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Os cocos: uma manifestação cultural em três momentos do século XX.

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Academic year: 2017

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A brincadeira do coco:

dança e poesia afro-brasileira na Paraíba

ÃOMUITOSOSDANÇADORES e cantadores de coco na Paraíba, poden-do ser encontrapoden-dos em diferentes localidades da capital, poden-do litoral e do interior do estado (1). Dançados e cantados, os cocos não con-tam com estudos recentes rigorosos e sistemáticos que permicon-tam analisar sua diversidade. Por causa das diferenças ocultadas sob essa designação, parece mais apropriado atribuir-lhes um tratamento plural, equivalendo a dizer que sob o mesmo nome podem se revelar mais do que múltiplas formas de uma única manifestação cultural; podem se apresentar diferentes práticas poéticas de mais de um sistema literário.

Mário de Andrade em “A literatura dos cocos”, estudo publicado em

Os cocos, refere-se à dificuldade de precisão mediante nomenclatura:

“Antes de mais nada convém notar que como todas as nossas formas populares de conjunto das artes do tempo, isto é cantos orquéstricos em que a música, a poesia e a dança vivem intimamente ligadas, o coco anda por aí dando nome pra muita coisa distinta. Pelo emprego popular da palavra é meio difícil a gente saber o que é coco bem. O mesmo se dá com ‘moda’, ‘samba’, ‘maxixe’, ‘tango’, ‘catira’ ou ‘cateretê’, ‘martelo’, ‘embolada’ e outras. (...)

Coco também é uma palavra vaga assim, e mais ou menos chega a se confundir com toada e moda, isto é, designa um canto de caráter extra-urbano. Pelo menos me afirmou um dos meus colaboradores que muita toada é chamada de coco” (2).

A poética que se desenvolve atualmente na dança ou na brincadeira do coco (conforme a denominação dos participantes), no que se refere ao canto, a esquemas métricos, rímicos e a aspectos temáticos, tem se

revela-Os cocos: uma manifestação

cultural em três momentos

do século

XX

M

ARIA

I

GNEZ

N

OVAIS

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YALA

(2)

do distinta daquela encontrada nos cocos cantados por emboladores ou coquistas, isto é, duplas de repentistas que se apresentam diante de um público de ouvintes. Neste último caso, em que os cocos aparecem disso-ciados da dança, sendo cantados em desafio, os emboladores improvisam seus versos, cada qual utilizando um instrumento de percussão (pandeiro e, hoje mais raramente, ganzá) para marcar o ritmo, que faz fluir a poesia. O confronto se dá de modo a cada coquista procurar ridicularizar mais seu companheiro por meio de comparações grotescas, provocando o riso da platéia. A maneira como os cantadores de coco se dirigem ao público nem sempre é respeitosa ou formal. Basta não receberem o dinheiro no chapéu ou obterem uma quantia pequena daqueles que compõem sua platéia, para a ridicularização também se voltar contra o público.

Já nos cocos que motivam e acompanham indissociavelmente a dan-ça, a poesia não obedece aos mesmos cânones de composição. Não estão alicerçados na disputa que granjeia a preferência do público ora para um, ora para outro poeta repentista. A ironia e o grotesco tal qual se desenvol-vem nos cocos de embolada apenas cantados ao acompanhamento de pan-deiro não são caracterizadores dos cocos cantados durante a dança. Na brincadeira do coco há ironia, há ambigüidade, há momentos de crítica social, mas a construção dos versos e o sentido da poesia é diferente. A poesia, neste caso, configura-se como um dentre vários elementos indis-pensáveis para o canto e a dança. Nos cocos dançados predomina o coleti-vo: para que haja a dança é preciso gente para (a)tirar os cocos e para responder dentro da roda de dançadores, gente que toque os instrumen-tos, gente que saiba os passos que caracterizam a dança e esteja disposta a entrar na roda.

O interesse atual pelo estudo dos cocos na Paraíba surgiu devido às dificuldades para sua caracterização. As diferenças de contexto, a natureza dos cocos (dança coletiva, canção ou canto em desafio), as várias formas poéticas e a diversidade de nomes (coco praieiro, coco de roda, coco de embolada etc.), às vezes levam a supor que se trata de mais de uma mani-festação cultural sob a mesma denominação.

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pelos dançadores. Esses elementos aparecem também no batuque, no sam-ba-lenço paulista, no jongo, no samba de partido alto, no samba de roda da Bahia.

Ao iniciarmos a pesquisa de campo, tínhamos como objetivos princi-pais reunir depoimentos de coquistas e dançadores, registros da dança e do canto em desafio em seus contextos de produção para, a partir da experiên-cia e das maneiras de avaliar daqueles que estão intimamente relacionados com os cocos, obter informações fundamentais para um conhecimento mais abrangente da situação atual dessa manifestação de cultura afro-brasileira no Nordeste. Tais objetivos continuam válidos, pois as informações mais recentes encontradas em livros pouco ou nada nos auxiliam em nossa bus-ca. Já os cantadores e dançadores, ao explicarem em que consiste a dança ou o canto, têm possibilitado reunir esclarecimentos raramente encontra-dos nas publicações sobre os cocos.

Os dados parciais da pesquisa trazem elementos para uma reflexão sobre as condições da dança atualmente, permitindo-nos verificar:

• se há desagregação dos grupos de dançadores, a ponto de reduzir o coco a fragmento de cultura;

• se o coco é caracterizado como “dança de negro”, qualificação que, dependendo do contexto no qual surge, pode ter significados anta-gônicos: ora como rejeição, ora como afirmação de uma identidade cultural. Associada ao último aspecto, tem se imposto a análise dos diferentes tipos de preconceito (étnico, cultural, social etc.) e a veri-ficação das situações e condições que colocam os cocos em relação com outros tipos de dança e de poesia populares e de outras minorias na Paraíba.

Mário de Andrade e os cocos

A documentação sobre os cocos reunida por Mário de Andrade no Nordeste entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, em contato direto com os cantadores, complementada pela colaboração de amigos e alunos, antes e depois da viagem, constitui parte significativa de um livro sobre a música popular no Nordeste, Na pancada do ganzá, que ficou inacabado.

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“(...) Nos 245 Cocos reunidos neste livro, a expressão ‘na pancada do ganzá’, definidora da função do instrumento como apoio não só do ritmo, mas da invenção músico-poética em seu conjunto, aparece exclusivamente, e sempre heptassílabo completo, nos Cocos de Chico Antônio, que, se não for o dono dela, é sem dúvida a fonte do nome escolhido (...)” (3).

Lê-se no início da “Introdução” ao inacabado Na pancada do ganzá:

“Este não é um livro de ciência, evidentemente, é um livro de amor. Estarão sempre muito enganados os que vierem buscar nele a sistemática dos fatos musicais e poéticos do Nordeste. (...)

O que vale aqui é a documentação que o povo do Nordeste me for-neceu. Procurei recolher esses documentos, da maneira, essa sim, mais cui-dadosa, mais científica. Segui, na colheita folclórica, todos os conselhos e processos indicados pelos folcloristas bons. Ouvi o povo, aceitei o povo, não colaborei com o povo enquanto ele se revelava. De resto, trabalhos anteriores já tinham me dado certa prática desse pesadíssimo esforço de recolhedor (...).

É certo que, depois de realizada a colheita, ela dirigiu em grande parte o caminho das minhas leituras. E destas, surgiram as notas que guar-necem o livro. Mas porém com essas críticas, exemplos, variantes, ligações, não pretendi fazer obra de etnógrafo, nem mesmo de folclorista, que isso não sou: pretendi foi assuntar, atocaiar com mais garantias a namorada chegando. Se acaso algumas constâncias me interessaram mais, se alguma nova eu terei fixado, foi sempre por essa precisão que tem o amante verda-deiro, de conhecer a quem ama. Não tanto pra compreender o objeto amado em si mesmo, como pra se identificar com ele e milhormente poder servi-lo e gozar” (4).

Embora não se considere pesquisador, Mário de Andrade, neste tex-to citado como em outros escritex-tos, sempre explicita o seu métex-todo de tra-balho, reconhecendo em seu estudo procedimentos científicos, sempre valorizados por ele.

Pode-se afirmar que o material reunido por Mário de Andrade é, sem dúvida, o primeiro registro sobre os cocos feito com o rigor do método científico, mas conservando marcas da paixão, do carinho e das sensações do escritor, nunca ocultadas quando se tratava da cultura popular brasilei-ra. Como ressalta Oneyda Alvarenga,

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obser-vações sobre os informantes e a qualidade da colaboração deles; grafou melodias e textos com honestidade paciente, controlando seu trabalho por diversos meios e obtendo assim a maior exatidão atingível fora do registro fonográfico, que aliás, nos idos de 1928, não era recurso ao alcance dos nossos estudiosos e nem mesmo dos de outros países. Realmente, o fruto das pesquisas de Mário de Andrade constitui até hoje o maior e melhor acervo de música folclórica brasileira registrada por um pesquisador sozinho

e por grafia musical direta” (5).

O registro dos cocos, iniciado por Mário de Andrade em 1928, ga-nhou continuidade dez anos depois com a Missão de Pesquisas Folclóricas

do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, expedição inici-ada em janeiro de 1938 e concluída em julho do mesmo ano. Os quatro pesquisadores da Missão – Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antonio Ladeira – foram escolhidos por Mário de Andrade (na época, diretor do Departamento de Cultura e chefe da Divisão de Expansão Cul-tural) para fazer uma ampla documentação sobre danças e poética popular no Nordeste e Norte do país.

A equipe, altamente qualificada, recebeu orientação metodológica de Mário de Andrade; de Dina Dreyfus – então Dina Lévi-Strauss –, que havia ministrado o Curso de Etnografia(6) no Departamento de Cultura, ensinando, entre outras questões, a utilizar a fotografia, o filme e o fonógrafo como complemento importante às observações diretas em campo; além de instruções minuciosas de Oneyda Alvarenga, diretora da Discoteca Pública Municipal, para a organização do material coletado.

Munidos de aparelhagem de grande qualidade técnica e de formação segura para um desempenho com rigor científico, os integrantes da Missão

visitaram mais de 30 localidades em pelo menos 20 cidades na Paraíba, onde permaneceram mais de dois meses: entre 23 de março (quando che-gam três dos integrantes da Missão a João Pessoa) e 30 de maio de 1938. Além da Paraíba, visitaram algumas cidades de outros estados do Nordeste e do Norte: Pernambuco, Piauí, Ceará, Maranhão e Pará, reunindo uma quantidade fantástica de registros. Dentre as manifestações documentadas na Paraíba por meio de gravação de discos, fotos, filmes e anotações em cadernetas, estão muitos cocos encontrados em diferentes locais: João Pes-soa, Patos, Pombal, Sousa, Itabaiana, Areia, São Francisco e Baía da Traição.

Álvaro Carlini, em Cante lá que gravam cá: Mário de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938,informa:

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gravadas distribuídas em aproximadamente 100 discos de várias dimen-sões; mais de 500 fotografias; cerca de 10 filmes cinematográficos; uma grande quantidade de objetos de fatura popular (ex-votos demadeira, ins-trumentos musicais, vestimentas características, entre outros), além de uma infinidade de anotações escritas pelos componentes da equipe” (7).

O conhecimento do material reunido por Mário de Andrade e pelos pesquisadores da Missão de Pesquisas Folclóricas foi possível graças ao em-penho de Oneyda Alvarenga, que dedicou mais de 20 anos de sua vida à organização dos inéditos de Mário de Andrade e do acervo da Missão e à divulgação de parte do que foi documentado. O acesso a essa documenta-ção, iniciado há cinco anos, possibilitou-me a reunião de dados que, asso-ciados a informações e estudos de Mário de Andrade organizados por Oneyda Alvarenga em Os cocos e ao vasto acervo constituído por meio de pesquisa de campo realizada pela equipe sob minha coordenação, permi-tem bases seguras para o estudo comparativo dessa manifestação de músi-ca, dança e poesia por registros feitos na Paraíba em diferentes momentos do século XX.

No que se refere aos cocos colhidos pela Missão na Paraíba, pouca coisa foi divulgada. Os estudos de Mário de Andrade, a documentação reunida por ele e os registros feitos pela Missão de Pesquisas Folclóricas cons-tituem, até o momento, a maior amostragem a que tive acesso sobre os cocos, só superada quantitativamente pelos registros efetuados por nossa equipe de pesquisadores.

O viés regionalista e outras formas de estudo

Fora a documentação de Mário de Andrade e da Missão de Pesquisas Folclóricas, o único livro dedicado ao coco na Paraíba é o de Altimar de Alencar Pimentel, O coco praieiro (8). Embora o título proponha um estu-do mais abrangente, o autor limitou-se a estudar a dança encontrada no município de Cabedelo, onde desenvolveu muitos registros e estudos so-bre as diferentes manifestações culturais populares ali encontradas. A pu-blicação fornece informações gerais sobre a dança do coco com base em parte da bibliografia disponível sobre o assunto e uma antologia de versos colhidos em Cabedelo, complementada por dados sobre componentes de grupos da dança que forneceram os versos reunidos no livro.

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Os dados mais recentes de que tivemos notícia consistem em fichas de poucos grupos de dançadores de coco, encontradas dentre várias outras de diferentes manifestações de cultura popular no estado. Constam de le-vantamento desenvolvido na década de 70 sob a orientação de professores vinculados ao NUPPO (Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular) da Universidade Federal da Paraíba.

Além das fichas, algumas informações resumidas aparecem em livros sobre a cultura popular da Paraíba, como a Cartilha do folclore paraibano: escolas do 2º grau, organizada por José Nilton da Silva (9), Paraíba em ritmo de folclore; danças e cantigas, de Dinalva França (10) e Variações do folclore na Paraíba, de Reinaldo de Oliveira Sobrinho (11), mas em ne-nhum deles há elementos que permitam captar a situação atual dos cocos.

Autores que estudam os cocos, dançados ou apenas cantados, encon-trados em diferentes estados do Nordeste, entre eles José Aloísio Vilela, Abelardo Duarte, José Tenório Rocha e Altimar de Alencar Pimentel, apre-sentam um ponto comum no que se refere à origem dessa manifestação da cultura popular. Todos são unânimes em afirmar que o coco possui origem alagoana, tendo daí se difundido por toda a região, sofrendo aqui e ali determinadas modificações quanto ao modo de apresentação, seja com re-lação à dança ou ao canto. Suas teses parecem-nos pouco convincentes, dada a ausência de rigor na explicitação das fontes, sejam elas escritas ou orais, resultantes de investigação bibliográfica ou de observação direta.

Os trabalhos refletem uma forte tendência de abordagem calcada em especulações que mais parecem preocupadas em encontrar uma origem dentro da região (no caso, Alagoas), o que demonstra um viés regionalista, em alguns casos com matizes ufanistas que muito guardam de provinciano e ideológico. Admitindo a importância da influência negra recebida pelo coco, José Aloísio Vilela, em O coco de Alagoas, inicialmente apresentado em 1951 como Memória ao I Congresso Brasileiro de Folclore no Rio de Janeiro e depois publicado em livro, também atesta de forma implícita a origem alagoana dessa manifestação popular de canto e dança, à medida em que a relaciona com as práticas culturais dos negros do Quilombo de Palmares, hoje região inserida no estado de Alagoas. Deve-se lembrar, no entanto, que na época da existência do Quilombo de Palmares a divisão territorial era outra: não havia o estado de Alagoas, mas a capitania de Pernambuco, de grande ex-tensão.

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“Depois de inúmeras investigações, recolhi recentemente em Viçosa (Alagoas) uma tradição que vem firmar definitivamente a origem negra do coco.

Diz esta tradição de que tomei conhecimento através de um velho proprietário do Distrito de Chã Preta, que o coco foi inventado pelos ne-gros dos Palmares.

(...) os negros sentavam-se no chão, colocavam o duro coco seco sobre uma pedra e batiam com outra até que ele rachasse.

A grande quantidade de negros empenhada neste serviço provocava nas pedras uma zuada (sic) enorme que se misturava com os seus costumei-ros alaridos.

E em meio a estas barulhentas reuniões, alguns começavam a cantar, outros levantavam-se e davam início a um forte sapateado e os demais uniformizavam a pancada das pedras para acompanhar aquele estranho ritmo que surgia.

E os negros renovavam sempre a brincadeira e a coisa virou costume, pois a quebra do coco terminava sempre em cantiga e em dança” (12).

Como é possível constatar pela transcrição do trecho, o autor não relaciona a figura do “velho proprietário” com o fato por ele narrado, nem sequer informa se essa tentativa de caracterizar o coco como atividade vin-culada ao trabalho (que se configura como canto e dança de trabalho, mais parecendo uma justificativa em forma de lenda) foi encontrada por inter-médio desse único informante ou reiterada por outros.

Resumindo, observa-se que Vilela, assim como os demais autores citados, não se preocupa em adotar um método que permita a continuida-de continuida-de estudo e o acompanhamento da história da manifestação cultural, verificando as suas possíveis transformações.

Apesar das restrições aqui apontadas, sobressai, como ponto positivo nos trabalhos referidos, o interesse revelado pelos autores em apresentar substancial repertório de cocos, embora incorrendo nas mesmas falhas no que concerne à explicitação das fontes.

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citado Os cocos, Mário de Andrade preocupa-se em ser fiel ao descrever o material por ele colhido, precisando a maneira como teve acesso aos textos, lugares e pessoas envolvidos.

A manutenção dos nomes dos artistas populares – bem como dos dados sobre eles (local de origem, onde vivem, formas de trabalho etc.) – nos trabalhos escritos ou nas anotações de campo permite que, em mo-mentos futuros, novos pesquisadores venham a retomar os caminhos aber-tos por outros anteriormente. Foi o que aconteceu com Chico Antônio que, em 1979, três anos após a publicação de O turista aprendiz, é redescoberto por Deífilo Gurgel, pesquisador do Rio Grande do Norte. A partir de en-tão, vários estudiosos procuraram o cantador, já idoso, para entrevistas e nova documentação (gravações em disco, em programas de televisão, vídeos, filmes). Exemplo disso são o número de Estrada Nova (14), dedicado ao Projeto “Chico Antônio e seu meio” e a “Entrevista com Chico Antônio” de Raimunda de Brito Batista, de 1980, que integra sua dissertação de mestrado intitulada Vida do cantador: o texto e a pesquisa de Mário de Andrade, defendida em 1985 e posteriormente publicada em livro (15).

A situação atual dos cocos na Paraíba

Ao iniciarmos a pesquisa em maio de 1992, tínhamos referências de grupos de dançadores de coco em três bairros de João Pessoa e em três municípios: Cabedelo, Lucena e Baía da Traição. Em poucos meses multi-plicavam-se as informações de datas e locais onde haveria a dança ou a apresentação dos coquistas.

Extrapolamos os limites iniciais e conseguimos, dividindo os inte-grantes da equipe em vários grupos, registrar depoimentos e cocos em Santa Luzia, Pilar, Utinga (município de Mulungu), Guarabira, Vertente e Caiana dos Crioulos (município de Alagoa Grande), Várzea Nova e Forte Velho (município de Santa Rita), bairros de Monte Castelo e Camalaú, Praia do Jacaré e Praia do Poço (município de Cabedelo), Fagundes (mu-nicípio de Lucena), Jacaré de São Domingos (próximo à Baia da Traição, município de Rio Tinto), Praia de Jacumã e Gurugi (município do Con-de), além de diversos locais do município de João Pessoa (Torre, Bairro dos Novais, Alto do Céu, Porto de João Tota e Praia da Penha). Dispomos de informações sobre grupos de dança e cantadores de coco em muitas cidades, ainda não contatados.

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atiradores de coco, como são denominados os responsáveis pelos versos durante a dança, além de mais de dez horas de registros em vídeo, a partir dos quais foi produzido recentemente na Universidade Federal da Paraíba

A brincadeira dos cocos, vídeo de 18 minutos dirigido por Elisa Maria Cabral, uma realização do Projeto Integrado Literatura e memória cultural: fontes para o estudo da oralidade(16).

As informações disponíveis, fruto da pesquisa de campo e da organi-zação dos dados, indicam a existência de cocos – dançados ou apenas canta-dos – em muitas cidades da Paraíba. Há diferenças marcantes entre a poéti-ca dos cocos apenas poéti-cantados e a daqueles encontrados na dança. A pesqui-sa tem permitido verificar as variações dos cocos pelo estudo dos contextos em que são encontrados, por depoimentos de dançadores e cantadores, e por registros sonoros e em vídeo, cotejados com dados disponíveis na pe-quena bibliografia sobre a dança.

A brincadeira do coco tem sido encontrada no espaço urbano da capital e de cidades do interior da Paraíba, na área litorânea de maior ou menor densidade populacional em que é grande a concentração de pesca-dores e trabalhapesca-dores rurais de usinas ou de plantações de coco, na zona rural de cidades do interior, em assentamentos de trabalhadores rurais, em comunidades negras isoladas e em aldeias indígenas. Em algumas localida-des apenas existe regularmente na memória de cantadores ou ex-dançadores, como presenciamos na Praia da Penha, município de João Pessoa.

Não há calendário fixo para a ocorrência da dança, mas, quando ocorre, é em ambiente festivo, como os dias dos santos de junho (São João e São Pedro), julho (Sant’Ana), janeiro (Santos Reis), dos santos padroeiros de cidades e povoados, em fins de semana, à noite, nas horas de folga do trabalho, e em eventos políticos, a convite de candidatos que se servem das manifestações populares como atrativo para seus interesses eleitoreiros.

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verso da tradição em situações presentes, fazendo o já conhecido surgir como algo novo porque se encaixa em uma ocorrência nova, o que lhe atribui um novo sentido.

Vários cantadores associam a dança a um tempo longínquo; alguns mencionam o tempo da escravidão no qual se alternam dor, sofrimento com castigos e trabalho forçado, e a alegria das danças.

Seu Manuel Ventinha, mestre cantador do bairro da Torre, João Pes-soa (PB), vincula a dança a um tempo e local distantes, imprecisos e depois tenta estabelecer um primeiro lugar para o coco no Brasil:

“(...) Esse coco de roda, exatamente, primeiramente isso veio da ban-da ban-da África, né? Isso é negócio de africano, né? É por isso que eu digo, primeiro Estado onde foi inventado o coco de roda foi a Bahia, porque a Bahia foi lugar de mais escravos. Acho que sim, no início do Brasil, acho que foi, né?” (17).

Sua explicação não pára aí. Tomando como exemplo os passos miudinhos que caracterizam sua maneira própria de dançar, comenta:

“Eles pegavam um jabu com couro de gato, de maracajá e batendo e dançando dentro da senzala, né? Com aquele fogo feito na senzala e é com que eles se divertiam (...) E não podiam dançar com uma corrente no pé, não é, passado o cadeado o camarada não podia se largar pra dançar. Eles tinham somente que fazer aquele passo.”

Já Dona Lenira, cantadora e dançadora do coco de Gurugi, municí-pio do Conde (PB), moradora em um assentamento rural aguardando o título de posse do pedaço de chão em que seu avô, seu pai, seus tios e irmãos trabalharam, militante na luta pela terra onde sempre trabalhou e viveu duramente, também dá sua explicação:

“O coco muitas vezes é um recado. Era um recado, né, que... antiga-mente, eles não podiam... eles como escravos eles não podiam desabafar com o senhor e eles desabafavam em lamentos. De noite, em noites, eles ali brincando e eles desabafavam.”

Muitos dos cocos por ela cantados guardam a lembrança de confron-tos e dificuldades:

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Samba negro branco não vem cá se vier

pau há de levar

Negro rachar os pés de tanto sapatear de dia tá no açoite de noite pra batucar

Dona Lenira, ao refletir sobre os cocos, os associa à sua vida e à de sua comunidade, argumentando:

“Quer dizer que é a luta... é a mesma luta que continua hoje... no dia-a-dia. A gente de dia tá na luta e de noite forma um coco e vamos batucar, vamos dançar, vamos se divertir, né?”

E com orgulho afirma:

“(...) É uma brincadeira que vem dos negros, escravos, somos des-cendentes desse povo e não podemos deixar cair a tradição.”

Hoje em Gurugi, ao lado dos versos que lembram situações de traba-lho difícil em outros tempos, os cantadores e dançadores dão o seu recado, alertando para questões presentes. Vejamos alguns cocos:

Já estou cansado de trabalhar no roçado mas estou desanimado não vejo nada ir pra frente

Trabalhador

não é pra ficar contente que o Plano do Real veio acabar com a gente

Eu moro lá na Agrovila mora Pedro e João, José e Maria

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porque o prefeito não bota energia

Seu Aloisio

no Conde fez um turismo botou praia de nudismo pros banhistas se banhar

Deu em Manchete de Norte para o Sul quem quiser ver gente nú vá em Tambaba olhar

Há também espaço para versos líricos que destacam momentos de doçura e de harmonia com a natureza:

De que lado sai o sol sai de ponta do coqueiro

Ô sol, ô lua, ô que vento traiçoeiro

São muitos os temas e motivos do coco. Da mesma maneira, são muitos os tipos de coco, conforme a classificação daqueles que participam da brincadeira. Há denominações que surgem devido à maneira de tocar, de dançar, em uma ou em outra localidade.

São muitos os nomes, os detalhes, os mistérios envolvidos neste uni-verso pouco conhecido da brincadeira. Recentemente encontrei uma pro-fusão de cocos solicitados, dançados e cantados por entidades que costumeiramente baixam em alguns rituais afro-brasileiros encontrados na Paraíba. Aqueles que já não fazem mais parte desse nosso mundo de co-muns mortais são recebidos alegremente no espaço sagrado do ritual reli-gioso e festejam dançando, cantando cocos que rememoram o trabalho difícil do tempo de cativeiro, magia, momentos de intensa vivacidade que os mantêm em contato, reduzindo distâncias, aproximando mundos diver-sos, matando a saudade, em grande solidariedade entre vivos e... encanta-dos.

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Uma visita de bom coração Me dê um abraço e um aperto de mão

E lêlê ô acauã

galo canta de manhã carneiro quando se molha se deita e sacode a lã

Fui tomar banho no Rio da Curimã às cinco horas da manhã eu avistei a donzela

Olhei pra ela

meu coração palpitou se ela fosse o meu amor daria palma e capela

Cantadores, dançadores e a brincadeira

A grande maioria dentre os dançadores e cantadores contatados en-contra-se na condição de trabalhador pobre, e parcela significativa em si-tuação de pobreza absoluta, o que ocorre com a maioria dos negros brasi-leiros e seus descendentes.

Tanto em bairros da periferia da capital, quanto em cidades do inte-rior da Paraíba, a equipe de pesquisadores encontrou dançadores, mestres e cantadores morando em casebres de taipa, muitos sem luz elétrica, sem água tratada, alguns sem cadeiras ou tamboretes, sem panela de metal (fer-ro, alumínio ou lata), demonstrando o estado de privação em que (so-bre)vivem.

Problemas de moradia (não ter posse da terra, não ser proprietário da casa) são comuns, a ponto de integrantes da equipe terem ouvido, em uma das localidades visitadas, um cantador dizer “Fulano é o nosso proprietá-rio”, referindo-se ao dono da terra.

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Por relatos dos entrevistados e dos pesquisadores foi possível detec-tar a que ponto a dança é discriminada e porque muitos jovens, embora saibam, não querem dançar o coco.

Dançadores e cantadores de coco de Forte Velho (município de Santa Rita, PB), 1998

Fotos Rosemar

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Dançadores e cantadores revelam-se magoados por presenciarem a perda de interesse pela dança, tanto pelos mais velhos, quanto pelos jo-vens. A dança muitas vezes é depreciada por quem não integra o conjunto de dançadores e cantadores sendo considerada atividade de “preto velho, sem vergonha, pobre e cachaceiro”. Por isso, várias pessoas que apreciam a dança e o canto afastam-se da manifestação com medo da discriminação.

Muitos dos entrevistados demonstraram em seus relatos uma valori-zação do passado do tipo “antes era mais animado; hoje ninguém se inte-ressa”. A valorização do passado é procedimento muito comum em relatos sobre cultura, e em particular, sobre cultura popular. No caso dos cocos, a manifestação passa por um processo de mudança. Desses entrevistados, vários se submeteram à migração interna. Ao se deslocarem de uma cidade para outra, lá encontraram pessoas com histórias semelhantes, que tam-bém tinham as mesmas preferências culturais. Neste sentido, os cocos ser-viam como elemento integrador e também como componente de uma afir-mação de identidade cultural. O mesmo não ocorre com os componentes da nova geração. Os filhos e netos dos dançadores, além de não terem vivido experiência semelhante de migração, bem ou mal encontram-se in-tegrados (no emprego, na escola, nas atividades de lazer hoje comuns a todos os jovens na zona rural ou urbana, entre eles assistir a programas de TV, ir a forrós, acompanhar as danças da moda como lambada, funk, ter preferência por músicas tocadas no rádio e repetidas infindavelmente nos aparelhos de som particulares). Quando participam das atividades culturais populares como a brincadeira do coco, desenvolvidas nas comunidades onde moram, muitos jovens reagem temendo, depois, a ridicularização feita por colegas da escola. Aceitam participar de apresentações públicas quando dançadores e cantadores são caracterizados como grupo folclórico, o que possibilita, às vezes, ver suas imagens veiculadas pela televisão.

Dançadores e cantadores de todas as idades adoram ser fotografados e filmados. Também não se mostram inibidos diante dos gravadores. Sen-tem-se valorizados. Quando há alguma forma de registro, em especial fo-tos, os jovens enchem a roda. Há um desejo muito grande de ser visto, de não ser anônimo. Mas no dia-a-dia, sem pesquisadores por perto, o inte-resse parece não ser o mesmo em todas as localidades visitadas. Quando os cocos são considerados como dança de velhos fica difícil a reprodução do sistema cultural; se os jovens não participam continuamente de alguma forma (aprendendo a dançar, a cantar, a tocar), prejudica-se a continuida-de da manifestação.

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ciran-da, dança muito popular na Paraíba e no Nordeste. Segundo alguns depoi-mentos, os cocos aparecem depois da meia noite. Antes, só ciranda. Estar oculto em outra dança leva-nos a pensar que em alguma época a brincadei-ra do coco pode ter sido reprimida. Abrigados em outbrincadei-ra dança, os cocos estariam driblando a repressão (ou, mais recentemente, a discriminação), recurso semelhante ao utilizado pelos rituais afro-brasileiros, que se desen-volviam sob a fachada do catolicismo.

A equipe também encontrou a dança em comunidades negras isola-das e em aldeias indígenas. Na aldeia indígena visitada, os cocos alterna-vam-se com o toré, com a ciranda e com o forró.

Pode-se afirmar que a brincadeira do coco é dança de minorias discri-minadas, por diversas condições: pela etnia (negros, índios e seus descen-dentes), pela situação econômica (pobreza, às vezes extrema), pela escola-ridade (iletrados ou semi-alfabetizados), pelas profissões que exercem na sociedade (agricultores com pequenas propriedades ou sem terra, assenta-dos rurais, pescadores, pedreiros, domésticas, copeiras de escolas). A dança passa por diferentes formas de interferência, qualquer que seja seu contexto, porque é difícil qualquer autonomia cultural em região de forte controle político, como o Nordeste, onde se aguçam as formas de dependência de-vido à pobreza extrema da população. Aqui, o pobre costumeiramente é submetido a alguém ou a algum grupo de poder, salvo raríssimas situações.

No que se refere à relação entre sujeitos, estabelecida pela pesquisa de campo, há ainda algumas questões que merecem ser destacadas.

Cultura, experiência, solidariedade, memória

A proximidade com as pessoas que participam intensamente da brin-cadeira do coco tocando instrumentos, tirando cocos (isto é, propondo os versos mais tradicionais ou criando novos que vão ampliar o repertório existente) e ensinando a resposta para aqueles que estão dançando em roda, permite apreender múltiplos componentes desse universo da oralidade em que experiência, solidariedade, alegria são fundamentais.

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O ato de usar a escrita como apoio da memória oral é procedimento que permite a seguinte avaliação: aqueles que participam do universo da oralidade têm consciência de que a escrita é um poderoso instrumento e que pode servir para resguardar o oral do esquecimento. Pode parecer paradoxal mas, neste caso, a escrita é posta a serviço da oralidade.

Tal proximidade mencionada ainda há pou-co, que permite certos achados, não se consegue apenas estando presente nos dias de festa ou de entrevista. Ela é construí-da por atos dos pesquisa-dores os quais, ao mesmo tempo em que vão entran-do na intimidade das pes-soas, vão se mostrando, vão se deixando conhecer no convívio acentuado: dizemos porque estamos ali, o que pensamos sobre os mais diversos assuntos, quando interrogados o que pretendemos fazer com as imagens, com as gravações, com os estudos e mostramos os resulta-dos, mesmo que ainda em suas etapas preliminares, principalmente os audiovisuais, mediante sessões de vídeos nos lugares onde os cantadores e dançadores moram. Deixamos cópias de fitas cassete gravadas em festas, reproduções de fotografias, dos vídeos. É bom lembrar que este retorno não é habitual entre pesquisadores de campo. Em geral chegam e rapida-mente levam o que querem, devassando vidas e práticas culturais. Alguns pagam pelas informações.

Nós preferimos construir uma relação de troca com base em valores de uso a nos rendermos ao modelo da estrutura de mercado, em que tudo resulta em mercadoria. Pesquisar do jeito que escolhemos é trabalhoso e obriga a ir em sentido contrário ao tempo do relógio. Rendemo-nos a outras temporalidades marcadas pelas relações entre pessoas, por afinida-des que se estabelecem por um convívio que se constrói não apenas pela

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necessidade do conhecimento científico e, seguramente, sempre saímos enriquecidos. Impossível sair dessa experiência sem marcas, quando se é movido por um desejo muito grande de entender diferenças culturais, di-ferentes temporalidades.

Em um ambiente de carência, no qual fal-tam condições financeiras, soluções para proble-mas de saúde, educação, moradia e emprego, pa-ralelamente, sobra e é esbanjada uma riqueza em termos de auxílio mútuo, solidariedade, compan-heirismo nas horas de dor e de alegria. Essa alternância entre carência e abundância, entre o que falta e o que sobra nem sempre resulta em tensão explicitada pela palavra. Essa solidarieda-de muito gransolidarieda-de, fundada em vida comunitária com fortes laços de afetividade que se constrói no dia-a-dia difícil, no mutirão cotidiano da vida em que “uma mão lava a outra”, é responsável pela força que supera as dificuldades e refaz o ânimo através da alegria dos momentos festivos em que se dança, em que se ri, em que se diverte para agüentar as novas dificuldades de sempre. É essa resposta alegre que mantém vivos muitos dos brasileiros e dá o troco à dominação pela própria insistência em se manterem em pé, rin-do. Por outro lado, a atitude de solidariedade constante revela a disposição de sempre incluir

os estranhos em seu convívio. Tal hospitalidade ao outro é a porta por onde passa também a dominação. Isso porque a cultura popular tem como traço distintivo a inclusão. Como é extremamente participativa, devido à vida comunitária que lhe garante a existência, essa cultura popular, ao in-cluir, traz para seu interior formas de dominação. Acomoda, vamos dizer assim, traços das culturas dominantes a seu modo.

Por sua vez, a cultura hegemônica, fundada no universo da escrita, tem traços diametralmente opostos à vida comunitária: o individualismo e, por extensão, a solidão, o tédio, a angústia. Em um movimento intenso e obsessivo de exclusão do que contrasta com seus propósitos, os agentes da cultura hegemônica investem na homogeneização, forma extrema de eli-minar as diferenças. Estão sempre anunciando a morte da cultura popular ou então decretando o seu desaparecimento. A escola, uma das instituições mais poderosas da cultura hegemônica, longe de ser um espaço

democráti-Seu Manuel Ventinha, 1992

Fotos cor

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co para a reflexão sobre as diversidades culturais de um país, oprime, ridi-culariza aqueles que são filhos de pais analfabetos, participantes desse uni-verso da oralidade. Mascara a dominação com o aparente interesse pelo

folclore, reinventando nas aulas de português, de forma redutora, a tradi-ção de contar histórias. De rico canal de transmissão de experiências, o narrar popular fica limitado a temas engraçadinhos ou a técnicas didáticas para tentar moldar o futuro leitor de histórias escritas. Nas aulas de educa-ção física e de educaeduca-ção artística se faz a invenção da tradição de danças populares em soluções estereotipadas, que se cristalizam em esboços mal feitos de passos e gestos que, no contexto original, levam décadas para se construir.

Essa falsa inclusão, esse procedimento hipócrita quanto às diferenças culturais mal encobre o indisfarçável desejo de excluir o que é diferente e o que segue um outro caminho e uma outra organização que não aquela ditada pela cultura dominante.

Estudar a literatura popular na escola, na universidade só tem senti-do, a nosso ver, se for para estabelecer um confronto com esses mecanis-mos de exclusão típicos da cultura hegemônica. Só tem sentido se for para sairmos dessa experiência menos ignorantes e mais humanizados.

É esse conhecimento que buscamos no Laboratório de Estudos da Oralidade. Procuramos mostrar, em nossos ensaios, o que apreendemos e aprendemos tentando extrair, sempre que possível, uma duração que beira o poético, sem perder a percepção crítica dessa realidade que, à primeira vista, parece igual, repetida, mas é intrigantemente complexa. E esses ver-sos, esses cantos, esses gestos, essas falas, esses rostos, esses flagrantes apa-rentemente fugazes instalam-se em nossos trabalhos, estão incrustados muito fundo em cada um dos participantes do grupo de pesquisa. Cada qual carrega, à sua maneira, esses ecos que são muito fortes e para sempre.

Notas

1 Os cocos vêm sendo estudados na UFPB desde abril de 1992, inicialmente pela

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Afro-Asiáti-cos/Fundação Ford durante um ano, entre 1992 e 1993, e do CNPq de 1992 a 1996, ininterruptamente. Atualmente os estudos continuam a ser desenvolvi-dos no LEO (Laboratório de Estudesenvolvi-dos da Oralidade) por pesquisadores do pro-jeto integrado Literatura e memória cultural: fontes para o estudo da oralidade, com apoio do CNPq a partir de março de 1996.

2 ANDRADE, Mário de. Os cocos. Prep., introd. e notas de Oneyda Alvarenga. São Paulo, Duas Cidades; Brasília. INL/Fundação Pró-Memória, 1984, p. 347 (grifos meus).

3 ALVARENGA, Oneyda. Explicações. In: Mário de Andrade, op.cit., p. 10.

4 ANDRADE, Mário de, op. cit., p. 387-388.

5 ALVARENGA, Oneyda. Explicações, id., ib., p. 17-18 (grifos de AO). 6 Conforme resumo das aulas do Curso de Etnografia instituído pelo

Departa-mento Municipal de Cultura e dirigido pela Sra. Lévi-Strauss, acervo da Disco-teca Oneyda Alvarenga.

7 CARLINI, Álvaro. Cante lá que gravam cá: Mário de Andrade e a Missão de

Pesquisas Folclóricas de 1938. São Paulo, 1994. Dissertação (mestrado), Depar-tamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Uni-versidade de São Paulo, p. 333.

8 PIMENTEL, Altimar de Alencar. O cocopraieiro; uma dança de umbigada. 1ª. ed.: João Pessoa, Caravela 1964; 2ª. ed.: João Pessoa, Editora Universitária/ UFPB, 1978.

9 SILVA, José Nilton da (org.). Cartilha do folclore paraibano: escolas do 2º grau. João Pessoa, Secretaria da Educação e Cultura, 1988.

10 FRANÇA, Dinalva. Paraíba em ritmo de folclore. João Pessoa, Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Paraíba, 1988.

11 OLIVEIRA Sobrinho, Reinaldo de. Variações do folclore na Paraíba. João Pes-soa, s.d.

12 VILELA, José Aloisio. O coco de Alagoas. Maceió, Museu Théo Brandão; UFAL, 1980, p. 17 (grifos meus).

13 ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez (org.). São Paulo, Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.

14 Estrada Nova. Instituto Nacional do Folclore/Funarte, janeiro de 1983.

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16 A brincadeira dos cocos. Direção de Elisa Maria Cabral. Coordenação da

Pes-quisa de Maria Ignez Novais Ayala. O vídeo recebeu o prêmio Banco do Nor-deste do Brasil na XXIV Jornada Internacional de Cinema da Bahia. Salvador, 1997.

17 Esta citação, e as demais, encontram-se no acervo do LEO (Laboratório de

Estudos da Oralidade). Foram obtidas em pesquisa de campo por diferentes integrantes do projeto entre 1992 e 1997.

RESUMO – NESTE ARTIGO é analisada uma manifestação popular desenvolvida em

diferentes locais do estado da Paraíba, principalmente por negros e seus descen-dentes. Nela se entrelaçam literatura oral, música, canto e dança. Os cocos foram registrados com rigor científico nas décadas de 20 e 30 devido à iniciativa de Mário de Andrade, de que resultou uma ampla documentação. A preocupação em organizar um rico acervo sobre os cocos, fundamentado em observação direta e registros por meios mecânicos e eletrônicos em campo, com procedimentos técni-cos e metodológitécni-cos que permitam análises criteriosas dessa manifestação de cul-tura popular nordestina, buscando ressaltar suas especificidades, motivou a pes-quisa que vem sendo desenvolvida desde 1992 na Paraíba. Neste artigo reconhe-ce-se a importância dos acervos constituídos por Mário de Andrade e pelos inte-grantes da Missão de Pesquisas Folclóricas da Discoteca Municipal de São Paulo, sintetiza-se questões relacionadas à manifestação de poesia, canto e dança no pre-sente, considerando-se o contexto em que vivem os dançadores e cantadores, o significado que a brincadeira do coco tem para eles, a ponto de se configurar até como afirmação de identidade. Analisa-se, ainda, a situação da cultura popular numa sociedade em que a escrita é hegemônica, explicitando a perspectiva mili-tante adotada nesta pesquisa.

ABSTRACT– THISARTICLEFOCUSES on a popular manifestation which grew in several

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affirmation. Furthermore, the popular cultural condition is analyzed within its social setting in which writing is hegemonic, making thus explicit the militant point of view adopted in this research.

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