo.Umpoucomenosreconhecidoéque depoisde1989,poucoapouco,olegadoteóricodeMarx viu--semaislivredosdiscursosdoutrinários,maisdistantedos usosjustificadoresnasdisputasentrenac¸ões.Dessemodo, temsidodesdeentãopossívelrecuperarapotênciateórica e crítica deMarx e a tradic¸ãoque sedesenvolveu a par-tirdele,semqueissosignifiqueassumirumateleologiaou escatologiapolíticaesocial.Fundamentalnessaempreitada éconsiderarMarxemsuaposic¸ão‘‘entre’’,conforme subli-nhaBalibar(2006),noespac¸oqueéprópriodapolítica:para queelaencontreumterritório,écomoseotempotivessede seabrirousedistenderparadeixarlugarentreopassadoeo futuro,paracaracterizarotempopresente.SeMarx provo-couumacesura,tambémofezFreud,comomostram,entre tantos,AlthussereReich,HorkheimereMarcuse:comeles oucontraeles,amodernidadefica,decertaforma,cindida entreoindivíduoeosujeito,entreaquelequeentendeser possívelumaconsciênciadesieaquelequeseachadividido e paraquem aconsciência desi é finalmenteinacessível. Aquestãopareceserderpoucointeressehojeporquea soci-edadecontemporâneafaz doindivíduosuarazãodesere é difícilnão ver nessefato certotriunfo de uma tendên-cialiberalouneoliberal.1Seacategoriaindivíduotornou-se universal é porquea economiapolítica estabeleceu oseu reinado.Ditodeoutromodo,éporqueéportrásdo indiví-duo,comopotencialportadordodinheiro,esseequivalente geral,quesedissolveasingularidadesubjetiva.Quantomais éafirmadooindivíduo,maiorapossibilidadedeodinheiro seroequivalentegeral dasociedade.Oindivíduojánãoé tantoo portadordeumaesperanc¸a,senãoa possibilidade darealizac¸ãodeumaexpectativanofeticheuniversalnão apenasdamercadoria,masdodinheiro,fetichedofetiche.
De
um
universalismo
que
nunca
foi:
entre
Moisés
e
Paulo
de
Tarso
Équaseumclichêdizerqueanossacultura,ados ociden-tais,éjudaico-cristã.Équaseumlugarcomumrepetirque paranoslibertarmos dessaheranc¸aprecisamosenterrá-la. Mas não é tãoclaro, e muitomenos simples,ter certeza doque queremosnos libertar.Trata-sedeumalibertac¸ão política? Ética? Ou talvez epistêmica? Talvez nessa última estejamincluídasasoutras,todavezqueseaceitequeéum saber(suaformaeconteúdo)queestánabasedapolíticae
1Balibar(2006)destacaaimportânciadanoc¸ãodetendênciaem
Marx:com essapalavraseindicaacontradic¸ãoprópriaàlutade classes.Porémdevesersublinhado,umavezmais,queissonãose vinculadiretamenteàcomposic¸ãoimagináriadasclassessociais, senãoqueéapenas(esobretudo)umachavedeleituradosocial emtermosdesintoma(Cf. ˇZiˇzek,2003).
daética.Ditodeoutraforma:apolíticaeaéticasão inte-ligíveispor causadeumsaber.Voltaremosa esseaspecto doproblemamaisadiante. Dequalquer maneira, tratare-mos a heranc¸a judaico-cristã como ‘‘espac¸o discursivo’’, conformealeituradeJean-Claude Milner(2012),segundo o qualo discursoé aquilo que determina a forma de um vínculosocial.
Aimportânciadesseespac¸odiscursivoétalque,segundo Milner(2012,p.83),sócomeleépossívelfalar,na moder-nidade,deprazersexual,jáqueessaexpressãooufórmula nãofora usada,por exemplo, entreosgregos.Mas talvez o mais importante seja seu vínculo imediato e correlato àideia de ressurreic¸ão dos corpos, fundamentodo cristi-anismo,pelomenossegundoaviainauguradaporPaulode Tarso.
Problematizar a relac¸ão entre sexualidade e corpo é fundamentalna discussãodasimplicac¸õespolíticas(e éti-cas) deuma primazia teórica do indivíduoou do sujeito, implicac¸ões que são, em última instância, epistêmicas, especialmente se ‘‘sexualidade’’ é tomada como um ‘‘quase-transcendental’’: uma noc¸ão fundamental, tanto nassuasconsequênciasteóricasquantoemsuaefetividade práticaparaaconstituic¸ãodeumsabermodernodocorpo, articulandotrabalho,vidae linguagem. Ou seja:uma lei-turadosabermodernodocorpoquefazencontrarFoucault (2003)comFreud.
ELacan:nãohá quase-transcendentais,senãodemodo imaginário (Milner, 2012). Com isso, introduz-se outra questão-chave,adosuniversais.DeacordocomMilner,ela sempreestá em relac¸ão comumaquestão dalíngua:‘‘La gramáticadelapalabratodo’’(Milner,2012,p.49).Nãohá sexualidadesemlínguaeainscric¸ãonesseregistrodepende daarticulac¸ãoentreouniversaleonãouniversal,dotodo edo nãotodo.Deacordo com Milner (2007),o todotem duasfiguras,umaquesupõeumlimite eoutraoilimitado (nãotodo).Essasfiguras,emrelac¸ãocomafunc¸ãofálica, determinamainscric¸ãodosujeitocomohomemoumulher. Limitadonãoquerdizer finito, assimcomo ilimitado tam-poucoéomesmoqueinfinito(Milner,2007,p.21).Seguindo aspegadasdeLacan,Milnerdiráque ouniversaldeveser pensadonaoposic¸ãodolimitadoaoilimitado.Paraa ques-tãodopolíticoedapolíticaissoé fundamental:ouso,os usos,dapalavratodo,dapalavratodos,inclusiveda pala-vratodas, parareferir-se aos seresfalantes. Asociedade moderna,dizMilner,temavocac¸ãodeabarcaraterrainteira eatotalidadedosentes.Porisso,háumproblemapolítico naquestãodotodoedonãotodo:
Encontrasteconlassociedadesquelaprecedieronenla historia,lasociedadmodernapertenecealrégimendelo ilimitado.Nosólonadieexistentedebenipuede consti-tuirenellalimiteoexcepción,sinoque,desdeahora,la funcióndelasociedadincluyeentresusvariables posi-bles alenteque sea,humanoonohumano, animadoo inanimado.Noexistenadaninadierespectodelcualla funcióncesedeproducirsentido.Noexistenadaninadie que produzca suspensión de la sociedad (Milner, 2007, p.24).
quenãoseinscrevaneles(Milner,2007,p.26).Como defi-nhamento dos universais --- o Homemé talvezo principal universalmoderno---, desapareceo limite.Podemos supor queoesmagamentodaLeicontribuiparaoilimitado.Seo Homemfoifiguradolimite, o Paiigualmente ofoi.Nessa virada,otranscendentesai dametafísicaechegaà socie-dade e umaconsequênciapolítica pode seranotada:sem Ideia,à política sóresta sergestão doilimitado,seja ele chamadoeducac¸ão,dispositivodesexualidadeou governa-mentalidade.Atensãodotodoedonãotodo,aarticulac¸ão entre eles, é um elemento fundamental para a política, desdeAristóteles.Nãoéamesmacoisairdo‘‘todohomem’’ a‘‘algumhomem’’queoinverso,assimcomotampoucosão omesmo ‘‘todososhomens’’e ‘‘algunshomens’’(Milner, 2007).
Podemos voltar agora à questão da tradic¸ão judaico--cristã para, em primeiro lugar, mencionar que segundo PaulodeTarsotodososhomenspecaramemumsóeéem vão redimir-se(Adão e Jesus, respectivamente).Segundo Milner(2007),nessaoperac¸ão,queélógicaequepretende articularoAntigoTestamentocomoquelogoseráoNovo, organizam-seo‘‘todos’’eo‘‘uno’’.Operac¸ãológica,mas tambémpolítica; finalmente, teológico-política.Contudo, deAristóteles a Paulo de Tarso conserva-sealgo determi-nante: o todospolítico é umtodo limitado(Milner, 2007, p.37).2
A enunciac¸ão ‘‘judaico-cristã’’ apresenta-se como junc¸ão, mas na verdade é disjunc¸ão: o hífen não está somenteparasublinharcontinuidade,masdescontinuidade. Para que o cristianismo tivesse sucesso, foi preciso uma cesura com a tradic¸ão judaica, que ao tempoda suposta ressurreic¸ãodeJesusjáseiniciarahavia13ou14séculos, seestivermosdeacordoque ainstituic¸ãodojudaísmo foi obradeMoisés.3AcesuraéobradePaulodeTarso.
Oquetemosentrenóséumconteúdoqueviatradic¸ãoou historiografiaherdamosdeMoisésePaulo, quepode, con-teúdo,sedimentar-senoinconscientese,comFreud(1984), aceitarmosqueessaestrutura,sendodaordemdosujeito, nãopertenceaoindivíduo,masàHistória.4EntreMoisése Paulo,nohiatojudaico-cristão,sobreviveaquestãodaLei edaliberdade.Sea hipótesefreudianadoinconscienteé verdadeirae, aindamais, se osujeito lacaniano é levado a sério, então a libertac¸ão do judaísmo-cristianismo não é simplesmenteumaquestão de vontade, deuma consci-ência enunciadora, assim como tampouco é para o Marx, segundooqualsãoosHomensquefazemsuaprópria histó-ria,masnãosimplesmentecomoquerem,masnamoldura, emmovimento,dascondic¸õesobjetivasdoprópriotempo.
PaulodeTarsobempoderiaterdito:umfantasma atra-vessaoOriente,ofantasmadouniversalismo.Eofantasma bem poderia ser o arrependimento do silêncio perante o escárnio sofrido por Estêvão e sua morte. Nesse cenário, tratava-sede Saulo,ohomem que cuidavadasvestes das
2Acontradic¸ãoestruturalcontemporâneasitua-seentrea
socie-dade(ilimitada)eapolítica(otodolimitado)demodoqueaideia dedemocraciavacilaentreosocialeopolítico.
3Cf.Freud(1984)eaBíblia(2011).
4ParasermosfiéisaotextodeFreud(1984,p.191):‘‘Deporsí,el
contenidodelinconscienteesyacolectivo,espatrimoniouniversal delaHumanidad’’.
falsastestemunhasqueapedrejavamEstevão(Hechos7:58). Essefatoépedraangulardascondic¸õesdepossibilidadeda Igreja, melhordizendo, condic¸ãode possibilidadedeuma hipótese fundamental para a teologia, segundo a qual a Igreja existe porque o Cristo nãofoi reconhecido como o Messiaspelatradic¸ãojudaica.Paraalémdavalidadeounão da hipótese, o problema teológicopersiste e, com ele, o problemapolítico.5
Qual foi o ‘‘erro’’ de Estêvão? Falar contra Moisés e contra a Lei (Hechos 6:8-14).Esse aspectoé importante, uma vez que o universalismo de Paulo não é baseado na Lei,mas nagrac¸a.A oposic¸ãode Paulo àLeirelaciona-se ao fatode que ela ‘‘objetiva’’ a salvac¸ão, tirando desse modoapotênciada‘‘gratuidadedoacontecimento-Cristo’’ (Badiou,2009,p.89).Naoposic¸ãograc¸a-Leitambémsepõe emjogooutroimportanteelemento:arejeic¸ãoao conheci-mento.DeacordocomBadiou(2009,p.99),grac¸a‘‘significa que o pensamento não pode dar explicac¸ão integral da recolocac¸ão brutal, no sujeito, da via da vida, ou seja, da conjunc¸ão reencontrada do pensamento e do fazer’’. Umaletramudoutudo.Eumaviagem,comoadeJerusalém aDamasco,deondesaiuofariseuSauloechegouocristão Paulo.Apartirdessemomento,apredicac¸ãodePauloépara falardeJesus,oMessias(Hechos9:20).
Jean-ClaudeMilner(2012,p.46-48)destacaalguns para-doxosdodiscursodePaulodeTarso:
a. Nossa língua está atravessada pelapassagem do grego (cujarelac¸ãocomohebraicosedeuduranteséculos)ao latim. Importa,por exemplo,adiferenc¸aentreotodo deAristóteles,quepartedotodoeneleabsorvea mul-tiplicidade,e otododosmodernos,nointeriordoqual sepensaapassagemdamultiplicidadeàunidade; b. Paulo deTarsofunda‘‘launiversalidaddelcristianismo
en la antinomia de una multiplicidad y una singulari-dad’’(Milner,2012,p.47).6Singularidade,nãounidade, é a multiplicidade de todos frente à singularidade de Cristo. Esse é, segundo Milner, o paradoxo do univer-salcristão:‘‘orqueunidosaCristoJesús,todosustedes sonunosolo’’(Gl.3:28).Esseparadoxodependedealgo impossíveldeserpensadonafilosofiadosgregos,porque o universal depende daressurreic¸ão de Cristo. A filo-sofiados gregostratadocaminhopossívelparachegar aouniversal,enquantoouniversalpaulinoseafirmano impossível.
Mas, para o problema da relac¸ão entre saber do corpo e política, talvez o mais importante seja que na secularizac¸ão do universal os modernos podem considerá-losempassarporCristo.Nessecaso,combase na ‘‘hipóteseSchmitt’’(todososconceptos fundamen-tais doEstado sãoconceitos teológicossecularizados), é possível dizer: osconceitos dapolítica moderna são conceitosteológicossecularizados.Oproblema contem-porâneo éque apolítica, noseudesdobramento como gestão,abandonaaquestãodaincomensurabilidade(por setratardealguémquefala)etrataouniversaldesde o pontodevistadaestatística.Apolítica,comoforma davidapública,éreduzidaàracionalidadeinstrumental
dosnúmeros,dacorridaeleitoraledosdadosfinancistas quemaisencobremdoquetraduzemaeconomia---que, porsuavez,suplantaaprópriapolíticaefazeclipsaro espac¸opúblico.Comisso,aideiadeuniversalperdetoda asuapotência,tantofilosóficaquantopolítica,alémde conservarounãoadiferenc¸aentreotodolimitadoeo todoilimitado.Issosedáporqueoqueinteressaà polí-tica como gestão é a multiplicidade dos corpos e sua organizac¸ãoemtermosdepopulac¸ão,eficáciasocialdo governo,enãodapresenc¸adopúblicocomosujeitoque articulaseuserfalanteemtornodeumaIdeia.
c. Porque a política é não mais que a política dos seres falantes, que estão submetidos à contingência infinita dos corpos, amodernidade soubedesde sempre queo principaldispositivoemjogoéasexualidade.
d. Mastambémsetratadomonoteísmodareligiãomosaica, fundado por Moisés em confronto com o monoteísmo cristão, embora aqui nos deparemos com o problema da Trindade, este aspecto do cristianismo que ofere-ceu àteologianãopoucasdificuldades.Essa questãoé extremamentecomplexa,masapenasparaindicaralguns elementos,podemoslembrarque,comosugereAgamben (2008),nafiligranadadiscussãoteológicasempreesteve aquestãopolítica:seDeuséUmouTrinoé,paraalém dopropriamenteteológico,umproblemaqueenvolviaos fundamentosdaMonarquiaedoImpérioRomano ouda Poliarquia. Uma ‘‘soluc¸ão’’ teológica e política procu-radapelocristianismofoiapossibilidadedearticulac¸ão entrea Trindade comoumaúnica sustância: Deus uni-trino.
Pode-sefacilmenteobservarquenãoé fácil acríticaa algoqueseenuncia,tãofacilmente,nasduaspalavras sepa-radasporumhífen:judeu-cristão.Aculturacontemporânea eapolíticadependemmuitomaisdessadisjunc¸ãodoqueà primeiravistaparece.
Política,
corpo
e
linguagem
A política indica umfato: ‘‘Los sujetos pueden ser agru-padosporunjiróndelengua.Poresonohaypolítica más queparalossereshablantes’’(Milner,1999,p. 81).Desse modo, a política está atravessada pela incomensurabili-dade própriadetoda fala (Milner, 2012,p. 167). Trata-se darelac¸ãosexualidade-corpo-política:‘‘Lossereshablantes hablanporquesoninconmensurables;soninconmensurables porquetienencuerpos;hablan porquetienencuerpos;los cuerposson inconmensurablesporque hablan’’. Apolítica tem,nessaabordagemteórico-conceitual,umafunc¸ão dis-cursiva específica:‘‘Serunhabla quecontiene el nombre queconcentraensílainconmensurabilidad’’(Milner,2012, p.168).Porserdosseresfalantes,apolíticanascedeuma experiênciadafalta.
A política é algo que acontece tanto dentro quanto foradasfigurasinstitucionais,deformaqueemborapossa desdobrar-sesobre elasou nelas encontrarseu desdobra-mento, a política excede o Estado. Se a política fosse sinônimoderepresentac¸ão,entãoaelasórestariaseruma questão doimaginário. Articulada àrepresentac¸ão, e não noacontecimento(ounarepresentac¸ãodoacontecimento),
a política derivana gestão da necessidade. Uma política acontecimentalsóépossívelnolimitedoEstado.
Apolíticanãopode,portanto,serumaquestãoexclusiva doEstado.Namelhordashipóteses,eleéuminstrumento dapolítica.DeacordocomBadiou,apolíticaentrana his-tóriasósehá acontecimento;sem ele,sóhaveráhistória doEstado(Badiou,2009,p.27).OEstadopoderáarticular institucionalmenteumacontecimento,mas,como aconteci-mento,apolíticanãopodeserdirigida,planejada,colocada nosdispositivos governamentais ou nos aparatos ideológi-cos.Umavezmais,apolíticanãopodeserconfundidacom gestão,quenãoésenãoumafacedaprimaziadaeconomia.
Políticas
do
indivíduo:
simulacros
de
acontecimento
Oproblemacontemporâneo,adespeitodosindividualismos múltiplos,pareceser,maisumavez,ouniversalismo,oua legitimidadedetalideiaoupossibilidade.Odiagnósticode Badiou(2007)équejánãohá‘‘nós’’.
O indivíduo não seria possível, para alémdo empírico quantificável,sem asfilosofias da consciência e o corres-pondenteprivilégio da vontade no processo de afirmac¸ão egoica.Para que o indivíduo se viabilize subjetivamente, é necessária a presenc¸a davontade de afirmac¸ão do eu, afirmac¸ãoque remeteaumaidentidadee que,como tal, ao menos para os modernos, encontra na consciência o seumodelo.Issosedáespecialmentenoquesedenomina ‘‘consciência de si’’, sempre que tal expressão é empre-gada vulgarmente. Na contramão de Marx, os modernos voluntaristas afirmam, como sugere Balibar (2006), que é aconsciênciaoquedeterminaosersocial.Masoproblema davontade,quenãoserátratadoaqui,maspodeser men-cionado,éfundamental. HannahArendt afirmaque nãoé possívelocupar-sedaatividadedavontadesemabordar,ao mesmotempo, oproblemadaliberdade(Arendt,2010,p. 233).A referência é importante por duas razões: por um ladoporque avontade entendidacomo faculdade, desco-nhecidapelaAntiguidade Grega, foidescobertapor Paulo deTarso,querdizer,elatemumaorigemteológicamaisdo quefilosófica(Arendt,2010);poroutroporqueaquestãoda liberdade,talvezumainvenc¸ãomoderna,setransformaem chavedapolítica,sobretudolevando-seemcontaainvenc¸ão dosocial,essapositividadequeemergenasrevoluc¸ões,na articulac¸ãoentrefeudalismoecapitalismo.7
Dessemodo,podemoscolocarumterceiroelemento:o quealiberdademodernapõeemjogoé,emrelac¸ãoauma vontadeeaumaconsciência,oproblemadouniversalismo. Pelomenosapartirdasrevoluc¸ões.Assim,comLiberdade, igualdadeefraternidade,éatualizadoodiscursodeMoisés e,comele,especialmente,odePaulodeTarso.ParaBadiou (2009), Paulo de Tarso é um antifilósofo, não só porque despreza a filosofia, senão, sobretudo, porque o seu dis-cursoseapoianagrac¸adeumacontecimentoenanegac¸ão aoconhecimento. Contudo,Arendt sublinhaque Paulo de Tarsoéacondic¸ãodepossibilidadedeumafilosofiacristã, emboraexpressetambémoobstáculomaisimportantepara essa filosofia: ‘‘La manifiesta contradicción entre unDios
omniscienteytodopoderosoyloqueAgustíndenominómás tarde el carácter ‘monstruoso’ de la Voluntad’’ (Arendt, 2010, p. 303). De qualquer forma, é importante des-tacar uma referência a Leo Strauss (1987), que separa radicalmente teologia e filosofia, duas raízes em conflito que marcam o desenvolvimento da civilizac¸ão ocidental. SegundoStrauss(1987,p. 50),afilosofiagrega‘‘afirmala primacíadel pensamiento,dela palabra,mientras quela Bibliaafirmalaprimacíadelacto’’.Masapolítica,quenão podeprescindirdopensamento,éumaquestão fundamen-talmentedeatos.
A
modo
de
encerramento
Seapolítica temaver comasexualidade, issotemvalor diferente para as categorias indivíduo e sujeito. Na polí-ticadoindivíduo,sexualidadeéumaquestãoimagináriaque remeteapráticas:oindivíduo,dizBadiou(2010,p.120),
debeverreconocidosuderechoa‘‘vivirsusexualidad’’. Lasotraslibertadesseseguiránnecesariamente.Yes ver-dad que se siguen, si entendemos toda libertad desde el punto devista delmodelo que adoptarespecto del sexo:lanoprohibicióndelosusosqueunindividuopuede hacer,enprivado,delcuerpoqueloinscribeenelmundo.
Jáparaacategoriasujeito,aocontrário,aideiade liber-dadenãoserelacionacomavida(zoé)doscorpos.Liberdade é, segundo Badiou (2010, p. 121), ‘‘una categoría de la novedadintelectual,nodentrode,sinomásalládelavida ordinaria’’. Poderíamos pensar a palavra liberdade como uma‘‘palavra-amo’’: desse modo, ela geraria estabilida-des,univocidadeseharmonias.Masapalavraliberdade,do pontodevistasubjetivo,éenãoéesselac¸oquepretende amarrarosdispersantes.Do pontodevistaimaginário,ela é;atépode-seaceitarquecomoconceitopolíticoelateve (aindatem?)efetividadeprática.Masasuaverdadeira eficá-ciaestáquandoserefereaorealdosujeitoeodesejo:esse éo‘‘dispersanteradical’’(Milner,1999,p.91).Deacordo comMilner, asliberdadesformais tratam doempíricodas comunidades; tratam do plural porque têm a ver com as propriedadessensíveisdosindivíduosmúltiplos:‘‘Sehabla aquídeltejidodelaRealidadydelibertadesarticuladasen I,quenodispersan,perohacenconsistirtodoLazo’’(Milner, 1999,p. 92).8Assimé queascomunidadespodemexercer assuasreivindicac¸ões,demodogeraldentrododispositivo dodireito,especialmenteaqueleemcujafiligranapode-se veraquestãodavida.
Nãoédifícilconfundiraliberdadecomoorealdosujeito e o seu desejo com as liberdades do indivíduo. Por isso tambémnão é difícil confundir uma reviravolta realcom aconquistadedireitos institucionalmenterepresentáveis, umsujeitodesejantecomumsujeitodomado,empalavras deMilner.Esseseriaosegredodassociedadesburguesas:
puesto que no pretenden sólo garantizar las liberta-des,sinoquesostienennopoderlograrlolegítimamente másquefundadasenunadvenimientorealdela Liber-tad,se dedican a convertirsiempre, con destino a las
8‘‘I’’representaImaginárionoternáriolacanianodoRSI(Real,
Simbólico,Imaginário).
imaginacionesconfundidas,loshomónimosensinónimos (Milner,1999,p.96).
Poroutro lado, apolítica moderna podeser lida como umaarticulac¸ãodiscursivaentreoPaidaleijudaica,o Filó-sofoeofundadordaIgreja:Moisés,Aristóteles ePaulode Tarso. Na política contemporânea, a soberania alcanc¸a o indivíduo de uma forma que realiza o mandato moderno aomesmotempoemqueinverteomandatodivino:jánão é oHomema imageme semelhanc¸adeDeus, masDeus a imagemesemelhanc¸adavontadedoindivíduo.Pareceque, visando ser livres ouna procura de fazer vigorara Liber-dade,queremosabolirtodososfantasmas,domesmomodo queacrianc¸aqueraboliromedofechandoosolhos,dizendo não somosmais judaico-cristãos,não somos mais ociden-tais.Trata-setambémdainversãodoqueafirmouMarx:a consciênciadeterminaosersocial.
Masaquestãonãosedeixaencerrartãofacilmente.Sea ideiado‘‘fimdahistória’’foicausadetantacontrovérsia, especialmente pelo anúncio de Francis Fukuyama (1992), a mera possibilidade de anunciar ou enunciar o ‘‘fim da política’’ deve mobilizar o denso aparato conceitual que seinscreve na longatradic¸ão quedeu formaà culturano ocidente.Osmovimentossociaiseospartidospolíticos pre-cisam declassificac¸ões,masnãopodemreduzir-seaelas, tampouco renunciar às ideias e ao logos.Essas renúncias seriamsignosdodeclíniodapolítica.
Dequalquer forma,parece queenquanto houver seres falantes haverá política e enquanto há política o realda histórianãosedeixacapturarpelosdispositivosde governa-mentalidade.
Mastalvezaindasejanecessáriaumadistinc¸ão,que final-menteépolítica,paraosaberdocorpo:saber-fazer,saber em falta e impossível saber.Quer dizer, um saberque se esgotanoimaginário,desejopurodeascoisasfazerem sen-tido;umsaberquenãosesabe,umsaberemfalta,olocus propriamente político do sujeito, e um impossível saber, real,quesemprecolocaem xequeapolítica,enquantoos seresfalantessedeparemcomofatoconcretoda multipli-cidadeedeviveremjuntos.
Financiamento
Coordenac¸ão de Aperfeic¸oamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Bolsa PEC-PG, e Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPq),BolsaPQ e Programa de Pesquisas Teoria Crítica, Racionalidades e Educac¸ãoIV.
Conflitos
de
interesse
Osautoresdeclaramnãohaverconflitosdeinteresse.
Referências
AgambenG.Elreinoylagloria.BuenosAires:AdrianaHidalgo Edi-tora;2008.
ArendtH.Lacondiciónhumana.BuenosAires:Paidós;2010.
BadiouA.SãoPaulo:afundac¸ãodouniversalismo.SãoPaulo: Boi-tempo;2009.
BadiouA.Deundesastreoscuro.SobreelfindelaverdaddeEstado. BuenosAires:Amorrortu;2007.
BalibarE.LafilosofíadeMarx.BuenosAires:NuevaVisión;2006.
Bíblia.Espanhol.LaBiblia.PalabradeDios.BibliadeEstudio:Dios hablahoy.Traduc¸ãomúltipla.SociedadesBíblicasUnidas. Edici-onesPaulinas:Brasil,2011.
DonzelotJ.Lainvencióndelosocial:ensayossobreladeclinación delaspasionespolíticas.BuenosAires:NuevaVisión;2007.
FoucaultM.Laspalabrasylascosas.Unaarqueologíadelasciencias humanas,XXI.BuenosAires:Siglo;2003.
Freud S. Moisésy la religión monoteísta y otros escritos sobre judaísmoyantisemitismo.Traduc¸ão:RamónReyArdid.Madrid: AlianzaEditorial;1984.
Fukuyama,F.OfimdaHisto´riaeou´ltimohomem.RiodeJaneiro: Rocco,1992.
LacanJ.ElSeminariodeJacquesLacan.LibroXVII:Elreversodel psicoanálisis.BuenosAires:Paidós;2004.
MilnerJ-C.Claridaddetodo.DeLacanaMarx,deAristótelesaMao. BuenosAires:Manantial;2012.
MilnerJ-C.LasinclinacionescriminalesdelaEuropademocrática. BuenosAires:Manantial;2007.
MilnerJ-C.Losnombresindistintos.BuenosAires:Manantial;1999.
StraussL.Teologíayfilosofía:suinfluenciarecíproca.In:WEIL,Eric. Religiónypolítica.BuenosAires:Hachette,1987,pp.39-75. ˇ