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O espetáculo na tragédia grega

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Academic year: 2017

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O ESPETÁCULO NA TRAGÉDIA GREGA

D a i s i MALHADAS*

"É p r e c i s o compor os enredos [. . . ] colocando-os o mais possível diante dos olhos"

(1, 55a 22)

A dimensão v i s u a l do d i s c u r s o t e a t r a l (expressão c o r p o r a l , aparência do a t o r , cená-r i o , acessócená-rios) t o cená-r n a impcená-rescindível que, tam-bém ao l e r uma peça, a coloquemos diante dos olhos, quando se quer apreender seu espetáculo.

Pode p a r e c e r e s t r a n h o q u e r e r apreender o espetáculo quando, d i a n t e dos o l h o s , tem-se, do d i s c u r s o t e a t r a l , apenas a dimensão v e r b a l . M u i t o e s t r a n h o , s o b r e t u d o , quando, concordando

com P a t r i c e P a v i s , deve-se reconhecer que " l a scene n ' e s t pas l a t r a n s p o s i t i o n du t e x t e " (6,

* Docente do Programa de Pós-Graduação.

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p. 1 7 3 ) . Se todo t e x t o dramático, embora pareça um elemento estável e c o n s t a n t e , r e c o n s t i t u i - s e com a encenação, d i f i c i l m e n t e , com sua l e i t u r a apenas, pode-se v e r a cena. Não o b s t a n t e , é possível concordar com Anne U b e r s f e l d que se a p o i a , em sua obra Lire le theatre, no p r e s s u p o s t o

de que " i l e x i s t e a 1'intérieur du t e x t e de

t h e a t r e des m a t r i c e s t e x t u e l l e s de représentativité" ( 7 , p. 20)

Conseqüentemente a abordagem de um t e x t o de t e a t r o deve s e r f e i t a " s e l o n des procedures q u i s o n t ( r e l a t i v e m e n t ) spécifiques e t m e t t e n t en lumière l e s noyaux de théâtralité dans l e t e x t e " ( 7 , p . 2 0 ) . L e r uma peça de t e a t r o , a i n d a no d i z e r dessa a u t o r a , s e r i a , então,

" r e c o n s t i t u e r i m a g i n a i r e m e n t l e s c o n d i t i o n s d ' e n o n c i a t i o n " , porque, "ce qu'exprime l a r e p r e s e n t a t i o n théâtrale, son message p r o p r e , ce n ' e s t pas t a n t l e s d i s c o u r s des personages que l e s c o n d i t i o n s d ' e x e r c i c e de ce d i s c o u r s "

( 7 , p. 249 e 2 5 3 ) . Assim, embora reconhecendo que só com a encenação pode-se v e r d a d e i r a m e n t e e s t u d a r o espetáculo, é viável a n a l i s a r seu pa-p e l , entendendo o t e x t o t e a t r a l como " l e l i e u d ' i n s c r i p t i o n de l a r e p r e s e n t a t i o n v i r t u e l l e "

( 4 , p. 1 0 ) .

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essa "representação v i r t u a l " nas didascálias, p a r t e i n e x i s t e n t e no t e a t r o grego.

No t e a t r o contemporâneo, as didascálias compõem, como a f i r m a Roman I n g a r d e n , o " t e x t o secundário" com as indicações cênicas do a u t o rr

que desaparecem quando a obra é r e p r e s e n t a d a em cena ( 3 , p. 3 ) .

A ausência do t e x t o secundário no t e a t r o grego s e r i a , então, mais um obstáculo ao e s t u d o do espetáculo na tragédia. Convém o b s e r v a r que as didascálias que aparecem na m a i o r i a das t r a -duções foram compostas p e l o s t r a d u t o r e s . Não se p o d e r i a l e r a tragédia grega como t e a t r o , mas apenas como um t e x t o literário. I s s o a c o n t e c e -r i a , se o espetáculo na t-ragédia g-rega, antes de s e r cena, não f o s s e p o e s i a .

De f a t o , as funções que M i c h a e l I s s a c h a r o f f reconhece nas didacálias - nomina-t i v a , d e s nomina-t i n a d o r a , melódica e l o c a nomina-t i v a ( 4 , p. 34-40) - são i n s t a u r a d a s , na tragédia, p e l o s diálogos. São e s t e s que respondem às q u a t r o questões fundamentais: quem f a l a ? a quem? como? onde? I g u a l m e n t e , nos diálogos, é que se e x p l i -c i t a a função -cenográfi-ca, aquela que engloba a interpretação do a t o r com seus g e s t o s , mímica, movimentos, e t u d o que e n v o l v e a aparência

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Na tragédia grega, o t e x t o pronunciado pelo a t o r e pelo coro diálogos e cantos -contém vários sistemas de signos da represen-tação: expressão f a c i a l , gesto, marcação, pen-teado, indumentária, acessórios, cenários, tom, som, além da própria p a l a v r a . ( 5 , p. 7 7 ) .

Observe-se e s t a cena da tragédia Orestes de

Eurípedes:

E l e c t r a : "Colocai-vos aqui no caminho dos c a r r o s

e vós nesta outra entrada, como guarda da c a s a " . ( v . 1251-1252) lfi Semicoro: "Em marcha, apressemo-nos. E s t e

é o caminho

que v i g i a r e i , na direção do nas-cer do s o l

2 8 Semicoro: E eu e s t e , o que conduz ao pôr-do-sol.

E l e c t r a : De esguelha, então, de um lado e de outro

d i r i g e tuas p u p i l a s " ( v . 1258-1261)

Corifeu:

E l e c t r a :

De lá até aqui, depois no sen-t i d o consen-trário,

as conduzo, como, aos brados, pedes

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os o l h o s lançai, através dos ca-b e l o s ,

por t o d o l a d o .

C o r i f e u : Há alguém no caminho? Atenção! Quem é esse

rondando t e u palácio? Um l a v r a -dor?

E l e c t r a : Estamos p e r d i d a s , então, ami-gas ..."

( v . 1264-1271)

C o r i f e u :

E l e s t r a :

12 semicoro:

2 2 semicoro;

E l e c t r a ;

"Não temas: v a z i a , amiga permanece a e s t r a d a . . .

0 que há? Esse t e u l a d o a i n d a me é seguro?

dá-me uma boa notícia,

se está d e s e r t o d i a n t e do palá-c i o .

Tudo bem a q u i . Mas t e u l a d o e s -p r e i t a ,

porque, de nós nenhum Dânao se aproxima.

Estás como nós, p o i s a q u i também não há

ninguém.

Vamos, então, às p o r t a s que eu a p l i q u e meu

(6)

( v . 1273-1281)

E l e c t r a :

C o r i f e u :

C o r i f e u :

E l e c t r a :

" V i g i a i , então, mais. Seni vos acomodar,

mas umas p o r a q u i , o u t r a s p o r a l i f a z e i a

ronda

P e r c o r r o o caminho v i g i a n d o de t o d o l a d o "

( v . 1292-1295)

"Silêncio! Silêncio! Ouvi um ruído

que se p r e c i p i t a no caminho ao r e d o r da

casa.

Caras amigas, em p l e n o c r i m e , e i s que Hermíone chega..."

( v . 1311-1314)

(7)

Nessa mesma peça, p e l o modo como E l e c t r a , as o u t r a s personagens e o c o r o se r e f e r e m a O r e s t e s , venos a sua maquilagem, seu penteado: as secreções coaguladas nos o l h o s , nos c a n t o s dos lábios, os c a b e l o s em d e s a l i n h o que l h e t a -pam a visão. Sabemos que o a t o r e s t a v a de más-c a r a , de modo que, quando f o i enmás-cenada no V sé-c u l o a.C, apenas a p a l a v r a d e v i a t e r a força p a r a f a z e r o e s p e c t a d o r v e r esses s i n a i s . Da mesma forma, quando E l e c t r a , também nessa peça, num momento em que desepera da salvação, d i z e s t a r , com as próprias unhas, fazendo seu r o s t o s a n g r a r .

Que E l e c t r a aparece a n d r a j o s a , na peça de Eurípedes do mesmo nome, que há um t a p e t e d i a n t e do palácio, em Agamenão de E s q u i l o ,

po-demos d e d u z i r p e l o diálogo, como é e s t e , tam-bém, que nos i n d i c a o l u g a r geográfico - se é Tebas ou Argos, Trezena ou Colono - ou o l u g a r s o c i a l - se é d i a n t e de um palácio ou no campo, num d e s e r t o ou num acampamento m i l i t a r .

Encontramos, também, indicações de e f e i t o s sonoros e tom. Em Édipo em Colono, p o r exemplo, as

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Na experiência t e a t r a l grega, a p a l a v r a c o n s t i t u i - s e em r i c o sistema de s i g n o s . Pode-se d i z e r que é a " d i t a d u r a da p a l a v r a " c o n t r a a q u a l se i n s u r g e A r t a u d em Le theatre et son double,

p a r a quem o t e a t r o deve t e r uma "linguagem física e c o n c r e t a " , expressão de t u d o que se m a n i f e s t a em cena m a t e r i a l m e n t e , e que, p o r i s s o , se d i r i g e p r i m e i r o aos s e n t i d o s e não ao espírito como a linguagem da p a l a v r a ( 2 , p. 107)

Observe-se a f a l a f i n a l de Prometeu, em

Prometeu Acorrentado de E s q u i l o :

"Eis que com f a t o s , não mais com p a l a -v r a s ,

a t e r r a é sacudida,

a voz subterrânea do trovão, em t o r n o , r u g e , os ziguezagues do relâmpago

b r i l h a m em chamas, um turbilhão r e m o i -nha

a p o e i r a , lançam-se os sopros

dos ventos t o d o s , uns c o n t r a os o u t r o s : a g u e r r a de l u f a d a s contrárias está de-c l a r a d a ,

confunde-se o céu com o mar.

E i s que c o n t r a mim uma r a j a d a , p o r von-t a d e de Zeus,

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" ( v . 1080-1091)

Mão «ais com p a l a v r a s , d i z Prometeu ( g r i f o n o s s o ) . Nôo mais com as p a l a v r a s de Hermes, que t r a n s m i t i a m as ameaças de Zeus. Agora os f a t o s , sob a v i s t a de t o d o s " . Sob a vista da imaginação

de t o d o s os espectadores do século V a.C, como dos l e i t o r e s de h o j e . As p a l a v r a s acionam a capacidade do pensamento de c r i a r as imagens da catástrofe. Atingem p r i m e i r o o espírito, fazendo exatamente o p e r c u r s o contrário do p r o p o s t o p o r A r t a u d , para o espetáculo.

Assim, c o n t r a r i a n d o Aristóteles, o espetá-c u l o , na tragédia grega, tem e s t r e i t a relação com a poética, uma vez que é j u s t a m e n t e a poe-s i a que o i n poe-s t a u r a .

Na Poética, quando Aristóteles e x p l i c a as

p a r t e s c o n s t i t u t i v a s da tragédia, embora r e c o -nheça o espetáculo como aquela que mais emo-c i o n a , que mais seduz o espírito

(psichagogicón) c o n s i d e r a - a a "mais e s t r a n h a à a r t e e a menos própria da poética ( 1 , 5 0 b l 7 ) . Essa opinião que f a z do espetáculo uma a t r i -buição do f a b r i c a n t e de acessórios, e não do p o e t a ( 5 0 b l 7 ) , compreénse no c o n t e x t o da

de-f e s a que Aristóteles de-f a z da tragédia como gê-nero s u p e r i o r à epopéia.

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elevada que a tragédia, pois os ouvintes da p r i m e i r a seriam s u p e r i o r e s aos espectadores do t e a t r o , por não necessitarem, para a p r e c i a r a p o e s i a , da expressão corporal de quem a r e c e i t a ( 6 2 a ) . Aristóteles, embora observe que não se pode condenar a expressão c o r p o r a l em s i , mas apenas a dos maus a t o r e s , c o n c l u i com o argu-mento de que a tragédia pode, como a epopéia, a t i n g i r sua f i n a l i d a d e , sem "kinéseos", sem

"movimento", i s t o é, sem r e c o r r e r ao sistema de signos cinéticos. A tragédia pode s e r também apenas l i d a , sem expressão c o r p o r a l , dispen-sando, portanto, com mais razão, cenário e acessórios.

E s t a s considerações são, seguramente, as que norteiam Aristóteles em sua concepção do papel do espetáculo e do enredo em relação ao p r a z e r próprio da tragédia.

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Parece que Aristóteles teme que, se o p o e t a f i z e r nascer o t e r r o r e a piedade do e s -petáculo empregando apenas meios m a t e r i a i s e não poéticos, h a j a o r i s c o de se p r o v o c a r o h o r r o r ( 1 , 53b, 1 , 7, 8) e então, se p r e j u d i c a o p r a z e r próprio da tragédia.

Esse r e c e i o não impede que Aristóteles r e -conheça que há uma dimensão v i s u a l que se mani-f e s t a não apenas em cena, mas também na l e i t u r a

( 1 , 62 a 1 7 ) . Essa dimensão v i s u a l e x i s t e j u s tamente porque o poeta compôs o enredo c o l o -cando t u d o " d i a n t e dos o l h o s " .

I s s o s i g n i f i c a que o espetáculo não e r a preocupação apenas do f a b r i c a n t e de acessórios. F o i também uma atribuição do p o e t a .

Enquanto lemos uma tragédia estamos lendo enredo e espetáculo. A p o e s i a i n s t a u r a um e o u -t r o .

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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f e i t a s a p a r t i r do t e x t o e s t a b e l e c i d o por J . Hardy. P a r i s : Les B e l l e s L e t t r e s ,

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G a l l i m a r d , 1964.

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L i b r a i r i e José C o r t i , 1985.

5. KOWZAN, T. O s i g n o no t e a t r o . I n : • O signo teatral. P o r t o A l e g r e : E d i t o r a Globo, 1977. 6. PAVIS, P. Voix et images de la scene, pour une

sémiologie de l a r e c e p t i o n . Presses U n i v e r s i t a i r e s de L i l l e , 1985.

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