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Identificação e culpa: questões éticas contemporâneas.

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Academic year: 2017

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Professor do Program a de Pós-graduação em Estudos Psicanalíticos ( UFMG) . Psicanalista.

Os w a ld o Fra n ça Ne to

O

percurso dos estudos de Freud foi m arcado pela tentativa de solucionar um a série de im passes que, com freqüên-cia, eram frutos dos desdobram entos das próprias elaborações de seu autor. Duas dessas dificuldades foram os conceitos de narcisism o e de identificação, conceitos estes que, posterior-m ente, eposterior-m 1915, seriaposterior-m colocados eposterior-m estreita correlação. Mas a história deles com eça bem antes.

Em 1900, nessa caixa de sonhos que é o aparelho psíquico, e cujo funcionam ento é pautado por um a produção significa-tiva que tende ao infinito, cada vez m ais foi se tornando pre-m ente buscar upre-m apripre-m orapre-m ento na descrição daquilo que serviria com o referência prim eira ( ou últim a) para o deslizar

RES UMO:Freud colocou o processo de identificação na gênese do aparelho psíquico. Enquanto conceito, porém , ele é m arcado por al-guns paradoxos. Este artigo se propõe a form alizar tais im passes, as-sim com o a necessária vinculação, no texto freudiano, do conceito de identificação com o fenôm eno da culpa. Em seguida, serão levan-tadas algum as situações contem porâneas nas quais, aos olhos da psi-canálise e do sistem a jurídico, essa vinculação ( identificação-culpa) tem sido colocada em questão.

Palavras - c have : Identificação, culpa, ética, m oral, direito.

ABSTRACT: Identification and guilt: contem porary ethical questions. Freud has presented the process of identification in the origin of the psychic apparatus. As a concept, though, it is m arked by a few para-doxes. This article aim s to form alize such im passes, as well as the necessary link, in a Freudian text, of the concept of identification w ith the guilt phenom enon. Throughout the text, a num ber of con-tem porary situations w ill be draw n upon, w here w ithin the areas of psychoanalysis and the judicial system , this link ( identification-guilt) has com e into serious question.

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m etoním ico. Dificuldade sim ilar, porém em outro contexto, apareceu nos Três ensaios ( 1905) , no qual, ao tem atizar a sexualidade, tornou-se claro a necessidade

de um a explicação para a enigm ática transposição das pulsões parciais em dire-ção a algum tipo de unificadire-ção, única situadire-ção possível para trabalharm os com um a concepção de sujeito. Nesses dois m om entos ( 1900 e 1905) , o que urgia era o bom delineam ento da referência que conectaria, ou daria noção de conjun-to, ao que se apresentava com o sem sentido ou fragm entado.

Em 1909, em um a reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena, Freud utiliza pela prim eira vez o term o ‘narcisism o’, propondo-o com o fase interm ediária necessária entre o auto-erotism o e o am or objetal. O narcisism o seria aquele ingrediente essencial que nos perm itiria passar das parcialidades ao Um .

Mas, logo de início, colocou-se a dificuldade conceitual em discernir com nitidez o narcisism o daquilo que o precederia. Era necessário supor algo, “um a nova ação psíquica” ( FREUD, 1914/ 1974, p.93) , para que o narcisism o pudesse existir. Nessa “nova ação” podem os reencontrar o tem a, ou m otivo, deste texto: a identificação. Em 1915, no artigo “Luto e m elancolia”, Freud tem atiza a rela-ção entre estes dois term os. Na m elancolia, a escolha inicial do objeto teria sido feita sobre u m a base n arcísica, escolh a qu e é convertida em “ iden tificação narcísica”. Alguns anos m ais tarde, em 1921, no texto “Psicologia das m assas e análise do eu”, a im portância do fenôm eno de identificação é am pliada. O pró-prio eu passa a ser entendido com o se constituindo a partir de identificações. Ele seria o resultado da sedim entação dos investim entos de objetos abandonados, contendo, dessa form a, a história das escolhas objetais do sujeito. Nessa época, m ais especificam ente em 1923 (O eu e o isso) , Freud utiliza a expressão “identifi-cação prim ária” para designar o que ele entendia com o sendo “um a identifica-ção direta e im ediata, que se efetua m ais prim itivam ente do que qualquer catexia de objeto” ( FREUD, 1923/ 1976, p.45-6) . Nessa identificação prim ária, que se daria logo no início da fase oral prim itiva do indivíduo, “a catexia do objeto e a identificação são, sem dúvida, indistinguíveis um a da outra” ( idem , p.43) .

É im portante salientar que, ao descrever, na identificação prim ária, um a não-diferenciação entre investim ento de objeto e identificação, Freud está propondo algo que, aos olhos da lógica clássica, é form alm ente im possível. Ele está pro-pondo que nós igualem os “ter” ( “investim ento de objeto” ou desejar ter um objeto) com “ser” ( identificar-se com o objeto) . A distinção entre os dois já havia sido atestada pelo próprio Freud dois anos antes:

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Em 1924, no artigo “A dissolução do com plexo de Édipo”, Freud reconhece nessa distinção a resolução do conflito edipiano: inicialm ente, o m enino deseja ter a m ãe; a saída do Édipo se dá quando ele se desloca desse lugar de ter ( desejar a m ãe) , para o lugar de ser ( identificar-se com o pai) . Ou seja, apesar de poder-m os propor a transforpoder-m ação de upoder-m epoder-m outro, trata-se de dois processos clara-m ente distintos. Coclara-m o então iclara-m aginar uclara-m a situação priclara-m eira ( “identificação prim ária”) , em que ter e ser sejam a m esm a coisa? Ter a si m esm o com o elem en-to, igualando ser e ter, cria um a situação paradoxal. Quando propom os que A é B ( A = B) , estam os estabelecendo um a igualdade. Porém , quando dizem os que A contém B ( A B) , som os obrigados a aceitar que A é m aior do que B. Ao igualar essas duas sentenças — ( A = B) e ( A B) — Freud está afirm ando, em term os m atem áticos, que um dado elem ento é m aior do que si m esm o:

( A = B) e ( A B) ( A A)

Essa form ulação está em consonância com as elaborações de Alain Badiou em seu livro O ser e o evento ( 1996) . Trabalhando sob a perspectiva da teoria dos con-juntos, este filósofo francês propõe que aquilo que fundaria o sujeito seria um acontecim ento indiscernível em relação ao contexto no qual surge. Essa indiscer-nibilidade seria resultante de um a característica específica — ser elem ento de si m esm o — o que lhe concederia um caráter paradoxal. Ao apresentar-se com o se contendo com o elem ento ( A A) , este acontecim ento carrearia um a diferença irredutível com relação a si m esm o, tornando-se assim um a referência que, ape-sar de fundar e determ inar a cadeia significante, seria inapreensível por esta.

A identificação prim ária, ao constituir-se com o m arca fundadora, inscreve-se, ao m esm o tem po, com o um único elem ento e dois elem entos diferentes. Ela carreia em si o seu oposto, que é a instauração, no próprio seio, de um a diferen-ça irredutível consigo m esm a. Este é um dos prim eiros im passes desse difícil conceito.

Em 1923 (O eu e o isso) , com a segunda form ulação do aparelho psíquico, todas as instâncias que se diferenciam do ( no) isso se constituem a partir do processo de identificação. Segundo Freud, o isso seria constituído por represen-tações de objeto ( represenrepresen-tações estas catexizadas) , em oposição ao m undo ex-terno, onde estariam os objetos propriam ente ditos. Na identificação, um a re-presentação de objeto passa a ser tratada com o objeto ( externo) . Adquire o status de objeto, apesar de continuar a ser representação.

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externo ( visto e tratado com o um objeto propriam ente dito) . Ou seja, na identi-ficação, ou no ponto de identiidenti-ficação, iguala-se interno e externo, o que é outra situação paradoxal. Freud fala dessa dificuldade:

“( ...) o eu é, em sua própria essência, sujeito; com o pode ser transform ado em obje-to? Bem , não há dúvida de que pode sê-lo. O eu pode tom ar-se a si próprio com o objeto, pode tratar-se com o trata outros objetos, pode observar-se, criticar-se, sabe-se lá o que pode fazer consigo m esm o. Nisto, um a parte do eu sabe-se coloca contra a

parte restante. Assim , o eu pode ser dividido; divide-se durante num erosas funções suas — pelo m enos tem porariam ente. Depois, suas partes podem juntar-se nova-m ente.” ( FREUD, 1933 [ 1932] / 1976, p.76-77)

O eu, enquanto identificação, é, ao m esm o tem po, sujeito ( investe represen-tações) e objeto ( é investido pulsionalm ente, inclusive por si próprio) . Em bora se tratando de um a diferenciação do isso e, portanto, não deixando de ter com ele algum tipo de continuidade ( dentro) , o eu é visto pelo isso com o objeto ( fora) .

O m esm o ocorre com o supereu:

“Assim , tem os afirm ado repetidam ente que o eu é form ado, em grande parte, a

partir de identificações que tom am o lugar de catexias abandonadas pelo isso; que a prim eira dessas identificações sem pre se com porta com o um a instância especial no eu e

dele se mantém à parte sob a form a de um supereu: ( ...) .” ( FREUD, 1923/ 1976, p. 64, grifo nosso)

Ou seja, o supereu tem a am bígua posição de tanto ser parte do eu quanto ter um a existência separada deste:

“ ( ...) reconhecendo que algo tem existência separada, lhe dam os um nom e que lhe seja seu, de ora em diante descreverei essa instância existente no eu com o o ‘supereu’.” ( FREUD, 1933 [ 1932] / 1976, p.78, grifo nosso)

O supereu é, ao m esm o tem po, “dentro” ( um a diferenciação do eu) e “fora” ( trata o eu com o objeto) .

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em vários m om entos, descreve-o textualm ente com o instância geneticam ente secundária, um a diferenciação do eu:

“O am plo resultado geral da fase sexual dom inada pelo com plexo de Édipo pode,

portanto, ser tom ada com o sendo a form ação de um precipitado no eu ( ...) . Esta

modifica-ção do eu retém a sua posição especial; ela se confronta com os outros conteúdos do eu com o um ideal do eu ou supereu.” ( FREUD, 1923/ 1976, p.49, grifo nosso)

Ou seja, o supereu é um a diferenciação daquilo que ele, enquanto identifica-ção prim eira, constitui ( causa = efeito) . Estam os às voltas com outro paradoxo, dessa vez de caráter tem poral.

Essa últim a am bigüidade tam bém pode ser observada quando tem atizam os a gênese do eu. Antes do eu, não haveria, a rigor, diferenciação entre isso ( dentro) e m undo externo ( fora) , ou entre a criança e a m ãe. É o eu que, ao se constituir, vai fazer essa separação. Só que ele se constitui a partir da identificação de algo de dentro com algo de fora. O eu é resultado da identificação entre elem entos que ele próprio diferenciou ao constituir-se.

Nosso aparelho psíquico edifica-se a partir de um a situação paradoxal que, na verdade, é tríplice ( dentro = fora, ser = ter, causa = efeito) . É baseando-se nesse fato que Lacan, em um dado m om ento, vai afirm ar que os neuróticos são deso-rientados por natureza, já que a referência prim ordial que os determ ina com o sujeitos só se deixa form ular por m eio de enunciações antagônicas. Seguindo Descartes e seu cogito, a única afirm ação que podem os atestar com o tendo estatu-to de verdade é o faestatu-to de existirm os com o sujeiestatu-tos durante o breve instante em que nos apreendem os com o pensam ento. Mas qualquer afirm ação com relação ao conteúdo do que pensam os está irrem ediavelm ente m arcada pela dúvida. O aparelho psíquico constitui-se a partir do que cham am os de paradoxos, que, por definição, são a coexistência de afirm ações que, apesar de excludentes, são igual-m ente verossíigual-m eis.

Em algum as situações clínicas parece que essa am bigüidade constitutiva da identificação prim ária estaria ausente. Isso é o que se pode verificar, por exem -plo, quando Freud discorre sobre a PMD ( psicose m aníaco-depressiva, hoje de-nom inada distúrbio bipolar) em 1933:

“( ...) durante um surto m elancólico seu supereu se torna super severo, insulta, hu-m ilha e hu-m altrata o pobre eu, ahu-m eaça-o cohu-m os hu-m ais duros castigos, recrihu-m ina-o por

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celebra um triunfo, com o se o supereu tivesse perdido toda a sua força ou estivesse

fundido no eu ( ...) .” ( FREUD, 1933 [ 1932] / 1976, p.79-80, grifo nosso)

Freud nos leva aqui a pensar que na PMD o processo de identificação teria particularidades próprias, distintas das que ocorrem na neurose. Enquanto na neurose a identificação estaria m arcada pela am bigüidade ( ao m esm o tem po dentro e fora) , na PMD, durante as crises, essa am bigüidade se perderia. Em um a crise de m elancolia, o supereu tornar-se-ia com pletam ente distinto do eu, tra-tando-o com o puro objeto, enquanto que na m ania, inversam ente, haveria um a fusão do eu com o supereu, tornando-se am bos um a só instância. Algo sim ilar parece ocorrer na paranóia, quando o agente inquisidor encontra-se com pleta-m ente deslocado para fora.

Esse necessário caráter paradoxal da identificação — um a vez que seu es-vaecim ento poderia estar na gênese, por exem plo, das psicoses — serve para dem onstrar a im possibilidade de se tam ponar a hiância im plicada na gênese do sujeito. Nós nos constituím os a partir da separação de um a unidade origi-nár ia ( m ãe-filho) , e, após esse m om ento, tal unidade tornar-se-á algo sem pre buscado, m as necessariam ente jam ais alcançável. Essa im possibilidade de reen-contrar a com pletude é estabelecida justam ente pela am bigüidade da operação que nos constitui com o sujeito. As ferram entas de que dispom os para a tarefa de retorno ao Todo — a identificação e seus avatares — têm algo de paradoxal no seu processar.

Freud externou, em 1933, nunca ter ficado satisfeito com suas elaborações sobre a identificação. Mas, talvez, essas dificuldades não reflitam apenas im preci-sões conceituais a serem revistas. Com os im passes form ais do conceito de iden-tificação, Freud estaria evidenciando a am bigüidade constitutiva de todo ser hu-m ano, condenado, cohu-m o atestou Descartes, à ihu-m possibilidade ehu-m estabelecer de form a definitiva a verdade sobre aquilo que o determ ina.

IDENTIFICAÇÃO E CULPA

A identificação freudiana com porta ainda um a outra am bigüidade, esta agora conseqüência da concepção de que nela tratar-se-ia prim ariam ente da incorpo-ração de algo que originalm ente teria tido existência externa. O supereu, assim , seria tributário da introjeção da lei parental. Essa concepção, que vincula a cons-tituição do sujeito a um a instância transcendente, tam bém poderia ser lida em certo período do ensino de Lacan, em torno dos anos 1950, quando ele “parecia atrelado a um sim bólico a priori, nova versão de um quadro transcendental que fixa as coordenadas de nossa existência” ( GARCIA, 2002, p.308) .

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o pai é alguém a quem am am os ( nos identificam os e desejam os ser com o ele) e a quem odiam os ( já que interdita-nos exatam ente de ser com o ele, ao vedar-nos o acesso à m ãe) . Na incorporação da lei parental, im põe-se um traço externo, ao m esm o tem po referência segura ( ideal do eu) e interdição ( supereu) . O pai torna-se, assim , am biguam ente am ado e odiado, o que faz com que a percepção desse ódio acarrete no sujeito um sentim ento de culpa paralisante. Tem os na neurose obsessiva a m anifestação por excelência de tal processo. Não é à toa que, em Freud, ideal do eu e supereu cheguem às vezes a se confundir. Am bas as instâncias, tributárias do m esm o processo de introjeção, são intim am ente relacio-nadas, e a culpa é a evidência m aior dessa origem com um .

Mas existiria um a form a de ao m esm o tem po resguardar a ação da identifica-ção e escapar da culpa que a acom panha. Seria por m eio da perversão. Nesta haveria um a recusa (Verleugnung) em aceitar a castração, ou seja, um a espécie de aceitação da identificação, porém recusando o que nela é interdição. O perverso, dessa form a, por m eio de um artifício, m anter-se-ia à m argem da lei, através da assunção de um referente ( o fetiche) que, diferentem ente do neurótico, não carrearia consigo a interdição da m ãe. Ao “desvencilhar-se” dos avatares da lei paterna, o perverso ver-se-ia livre da culpa. Isso não im plica que ele tam bém não pague um preço por sua existência com o sujeito. Se o perverso liberta-se da interdição ( e da culpa que a acom panha) , torna-se, no entanto, escravo daquilo que a encobre. Da interdição você não pode gozar, ele se vê agora obrigado a sujeitar-se ao im perativo você deve buscar o gozo, sempre, e dessa única maneira.

A ciência, de um a form a diferente da perversão, tam bém se propõe am oral. Enquanto na perversão há um a recusa da castração, ao m esm o tem po que m an-tendo a presença viva daquilo ( fetiche) que garantiria a identificação, a ciência funciona com o se o processo de identificação ( e seu caráter paradoxal) não lhe concernisse. No cam po da ciência, a lei não se coloca com o questão. Ao se pro-por universal, e partir do princípio de que seus enunciados são irrefutáveis, a ciência rejeita (Ververfung) a necessidade de um a identificação fundadora, assim com o a possibilidade da transgressão. Um a lei só é tem atizável se confrontada com sua transgressão. Ao negar a possibilidade desta últim a, a ciência exclui de seu cam po de questionam entos a lei que estaria na sua gênese. A ciência, dessa form a, coloca-se exterior ao processo de internalização ( introjeção) e de seus avatares ( m oral e culpa) .

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Foucault, a psicologização da loucura só se tornou possível a partir do m om ento em que ela se deixou apreender por um a perspectiva m oral e pelo avatar de sua internalização — a culpa. Foi apenas a partir do m om ento em que a sociedade passou a tratar conscientem ente o louco de form a cruel, partindo do pressuposto que ele estaria m oralm ente errado, que a postulação de um a lógica do psíquico ( psico-logia) pôde ser form ulada. Essa internalização da loucura ( m anifestada fenom enicam ente pela culpa) teria possibilitado, com Freud, o aparecim ento da psicanálise. Se algum dia a ciência vier a conseguir estabelecer de form a indubi-tável e irredutível o fator causal das patologias psíquicas, inserindo-as em um a universalidade biológica, estas serão definitivam ente desculpabilizadas, e um a “psicologia” perderá sentido.

QUESTÕES ÉTICAS CONTEMPORÂNEAS

Agora que já estabelecem os a necessária vinculação da identificação freudiana com a culpa, podem os discutir algum as questões levantadas por autores contem -porâneos que talvez nos ajudem a problem atizar, ou m esm o colocar em dúvida, a universalidade dessa vinculação.

Recentem ente, em texto veiculado pela m ídia im pressa, ao trabalhar a adap-tação feita para o cinem a da obra de Patrícia Highsm ith, Slavoj Zizek defende que Tom Ripley, principal personagem criado por essa autora e protagonista de cinco de seus rom ances, seria ético, porém am oral ( ZIZEK, 2004) .

Em O talentoso Ripley, por exem plo, o personagem em questão, um jovem nova-iorquino sem dinheiro, fica fascinado pela vida fácil, elegante, luxuosa e social-m ente aceitável levada por Dickie, filho de usocial-m social-m agnata tasocial-m bésocial-m asocial-m ericano. Ripley, então, de m aneira engenhosa, m ata Dickie, assum e sua identidade e, fazendo-se passar por ele, organiza tudo de m odo que, após a m orte “oficial” da vítim a, herde sua fortuna. Quando isso acontece, o falso Dickie desaparece, deixando um a carta na qual anuncia o próprio suicídio e elogia Tom , que então reaparece, engana os investigadores policiais e até ganha a gratidão dos pais do “suicida”.

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sim bólica. Isso seria atestado pela sua incapacidade de viver intensam ente o sexo, intensidade esta que só pode existir no universo da lei sim bólica. Seria com o se Ripley vivesse em um “ vazio de subjetividade” , um indivíduo am ável e obse-quioso, em bora com algum a frieza, incapaz de viver com paixão o que quer que seja. Tratar-se-ia de um bom exem plo para um a certa “ norm alidade” , pro-posta e definida por Lacan com o sendo um a form a especial de psicose, “ um a form a de não ficar traum aticam ente preso à rede sim bólica, de conservar a ‘liberdade’ da ordem sim bólica” ( idem ) . Há aqui, segundo Zizek, um a disso-ciação entre m oralidade e ética. Apesar de ser capaz de identificar com clareza a direção de seu desejo e em penhar-se na sua realização ( ética) , este personagem não estaria subm etido a nenhum a lei externa introjetada ( m oral) , o que o deixa-ria livre da culpa.

Fica-nos, então, a questão se Ripley, desvinculado da culpa ( sem ser perver-so) , e não integrado com pletam ente à rede sim bólica ( talvez um a espécie de psicose) , teria sido afetado pela identificação no sentido freudiano do term o. Trata-se, aos olhos de Zizek, de um sujeito capaz de desejar ( ético) , porém ante-rior à assunção ( introjeção) da lei sim bólica. Será que podem os falar em um ideal do eu, ou estaria ele m ovido apenas pelo eu ideal? Encontrando-se em um a situação que seria anterior à introjeção sim bólica ( portanto desvinculado da cul-pa) , com o entender em Ripley a categoria de identificação? Poderíam os inclusi-ve nos perguntar sobre o real estatuto do desejo nesse personagem — é correto utilizarm os o term o “desejo”, em seu sentido psicanalítico, quando da inexis-tência de um a inscrição que o funde enquanto cam po?

Mas, por enquanto, aparentem ente estam os falando de um a situação específi-ca, na qual pensaríam os na ocorrência de um “defeito” na inscrição sim bóliespecífi-ca, um a espécie de exceção do que norm alm ente se espera. Contudo, o núm ero de situações que têm suscitado discussões com relação ao posicionam ento do sujeito frente à lei sim bólica está aum entando e se sujeitornando, por exem plo, um a im -portante questão para o sistem a judiciário.

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im putabilidade. Com o nos lem bra Célio Garcia, a “situação ideal desde sem pre considerada pela Filosofia e pela Doutrina Jurídica seria a coincidência entre responsabilidade civil e responsabilidade m oral” ( GARCIA, 2002, p.322) . O au-tor de um crim e tende a ser considerado inim putável e, portanto, não suscetível de cum prir pena, quando não é capaz de entender que o ato com etido é ilícito, incapacidade esta atestada pela ausência de sentim ento de culpa. Mas Célio res-salva que a nossa contem poraneidade, a partir do m om ento em “que nos dispu-sem os a adm itir sistem as cognitivos diferenciados” ( idem ) , tem apresentado si-tuações que resistem a estabelecer de form a consensual a im putabilidade, o que vem a com prom eter a noção de responsabilidade. Na França, por exem plo, há claram ente um a tendência em considerar cada vez m ais as perturbações psiquiá-tricas com o agravantes, e não atenuantes, as prisões tornando-se sucedâneas do hospital psiquiátrico, este últim o oficialm ente em vias de extinção. E o que dizer do nosso personagem Ripley? Devem os considerá-lo inim putável? Apesar de, por algum “defeito” de inscrição, ele não ter introjetado as leis sociais ( o que o libertaria da responsabilidade m oral) , devem os desresponsabilizá-lo por seus atos? Cyro Marcos da Silva, ao aliar sua experiência de juiz com sua atividade atual com o psicanalista, fala de um a responsabilidade ética:

“Na neurose, a responsabilidade é um determ inante ético: é a possibilidade que o

neurótico tem de sair de sua posição paralisada, entre culpa e irresponsabilidade. ( ...) A ética da psicanálise o leva a ocupar outro lugar na divisão, ou seja, não m ais dividi-do entre culpa e irresponsabilidade, m as entre, sim , responsabilidade e aquilo que lhe determ ina. Paradoxo ético!” ( SILVA, 1997 apud GARCIA, 2002, p.322)

Vem os a culpa sair de cena, a partir de um a outra postura ética. O fato de valorizar o desejo em detrim ento da culpa não significa que a psicanálise desres-ponsabilize o sujeito. Adquirir liberdade com relação à paralisia provocada pela culpa não im plica que o sujeito não se apresente com o responsável por aquilo que deseja e pelos atos que faz para realizá-lo. É a partir dessa responsabilização ética, inclusive, que ele vai poder passar a existir com o sujeito.

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do sistem a judiciário, desresponsabilizar o jovem infrator seria desconhecê-lo com o sujeito de seu ato, seria cavar um fosso entre o delinqüente e qualquer possibilidade de intervenção terapêutica.

Recentem ente, em cursos m inistrados em Paris, na École Norm ale Supérieure ( aos quais tivem os a oportunidade de freqüentar em 2000 e 2001) , Alain Badiou vem propondo um transcendental ligado a um a situação local. Não se trata de instância superior, alteridade inatingível ou estrutura universal, m as de um gran-de Outro interno, referido à situação. Um transcengran-dental im anente, que nos per-m ite pensar eper-m uper-m a identificação desvinculada da hegeper-m onia do siper-m bólico (Lacan dos anos 1950) , e que se apresenta localm ente, na esfera do real. Por estar na situação e m anifestar-se nela, diferentem ente de Kant, não se trata de estrutura velada, apesar de persistir com o estrutura de ordem , fixando as m edidas possíveis de identidade entre dois entes. De acordo com a discussão que estam os desenvol-vendo aqui, seria um a form a possível de pensarm os em um a identificação referida ao registro da im anência e, portanto, relativizada com relação à perspectiva de “introjeção”. No transcendental im anente proposto por Badiou, aquilo que de-term inaria o sujeito presentificar-se-ia em si, com o inscrição singular, não m ais tributária de um a determ inação externa ( e dos fenôm enos de culpa que a acom -panham ) . Esses cursos, porém , ainda não passaram para o papel. Badiou prom ete para breve publicação um a espécie de continuação de seu livro m aior (O ser e o

evento) , no qual esse tem a será fio condutor. Talvez encontrem os aí um a

contribui-ção a m ais para um a discussão que, ao que parece, longe está de term inar...

Recebido em 23/ 4/ 2004. Aprovado em 29/ 12/ 2004.

REFERÊNCIAS

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FOUCAULT, M. ( 1975) Doença m ental e psicologia, Rio de Janeiro: Tem po

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FRANÇA NETO, O. ( 1999) “ Considerações m atem áticas sobre o gozo na

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FREUD, S. ( 1972-1996) Edição standard brasileira das obras psicológicas com pletas de

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( 1924) “ A dissolução do com plexo de Édipo” , v. XIX. ( 1900) “ A inter pretação de sonhos” , v. IV e V. ( 1896) “ Carta 52” , v. I.

(12)

( 1923) “ O ego e o id” , v. XIX.

( 1921) “ Psicologia de grupo e a análise do ego” , v. XVIII. ( 1914) “ Sobre o narcisism o: um a introdução” , v. XIV. ( 1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” , v. VII.

GARCIA, C. ( 2002) “ Lacan e com panhia” , in SAFATLE, V. ( org.) , Um lim ite

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ZIZEK, S. ( 2004) “ Sensibilidade para a inércia” , in Caderno Mais!, Folha de

S. Paulo, São Paulo, 8 de fevereiro, p.4-6.

Oswaldo França N eto

Referências

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