RevBrasAnestesiol.2016;66(2):212---214
REVISTA
BRASILEIRA
DE
ANESTESIOLOGIA
PublicaçãoOficialdaSociedadeBrasileiradeAnestesiologiawww.sba.com.br
INFORMAC
¸ÃO
CLÍNICA
Sedac
¸ão
com
dexmedetomidina
para
realizac
¸ão
de
eletroencefalograma
em
paciente
portadora
de
síndrome
de
Angelmann:
relato
de
caso
Magda
Lourenc
¸o
Fernandes
∗,
Maria
do
Carmo
Santos
e
Renato
Santiago
Gomez
SantaCasadeBeloHorizonte,BeloHorizonte,MG,Brasil
Recebidoem24defevereirode2013;aceitoem10dejunhode2013 DisponívelnaInternetem12demarçode2014
PALAVRAS-CHAVE
Síndromede Angelman;
Eletroencefalograma; Sedac¸ãoprofunda; Dexmedetomidina
Resumo
Introduc¸ão:A síndromedeAngelman(SA)écaracterizadaporretardo mentalgrave, distúr-biodafalaedesordem convulsiva. Essacondic¸ãogenéticararaestáassociada aalterac¸ões doreceptorGABAA.PacientesportadoresdeSAnecessitamsersedadosduranteafeiturade
eletroencefalograma(EEG),indicadoparafinsdiagnósticosoucontroleevolutivo.A dexmede-tomidina,cujaac¸ãoindependedoreceptorGABA, promovesonosemelhanteaofisiológicoe podeviabilizarafeituradesseexameempacientescomSA.
Relatodecaso:Pacientefeminina,14anos,portadoradeSA,fezEEGsobsedac¸ãocom dexme-detomidina.Oprocedimentotranscorreusemintercorrênciasenãofoiregistradabradicardia oudepressãorespiratória.Oexamefoiinterpretadocomsucessoeatividadeepileptiformenão foiobservada.
Conclusão:Adexmedetomidinapromoveusedac¸ãosatisfatória,foibemtoleradaepossibilitou ainterpretac¸ãodoEEGempacientecomSAedesordemconvulsiva.
©2014SociedadeBrasileiradeAnestesiologia.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Todosos direitosreservados.
KEYWORDS
Angelmansyndrome; EEG;
Deepsedation; Dexmedetomidine
Sedationwithdexmedetomidineforconductingelectroencephalograminapatient withAngelmansyndrome:acasereport
Abstract
Introduction:Angelmansyndromeischaracterizedby severementalretardationandspeech andseizuredisorders.ThisraregeneticconditionisassociatedwithchangesinGABAAreceptor.
PatientswithAngelmansyndromeneedtobesedatedduringanelectroencephalogramordered
∗Autorparacorrespondência.
E-mail:fernandesmagda@yahoo.com.br(M.L.Fernandes).
0034-7094/$–seefrontmatter©2014SociedadeBrasileiradeAnestesiologia.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Todososdireitosreservados.
DexmedetomidinaempacientecomsíndromedeAngelman 213
for diagnosticpurposesorevolutionarycontrol. Dexmedetomidine,whoseaction is indepen-dentofGABAreceptor,promotesasleepsimilartophysiologicalsleepandcanfacilitatethe performingofthisexaminationinpatientswithAngelmansyndrome.
Casereport: Female patient,14yearsold, withAngelmansyndrome; electroencephalogram doneundersedationwithdexmedetomidine.Theprocedurewasuneventfulandbradycardia orrespiratorydepressionwasnotrecorded.Theexaminationwassuccessfullyinterpretedand epileptiformactivitywasnotobserved.
Conclusion: Dexmedetomidinepromoted satisfactory sedation, was welltolerated and ena-bledtheinterpretationoftheelectroencephalograminapatientwithAngelmansyndromeand seizuredisorder.
© 2014SociedadeBrasileirade Anestesiologia.Publishedby ElsevierEditoraLtda.Allrights reserved.
Introduc
¸ão
Pacientes portadores de desordens genéticas comuns ou não, com ou sem anormalidades congênitas, apresentam desafiosúnicosparaoprofissionalresponsávelpor adminis-trarsedac¸ãoouanestesiaduranteprocedimentoscirúrgicos outécnicos.AsíndromedeAngelman(SA)éumclaro exem-plodessasituac¸ão,querequercuidadosespeciaisporcausa do risco aumentado de complicac¸ões.1 Pacientes com SA
apresentamdesordemconvulsiva,fazemusoregularde anti-convulsivantesenecessitamdefazereletroencefalograma (EEG)paraodiagnósticooucontroleevolutivo.Porém,por causa da alterac¸ão de comportamento, comum a várias outrascondic¸õesneurológicas,asedac¸ãoduranteEEGé fre-quentementenecessária.Essaépeculiarporqueosfármacos sedativos e hipnóticos habitualmente usados em aneste-sia interferem nos padrões basais do EEG2 e inviabilizam
seu uso durante o exame. Além disso, na SA observam--separticularidadesgenéticasrelacionadasaoreceptordo ácidogama-amino-butírico dotipoA(GABAA),3 queé alvo de alguns fármacossedativos e hipnóticos. O objetivo do presenterelatoédiscutiro usodedexmedetomidinapara sedac¸ãoduranteEEG,comfoconosaspectossingularesda SA.
Relato
de
caso
Paciente feminina, 14 anos, 43kg, com diagnóstico de SA, cursando com crises convulsivas, em uso regular de fenobarbital.Relatodeasmabrônquicaecifoescoliose,em uso decoletetoracocervical. Osexames laboratoriaise o eletrocardiograma pré-operatório foram normais. Na sala deexamesapacientefoimonitoradacom eletrocardiogra-fia, oximetria de pulso e mensurac¸ão da pressão arterial nãoinvasiva.Acessovenosoperiféricofoipuncionadopara permitir a infusão contínua de dexmedetomidina (bolus
de 1g.kg---1 e manutenc¸ãoentre 0,05 a0,2g.kg.h---1). A pacientemanteverelativa estabilidadeduranteo procedi-mento. Houve moderada quedadapressão arterial média (PAM) durante a infusão da dose inicial, quando a PAM variou de 59mmHg até 40mmHg. A frequência cardíaca oscilouentre80a85bpmenãofoiobservadabradicardia.
Apresentouepisódiodeobstruc¸ãodavia aéreaalta, corri-gidacomcânulaorofaríngea,porémasaturac¸ãodeoxigênio manteve-se acima de 92% sem necessidade de oxigênio suplementar.Asdosesdedexmedetomidinaforamajustadas conforme o nível de sedac¸ão e os efeitos hemodinâmicos e não se constatou movimentac¸ão espontânea durante os20minutos de gravac¸ão do EEG. A paciente despertou espontaneamente 20minutosapós o término do exame e foiliberadadaunidadeapós90minutos.AanálisedoEEG foifeitapormédiconeurologistaqueconstatouestágiosIe IIdesonoNREMeausênciadepotenciaisepileptiformes.
Discussão
De incidência rara, estimada em 1/10.000 a 1/40.000,4
a SA foi descrita inicialmente por Harry Angelman, em 1965.5Essa síndromeclínicainclui desordemdo
desenvol-vimentoneurológicocaracterizada porgraves dificuldades deaprendizagem,ataxia,convulsõesecaracterísticas faci-aisdismórficas.Aexpressãofacialsociávelefelizmotivoua denominac¸ãoinicialde‘‘crianc¸afantoche’’.Amaioriadas crianc¸asapresentaretardodedesenvolvimentoeatrasono crescimentodacabec¸a duranteo primeiro anodevida.A fala tambémnão sedesenvolve na maior parte dos paci-entes.ASAécausadaporumavariedadedeanormalidades genéticasqueincluemaregiãocromossômica15q11-13, seg-mentoesseresponsávelporcodificarasubunidadegamado receptorGABAA.6
Algunspontosrelevantesmerecemdestaqueemrelac¸ão às particularidades da sedac¸ão para EEG em pacientes portadoresdeSA. Oprimeirodelesincluiproblemas anes-tésicos comuns, como aqueles decorrentes de alterac¸ões anatômicas ou respostas hemodinâmicas. Anormalidades craniofaciais, incluindo microcefalia, olhos profundos, palatoaltoearqueadoeprotrusãodalíngua,3podem
214 M.L.Fernandesetal.
decoletetoracocervicalrepresentariamfatoresagravantes para complicac¸õescaso umaabordagem mais invasiva da viaaéreafossenecessária.Bradicardiarelacionadaao pre-domíniovagaleenfatizadaem outrosrelatosprévios7 não
foi reportada durante a infusão da dexmedetomidina. Ao contrário,hipotensãomoderadafoiobservada,porémsem necessidadedeintervenc¸ãoespecífica.
O segundo ponto refere-se às alterac¸ões do receptor GABAA,tendoemvistasuaimportânciacomoalvodeac¸ãode fármacoscomumenteusadosemsedac¸ãoeanestesia,3como
opropofol.Apesardarelevânciadesseaspecto,informac¸ões clínicassobreosefeitosdetaismedicamentosnessegrupo especialdepacientessãoescassasenãoestãototalmente esclarecidas.Estima-sequeocorraumavariac¸ãodaresposta clínicaoumesmo umaresistência ataisfármacos,motivo pelo qual alguns autores sugerem que sua associac¸ão a outrosfármacosqueatuamemviasdiferentesseriaumaboa estratégiaparaasedac¸ãoe/ouanestesiageral.7A
dexmede-tomidina,cujoalvodeac¸ãoéoreceptor␣2,representaria, portanto,umaopc¸ão,nãosomentecomoagenteúnico,mas tambémcomoadjuvantedesedac¸ãoouanestesiageral.
Oúltimoaspectorelevanterefere-seàinterpretac¸ãodo trac¸adodoEEG,considerando-seaspossíveisinterferências noseupadrãobasal,resultantesdaadministrac¸ãodevários anestésicosesedativos,incluindoproprofol, benzodiazepí-nicoseanestésicosinalatórios. Mesmoohidratodecloral, queétradicionalmenteusadoparaessefim,2pode
interfe-rirnopadrãodoEEG,8alémdeapresentarfalhadasedac¸ão
em27% dospacientescom alterac¸ãodecomportamento.9
Nopresenterelato,emboraalterac¸ões eletroencefalográfi-cascomumentevistasnaSA4nãotenhamsidoobservadas,
aanálisedesseexamefoifeitacomsucessoefavoreceuo controleclínico.
Por todososmotivos citados,a dexmedetomidina apa-rececomoumrecursopromissorparapacientesportadores de SA, especialmente aqueles candidatos ao EEG sob sedac¸ão. Sendo um agonista adrenérgico ␣2 altamente seletivo, ela tem mecanismo de ac¸ão independente do receptor GABA e promove sedac¸ão muito semelhante ao sono fisiológico, com depressão respiratória mínima. Tem aindapropriedadeantipruriginosa,antiemética,analgésica esimpaticolítica.Atuaemvárioslocaisnosistemanervoso central,masosefeitossedativoseansiolíticosresultam prin-cipalmentede sua atividade no locus ceruleus do tronco cerebral. No corno dorsal da medula espinhal modula a liberac¸ãode substância P e produz seus efeitos analgési-cos.Asedac¸ãoéacompanhadademínimosefeitosnafunc¸ão respiratória.10 Emadultosvoluntáriosnenhuma
interferên-cianopadrãobasaldoEEGfoiobservada,comparando-seo sononaturalcomosonoinduzidocomadexmedetomidina.11
Considerando-sequeessesresultadosseapliquemtambém aos pacientes com epilepsia e alterac¸ões de comporta-mento, esse fármaco tende a configurar-se como uma boa escolha para sedac¸ão durante o EEG. Alguns estu-dos retrospectivos apontam para a eficácia e seguranc¸a
desse fármacoem sedac¸ão paraexames complementares, incluindoEEG,12,13 emboranãosetenhamlocalizado
estu-dosprospectivosqueavaliassemaspossíveisinterferências dadexmedetomidinasobreoEEGempacientesespeciais.
Portanto,adespeitodetodasaslimitac¸ões,opresente relatodestacaaboatolerânciaeaadequadasedac¸ão pro-movidapeladexmedetomidina,queviabilizouagravac¸ãoe a interpretac¸ão do EEG. Apesar dapouca evidência, esse fármacopoderepresentarumaopc¸ãoparasedac¸ãodurante esseexameempacientescomdisfunc¸õesneurológicas crô-nicas e alterac¸ão de comportamento, incluindo aqueles portadoresdeSA. Entretanto,estudosprospectivose con-troladosque foquemespecialmenteosefeitos dofármaco sobreoEEGsãonecessáriosparacorroborartaisbenefícios.
Conflitos
de
interesse
Osautoresdeclaramnãohaverconflitosdeinteresse.
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