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A morenidade da china tropical: o racianalismo de Casa-grande e Senzala

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

A MORENIDADE DA CHINA TROPICAL

O RACIALISMO DE CASA-GRANDE & SENZALA

ANDERSON CRISTOPHER DOS SANTOS

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2 ANDERSON CRISTOPHER DOS SANTOS

A MORENIDADE DA CHINA TROPICAL: O RACIALISMO DE

CASA-GRANDE & SENZALA

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de mestre em Ciências Sociais, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação do Prof. Dr. Edmilson Lopes Júnior.

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3 Dissertação apresentada à banca examinadora como requisito ao Programa de Pós Graduação

em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio grande do Norte:

Prof. Dr. Edmilson Lopes Júnior Orientador

Examinador Externo – Prof. Dr. Vanderlan Francisco da Silva (UERN)

Examinador Interno – Profa. Dra. Dalcy da Silva Cruz (UFRN)

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4 AGRADECIMENTOS

Talvez a única seção em que se possa falar na primeira pessoa do singular, os agradecimentos raramente são instrumentos de justiça. No afã de produzir uma pétala de rosas, muitas vezes nos atemos mais à forma que ao conteúdo, mais aos poemas que às pessoas merecedoras do mais singelo dos agrados – a própria gratidão.

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6 RESUMO

Este ensaio discute a temática racial, enfatizando a concepção racial presente no livro Casa-Grande & Senzala. Neste sentido, discutimos o cenário intelectual brasileiro dos anos 1920 e 1930, na perspectiva de assinalar a decadência das análises fundamentadas nas variáveis de raça, meio geográfico e clima, salientando a acensão de novas abordagens, estruturadas na diversidade cultural e na economia capitalista excludente. Utilizamos o conceito de racialismo, compreendendo-o como toda e qualquer narrativa que classifica os tipos humanos segundo um critério racial.

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7 ABSTRACT

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8 SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 09

AS FORMAS DOS RACIALISMOS BRASILEIROS 22

GILBERTO FREYRE, UM JOVEM RADICAL 41

CASA-GRANDE & SENZALA – UMA PERSPECTIVA DE BRASIL 53 ASCENSÃO SOCIAL DO MULATO E A EPISTEMOLOGIA DE FREYRE 69

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10 Neste conciso ensaio, discutimos a temática racial em seus contornos brasileiros. Tomamos como esteio o fato de que é este trabalho um exercício primeiro, que mais apresenta uma problematização do que propõe um simulacro; não mobilizaremos, como se um biombo fosse, autores ou perspectivas consideradas como o estado da arte. Antes de se esperar, ainda, um texto orgânico e dotado de independência com o próprio estágio de aprendizado do seu autor, essa dissertação apresenta na plenitude a fragmentação de algo que se inicia, sem querer se apresentar como algo para além de uma etapa.

A análise do pensamento gilbertiano é o fio condutor do nosso trabalho, especialmente a concepção racial mobilizada por Freyre em Casa-Grande & Senzala, livro lançado em 1933, pela casa editorial Maia e Schimidt.

Gilberto Freyre foi um escritor que se definiu como “uma espécie menos de museu que de laboratório” (1981, 127), na medida em que a sua performance fora

quase sempre em sua biografia marcada pela contradição e pela fratura entre os contraditórios. A pretexto de analisar sua obra, tecemos algumas considerações sobre um importante momento da história brasileira das mentalidades, o Brasil dos anos 1920 e 1930.

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11 que a reestruturaram, dentre os quais a perspectiva urbano-industrial e uma nova abordagem em relação à cultura popular e ao controle dos recursos naturais do país, no sentido de assegurar às elites nacionais um papel mais destacado na intermediação desses mesmos recursos com a demanda internacional, não apenas o café e a cana de açúcar, mas também o aço das siderúrgicas e, duas décadas depois, o petróleo.

Neste momento histórico, a temática racial perderia a sua centralidade e as teorias raciais perderiam a sua força explicativa, alterando os critérios de plausibilidade que guiavam a intelectualidade do país. Tal mudança fazia parte de uma transformação, inclusive no plano identitário, que redefiniria o papel do Brasil no cenário mundial, permitindo que os problemas do país fossem considerados sanáveis com o desenvolvimento do industrialismo.

Durante as três primeiras décadas do século XX, os intelectuais brasileiros articulavam três variáveis para visualizar e explicar o suposto atraso da sociedade brasileira, quando esta era comparanda ao contexto europeu. Estes três elementos de variação eram a raça, o meio geográfico e o clima, repercutindo autores como Gobienau, Ratzel, Agassiz e Le Play.

Nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, se construiu um consenso científico brasileiro, definindo a mestiçagem como a causa direta para o atraso do Brasil. O quadro visualizado era desolador, na medida em que

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12 consensual apontava para a confirmação das reflexões de Gobineau, segundo as quais a miscigenação resultava em um povo amorfo, sem caráter definido e de futuro incerto. Em 1911, durante o I Congresso Internacional sobre as Raças, o então diretor do Museu Nacional, João Batista Lacerda, defendeu uma tese que apontava claramente para esta perspectiva. Nas palavras de Lacerda, “o Brasil mestiço de hoje

[1911] tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (SCHWARCZ, CITAÇÃO, p. 11).

Este entendimento condicionava a pauta intelectual do país. A construção do consenso científico brasileiro era a repercussão de duas afirmações cristalizadas como verdadeiras construídas, no século XIX, no interior de instituições patrocinadas pelo Império do Brasil, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Idem). Estas afirmações apontavam para a distinção entre a América Portuguesa e a América Espanhola.

A primeira delas era a aceitação dos estudos históricos de Varnhagen, enfatizando a introdução do homem lusitano na formação da sociedade colonial brasileira. A segunda afirmação dava razão a Von Martius, pintando o Brasil como mestiço de ameríndio, branco e negro, as três raças tristes como se referiria Paulo

Prado muitas décadas mais tarde, em 1928 (no livro Retratos do Brasil).

A sociedade brasileira seria entendida, na avaliação de Lilia Moniz Schwarz, como um verdadeiro “espetáculo das raças”. No final do século XIX e início do século

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13 como um diagnóstico aterrador, na medida em que genética e culturalmente o país estaria comprometido com a indefinição, com o atraso.

As abordagens sobre cultura, de maneira geral, descaracterizavam a produção popular, considerada de pouco ou nenhum valor. Procurava-se repetir, em pleno solo tropical, uma Belle époque, importando um estilo de vida e idéias européias, sobretudo

francesas. Segundo Odilon Ribeiro Coutinho,

A Europa entrava no século XX com gula de prazer, confiada na prosperidade eterna [...] Paris era uma festa [...] Enquanto isso, o Brasil debatia-se na agonia de crises sucessivas. Humilhado pela febre amarela, enxovalhado pelo „amarelão‟, nem sequer cuidava mais dos valores que tão orgulhosamente havia cultivado no passado. (2005, p. 193).

Valorizava-se, em oposição à parcela analfabeta do país, um tipo de ensaísmo bastante rebuscado, sem o qual nenhum intelectual poderia ser levado a sério. A figura de Ruy Barbosa, neste período, era bastante festejada, um modelo de homem pensante brasileiro (LARRETA, GIUCCI, 2007).

Como se pode perceber, a intelectualidade brasileira estruturara um conjunto ritual, fundamentado na recusa da mestiçagem e da cultura popular, considerando-as parte integrante de um Brasil amorfo e sem caráter, a ser reconstruído com o branqueamento genético e cultural. Boa parcela dos nossos interesses nesta temática está na busca por compreender o processo de construção do primeiro senso científico brasileiro que, ao nosso ver, estava ancorado na perspectiva de mitigar o mestiçamento da população do país e na recusa das práticas culturais populares.

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14 internacional. Quer dizer, a intelectualidade local abordava as perspectivas que localmente faziam sentido, muitas delas em desuso na Europa.

Partindo desse princípio, a temática racial não se dissocia da construção de um senso científico, relacionado à consolidação de uma inteligentsia brasileira, quer dizer,

um grupo intelectual que se ritualizava a partir de sua inserção no Estado e na imprensa. Um modelo que se aproximava bastante do vivenciado pela sociedade russa na época do czarismo.

A recusa da mestiçagem e da cultura popular estavam presentes no ensaísmo do período, portanto. As teorias mobilizadas, muitas vezes, eram parte de um ritual que dividia o Brasil em letrados e iletrados.

Nosso estudo não tem a pretensão de aprofundar essa discussão. Iremos nos deter a uma desconstrução da qual fez parte Casa-Grande & Senzala, ajudando a fundar um segundo senso científico brasileiro, estruturado no apoio à mestiçagem e às práticas culturais populares, bem como um radical distanciamento em relação à considerada herança ibérica, vista quase como maldita. A solução nacional brasileira

não estava mais na importação de gente e de idéias, mas no florescimento de práticas populares, na perspectiva de entendê-las como atividades ingênuas e fora do contexto da dominação imperialista. De alguma maneira, estas idéias já floresciam no modernismo dos anos 1920.

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15 da colonização portuguesa, entendida por ele como a mais democrática (2000ª e 2001).

Segundo Freyre, Casa-Grande & Senzala é um “ensaio de sociologia genética e de história social, pretendendo fixar e às vezes interpretar alguns dos aspectos mais significativos da formação da família brasileira” (2004a, p.50).

Casa-Grande & Senzala é sucedido por outros dois livros de uma mesma série, intitulada pelo autor como Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. Freyre justificara que “o material [coletado com a pesquisa] esborrou, excedendo os

limites razoáveis de um livro” (Ibidem, p. 50-51). Desta forma, publicou Sobrados e Mocambos (1936) e Ordem e Progresso (1959). Planejara publicar Jazigos e Covas rasas mas não o fizera, provavelmente pelo estravio de material histórico coletado

(FONSECA, 2004).

Neste sentido, Gilberto Freyre concebe um projeto intelectual com o objetivo de evidenciar a formação de uma sociedade patriarcal – a brasileira. Procura sensibilizar o público para os elementos de permanência, apontando o passado como estrutura.

Gilberto Freyre buscava os elementos fundadores da sociedade brasileira. Para o autor, a colonização do Brasil perpassava pela compreensão da forma social da

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16 Freyre pleiteava compreender um aspecto da realidade humana que considerava relegado: a história da vida íntima. Através desta vida íntima, acreditava o autor, era possível apreender os caracteres culturais, genéticos e psicológicos da sociedade brasileira, lançando luz sobre a formação do caráter nacional do Brasil. Tal vida íntima era abordada, inclusive, no seu aspecto de vida sexual.

Além de Gilberto Freyre, outros dois autores foram fundamentais para a compreensão da estrutura social brasileira, investigando o passado colonial.

Sérgio Buarque de Holanda lança, em 1936, Raízes do Brasil, apontando para a

ambivalência da colonização portuguesa, mobilizando o conceito de homem cordial. O cordialismo seria um modo de sociabilidade fundamentado nos laços emocionais, ao apego à terra, com forte resistência à modernidade, ao cálculo.

Caio Prado Júnior lança, em 1942, o livro Formação do Brasil Contemporâneo,

discutindo a lógica do capitalismo mercantil, latifundiário e escravagista, abordando o método do materialismo histórico. Prado Júnior investiga o desigual modelo de capitalismo do Brasil-colônia, na perspectiva de evidenciar uma continuidade na lógica de produção agroexportadora e com baixo consumo interno.

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17 Dentre as três obras, Casa-Grande & Senzala foi a que mais enfatizou os aspectos positivos deste passado colonial, embora não dispensasse os elementos negativos, que resultariam nos vícios da política nacional dos anos 1920 e 1930. De qualquer maneira, o autor foi acusado, recorrentemente, de uma leitura idílica do passado colonial.

A interpretação relacional da realidade estava presente nas obras aqui citadas, não existindo a ênfase exclusiva a determinado fator. Começava-se a instituir, também, uma posição de distanciamento em relação ao objeto de estudos.

A recepção da obra Casa-Grande & Senzala, na versão de Edson Nery da Fonseca (2004) e de Antonio Cândido (1987), foi positiva. Gilberto Freyre seria considerado um “modelo de radicalidade” (CÂNDIDO, 1987), às vezes visto como um

comunista, o pior dos adjetivos que se poderia conferir naquela época, sendo alvo de investigações por parte da polícia política do governo Vargas (PALLARES-BURKE, 2005). Enfrentara a oposição ferrenha da imprensa católica, que lhe denominava de “o

pornográfico do Recife”, aludindo às maneiras desbragadas de se referenciar às práticas sexuais e de como estas influenciaram na psicologia social do Brasil (SKIDMORE, 2001).

O volumoso ensaio de Gilberto Freyre foi recebido como bastante original trazendo, para o meio intelectual brasileiro, modernas teorias de antropologia, distinguindo e opondo a raça da cultura. Segundo Edson Nery da Fonseca,

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18 traço e complexo cultural, hereditariedade de raça, tanto quanto para a distinção entre raça e cultura. (2007, p. 199-200).

Embora o livro Casa-Grande & Senzala permaneça sendo um ícone da superação do conceito de raça pelo de cultura sobre a qual se reportou Fonseca, Gilberto Freyre não utilizaria do argumento radical para afastar e invalidar as reflexões raciais, com exceção das conclusões que caminhavam no sentido de descaracterizar o mestiçamento da população do país. Chamava a atenção, contudo, para outros elementos que considerava mais importante, como a cultura e a economia.

Para Ricardo Benzaquen de Araújo (2005), Freyre adotou um conceito

neolamarckiano, em que se problematiza a inserção de uma raça no seu meio

ambiente. Para Araújo, a noção de meio ambiente intermediou, no pensamento gilbertiano, as noções de raça e cultura, “relativizando-as, modificando o seu sentido mais frequente e tornando-as relativamente compatíveisentre si” (p. 37, grifos originais

do autor). Segundo o próprio Gilberto Freyre, “Spengler salienta que uma raça não se transporta de um continente a outro; seria preciso que se transportasse com ela o meio físico” (2000ª, p. 34). Neste sentido, Freyre não considera a narrativa racial como anti-científica, problematizando-a ao contemplar a relação raça/meio/cultura.

Dante Moreira Leite (1992), em seu O caráter nacional brasileiro, apontava para

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19 Gilberto Freyre, muito provavelmente, é o autor brasileiro mais discutido de todos os tempos, com grande ênfase às conseqüências extraídas de seu livro, como a “relativa democracia social e étnica” que abençoaria a sociedade brasileira. A leitura dominante da obra Casa-Grande & Senzala a interpreta como defensora de uma

democracia racial, com uma afirmação conservadora na qual, no Brasil, inexistiria

racismo. Discute-se, também com muita frequência, a atuação política de Freyre, nos anos 1930 visto como um perigoso agitador comunista e nos anos 1960 visto como um empedernido conservador.

A obra de Freyre foi a única a sofrer uma clara restrição no meio intelectual brasileiro, uma patrulha ideológica jamais vista na história brasileira das mentalidades.

De maneira muito geral, entendemos que existem três formas de recepção da obra de Gilberto Freyre.

A primeira delas pode ser denominada de histórico-formativa, que recebe bem a obra gilbertiana e a valida como fonte histórica. Esta leitura, no nosso entendimento, predominou durante as décadas de 1930 e 1940. O trabalho de Freyre era co-validado pelos trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Esta leitura abriu as portas para a desconstrução do evolucionismo racial até então em voga, apontando uma esperança para o Brasil mestiço, entendendo-o como predisposto à democracia social.

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20 civil-militar que se iniciou em 1964. Combater Gilberto Freyre era, ao mesmo tempo, combater um regime político de atraso.

A terceira forma de recepção denominamos de epistemológica, que se inicia nos anos 1990, tematizando as influências de outros autores no pensamento de Freyre. Inicia-se uma busca por compreender os pressupostos gilbertianos, a partir do momento em que estes seriam reconhecidos como sui generis no cenário intelectual do

Brasil.

Evidentemente, estas três formas de recepção não eliminam a existência de outras maneiras de leitura da obra. De qualquer modo, acreditamos que estas são as mais fundamentais manifestações críticas em relação ao autor.

Nosso ensaio, como afirmamos no princípio desta apresentação, discutirá de maneira muito concisa a concepção racial de Casa-Grande & Senzala, buscando efetuar uma interpretação mais aproximada à leitura epistemológica da obra gilbertiana. De maneira lateral, estaremos discutindo um elemento importante para a fundação do segundo consenso científico que anteriormente assinalamos. Este consenso consiste na valorização das práticas culturais populares, compreendendo-as desconexas do contexto imperialista, em contraponto com a herança ibérica, viciada, que não seria capaz de distinguir o público do privado.

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21 redução nos permitirá uma análise comparativa, estabelecida logo no primeiro capítulo deste trabalho.

Para esta comparação, utilizaremos o conceito de racialismo, compreendido

como toda e qualquer narrativa que disponha os tipos humanos a partir de critérios raciais.

Trabalharemos com a hipótese segundo a qual Gilberto Freyre concebe seu racialismo incorporando elementos históricos, ideológicos e poéticos, não podendo, desta maneira, ser avaliado com uma perspectiva de disjunção. Salientamos o fato de utilizarmos o termo racialismo, acenando, como hipótese, a existência de uma narrativa racial na obra de Gilberto Freyre, mais do que uma simples descrição étnica.

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22

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23 Como assinalamos na nossa apresentação, o primeiro capítulo faz uma abordagem comparativa entre as formas de racialismo construídas no Brasil. É importante enfatizar que estes tipos racialistas foram esquematizados por nós, ao longo de nossas pesquisas, apenas com a intenção de estabelecer uma análise por comparação.

Enumeramos quatro tipos: o racialismo cristão; o racialismo evolucionista/assimilacionista; o racialismo culturalista; e o racialismo estrutural.

Os racialismos brasileiros têm características em comum: foram criados e são gerenciados pelo alto, não deixando de mencionar a miscigenação da população brasileira, decorrida desde o século XVI.

Como abordou o professor Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2005), a crítica ao racialismo pressupõe, nas ciências sociais, a díade nominalismo/realismo. Ou seja, se os tipos raciais mobilizados correspondem, ou não, à existência concreta das raças. Esse autor, face tal problema, opta por uma saída culturalista, afirmando que, sociologicamente, importa a existência sócio-cultural dos tipos raciais, em que os agentes sociais lhes atribuem sentido. Para este autor,

“Raça” é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata -se, ao contrário, de um conceito que denota tão-somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de natureza, como algo endodeterminado. A realidade das raças limita-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a empulhação que o conceito de “raça” permite (...), tal conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao comportamento social que lhe enseja é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite.

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24 como concebidos e gerenciados pelo alto. A exemplo de Guimarães, utilizamos o conceito de racialismo à luz do culturalismo, evitando a discussão sobre a existência biológica das raças. No nosso caso, problematizamos a existência de um entendimento racial, presente no mundo intelectual do país.

Conforme já abordamos na apresentação, o racismo científico foi fundamental para a formação da sociologia brasileira, pelo evolucionismo que a fundamentava. Antonio Cândido esclarece:

A sociologia brasileira formou-se, portanto, sob a égide do evolucionismo e recebeu dele as preocupações e orientações fundamentais, que ainda hoje marcam vários dos seus aspectos. Dele recebeu a obsessão com os fatores naturais, notadamente o biológico (raça); a preocupação com etapas históricas; o gosto pelos estudos demasiado gerais e as grandes sínteses explicativas. Daí a predominância do critério evolutivo e a preferência pela história social, ou a reconstrução histórica, que ainda hoje marcam os nossos sociólogos e os tornam continuadores lógicos da linha de interpretação global do Brasil, herdada dos “juristas filósofos” (para falar como Clóvis Bevilaqua) do século passado [XIX].

Na nossa leitura, o naturalismo e o evolucionismo foram as principais estruturas cognitivas do racialismo nacional, no século XIX.

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25 Brasileiro (sobre o IHGB, cf. SCHWARCZ, 1993) que, entretanto, tinham conotação meramente naturalista e ideológica.

O primeiro racialismo brasileiro desembarcou no país provavelmente quando a primeira nave lusitana aqui aportou, refletindo duas derivas: o contexto da contra-reforma; e a não-atribuição da alma ao indígena. Mais tarde o elemento negro havia sido introduzido.

O racialismo cristão foi encadeado a interesses da Metrópole portuguesa, cuja ordem era o casamento e o domínio patriarcal. Já no século XVI, na Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, empreendia-se uma variante da concepção de

soberania doméstica, em que tal ordem sobrepunha-se tanto ao Estado como à Igreja

(MARQUESE, 2005).

Conforme as observações feitas sobre a concepção do racialismo exposta anteriormente, o racialismo cristão não se dissocia da prática política, teológica e da evangelização. Na linguagem atualmente corrente, o racialismo cristão conecta-se à disputa no mercado religioso, de fixação do catolicismo no Novo Mundo, e, já na época colonial, consagrou-se a hibridização, o sincretismo religioso, mas não sem uma tentativa de regulação, controle, pela Igreja Romana. Assim, o racialismo cristão transformou-se, ao reconhecer o indígena e, posteriormente, o negro, como seres de alma e logo passíveis de serem evangelizados, numa ordem fortemente assimilacionista.

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26 litoral. Estudos do professor Rafael Bivar Marquese (2005) demonstram-nos a metanarrativa racialista cristã sob a ótica de uma teoria cristã do governo dos escravos, pautada pela mensagem na qual “os proprietários da América portuguesa eram incapazes de [governar os escravos], pois haviam se afastado dos preceitos da moralidade católica” (MARQUESE, 2005, p. 51). Nota-se a veia missionária dos jesuítas.

Marquese salienta dois tratados sobre o governo dos escravos, ambos baseados na visão xenofontiana de oikonomia, escritos em 1700 e 1711, denotando a

perspectiva racialista de cunho aristotélico.

No primeiro, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, do jesuíta

Jorge Benci, a imoralidade cristã dos latifundiários era condenada. Na interpretação de Benci, os latifundiários enfrentariam a cólera Divina, tal como os antigos egípcios enfrentaram outrora, por ocasião do uso do trabalho escravo e do paganismo. As revoltas dos Palmares e a invasão holandesa de Pernambuco seriam provas dessa Ira (p.54).

A partir da leitura do segundo tratado, de autoria de João Antonil, em 1711,

Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas, Bivar Marquese demonstra a

preocupação dos jesuítas inacianos com o uso irracional, por impulso da opulência, da força de trabalho servil, ao arrolar grande número de escravos em tarefas domésticas na cidade e no campo, culminando em sobrecarregar aqueles escravos cujos afazeres eram de lavoura.

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27 patriarca, que para a Igreja era incumbido a prover seus escravos, também, do “pão

espiritual”.

Em Vida social no Brasil em meados do século XIX, Gilberto Freyre não deixa despercebido o tratamento patriarcal aos servis, que pediam a bênção para “nhonhô”,

seu senhor e mentor. Assim como reafirma Freyre, em Casa-Grande & Senzala,

quando disserta sobre o adestramento de animais para tomar a bênção.

No racialismo cristão, o negro e o indígena estavam dispostos cuidadosamente numa estrutura funcionalista, cuja cabeça da casa seria o senhor e, da nação, o Dogma católico. Para o bom equilíbrio social, dois pontos deveriam ser observados:

1- os deveres essenciais dos cativos eram o trabalho e a obediência, a serem desempenhados sem questionamentos;

2- os deveres dos senhores eram o sustento material condizente (alimentação e vestes), o trabalho e os castigos moderados e, acima de tudo, a educação para o dogma cristão (MARQUESE, 2005, p.65).

O racialismo cristão, como metanarrativa brasileira, foi hegemônico até a segunda metade do século XIX, quando teorias racistas, àquela época concebidas como científicas, como as de Lapouge, Gumplowicz, Ratzel, Gobineau e Ammon, denotaram um segundo racialismo brasileiro: o darwinista, ou evolucionista.

O racialismo cristão, em tempo, conectou-se às justificativas, ao longo do século XIX, sobre o consentimento da Igreja ao regime de servilismo. Conforme Joaquim Nabuco demonstrara em seu livro de juventude, A escravidão, utilizava-se o

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28 uma demonstração de que a Igreja não deveria se opor à escravidão brasileira, não se engajando à causa abolicionista.

Neste sentido, o que denominamos de racialismo cristão foi uma narrativa, à luz do cristianismo, que dispunha os tipos raciais de acordo com uma estrutura funcionalista similar à medieval.

Quanto ao racialismo evolucionista, segundo o historiador brasilianista Thomas E. Skidmore (2001), este teria sido uma mescla desinteressante entre o darwinismo social, positivismo e “um vago liberalismo inglês e francês” (p.72). Sua abrangência foi

de 1870, quando findou a Guerra do Paraguai (1865-1870), na qual o Brasil sai como o grande vencedor (embora daí por diante o Império entrasse em decadência), estendendo sua influência até a década de 1930.

No século XIX, o Brasil foi visitado por um grande número de viajentes e pesquisadores estrangeiros, observando a fauna e a flora do país, inclusive de missões francesas, como Jean-Baptiste Debret. A luxuosidade amazônica dos recursos naturais brasileiros constituiu o primeiro orgulho nacional. O maior intelectual luso-brasileiro, José Bonifácio de Andrada e Silva, assinalava o fim da escravidão e a respeitabilidade do mestiço como a condição fundamental para a elevação do Brasil em um influente império, contrariando o pensamento dominante – ele foi um dos pioneiros na valorização da mestiçagem. Mas a mestiçagem constituiria, aos poucos, uma grande decepção, principalmente com a vinda in persona do racismo científico – Arthur de

Gobineau.

A professora Lília Moniz Schwarcs, em seu livro O espetáculo das raças,

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29 prestígio com o imperador D. Pedro II, sobre o que seria o Brasil mestiço: “trata-se de uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia” (p.13).

Um dos grandes representantes dessa variável racialista foi Euclides da Cunha, cuja obra-prima, Os Sertões, data de 1902. Para Euclides, a “mistura de raças muito

diversas é, na maioria dos casos, prejudicial (...) a mestiçagem extremada é um retrocesso" (CUNHA, 1985, p. 174, apud SKIDMORE, 2001, p. 75). Mais do que isso, pois o “produto da miscigenação racial „é um decaído, sem a energia física dos

ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores‟” (CUNHA,

1985, 175, apud SKIDMORE, 2001, p. 75-6). Como proposta política, Euclides da

Cunha apregoava um Estado forte, que agisse enquanto força correcional para a realidade brasileira.

O racialismo evolucionista unia as variáveis clima, geografia e raça, procurando refletir sobre a miscigenação e sua participação em um suposto atraso da população brasileira, apesar de o país ser continental e abundante em recursos naturais. A grande conclusão era a indefinição racial do Brasil, por intermédio de um clima e uma geografia, aparentemente distantes da Europa – essas seriam as causas do atraso.

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30 Nas artes, o romantismo resgatou o índio como a essência brasileira, no livro O guarani1. O triste fim de Policarpo Quaresma2 também evoca o tema indígena como

essência incondicional do país.

Mas, avançando, a perspectiva evolucionista foi adotada pelo Estado brasileiro, que privilegiaria, contudo, a sua vertente otimista, nutrindo esperanças no país, tão logo a miscigenação levasse a um “caldeamento” do negro pelo branco, a um

“branqueamento”. Essa vertente ficou conhecida enquanto ideologia do branqueamento.

Tornou-se consensual esta avaliação entre intelectuais e entre governo. Poucos ousavam desafiar este entendimento, como foi o caso de Manuel Bomfim no início do 1900 brasileiro, denunciando esta perspectiva como uma elaboração do colonizador europeu. A obra-prima de Bomfim é América Latina: males de origem.

Manuel Bomfim foi um autor considerado controvertido, opondo-se ao branqueamento e inserindo o Brasil no contexto latino-americano. Tratava-se de um duplo pecado, afastando por completo as esperanças de uma europeização do país. Ao invés da criação de uma Europa Tropical, haveria um sistema de dependência que Bomfim explicava por sua tese do parasitismo. A metrópole parasitando a colônia. Agente e paciente se enfraquecendo diante uma relação viciada.

Segundo Ronaldo Conde Aguiar (1999), Bomfim foi considerado derrotado no debate intelectual, predonimando as reflexões negativas sobre o mestiçamento e

1

Obra-prima romantista de José de Alencar, publicado em 1857. Nela, conta-se a história de amor entre o índio Peri e Cecília, ou Ceci.

2

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31 mantendo-se presente, na sociedade brasileira, o ideário do branqueamento, genético e cultural.

Para demonstrar o quanto este racialismo estava presente na vida social do Brasil, em 1921, o Brazilian-American Colonization Syndicate havia demonstrado

interesse em adquirir terras e fundar uma comunidade negra (imigrantes estadunidenses) no estado do Mato Grosso, atraído pela fama internacional (estimulada pela diplomacia brasileira) de que, no país, não haveria ódio de raças, e sim uma pacífica convivência entre elas – uma democracia racial. Essa empreitada acabou resultando numa reação dura por parte dos brasileiros, com a apresentação de um projeto de lei em 29/07/1921, pelos deputados federais Andrade Bezerra e Cincinato Braga, vedando a “importação de negros”, assim como também os asiáticos

–o mesmo Cincinato Braga era defensor ferrenho da “importação branca”. Esse projeto

foi capaz de provocar um debate na então capital do Brasil, Rio de Janeiro. Ao final de um amplo debate na imprensa, o Congresso Nacional resolve arquivar o projeto de lei, por considerá-lo inconstitucional, quer dizer, contrário aos ideais burgueses.

Por outro lado, a imprensa, em sua ampla maioria, apoiou a iniciativa racista, temendo importar negros carregados de ódio, o que não permitiria levar adiante o “depuramento” de quatro séculos do negro pelo branco, ideário representado nos dois trechos de artigos a seguir:

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32 [...] o fato é que, do melhor modo, o Brasil resolveu o problema das competições raciais, não lhe sendo preciso, como outros povos, apontar o caminho da rua aos seus compatriotas negros. Não quer isto dizer, todavia, que a tolerância demonstrada para com os nossos negros nos obrigue a receber os dos outros. (Antonio Leão Veloso, "A Questão Negra", Correio da Manhã, 1.8.21, apud Idem).

É importante salientar que, desde 1910, havia no país uma lei que regulamentava a imigração, a “lei dos indesejáveis”, vedando a entrada de idosos,

crianças, prostitutas e deficientes físicos, sob a alegação que o Brasil necessitava era de “braços” para seu crescimento econômico (GOMES, 2003). Sob a ótica do

racialismo evolucionista e a ideologia do branqueamento, a mão-de-obra servil foi substituída predominantemente pela mão-de-obra de imigrantes da Europa.

O sociólogo Oliveira Vianna defendia a idéia de que o Brasil, entre cinqüenta e duzentos anos, seria um país de brancos, segundo as “estimativas mais confiáveis”.

Para constatar, tomava o censo de 1920, apontando um branqueamento progressivo da população. Foi Vianna um importante aliado do Estado sobre essa perspectiva (DOMINGUES, P., 2002).

Essas idéias seriam baseadas empiricamente (nos censos populacionais) e em estudos interpretativos por essas “constatações”. A obra-prima de Oliveira Vianna,

Populações meridionais do Brasil, pretendia “a caracterização social do nosso povo tão

aproximada da realidade quanto possível, de modo a ressaltar o quanto somos distintos dos outros povos, principalmente dos grandes povos europeus” (VIANNA,

(33)

33 tese na qual “nunca tivemos aristocracia de raça. Pelo contrário, o nosso povo caldeia -se e funde-se sem lutas étnicas flagrantes” (VIANNA, 1952, vol I: 392, apud Idem).

Assim, o racialismo evolucionista possibilitou duas chaves interpretativas: a vertente negativista, que se integrava ao racialismo cristão no contexto dos jesuítas inacianos, sobre as quais pairavam um pessimismo quanto à mestiçagem; e a vertente otimista, ou a ideologia do branqueamento, a mais presente na intelectualidade

brasileira, na qual o caldeamento levaria o país a ensejar-se em alta civilização tão logo se transformasse em uma nação branca. Paulo Prado, em Retratos do Brasil,

demonstra bem essa idéia:

O que se chama a arianização do habitante do Brasil é um fato de observação diária. Já com 1/8 de sangue negro, a aparência africana se apaga por completo: é o fenômeno do passing, dos Estados Unidos. E assim na cruza contínua de nossa vida, desde a época colonial, o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se até a falsa aparência de ariano puro. (Prado, 1944, pp. 167, apud Ibidem).

Ao mesmo tempo em que o racialismo evolucionista encontrava-se soberano, o elemento culturalista já encontrava seus primórdios. Oliveira Vianna, em sua abordagem assimilacionista, não se escusou em retratar um tipo português com um otimismo relativo, pois, como salientou Skidmore (2001, p. 79):

Esses corajosos lusitanos machos haviam vindo a uma terra nova e exótica sem suas mulheres: "Mergulhado no esplendor da natureza tropical, com os nervos hiperestesiados pela ardência de nossos sóis, ele é atraído, na procura do desafogo sexual, para esses vastos e grosseiros gineceus, que são as senzalas fazendeiras". Ali encontravam "a lânguida e terna mulher indígena" e a "passional, amorosa, prolífica e sedutora" mulher negra (VIANNA, 1952, vol I: 101). Assim nasceu o mestiço.

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34 unitário” (VIANNA, 1952, vol I: 429, apud SKIDMORE, 2001, p. 80). Mas antes e, para

além de Vianna, a valorização do elemento híbrido, enquanto constituinte da sociedade e da cultura brasileiras, encontra lugar no pensamento de Sílvio Romero (sua obra-prima é o livro História da literatura brasileira, de 1880), para quem “todo brasileiro é

um mestiço, quando não no sangue, nas idéias. Os operários desse fato inicial têm sido: o português, o negro, o índio, o meio físico e a imitação estrangeira” (ROMERO,

1902, vol I: 04, apud SKIDMORE, 2001, p. 73).

Para Sílvio Romero, o Brasil tinha “uma população mórbida, de vida curta, achacada e pesarosa em maior parte” (ROMERO, 1902, vol I: 46, apud SKIDMORE,

2001, p. 73). O motivo seria o uso intensivo e desregrado da escravidão, em que

O branco, o autor inconsciente de tanta desgraça, tirou o que pôde de vermelhos e negros e atirou-os fora como coisas inúteis. Foi sempre ajudado neste empenho pelo mestiço, seu filho e seu auxiliar, que acabará por suplantá-lo, tomando-lhe a cor e a preponderância (ROMERO, 1902, vol I: 55, apud SKIDMORE, 2001, p. 73).

Romero foi o primeiro a conferir grandeza ao elemento negro:

A raça africana tem tido no Brasil uma influência enorme, somente inferior à da raça européia; seu influxo penetrou em nossa vida íntima e por ele moldou-se em grande parte nossa psicologia popular (ROMERO, 1902, vol I: 89, apud SKIDMORE, 2001, p. 73)

E o primeiro a conceber nesse fato uma vantagem: “a introdução do elemento

negro não existente na maior parte das repúblicas espanholas, habilita-nos [...] a afastar-nos destas de um modo bem positivo”. (ROMERO, 1902, vol I: 53, apud

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35 Apesar do pioneirismo de Sílvio Romero, a visão positiva do mestiçamento apenas ganharia ressonância na sociedade brasileira (e de uma maneira avassaladora) com o lançamento da obra-prima de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, editada

pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, em 1933. Como perceberemos ao longo das demais seções, a característica do racialismo culturalista gilbertiano é a perspectiva ecológica, mediando a raça e a cultura. A base dessa nova civilização tropical seria o elemento negro e o elemento branco, para Freyre “co-colonizadores do Brasil”. Diferentemente dos demais racialismos, o culturalista é o único que inicialmente não reverbera a participação ativa do Estado, tampouco a criação de engenharias sociais que visem eliminar o fenômeno da mestiçagem e hibridização. Posteriormente, Gilberto Freyre, em suas teses sobre o lusotropicalismo, será constantemente acusado de apoiar governos ditatoriais, como a ditadura portuguesa de Salazar, em nome da defesa dos valores que teriam feito do português o povo europeu mais adaptado aos trópicos.

A grande mensagem da perspectiva culturalista é que a modernidade brasileira não seria propriamente “para inglês ver”, ou para envergonhar-se. O próprio Gilberto Freyre esclarecera, em Casa-Grande & Senzala, que teve de ser demovido dos preconceitos em relação ao Brasil, o que somente começa a ocorrer quando vai aos Estados Unidos da América, para estudar na Universidade de Baylor (cidade de Waco, Texas).

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36 do Brasil não seria tão pesarosa como pressupunha (PALLARES-BURKE, 2005). Por fim, compreendeu que o motivo da debilidade de mestiços, negros e índios era respaldada na exclusão social, na falta de nutrição adequada e na ausência de saneamento básico. Agradece a Roquette-Pinto, pelo esclarecimento do sanitarismo, e a Franz Boas pela dissolução das idéias raciais que ele próprio pressupunha, confessados pelo autor:

O professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até hoje maior impressão. (...) Creio que nenhum estudante russo, dos românticos, do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da Rússia do que eu pelos do Brasil na fase em que conheci Boas. E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação. Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos – descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole de Brooklyn. Deram-me a impressão de caricatura de homens. E veio-me à lembrança a frase de um livro de viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: “the fearfully mongrel aspect of most of the population”. A miscigenação resultava naquilo. (FREYRE, 2004a p.31).

A grande conclusão ao se ler Casa-Grande & Senzala era que, ao invés de não ser civilizado, o Brasil experimentara outra experiência civilizatória, cuja transigência entre os tipos humanos seria a grande contribuição brasileira ao mundo, tal como o racionalismo alemão para os germânicos, a democracia política dos britânicos, e a democracia econômica dos estadunidenses (FREYRE, 2000).

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37 A perspectiva gilbertiana era difusionista, onde é fundamental considerar a troca

de experiências civilizatórias para o desenvolvimento das culturas, daí a ênfase em buscar os ancestrais que formariam a psicologia brasileira – índio/português/negro. Outro autor difusionista é Sérgio Buarque de Holanda, em seu seminal Raízes do Brasil

(1936), defendendo a coloração do tipo aventureiro e a formação de um homem cordial, de cidades sinuosas como fosse a geografia. Mais adiante nos fixaremos nessa perspectiva. Ocorre que o sentido manifesto do racialismo é estruturado sucessivamente pelo naturalismo, evolucionismo, até chegar ao difusionismo, que culminará no fim do racismo científico brasileiro e na ideologia do branqueamento.

Retornando ao culturalismo, este encontraria, também, sustentação intelectual na pena de Darcy Ribeiro, autor, dentre outros, de O povo brasileiro. O culturalismo

influenciou a escola baiana de Antropologia Social, bem como estadunidenses que se

dedicaram ao estudo das relações raciais brasileiras, como Donald Pierson, que trouxe

esse termo da escola de Chicago (GUIMARÃES, 2005), ou Charles Wagley. Entusiastas da vertente culturalista, como Arthur Ramos, fizeram a fama da expressão

democracia racial, explicitando a experiência racial brasileira no âmbito da Liga das

Nações.

A atuação da diplomacia brasileira e o papel importante de Freyre na mesma Liga das Nações e, posteriormente, como delegado brasileiro na ONU, levaram a UNESCO a empreender, sob os escombros da Segunda Grande Guerra, o denominado Projeto UNESCO3, visando investigar experiências fortuitas de relações

raciais pelo mundo (MAIO, 1999). O Brasil voltava a ser o laboratório racial, como no século XIX. Investigava-se exemplos de convivência pacífica entre as raças.

3

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38 Ironicamente, tal projeto culminou num racialismo que fez e faz frente ao culturalista: o racialismo estrutural. Chegou-se à conclusão que, no Brasil, havia racismo – e este seria uma variável extremamente importante na explicação das dinâmicas sociais.

O racialismo estrutural concebe uma visão de totalidade, compreendendo sociedade, cultura, política e economia. Iniciou-se uma disputa pela primazia intelectual, opondo os autores do Projeto UNESCO a Gilberto Freyre.

No contexto da disputa do campo intelectual, Gilberto Freyre se manifestou: “É

preciso acabar com o furor da centralização que reduz o resto a simples paisagem. A cultura brasileira é constelação...” (FREYRE, 1949b apud DIMAS et all, 2006). Defendia

que as conclusões do Projeto UNESCO eram apenas uma parte da realidade.

De qualquer maneira, o racialismo estruturalista consolida-se com o texto clássico das ciências sociais brasileiras, de autoria de Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, defendendo a tese da metamorfose do escravo:

...a desagregação do regime de castas e estamental, associado à escravidão não repercutiu diretamente nas formas de acomodação racial desenvolvida no passado. Não só os mecanismos de dominação racial ficaram inatos. Mas a reorganização da sociedade não alterou, de maneira significativa, os padrões preestabelecidos de concentração racial da renda, do prestigio social e do poder. Em conseqüência, a liberdade conquistada pelo ''negro" não produziu dividendos econômicos, sociais e culturais (FERNANDES, 1978).

A suposta manutenção da dominação racial como outrora, mantendo os negros alheios à ordem social competitiva, baseia-se na idéia de que o ex-escravo,

(39)

39 O racialismo estruturalista é aprofundado algumas décadas mais tarde ao lograr uma concepção dual branco/negro, somando-se mestiços e negros em um único grupo estatístico. Esta metodologia foi criticada duramente por Bourdieu e Wacquant em um polêmico texto publicado em 2002, intitulado Sobre as artimanhas da razão imperialista.

Segundo esses autores, esta metodologia seria a manifestação de uma razão imperialista, calcada no racialismo estadunidense. As variáveis abordadas, para

evidenciar o racismo, passaram a ser os anos de escolaridade; o valor das remunerações em uma mesma profissão; e a proporção por cargos de chefia. Tal estratégia é abordada também em estudos sobre o sexismo.

Essa concepção analítica é consolidada pelos estudos de Carlos Hasembalg e Nelson do Valle Silva, seguindo padrões estadunidenses de investigação sobre esse fenômeno, pois se acredita que, uma vez findado o regime Jim Crow nos Estados

Unidos da América, o racismo passou por um processo de sutilização ao ponto de assimilar-se ao caso do Brasil.

Nessa perspectiva destacam-se Hasembalg, Valle Silva e Antonio Sérgio Alfredo Guimarães.

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40 O racialismo cristão se propôs a integrar, à religião católica, os negros e os indígenas. Unificou religiosidade, economia e estrutura familiar, concebendo um país equilibrado em um sistema de reciprocidade similar ao feudalismo europeu.

O racialismo evolucionista, culturalista e estrutural se propuseram a refletir sobre os traços, as heranças deixadas pelo passado. O evolucionismo se propunha a ser um corretivo aos supostos danos do mestiçamento. O racialismo culturalista investigava os traços de cultura deixados pelo regime do escravismo, enquanto o estrutural investiga a reprodução da exclusão social.

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41

(42)

42 Neste capítulo discorremos, de maneira breve, a respeito da biografia de Gilberto Freyre até a Revolução de 1930. Nosso objetivo não é uma síntese cronológica, mas analítica, em que se evidencia a imagem de um passado essencialmente bom, contido pelos exageros do racionalismo, do apelo gótico, representados na figura do pai de Gilberto Freyre. Também enfatizamos a decepção de Freyre com a religiosidade protestante, e a desmistificação d‟A outra América. Não deixaremos de abordar a

indecisão de Gilberto Freyre sobre qual rumo seguir em sua vida.

Gilberto de Mello Freyre, nascido no dia 15 de maço de 1900, recebera uma educação prodigiosa de seus pais, o Dr. Alfredo Freyre, professor da Faculdade de direito do Recife, e Dona Francisca de Mello Freyre, dona-de-casa, decendente de uma família tradicional pernambucana.

Segundo o próprio Freyre, Dr. Alfredo foi um homem de modos rígidos, “comia manga com garfo e faca”. Em contraponto, D. Francisca lhe contaria as mais doces

histórias de um passado glorioso – a época dos grandes latifúndios canavieiros. Viviam no subúrbio do Recife, na estrada dos Aflitos, esquina com a rua Amélia (LARRUETA, GIUCCI, 2007, p. 18). Foi, desde cedo, influenciado por esta dicotomia, representada na dureza do pai e na doçura da mãe.

O apego ao lugar, terra mater, chega a Gilberto por intermédio da mãe. E também a linguagem singular, os modismos, os falares locais dotados de uma plasticidade que inexistia no formalismo gramatical do professor Alfredo Freyre. O espaço da casa-grande é o espaço herdado primordialmente da mãe, decendente de senhores de engenho. (ibidem, p. 21).

As histórias antigas de engenho eram contadas por sua mãe, D. Francisquinha, e por uma jovem negra, chamada Isabel.

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43 alaranjados, roxos, vermelhos e ao meu paladar, gostoso como os de farinha de castanha, o de papa de maisena com canela, o de arroz doce, o de cabidela, o de peixe cozido com pirão. Sensualidade ao paladar. Tanto que, aos cinco anos, por motivos de doença, tive que seguir severa dieta por vários dias, ao perguntar-me minha mãe o que mais queria comer quando ficasse bom, ditei os quitutes de minha predileção com esta advertência: tudo isso comido com a mão. Com a própria mão. Ou amolegado por Isabel como ela sabia amolegar (FREYRE, Manuscrito, p. 22, apud Ibidem, p. 26).

Parte da infância foi vivida no engenho de São Severino, distante do sobrado burguês em que vivia com seus pais e seus irmãos no Recife. Mas, quando no estava na capital de Pernambuco reproduzia-se, em brincadeiras, parte da vida em engenho:

nosso brinquedo predileto, com Severino, nosso malungo e leva-pancadas de Ulysses, a fazer o papel de negro de bagaceira, seria de arremedar engenho [...] Ulysses inventou um carro-de-boi. Ficávamos horas brincando de engenho: Ulysses e eu como senhores e mestres, Severino Malungo como cambiteiro. Como trabalhador de eito. Classe e raça num brinquedo que, entretanto, tanto nos unia: sem fronteiras entre os que faziam „senhores‟ e os que representavam o eito, a bagaceira. (FREYRE, Manuscrito, p. 09, Ibidem, p. 29).

As experiências de infância se misturavam às histórias doces de D. Francisquinha e Isabel, confrontadas com a rigidez de Dr. Alfredo. Lembranças de um passado colonial, revividos em brincadeiras de crianças, muitas vezes reproduzindo a cisão senhor/escravo que, aos olhos de Freyre, também era uma comunhão – talvez porque não lhe coubessem o papel do escravo de eito. Estas brincadeiras, ao mesmo tempo que reproduziam a estratificação social do passado escravista, não deixavam de ser a descoberta da sexualidade:

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44 A infância de Freyre seria em muito tolhida pelo pai, que lhe forçava a um amadurecimento precoce. Gilberto Freyre é matriculado no Colégio Americano Batista aos sete anos, recebendo toda a educação básica até o dia em que, a bordo do vapor

Curvello, se despede do Recife para estudar em uma universidade nos Estados Unidos

da América. Alfredo Freyre havia sido diretor do colégio batista e, por esta razão, Freyre e Ulysses seriam admitidos como alunos bolsistas.

Gilberto Freyre aprende a ler e escrever apenas aos oito anos de idade, auxiliado por um professor inglês, mister Williams que inclusive, anos mais tarde,

faleceria de yellow fever (COUTINHO, 2005). Antes mesmo de ler e escrever na língua

de Camões, Freyre lia e escrevia na língua de Shakespeare. Aprendera francês por influência de sua mãe. A língua francesa, inclusive, era a coqueluche da burguesia desta época.

Essas e outras habilidades de Freyre eram acentuadas pelo fato de conviver com pessoas mais velhas,

muitas delas situadas em posição proeminente na sociedade recifense. Começa, desse modo, a constituir-se uma lenda “Gilberto Freyre”, que supera as realizações concretas do jovem estudante, uma auréola de gênio que este terá prazer em cultivar e que será alimentada constantemente na província (Ibidem, p. 55).

Uma das realizações precoces de Freyre e tão bem divulgada em suas biografias é a realização de sua primeira conferência, aos dezesseis anos, intitulada

Spencer e o problema da educação no Brasil. Profere-a na cidade de Paraíba, então

capital da Paraíba.

Aos dezessete anos, conhece o historiador Oliveira Lima. É sobre Lima o seu primeiro ensaio que analisa um autor, publicado no jornal O lábaro, no dia 26/11/1917.

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45 mesmo ano de 1917. Na ocasião, o historiador proferiria uma conferência, demonstrando a importância internacional dos Estados Unidos da América, especialmente no contexto da Primeira Guerra Mundial.

Na mesma ocasião, Freyre será o orador de sua turma. De sua lavra, o discurso “Adeus ao Collegio” defenderia o idealismo, voltando-se “contra o espírito de cálculo e egoísmo”. Para além desta defesa, visualiza o novo mundo que estava por se

descortinar, a partir da decadência da Europa:

Tremendo enigma a decifrar, na verdade, o dessa esfinge que caminha para nós – como a da lenda de Édipo no caminho que vai a Tebas – o desse amanhã terrível que se avizinha, o desse mundo social cavado nas entranhas do subsolo europeu, e a rebentar formidável, rude, novo, virgem. (FREYRE, 1941, p. 44 apud Ibidem, p. 61).

Ainda no seu Adeus ao collegio, faz uma afirmação com um ardor de

radicalidade:

Verdadeira praga de gafanhotos têm sido para o Brasil essas centenas de bacharéis filosofantes e palreiros, arvorados em dirigentes. A reação contra ela está se operando, entretanto, estupidamente. Dizem aos meninos que tratem só de ganhar dinheiro. Pensam que os money-makers são os homens de ação de que precisamos. Enganam-se. Os homens de ação dos Estados Unidos aos quais devemos procurar imitar são feitos de aptidão prática e de idealismo. Não são os money-makers. A grande República sabe opor um contrapeso aos desmandos que porventura lhe traga o perigo amarelo – que neste caso não é o Japão mas o áureo dólar – com as suas universidades, colégios e escolas. Estes seminários, não de simples bacharéis, nem só de padres ou pastrores evangélicos, mas de homens – de líderes de homens – impedem a bruta materialização da vida americana e conservam voçosa e pura a for do idealismo nativo. (FREYRE, 1941, p. 47, apud Ibidem, p. 62-3).

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46 Estudara na Baylor university, na pequena e provinciana cidade de Waco,

Texas, onde se transforma em professor de francês na universidade, ensinando alguns jovens alistados no serviço militar, por ocasião da Primeira Guerra Mundial.

Correspondia-se há muito com seu irmão Ulysses Pernambucano de Mello, que também havia sido enviado aos Estados Unidos da América para estudos universitários. Em uma destas cartas, o irmão Ulysses expõe o que considerava ser os problemas do Brasil, dentre eles, a questão das raças:

E hoje, só homens, e homens fortes physicamente, moralmente e religiosamente poderão levar o Brazil fora da lama de lôdo em que se acha presentemente. O nosso maior problema é o das raças. No meu pensar, se as cousas continuarem como vão agora no fim de 5 gerações, no maximo, seremos um paiz de mestiços; não de brancos e indio, nem de africano e branco. E como este, há centenas de problemas sociaes, políticos e religiosos. Fora a pretensão ridicula de querermos sempre imitar as nações europeias e os Estados Unidos, quando as nossas condições são inteiramente diferentes, e os nossos problemas resultam em causas mui diversas. Mas, o que precisamos é de homens; homens que sintam o pezo da responsabilidade sobre os próprios hombros de reformar o seu paiz. (Ulysses a Freyre, 22/5/1916, apud Ibidem, p. 67). A questão racial, presente no Brasil e nos Estados Unidos da América, neste segundo país de maneira mais violenta, seria relembrada por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala, anos mais tarde.

Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos – descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole de Brooklyn. Deram-me a impressão de caricatura de homens. E veio-me à lembrança a frase de um livro de viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: “the fearfully mongrel aspect of most of the population”. A miscigenação resultava naquilo. (FREYRE, 2004a p.31).

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47 se foram suínos bravos e no sul atam-nos nas árvores, meio-nus, para queimá-los aos gritos de alegria” (FREYRE, 1922, 370-1 apud PALLARES-BURKE, 2005, p. 318).

Na Baylor University, Freyre se forma em Letras, cursando algumas disciplinas ligadas às ciências sociais. Baylor, considerada a “Vaticano batista”, atraía Gilberto

Freyre por todo o entusiasmo que nutria à religiosidade protestante, tendo como um de seus “heróis” o missionário David Livingstone (1813-1873). Entretanto, segundo Maria Lucia Garcia Pallares-Burke, Freyre logo se desencantaria, percebendo Livingstone uma exceção, “pois a regra entre os anglo-saxões era ser „Bible maniac‟. A partir de então, nas suas próprias palavras, seu „enthusiasm for the Anglo-saxon form of Christianity – the Protestant one rather than the Anglo-Catolic – was gone” (PALLARES-BURKE, 2005, p. 56).

Este desencantamento com o protestantismo o leva a concluir que, em alguns aspectos, a “Latin Catholic civilization was, perhaps, superior to the Anglo-Saxon Protestant one” (Ibidem, p. 57).

Ainda na Baylor University, Freyre conheceria o professor Andrew Armstrong.

Como Oliveira Lima no Recife, Armstrong foi um entusiasta de Gilberto Freyre, abrindo-lhe os caminhos para o mundo da literatura anglo-saxã. Assim,

Das 22 disciplinas cursadas por Freyre em Baylor, nove eram do departamento de Língua e Literatura Inglesa dirigido pelo dr. Armstrong, muitas delas ministradas pessoalmente por ele próprio: Composição e Retórica, Prosa e Composição, Dante e Literatura Épica, Desenvolvimento do Romance Inglês, Literatura Inglesa em Viagem, Literatura Americana, Literatura Inglesa da Restauração ao Século XVIII, Shakespeare e Inglês antigo. (Ibidem, p. 62). Gilberto Freyre em sua juventude viveu o dilema sobre qual profissão seguir, se

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48 entrar para o serviço diplomático, a exemplo do mesmo Oliveira Lima; entrar no „negócio rendoso‟ de criar porcos; e até ingressar na política.

Quanto a esta última opção, a carreira política, Freyre chega a ser acessor do presidente de Pernambuco, Estácio Coimbra, mas já em 1926. Contra esta experiência, inclusive, Oliveira Lima chega a se lamentar: “Gilberto parece ter pulado

definitivamente para a arena política. Acredito que infelizmente terei que estudar o nordeste sem a ajuda desse messias pernambucano [Estácio Coimbra] e de Gilberto” (Ibidem, p. 253).

Após concluir seus estudos na Baylor University, Gilberto Freyre é matriculado

em um curso de pós-graduação, um mestrado, na prestigiada Columbia University.

Segundo a professora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke,

Uma vez tendo decidido o tema [de seus estudos de mestrado] com a ajuda de Oliveira Lima e seu orientador, dr. Shepherd, Freyre planejara publicar uma versão em inglês intitulada Social Aspects of Brazil (1850) e outra em português, „sob o título que me parece insinuante‟, como diz, de „Brasil dos nossos avós‟ (Ibidem, p. 253).

A temática de seus estudos de mestrado mostrou-se demasiadamente ampla, demandando um número enorme de pesquisa bibliográfica e documental. Percebendo o erro desta escolha, define seu próprio trabalho, ao amigo Oliveira Lima, como “meu estudinho”, um “preliminary enquiry”, mais modesto. Em abril de 1922, anuncia a Lima que “é possível que algum dia este seu amigo apareça com dois volumes debaixo do

braço – uma História social da Família Brasileira (durante os dois impérios)” (Ibidem, p. 254).

Sua tese de mestrado, Social life in Brazil in the middle of 19th century é considerada, por ele mesmo, como apenas um “esqueleto” de um livro

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49 não foi acompanhada até o final pelo dr. Shepherd, que havia sido mandado para a Europa. Em seu lugar, assumira o professor Clarence Haring, que recomendara o trabalho de Freyre para a publicação (Idem).

Gilberto Freyre regressa ao Brasil em 1923, mas não publicaria sua tese de mestrado em livro, contrariando a recomendação de mr. Haring. Levava em conta a apreciação de outro mestre seu, mr. Armstrong. Advertido pelo próprio Freyre sobre o conteúdo do trabalho, Armstrong o aconselhou:

Você é muito jovem pra dizer coisas tão atrozes... Espere mais ou menos cinco ou dez anos. Você está colocado na fila de promoção pelos brasileiros, e não deveria atarpalhar sua própria chance dizendo coisas que as pessoas não receberão muito bem. Espero sinceramente que leve isso em consideração.

O professor Armstrong temia que Gilberto Freyre botasse tudo a perder, conhecendo a personalidade do jovem Freyre, testemunhando algumas polêmicas oriundas das críticas literárias escritas por Freyre a jornais como o Diário de Pernambuco (mandando artigos regulares, Da outra America) e A Província. Algumas

de suas críticas o aproximaram de personalidades como Amy Lowell (PALLARES-BURKE, 2005), mas outras o afastariam de personalidades como Rui Barbosa (LARRUETA, GIUCCI, 2007).

O Gilberto Freyre jovem, aos 21 anos, se voltaria contra o estilo literário deste importante intelectual brasileiro. Para Freyre, Barbosa não era o maior homem do Brasil. Em um artigo publicado no Diário de Pernambuco (11/09/1921), compara os estilos de Rui Barbosa e de Carlos Laet:

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50 Evidentemente, ao utilizar o adjetivo de “xaroposo” para definir Rui Barbosa,

Freyre atraiu um enxame furioso. Horácio Saldanha, em artigo publicado no jornal A província, em 18/09/1921, questiona: “que importa ao sr. Rui Barbosa – grande,

serena, maravilhosa árvore do Brasil, árvore única – a pedra que lhe atira a mão desconhecida do sr. Gilberto Freyre? Que lhe importa?” (Ibidem, p. 225).

Ulysses Pernambucano de Mello, reporta ao seu irmão, Gilberto Freyre, a repercussão do uso do adjetivo “xaroposo”. Ulysses critica “os taes „patristas‟”, dizendo

que, para estes, “defender, respeitar, adorar, lamber a bunda de Rui é ser patriota” (Idem).

Já em 1922, o assunto volta a ser discutido, a partir de um artigo de Aníbal Fernandes no Diário de Pernambuco (29/08/1922). Os artigos contra Freyre voltam a se multiplicar. Um poema “Ao Freyre com Ypsilon”, Austro Costa pergunta: “O sr.

Gilberto Freyre / Por quanto me vende o alqueire / de empáfia e de ilustração?” O título

de outro artigo parece ser bem sugestivo: “Gilberto Freyre, fruto bichado da literatura brasílio-ianque”.

Se demonstrou a ousadia de adjetivar Rui Barbosa de “xaroposo”, agora Freyre era chamado de “garoposo”, uma “garapada de mel de engenho” (O Fiau, 07/05/1923 apud Ibidem, p. 226).

Gilberto Freyre nos primeiros anos da década de 1920, como podemos perceber, era um jovem que exibia “maus modos em locais públicos, falando mal de seus „doutores‟, de seus acadêmicos e de seus „mestres acacianos‟”(RABELLO, 1979,

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51 Segundo Larrueta e Giucci (ibidem, p. 230 e 231):

Houve quem desenhasse uma imagem de Freyre como perseguidor do escândalo, destruidor sádico dos ídolos populares e dos consagrados pelas elites. Um temperamento com tendência para a teatralidade, disposto a consolidar sua fama a qualquer custo. [...] Solitário em seu quarto, o jovem intelectual [Gilberto Freyre] sente-se incompreendido. [...] Sem dinheiro para viajar ou comprar livros, com surtos de insônia, criticado por muitos e defendido por alguns, a constatação das dificuldades o amargurava, embora fizesse esforços para manter o bom humor. E, por sentir-se incompreendido, às vezes caía em depressão.

Embora Freyre fosse visto como um jovem talentoso, combatia-se o “gilbertianismo”, compreendendo-o como pedante, contra os “doutores” do Recife. Restava-lhe a amizade com José Lins do Rêgo, especialmente no projeto de valorização do passado e do regionalismo enquanto perspectiva poética e intelectual. Existe, inclusive, muita controvérsia sobre o Manifesto regionalista de 1926,

especialmente quanto a sua real datação. De qualquer maneira, o regionalismo era visto em uma perspectiva romântica, presente claramente na produção de José Lins do Rêgo. Também contava com Lins do Rêgo para fazer chacota dos modos rebuscados da elite recifense.

O grande projeto intelectual de Gilberto Freyre era tematizar a história da família brasileira, evidenciando o amadurecimento precoce das crianças brasileiras, a exemplo do que acreditava ter acontecido com ele próprio, por força de seu pai, dr. Alfredo Freyre.

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52 329). Durante o governo de Estácio Coimbra, a reforma “Carneiro Leão” inseriu a sociologia no ensino normal. “Como parte da reforma do ensino fundou-se a cátedra de sociologia da Escola Normal de Pernambuco, que Estácio Coimbra ofereceu a Gilberto Freyre [...] nomeado diretor da cátedra em 04 de fevereiro de 1929”.

Estácio Coimbra foi deposto de seu cargo logo após a deflagração do golpe de 1930, cassando o mandato do então presidente da República, Washington Luís, assumindo Getúlio Dornelles Vargas. Freyre segue Coimbra ao exílio, em Portugal.

Este momento foi apontado por Gilberto Freyre como o pontapé para o livro

Casa-Grande & Senzala, fato lembrado no prefácio à primeira edição, em 1933: “Em

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54 Conforme temos visto, sobretudo no capítulo anterior, Gilberto Freyre nutria um fascínio pelo passado, que a ele chegava, na infância, através de Isabel e d. Francisquinha. Ainda em plena Columbia University, Freyre almejara construir um livro cujo título seria O Brasil de nossos avós.

Após um hiato, entre 1922 e 1931, Gilberto Freyre inicia um projeto intelectual de fôlego, já sendo um conhecido intelectual e político nordestino, organizador do Livro do Nordeste, lançado em 1925, por ocasião dos cem anos do Diário de Pernambuco,

jornal que publicava, recorrentemente, artigos seus.

Em 1933, lança Casa-Grande & Senzala, editado pela Maia & Schimidt Editora,

escrito no Rio de Janeiro.

Segundo a historiadora Maria Lucia Garcia Pallares-Burke (2005, p. 261), Freyre, ainda no exílio em Portugal, enviara uma carta a Manuel Bandeira, pedindo-lhe auxílio em um “projeto secreto”, adiado desde 1922 “pela falta absoluta de entusiasmo”.

Tal “projeto” era o estudo sobre a meninice no Brasil em meados do século XIX.

Gilberto Freyre jamais escreveria sobre a Child life in Brazil.

Àquela altura, Gilberto Freyre já estaria mais propenso a rever algumas declarações embaraçosas que estavam presentes em sua tese de mestrado, Vida Social no Brasil em meados do século XIX. Declarações estas que seriam eliminadas

da tradução em português, lançada apenas nos anos 1950, em que pese Freyre ter anunciado a correção de alguns “pormenores de superfície” (PALLARES-BURKE, 2005, p. 267).

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