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Discursos sobre homossexualidade e gênero na formação docente em biologia.

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Academic year: 2017

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Discursos sobre homossexualidade e

gênero na formação docente em biologia

Leandro Corsico Souza* e Nilson Fernandes Dinis**

Resumo: Este artigo pretende discutir concepções sobre gênero e sexualidade na formação em ciências biológicas. Para tanto, foram aplicados questionários com questões sobre esses temas aos/às graduandos/as do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Paraná. Os resultados apontaram para a rejeição de posições preconceituosas a respeito das minorias sexuais e de gênero. Por outro lado, as respostas também indicaram alguns problemas: a noção da homossexualidade como algo contagioso permanece, e a indiferença e o desinteresse criam obstáculos para uma melhor aceitação da diversidade sexual. Por fim, discute-se a influência das disciplinas de licenciatura nos resultados e as possibilidades de mudanças curriculares na capacitação de docentes em ciências biológicas para lecionar sobre gênero e diversidade sexual.

Palavras-chave: formação docente; diversidade sexual; gênero.

Discourses about homosexuality and gender in the education of biology

teachers

Abstract: This article is intended at discussing conceptions about gender and sexuality in biological science courses. Questionnaries with questions about these themes were applied to undergraduate students of the Biological Sciences Course at the Paraná Federal University. The results point to the rejection of prejudiced stands about the sexual and gender minorities. On the other hand, the answers also point to some problems: the conception of homosexuality as something “contagious” remains, while indifference and lack of interest create obstacles to a better acceptance of sexual diversity. Finally, the article brings a discussion about the influence of the teacher training disciplines on the results and the possibilities of curricular changes in the education of biological science teachers in order to have them prepared to teach about gender and sexual diversity.

Key words: teacher training; sexual diversity; gender.

Há algumas décadas, ainda que de forma desigual em diferentes países, os movimentos sociais pressionam a Universidade e o que poderíamos chamar de

* Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. leandrosouza@ufpr.br

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opinião pública a debater questões relativas a gênero e diversidade sexual. Nesse sentido, diversos campos do conhecimento, em especial as ciências humanas, vêm sendo chamados, cada vez mais, a incluir essas temáticas em suas pesqui-sas. Esta vinculação prematura que estabelecemos entre uma reivindicação de natureza política e a construção do saber não nos parece despropositada para os objetivos do nosso trabalho; afinal, é mérito desses movimentos sociais o pioneirismo epistemológico de apontar a ausência, a exclusão ou a posição subalterna de uma série de grupos sociais nas concepções/representações de mundo vigentes.

Os estudos sobre educação, por sua vez, embora tenham colocado em des-taque questões de cidadania e inclusão/exclusão social nas suas perspectivas mais recentes, apresentaram grande resistência, para não falarmos em letargia, em abordar esses temas em suas pesquisas. Ainda hoje, quando voltam sua atenção para gênero e sexualidade, fazem-no, muitas vezes, a partir do viés de teorias pedagógicas, psicológicas, sociológicas e/ou biológicas essencialistas, que acabam por convergir para conclusões reducionistas e normatizadoras sobre os sujeitos do processo educacional. Além disso, pela própria dinâmica conflituosa entre o campo dos estudos em educação e as práticas do trabalho pedagógico, tende-se a abordar esses temas menos pela perspectiva política do que pela sua dimensão comportamental, na qual uma posição de orientação/tratamento para as condutas desviantes – bem como de harmonização das relações na família, na escola, na sociedade – é beneficiada em detrimento daquele que, acredita-mos, deveria ser o problema fundamental: uma análise das dinâmicas de po-der/saber que perpassam essa construção.

Dentro desse contexto, que apresentamos de partida, o presente artigo tem por objetivo discutir discursos sobre gênero e sexualidade presentes nas ciênci-as biológicciênci-as. Outrossim, embora gênero e sexualidade coloquem-se como ciênci-as grandes áreas dentro das quais se insere nosso trabalho, nosso foco estará na dimensão educacional desse objeto. Ou seja, não pretendemos aqui dar conta do discurso de todo o campo, mas apenas de uma dimensão específica, ou seja, os discursos sobre gênero e sexualidade produzidos por futuros/as professores/ as de biologia.

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Um segundo ponto diz respeito à especificidade do curso escolhido. Embo-ra não seja exclusividade dos cursos de ciências biológicas tEmbo-rabalhar temas rela-cionados a sexualidade e gênero, sabe-se que é competência da disciplina biolo-gia tratar conteúdos como doenças sexualmente transmissíveis, fisiologia e reprodução humanas no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, nos quais é especialmente difícil determinar a fronteira que separa os conceitos científicos das ciências naturais de um discurso moralizante em relação ao sexo, para cri-anças e adolescentes.

Um último ponto é relativo à formação de professores/as nos cursos de li-cenciatura. Cabe-nos perguntar: o que a universidade vem fazendo no sentido de uma formação que contemple conteúdos e práticas referentes às diversida-des sexual e de gênero? Em que medida ela incorporou a discussão diversida-desses temas em suas licenciaturas? Essas/es futuras/os profissionais estão aptas/os a realizá-la? O que pode ser feito, dentro da formação em licenciatura, para capacitar professores/as para falar sobre diversidade sexual e de gênero?

Para chegarmos a esses objetivos específicos, foram aplicados questionários com questões sobre gênero, sexualidade e diversidade sexual aos/às formandos/ as do curso de ciências biológicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foram duas idas a campo, em outubro de 2006 e abril de 2007, nas quais obtivemos, respectivamente, 43 e 45 questionários preenchidos, totalizando 88. Consideramos o tamanho da amostragem suficiente, uma vez que ingressa no curso de ciências biológicas da UFPR, semestralmente, um total de 55 alunas/os, sendo que um percentual considerável dessas/es alunas/os desiste do curso antes de chegar ao último período. Optamos por aplicar os questionários em sala de aula, conforme acordo com os/as professores/as responsáveis pelas disciplinas.

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Gênero e sexualidade pela perspectiva dos Estudos Culturais

Convém, antes de apresentarmos os resultados obtidos, fazer uma breve revisão dos conceitos que iremos utilizar. Nosso referencial teórico situa-se dentro do campo conhecido como “Estudos Culturais”, denominação que remete ao Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham, Inglaterra, fundado na década de 1960. Em uma de suas vertentes, situam-se os estudos de gênero e sexualidade, usando como base, sobretudo, as formula-ções de teóricos como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e Félix Guattari.

Definimos sexualidade, portanto, conforme a formulação de Foucault (1977, 1979), ou seja, como um dispositivo constituído por um conjunto de discur-sos, instituições e práticas que visam produzir/estabelecer/normatizar “verda-des” em relação aos corpos e aos prazeres. Em Foucault, devemos entender a questão da sexualidade menos pelo viés do poder repressivo do que pela pers-pectiva do poder como força criadora. Nesse sentido, entendemos o poder como meio pelo qual todas as coisas acontecem, sendo que a produção do conhecimento, dos discursos e do próprio prazer estão vinculados a sua dinâ-mica (Giddens, 1998, p. 317). Ou seja, pela perspectiva foucaultiana que adotamos, tratar do “problema” da sexualidade não significa denunciar as prá-ticas repressivas que se aplicariam às manifestações “naturais” da sexualidade humana, mas antes disso, identificar e compreender como se constroem histo-ricamente e culturalmente as distinções de sexo e de condição sexual, alvos de uma série de normas e cuidados. Do mesmo modo, não é correto entender o poder em Foucault pela perspectiva meramente institucional ou de classe – para o autor, o conceito de poder diz respeito a “constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em campos sociais de força” (Saffioti, 1992, p. 185), o que nos permite ampliá-lo para o domínio do coti-diano e do doméstico, enfim, para a dimensão do “microssocial”.

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Voltando a Foucault, em sua História da sexualidade, entendemos que essa produção de “verdades” sobre os corpos e os prazeres deve muito ao discurso de áreas de saber especializado – onde se destacam subáreas das ciências da saúde e ciências biológicas. Segundo Foucault, os discursos dessas ciências no século XIX desempenharam, em grande medida, a função de adequar a um vocabulá-rio de consonância científica os velhos pavores irracionais, as posições de ordem moral e as opções econômicas e políticas (Foucault, 1977, p. 55). Por discurso entende-se um conjunto de enunciados que pertencem a uma mesma formação discursiva. Como ressalta Foucault (1987), os discursos não são um conjunto de elementos (signos) que remeteriam a conteúdos que estariam em um mundo exterior ao próprio discurso. Os discursos formam sistematicamente os objetos de que falam, são feitos de signos, mas fazem mais do que utilizar os signos para designar coisas, e é esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato de fala. Assim, na medida em que as práticas discursivas são instituidoras dos objetos dos quais falam, moldam nossas formas de constituir o mundo. Portanto, discursos sobre sexualidade e gênero produzem também as próprias identidades sexuais e de gênero sobre as quais se debruçam em uma complexa trama de saberes e poderes, cuja análise é necessária. A investigação das justificativas científicas para as questões relativas às identidades sexuais e de gênero, portanto, precisam ser problematizadas frente à relação íntima entre epistemologia e poder. Além dis-so, deve-se considerar a problemática transposição de categorias das ciências naturais para o entendimento de questões que, em nossa concepção, são de ordem social/cultural. Não são incomuns, ainda hoje, estudos da área de ciências bi-ológicas que se propõem a explicar fenômenos tipicamente culturais pela pers-pectiva reducionista da determinação biológica.

Preconceito, tolerância e indiferença

Entre os sujeitos que participaram da pesquisa, a grande maioria constitui-se de mulheres (67%); já quanto à faixa etária, a maioria é de jovens entre 21 e 24 anos (78%). Surpreendeu-nos, contudo, que nenhum desses dados possa constituir-se como variável explicativa, afinal, não houve diferenças significati-vas, nem mesmo em nível discursivo, entre homens/mulheres e mais jovens/ mais velhos.

A posição dos/as formandos/as quanto à diversidade sexual também pode ser considerada surpreendente. As/os entrevistadas/os seguiram, na maior par-te das questões, uma linha politicamenpar-te correta, repudiando manifestações de discriminação no espaço escolar.

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homos-sexuais, 87% afirmaram que não mudariam sua conduta com um/a colega de trabalho caso soubesse que ele/ela é homossexual, 70% escolheriam trabalhar em uma escola com alunas/os homossexuais, 81% não teriam objeção se o/a professor/a do seu/sua filho/a fosse homossexual, 73% concordam com a ado-ção de crianças por casais homossexuais e 95% disseram que contratariam pro-fessoras/es homossexuais, se fossem diretoras/es de escola.

Foram detectadas algumas variações significativas nas posições dos/as formandos/as do 2° semestre de 2006 e os/as formandos/as do 1° semestre de 2007. No que diz respeito à objeção que as/os entrevistadas/os teriam se a/o professora/professor do seu filho fosse homossexual, enquanto os/as primeiros/ as foram praticamente unânimes (98%) no entendimento de que não haveria objeção alguma, um percentual considerável das/os últimas/os (24% de sim e 11% de talvez) não se manifestou da mesma forma. A questão sobre a adoção de crianças por casais homossexuais apresentou o mesmo padrão: enquanto os/ as entrevistados/as de 2006 posicionaram-se favoráveis em um percentual aci-ma da média (84%), essa aprovação caiu sensivelmente (para 62%) nos ques-tionários de 2007.

Todavia, é preciso relativizar essa posição, considerando o conteúdo das justificativas. Embora encontremos em menor número respostas com um viés claramente avesso à diversidade sexual (tais como homossexualismo é contra a natureza humana, é estranho), as respostas estruturadas em expressões como não me importo, indiferente e cada um cuida da sua vida são bastante recorrentes. Isso parece indicar que os/as formandos/as em ciências biológicas interiorizaram de maneira muito intensa a ideia de preconceito como algo errado, sem que exista, contudo, uma contrapartida mais efetiva no sentido da reflexão e da aceitação mais significativa das diferenças. A simples ideia de tolerância, nas palavras de Louro (2003, p. 48), “liga-se à condescendência, à permissão, à indulgência – atitudes que são exercidas, quase sempre, por aquele ou aquela que se percebe superior”.

Essa postura torna-se mais clara nas respostas à questão sobre o posicionamento pessoal quanto à diversidade sexual, na qual o percentual dos/ as que se declararam não preconceituoso/a (44%) é inferior à soma dos/as que se declararam indiferentes (39%) e preconceituoso/a (14%). Comparando os dois períodos, constatamos o declínio da opção não preconceituoso/a: de 56%, nas/ os formandas/os de 2006, para 33%, nas/os formandas/os de 2007.

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rela-ção a pessoas ‘exageradas’, pois elas, sim, parecem não respeitar os limites dos outros; desde que eles fiquem do lado deles e eu do meu). Os posicionamentos como não preconceituoso/a também não implicaram muitas justificativas mais afirmativas quanto à convivência com pessoas de orientação sexual diversa – o único pa-drão mais numeroso e recorrente, neste caso, foram as já clássicas afirmações variantes da expressão tenho amigos gays, costumeiros escudos de proteção con-tra acusações de preconceito.

Essa contradição torna-se ainda mais evidente na seguinte constatação: o aumento de 7% para 22% das/os que se reconhecem como preconceituosa/o da turma de 2006 para a turma de 2007 não significou, de modo geral, o aumen-to de justificativas homofóbicas. Ao contrário, boa parte dos/as que se declara-ram desta forma reconhece a necessidade de reflexão e crítica sobre os próprios discursos, além do desejo de ser diferente (é algo fora do controle consciente, mas tento não ser ou, no mínimo, não transparecer; posso compreender e tolerar a di-versidade sexual com certo grau de indiferença, mas tenho dúvidas se um dia serei capaz de aceitá-la).

A confusão entre a opção assinalada e as justificativas quanto ao posicionamento frente à diversidade sexual parecem confirmar que os/as entre-vistados/as sentem receio em declarar seu preconceito, ao mesmo tempo que não fornecem qualquer argumentação, no nível do discurso, que justifique a postura que acreditam ter quanto ao seu relacionamento com pessoas de dife-rentes orientações sexuais. A busca da aceitação do outro é sempre um processo complexo, que envolve um trabalhoso exercício no sentido de rejeitar as pré-noções com as quais usualmente classificamos a realidade. Uma postura mais adequada, nesse sentido, seria o reconhecimento do estranhamento inerente ao nosso contato com o que é diferente e a busca permanente da desconstrução de nossas concepções.

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Além desses pontos relativos à formação dentro do curso de ciências bioló-gicas, temos ainda uma última questão: estamos tratando de uma maioria ex-pressiva de jovens com idade menor que 24 anos, o que significa, portanto, um universo de entrevistadas/os que teve maior acesso às discussões sobre diversi-dade sexual veiculadas pelo cinema, pela televisão, pela literatura, pelos jor-nais, pelas revistas, entre outros. Isso parece explicar, em alguma medida, a familiaridade com os temas e o posicionamento positivo em relação a diversas questões do questionário, bem como a tolerância e a aversão ao preconceito que perpassam as respostas.

Contágio e imparcialidade sexual

As respostas às outras questões mantiveram a mesma linha politicamente correta, mas com algumas ressalvas a serem examinadas. Perguntados/as se o fato de o/a professor/a ser homossexual pode influenciar na escolha sexual de um/a aluno/a, 26% das/os entrevistadas/os responderam sim, e 11% respon-deram talvez. Perguntadas/os se achavam que os pais devem convencer um/a filho/a a mudar de condição sexual, 7% das/os entrevistadas/os responderam sim e 14% responderam talvez. Novamente, algumas variações entre os/as formandos/as de 2006 e 2007 devem ser ressaltadas. Nos questionários de 2007, as/os entrevistadas/os optaram, em maior número, pela opção sim, quando questionadas/os sobre a influência da/o professora/professor homossexual so-bre a/o aluna/o (36% contra 16%), bem como soso-bre o convencimento de uma/um filha/o quanto a sua condição sexual (11% contra 2%).

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dessa identidade, assim como a divulgação de identidades alternativas, ainda é recebida com um misto de receio e desconfiança.

No caso específico da adoção, repetiu-se entre as/os contrárias/os a justifica-tiva de que haveria um risco psicológico muito grande de influência dos pais adotivos sobre a criança (como, por exemplo, sou contra a adoção por casais homossexuais porque não haveria equilíbrio para que uma criança pudesse ter uma formação, principalmente mental, pois haveria falta de uma parte masculina ou feminina, porque isso vai influenciar o desenvolvimento psicológico da criança ou a criança provavelmente ficaria confusa perante a sociedade, escola, amigos, até mes-mo quanto a sua sexualidade). Até mesmo entre os/as favoráveis foram dadas respostas semelhantes, colocando-se como condição para a adoção a garantia de não influência dos pais (desde que o casal saiba tratar da situação com respeito, não influenciando a criança).

A exigência de cuidados do/a homossexual em relação a sua postura colo-cou-se com ainda mais força nas justificativas sobre a possibilidade de influên-cia do/a professor/a homossexual sobre os/as alunos/as. Novamente, mesmo algumas/alguns daquelas/es que não acreditam na influência, colocaram res-salvas quanto à conduta da/o profissional (desde que o professor saiba lidar com as diferenças e não seja tendencioso). Na categoria talvez, praticamente todas as respostas direcionaram-se para esse mesmo tipo de concepção. Trata-se, se-gundo Britzman, de parte complementar do mito do contágio homossexual apresentado acima, no qual, agora, qualquer professora/professor “que ofereça representações gays e lésbicas em termos simpáticos será provavelmente acusa-da ou de ser gay ou de promover uma sexualidade fora-da-lei” (Britzman, 1996, p. 80).

Os/as formandos/as levantaram outro problema significativo: a idade dos/as estudantes. Enquanto os receios são mais discretos ao se pensar em jovens e adolescentes, vários poréns são trazidos à tona quando se pensa na educação de crianças. O perigo causado pela/o professora/professor homossexual cresceria na medida em que suas vítimas são excessivamente jovens e indefesas (depende da idade do aluno e da persuasão do professor, depende da série, enquanto criança teria objeção, depois de adolescente, não).

Esses posicionamentos mapeiam alguns discursos problemáticos. Primeiro, o mito de que as identidades sexuais, a partir da adolescência, já estão solida-mente estruturadas, enquanto na infância, ao contrário, existiria um espaço considerável para incutir sugestões quanto à orientação sexual. E como decor-rência disso, o/a homossexual ofereceria riscos especiais às crianças, no que tange à sexualidade.

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XVII meninas e meninos conviviam com o mundo adulto em todas suas nuances”. É curioso que, para estas/es formandas/os, os homossexuais mereçam vigilância especial com vistas à preservação da inocência e da vulnerabilidade infantis. Manifesta-se aqui, mais uma vez, a noção de que existiria uma espécie de vírus de homossexualismo capaz de contaminar crianças e ameaçar seu suposto desenvolvimento sexual natural. Além disso, identificamos também, algumas vezes, a associação discursiva entre pedofilia e homossexualismo, segundo a qual à primeira, classificada na modernidade como uma doença (Neckel, 2003, p. 57-58), associar-se-ia uma condição sexual desviante, igualmente entendida como patológica.

Fundacionalismo biológico

Quanto aos questionamentos acerca dos conceitos de gênero e sexualidade e à importância desses temas em sua formação e na formação de seus/suas alu-nos/as, os/as formandos/as de ciências biológicas frustraram a hipótese de filiação à perspectiva teórica do chamado determinismo biológico, na qual a dimensão social do comportamento humano é marginalizada em benefício de fatores biológicos. Apenas 16% dos/as entrevistados/as acreditavam que ser homem ou mulher é uma construção biológica e somente 11% entenderam gênero e sexo como coisas iguais. Também é de apenas 11% o percentual dos que acha-vam que um indivíduo nasce homossexual. Por outro lado, a dimensão exclusi-vamente cultural das categorias homem e mulher e do conceito de homossexu-alidade foi também amplamente rejeitada. Apenas 16 entrevistadas/os (18%) acreditavam que um indivíduo se torna homossexual, e somente 4 (5%) defi-niram mulher ou homem como categorias culturais.

Dessa forma, as opções mais escolhidas foram aquelas que conciliavam as dimensões biológica e cultural. Um percentual de 60% dos/as entrevistados/as acreditava que o indivíduo nasce e torna-se homossexual, assim como 80% pensavam que ser homem ou mulher é uma construção ao mesmo tempo bio-lógica e cultural.

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De um modo geral, o pouco que foi escrito encontra paralelo no que Nicholson (2000) chama de “fundacionalismo biológico”, ou seja: “uma rela-ção mais do que acidental entre a biologia e certos aspectos de personalidade e comportamento [...] mas que, em contraste com o determinismo biológico, permite que os dados da biologia coexistam com os aspectos da personalidade e comportamento” (Nicholson, 2000, p. 13).

Conforme nos diz Louro (1999, p. 45), as discussões de gênero, em um primeiro momento, estavam relacionadas às “distinções biológicas”, que servi-am para explicar e justificar as mais variadas diferenças entre mulheres e homens. Essas discussões, vinculadas ao chamado determinismo biológico, produziram, por sua vez, teorias e pesquisas que procuravam provar como as diferenças anatômicas/fisiológicas entre mulheres e homens acabavam por refletir no campo psicológico e social, e como, dessa forma, cada sexo era dotado de habilidades e talentos específicos, que determinavam seus lugares e papéis sociais.

Podemos dizer que o “fundacionalismo biológico”, citado acima e ao qual vinculamos as concepções das/os entrevistadas/os, foi a primeira resposta ao determinismo biológico no que diz respeito a gênero. Reconhecia-se, nesse momento, que havia uma dimensão social/cultural que ia além do dado bioló-gico, mas, todavia, acreditava-se que esse dado biológico era a base objetiva ou material sobre a qual se construíam as diferenças de gênero, ainda que estas últimas fossem explicadas historicamente e socialmente.

Embora signifique um avanço em relação ao determinismo biológico, deli-mitando a fronteira entre sexo e gênero, essa perspectiva logo recebeu diversas críticas pela manutenção da hierarquia e pela dicotomia entre os polos mascu-lino e feminino. Desse modo, a perspectiva pós-estruturalista questiona até que ponto é possível delimitar e separar, nos seres humanos, o que é biológico e o que é cultural – mas, ao contrário do determinismo biológico, aponta para uma via em que a linguagem e demais construções culturais/sociais criam os corpos. Gênero, por esse viés (que adotamos e que se opõe às concepções dos/as entrevistados/as), está em constante movimento e pode situar-se em regiões de fronteira entre o masculino e o feminino, não tendo qualquer correspondência com o dado anatômico/fisiológico.

Interesse e desconhecimento

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Contradito-riamente, a respeito da competência necessária para trabalhar esses temas em instituições escolares, 53% dos/as entrevistados/as, ainda que tenham declara-do ter tideclara-do contato com os conteúdeclara-dos gênero e sexualidade na graduação, jul-garam-se inaptos/as a trabalhar com questões referentes a conflitos sexuais na escola. Além disso, somente 8% delas/es declararam conhecer bem os Parâmetros Curriculares Nacionais no que tange à educação sexual, e poucas/os (19%) se recordaram de ter lido algum livro sobre educação sexual, sexualidade ou di-versidade sexual.

Outro dado importante diz respeito à formação recebida pelos/as entrevis-tados/as: 90% deles/as tiveram contato com o conteúdo sexualidade por inter-médio de alguma disciplina da graduação, acontecendo o mesmo para 72%, no que diz respeito ao conteúdo gênero. Destacam-se aqui as disciplinas da área de educação, relativas à formação em licenciatura e, em especial, a discipli-na de psicologia da educação, citada por 80% dos/as entrevistados/as em rela-ção ao conteúdo sexualidade, e por 48%, quanto ao conteúdo gênero.

Uma hipótese que se colocou sobre essas concepções, quando da primeira tabulação dos dados obtidos em 2006, foi a influência das disciplinas de licen-ciatura, em especial, a psicologia da educação, sobre a formação das/os alunas/ os de ciências biológicas. Todavia, para propor esse tipo de relação com mais rigor, seria necessário comparar, em uma nova pesquisa, um universo de formandos/as que apontassem a importância das disciplinas de licenciatura para o entendimento dessas temáticas com um grupo que se posicionasse de modo contrário. É preciso esclarecer, também, que não se trata de uma deter-minação programática da disciplina de psicologia da educação, uma vez que esta continua centrada em teorias da aprendizagem e do desenvolvimento — a discussão de temas socioculturais está condicionada a uma opção de aborda-gem dada pelo/a professor/a.

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Vale ressaltar que a grande maioria declarou não ter tido qualquer experiên-cia em falar sobre sexualidade na escola e na solução de conflitos relacionados à sexualidade de alunas/os (o que se justifica, na medida em que o tempo dedi-cado à prática e ao estágio em docência é muito pequeno). A maioria também julga que seu conhecimento acerca dos Parâmetros Curriculares Nacionais, no que tange à educação sexual, não vai além de pouco, e quase nenhum/a entrevis-tado/a conseguiu citar uma bibliografia sobre educação sexual, sexualidade ou diversidade sexual.

Conclusões

Nossos dados, de um modo geral, apontaram para avanços quanto ao en-tendimento de questões relativas à diversidade sexual e de gênero. Houve um expressivo repúdio à discriminação e uma forte defesa de critérios de compe-tência para avaliar profissionais da educação, independentemente de sua con-dição sexual. Persistem, é verdade, a pouca disposição em falar mais aberta-mente sobre os temas (refletida na indiferença e frieza das respostas) e a noção de heterossexualidade como a condição sexual natural (ainda que as/os entre-vistadas/os se manifestem dispostos a aceitar condições desviantes). Uma par-cela considerável dos/as formandos/as coloca obstáculos quanto à atuação da/o profissional homossexual na educação, sendo o maior deles a exigência injusta e preconceituosa de imparcialidade quanto a sua condição sexual (que, basica-mente, consiste em admitir o mérito da/o professora/professor homossexual apenas quando esta/e se comporta assexuadamente).

Quanto ao discurso sobre a homossexualidade, nossas investigações indica-ram a rejeição do determinismo biológico, ao mesmo tempo que é mantida uma perspectiva sustentada em dualismos como corpo/cultura e heterossexualidade/homossexualidade. Embora em nível menor do que pode-ria ser suposto em um curso de ciências biológicas, essa noção do dado biológi-co (ou do biológi-corpo), biológi-como uma espécie de porta-casaco das diferenças culturais, pode levar a uma série de equívocos quanto à explicação e à solução de proble-mas relacionados à sexualidade e ao gênero. A frenética fragmentação e recons-trução das identidades, que se reflete na forma como as pessoas vivenciam gê-nero e sexualidade em nossos tempos e, consequentemente, nos sujeitos da educação, tornam inadequadas perspectivas essencialistas e universalizantes. Como diz Butler (1999, p. 153), “a diferença sexual não é, nunca, simples-mente, uma função de diferenças materiais que não seja, de alguma forma, simultaneamente marcadas e formadas por práticas discursivas”.

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sobretu-do quansobretu-do se trata de questões humanas, muito sobretu-do que é dasobretu-do como terreno exclusivo das ciências naturais recebe influência direta das instituições e das práticas sociais.

Essa dificuldade poderia ser minimizada na medida em que fosse reservado um espaço, dentro da grade curricular do curso, para disciplinas das ciências humanas. Dado o problema que levantamos em nossa introdução, de que aca-ba sob a responsabilidade da biologia tratar na escola de questões delicadas como reprodução humana e doenças sexualmente transmissíveis, torna-se ne-cessário contemplar também, no nível curricular, a indissociável dimensão sociocultural que compõe a educação sexual.

Os dados também se mostraram positivos quanto à discussão, durante a realização do curso, de temas como sexualidade, diversidade sexual e gênero. Contudo, é preciso reiterar que esse resultado deve ser atribuído mais à abor-dagem de determinados/as professores/as do que a uma definição de programa. E ainda que, descartadas essas disciplinas de licenciaturas, os conteúdos relati-vos à sexualidade e ao gênero não recebem maior atenção curricular, conforme aponta a relação de disciplinas das ciências biológicas levantadas nos questio-nários. Configura-se também como um problema a contradição entre a impor-tância atribuída às temáticas e a incapacidade em discuti-las em sala de aula. Em termos práticos, a existência de profissionais cientes da sua responsabilida-de, mas inaptos/as a realizar as tarefas necessárias, acaba por trazer pouca con-tribuição na resistência à exclusão e ao preconceito na escola. Estas são outras questões que reforçam a necessidade de reformas curriculares dentro das uni-versidades e, em especial, nos cursos de licenciatura.

Segundo Louro (1999, p. 86), é uma postura reducionista supor que é possível transformar o conjunto da sociedade através da escola, assim como propor a eliminação de todas as relações de poder. Como nos ensinam as for-mulações foucaultianas que discutimos acima, o poder constitui-se como uma tensa rede de relações sempre em atividade, em cujo interior as dinâmicas de imposição e resistência se desenvolvem sem um prazo para cessar. Assim, seria ingenuidade imaginar que, dentro do mesmo contexto institucional, a simples substituição dos parâmetros essencialistas atuais por uma pedagogia voltada à diversidade eliminaria automaticamente todas as relações de poder dentro do espaço escolar e as concepções discriminatórias reproduzidas em todos os âm-bitos da sociedade.

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muitas vezes negligenciado, são as estratégias de resistência dos grupos minoritários. Ou seja, ainda que admitamos não ser possível superar os discur-sos, as instituições e as práticas que produzem relações de dominação, sabemos que o exercício do poder é um processo problemático que envolve respostas, contestações e transformações advindas dos dominados.

Dentro do campo educacional, o que é possível fazer, então, para promover a diversidade sexual e de gênero? Não temos nenhuma resposta definitiva, mas os indícios que conseguimos obter mostram ser necessário, mais do que construir um caminho novo, desconstruir/problematizar as concepções existentes. Mos-trar que nossas evidências sobre o campo da sexualidade foram construídas em um determinado momento histórico e que, portanto, elas podem ser criticadas e reinventadas. Emprestando as palavras de Foucault, talvez o papel do/da edu-cador/a então seja: “[...] interrogar novamente as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneiras de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades aceitas [...] participar da formação de uma vontade política na qual ele tem seu papel de cidadão a desempenhar” (Foucault, 2004, p. 249). Assim, é necessá-rio para os estudos em Educação, bem como para a formação e a prática docen-tes em biologia, questionar os aspectos heteronormativos presendocen-tes na formação de nossas identidades sexuais e de gênero, apontando também para os limites e as possibilidades impostas a cada indivíduo, quando este se submete aos este-reótipos que são atribuídos a uma identidade sexual e de gênero.

Embora a reserva de espaço para tais temas no currículo seja um primeiro passo, não nos parece suficiente focar apenas a questão do conteúdo, quando estamos tratando de identidades sexuais e de gênero dentro do ambiente esco-lar. É necessário pensar novas políticas de relação com o outro que possam nos levar mesmo para além da interiorização de uma tolerância politicamente cor-reta, que apenas amplia os limites da tolerância, mas que persiste com entendi-mentos binaristas e excludentes em relação à produção das identidades sexuais e de gênero. Levando em conta que essas questões perpassam todos os sujeitos envolvidos com o processo educacional, é preciso criar um ambiente propício ao diálogo e ao questionamento permanente de novas práticas educativas.

Referências bibliográficas

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Referências

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