FORMA NERVOSA CRÔNICA DA DOENÇA DE CHAGAS
ESTUDO CLINICO EVOLUTIVO E ANATOMOPATOLÓGICO
DE UM CASO SEGUIDO DURANTE VINTE ANOS
EDYMAR J A R D I M *, OSVALDO M. TAKAYANAGUI **
RESUMO — As formas nervosas crônicas d a doença de Chagas comprometem t a n t o o sistema nervoso central (SNC) como o periférico, a p e s a r de n ã o serem e n c o n t r a d a s com a frequência a s s i n a l a d a por Chagas em suas observações iniciais. O atual r e l a t o refere-se a u m a paciente chagásica crônica desde a infância que, progressivamente, desenvolveu comprometimento da motricidade voluntária, do tono muscular, d a coordenação, dos nervos cranianos. Sofria ainda de u m a cardiopatia e d e u m a colopatia chagásicas, vindo a falecer n o pós-operatório de u m a hemicolectomia. F o i necropsiada e o estudo histopatológico do SNC revelou desmielinização dos feixes espinocerebelares e dos cordões posteriores, g r a n d e redução do n ú m e r o d e c é l u l a s de P u r k i n j e , g r a n d e destruição neuronal da substância n e g r a e do locus coeruleus, estado lacunar dos núcleos d a base, infiltração tecidual por corpúsculos de H e r r i n g a b e r r a n t e s , poren-cefalia e espessamento meníngeo.
PALAVRAS-CHAVE: doença de Chagas, encefalite chagásica.
Chronic n e r v o u s f o r m of Chagras' d i s e a s e : clinic e v o l u t i v e a n d a n a t o m i c s t u d y of a e a s e followed during: t w e n t y y e a r s .
SUMMARY — T h e chronic nervous forms of Chagas' disease involve both t h e central and peripheral nervous s y s t e m s a l t h o u g h t h e y a r e not detected a t t h e frequency indicated by Chagas i n h i s initial observations. T h e p r e s e n t r e p o r t concerns a p a t i e n t w i t h chronic Chagas' disease since childhood w h o progressively developed involvement of voluntary motility, muscle tone, coordination, and cranial nerves. T h e p a t i e n t also had Chagas' h e a r t a n d colon disease. T h e p a t i e n t died after s u r g e r y for hemicolectomy and was autopsied. Histologic s t u d y of the central nervous system revealed demyelination of the spinocerebellar t r a c t s and posterior columns, a g r e a t reduction in t h e P u r k i n j e cells number, extensive cell loss of t h e s u b s t a n t i a n i g r a and locus coeruleus, l a c u n a r state in the basal nuclei, t i s s u e infiltration by a b e r r a n t H e r r i n g bodies, porencephaly, and thickening of t h e meninges.
K E T - W O R D S : Chagas' disease, chagasic encephalitis.
Carlos Chagas
2, descrevendo os aspectos clínicos da doença que leva seu
nome, ao referir-se às formas nervosas afirmava «esta doença, talvez, provoque
em patologia humana o maior número de afecções do sistema nervoso central».
A ampla documentação apresentada por ele não encontrou repetição; a análise
da literatura especializada não confirma o elevado número de casos neurológicos
previstos em suas observações iniciais. O exuberante quadro neurológico
encon-trado nas formas agudas da doença não encontra paralelo nas formas crônicas,
cujo reconhecimento torna-se difícil porque os elementos semiológicos e
labora-toriais são muitas vezes insuficientes para a sua afirmação. Teria Chagas tido
D e p a r t a m e n t o d e N e u r o p s i q u i a t r i a e Psicologia Médica d a F a c u l d a d e de Medicina d e R i -beirão P r e t o d a Universidade d e São P a u l o ( F M R P / U S P ) : * Professor T i t u l a r de Neurologia; ** D o u t o r em Neurologia. Aceite: 7-junho-1993.
a oportunidade de observar os remanescentes de um grande número de casos
agudos, dispondo então de uma casuística neurológica mais abundante? Esse
autor 3, no entanto, afirmava que possuía «um pequeno número de casos agudos
comparado às centenas de doentes crônicos que tem sido possível estudar». Dizia
mais, «no adulto, as infecções recentes não se apresentam com a sintomatologia
alarmante observada nas crianças... e mesmo acreditamos que a fase aguda
possa ocorrer despercebida nos adultos, ou não determinando sintomas objetivos
e subjetivos apreciáveis»
3. Na mesma ocasião, afirmava que possuía observações
que demonstravam o aparecimento tardio, em época muito posterior à fase aguda
da infecção, de alterações para o lado do sistema nervoso, quando todos os
sinais do período agudo estavam ausentes
3.
Teria com o passar dos anos a patogenicidade da doença relativamente ao
sistema nervoso mudado, como tantas vezes se verificou experimentalmente com
as cepas de Trypanosoma cruzi quanto ao seu neurotropismo? Diante desses
fa-tos, o diagnóstico da forma nervosa crônica da doença de Chagas ficaria
reser-vado para aqueles casos que, apresentando alterações na semiologia neurológica,
tendo antecedentes epidemiológicos chagásicos, reações imunológicas positivas
para a doença no sangue periférico e exclusão de outras patologias, seriam
con-siderados como sofredores de uma neuropatía chagásica no seu sentido mais
amplo. Chagas
3enfatizava especialmente, em sua casuística, as perturbações
pro-fundas da motricidade, da linguagem e da inteligência. Registrava fenômenos
pseudo-bulbares, perturbações paralíticas para o lado do aparelho oculomotor,
síndromes cerebelares, manifestações convulsivas, enfim, caracterizando o
com-prometimento de todos os compartimentos do sistema nervoso central (SNC).
Vários autores publicaram observações relativas às alterações neurológicas
encon-tradas em pacientes chagásicos crônicos. Collares Moreira
4, Romana
2 3, Melo e
Melois, Kõberle
1 2, Vieira
2 7e outros registraram observações em que as
pato-logias neurológicas de etiologia chagásica crônica com comprometimento
ence-fálico eram evidentes. Vampré^, Parisi
1 8, Etzel
1^, Correia Neto 5, Raia e
Cam-p o s
2 1, Fortes-Rego e col.
1 8, Faria e colJ, Pagano e col.
1 7, Taratuto e col.
2 4, entre
outros, referiram estudos clínicos de pacientes chagásicos crônicos com alterações
semiológicas do sistema nervoso periférico. Os estudos relativos ao psiquismo
e funções cognitivas demonstrando situações deficitárias são vários (Vieira
2 7,
Lausi
1 3, Jorg
1©, entre outros). As alterações da homeostase demonstradas
atra-vés de perturbações da regulação da glicemia nas provas de tolerância à glicose
(Reis e col.
2 2), da sudação, (Jardim», Vieira 26), do cortisol plasmático (Kimachi
e col.
1 1), do PBI (Lomonaco
1 4), entre outras demonstraram claramente que o
sistema nervoso é comprometido como um todo na doença de Chagas, com
pre-dominância maior de um ou outro setor em cada paciente considerado.
O caso que relatamos refere-se a uma paciente com doença de Chagas
crô-nica que tivemos a oportunidade de observar cuidadosamente durante vinte anos,
pois tratava-se de funcionária da FMRP/USP.
R E L A T O DO CASO
E x a m e físico — m a g r a ; a l t u r a 1,57 m, peso 47 K g , P A 10x7, pulso 80. E x a m e neuroló-gico — Dedos de a m b a s as m ã o s semiabertos, m a i s à E, E s t r a b i s m o convergente bilateral moderado. Não haviam alterações d a sensibilidade superficial ou profunda. No exame d a força muscular, prova de Mingazzini com queda lenta bilateral dos membros inferiores. Equilíbrio: a p r e s e n t a n d o oscilações p a r a ambos os lados, mais p a r a a E. Marcha espástica bilateral apoia-da, com látero-pulsão p a r a a E. Reflexos profundos vivos universalmente com exceção dos aquilianos, não obtidos. Reflexos superficiais sem resposta. H i p e r t o n i a elástica global. Nervos c r a n i a n o s : palidez d a papila à D. E s t r a b i s m o convergente bilateral moderado, reflexo foto-motor lento de a m b o s os lados. Sulco nasogeniano mais evidente à I>. Nistagmo horizontal à D. Reflexo do vômito diminuído bilateralmente. F a l a lenta, pastosa. Gnosia: dificuldade p a r a reconhecer m a t e r i a i s colocados nas mãos. I n f o r m a bem, colaborando, com intensa de-pressão e labilidade emocional. P e r d a d a c e n s u r a a l g u m a s vezes. Exames subsidiários reali-zados — 1) Reação de Machado-Guerreiro r e a g e n t e com t í t u l o maior que 3. 2) Reação de imunofluorescência p a r a Chagas positiva. 3) E l e t r o c a r d i o g r a m a : extrassistolia ventricular fre-quente, com distúrbio da repolarização ventricular na face diafragmática. 4) Eletrencefalogra-m a : Eletrencefalogra-menor organização do t r a ç a d o de projeção no heEletrencefalogra-misfério cerebral D. 5) ToEletrencefalogra-mografia coEletrencefalogra-m- com-p u t a d o r i z a d a do c r â n i o : lesão hicom-podensa (cística) temcom-poral E. 6) Líquido cefalorraquiano den-t r o dos padrões de normalidade. 7) E x a m e radiológico do a b d o m e : a c e n den-t u a d a diladen-tação cólica. Evolução — E m fevereiro-1983, s u b m e t i d a a u m a hemicolectomia, veio a falecer em consequência de várias intercorrências no período pós-operatório.
O exame histopatológico do SNC m o s t r o u desmielinização dos feixes espinocerebelares e dos cordões posteriores d a medula, g r a n d e redução do número d a s células de P u r k i n j e , consi-derável destruição dos neurônios d a substância n e g r a e do locus coeruleus, estado lacunar dos núcleos d a base, g r a n d e infiltração tecidual p o r corpúsculos de H e r r i n g a b e r r a n t e s , porenee-falia e espessamento meníngeo. Não foram encontradas alterações do córtex cerebral.
COMENTARIOS
A forma nervosa crônica evolutiva deste caso ilustra a afirmação de
Cha-gas 3, de «que a reação provocada por aqueles focos inflamatórios poderá ser,
desde o início, de natureza crônica, de marcha lenta, só vindo a determinar
alte-rações funcionais posteriormente em fases tardias da doença». Devemos
salien-tar que, apesar de intensa investigação, nenhuma outra patologia foi detectada
nos 20 anos de seguimento da paciente e que não houve casos de moléstia
seme-lhante na família.
Estudos anatomopatológicos realizados por vários autores (Alencar
1,
Mene-zes e col.
1 6, Pittella
i&>20)mostraram que a incidência de alterações morfológicas
encontradas nas necropsias de Chagásicos crônicos é baixa e concordante aos
achados da semiologia neurológica que referimos, que são pouco frequentes.
Da observação de numerosos casos crônicos que examinamos, chegamos à
conclusão de que a forma nervosa crônica da doença de Chagas, poderá ser
diag-nosticada considerando-se três categorias de pacientes: (1) Chagásicos crônicos
com sinais e sintomas neurológicos, cujas manifestações semiológicas foram
sufi-cientes para estabelecer uma síndrome neurológica perfeitamente caracterizada;
(2) Chagásicos crônicos com achados neurológicos insuficientes para o
estabele-cimento de um diagnóstico sindrômico de comprometimento do sistema nervoso;
(3) Chagásicos crônicos com exames neurológicos dentro dos padrões de
norma-lidade. A primeira categoria de pacientes constitui verdadeira exceção dentro da
patologia nervosa da doença de Chagas, sendo encontrada raramente. As duas
últimas são as mais frequentemente vistas nos exames neurológicos de rotina,
porém, cujos resultados nem sempre permitem um diagnóstico neurológico
sin-drômico. Nestes casos, a associação do exame neurológico aos testes funcionais
de vários tipos e aos testes de avaliação das funções cognitivas, permitiria o
estabelecimento do diagnóstico do comprometimento do sistema nervoso.
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