Reforma tributária e
o Imposto Único
>Marcos Cintra
Introdução
A reforma tributária vem sendo levada em banho-ma-ria há cerca de vinte anos no Brasil. Nesse período a burocracia prevaleceu. Medidas isoladas em um ou outro imposto visaram somente aumentar a arrecadação. Essas ações isoladas torna-ram a estrutura cada vez mais complexa, impusetorna-ram custos crescentes para as empresas e o poder público e aprofundaram a desigualdade na distribuição do ônus entre os contribuintes.
Usualmente, quando se discute a reforma tributária, fundamentos como eficiência dos mecanismos de arrecadação, equidade, custos, incidências e combate à sonegação ficam em segundo plano. Esses pontos devem ser priorizados na constru-ção de uma estrutura de impostos justa e que estimule a pro-dução.
O Brasil tem a estrutura de impostos mais complexa do planeta. São inúmeras as formas de tributação. Há cerca de doze impostos e dezenas de taxas e contribuições que contem-plam uma infinidade de regras que até o mais experiente dos tributaristas tem dificuldade para assimilar. Todo ano o Fórum
Econômico Mundial mostra que essa para-fernália torna o sistema tributário brasileiro o mais ineficiente do mundo.
Desde 1990 proponho o Imposto Único como alternativa para o país. A pro-posta demarcou uma linha divisória entre o pensamento ortodoxo, baseado na ma-nutenção do atual sistema de impostos de-claratórios, e uma corrente inovadora que propõe uma estrutura simples, automática, abrangente e de baixo custo, consubstan-ciada na tributação sobre a movimentação financeira realizada através do sistema ban-cário.
A ideia do imposto único1 é secular.
Surgiu no século XVIII com os fisiocratas, que defendiam a taxação da terra como única fonte de extração de receita para o governo. O Canadá e os Estados Unidos vêm debaten-do a instituição de impostos sobre as
ope-“A ideia do imposto único é secular. Surgiu no século
XVIII com os fisiocratas, que defendiam a taxação da
terra como única fonte de extração de receita para o
“O Imposto Único traz inúmeras vantagens de ordem tributária. A
fiscalização torna-se mais simples; os critérios de taxação ficam mais
transparentes; os custos por parte do poder público, e também os custos do
setor privado vinculados às exigências tributárias, tornam-se menores.”
rações bancárias. Em alguns países, como a Argentina, a Colômbia e a Austrália, tributos sobre transações financeiras têm sido apli-cados. A França discutiu um Imposto Único no pós-guerra.
A questão que sempre norteou a in-tenção de se criar um sistema simples de tri-butação foi a busca de uma base tributável ampla o bastante a ponto de gerar receita suficiente para o poder público.
A transação financeira como base de incidência tributária surgiu com a supre-macia da moeda escritural sobre a moeda manual e com a intensa informatização das operações bancárias. A convergência entre a busca da unicidade tributária e a solidi-ficação de um sistema monetário baseado na moeda escritural eletrônica deu origem à proposta do Imposto Único no Brasil.
A principal razão de seu ressurgi-mento em nosso país advém de razões histó-ricas. Ainda que o Imposto Único tenha uma longa e respeitável tradição na evolução do pensamento econômico, ele nunca pode se materializar, pois em nenhuma circunstân-cia histórica uma sociedade reuniu as duas condições básicas para sua efetiva operacio-nalização. A primeira é a existência de um sistema bancário altamente informatizado,
com um sistema nacional de compensação de cheques e do-cumentos. A segunda é a predisposição cultural da sociedade de não usar moeda manual, substituindo-a pelas mais variadas formas de moeda escritural.
O Brasil preenche plenamente esses dois quesitos. Pos-sui um dos sistemas bancários mais desenvolvidos e informa-tizados do mundo, com padrões tecnológicos superiores aos encontrados em países desenvolvidos, como os Estados Unidos ou a União Européia. Em realidade, o “Brasil é referência mun-dial na tecnologia bancária”2. Além disso, é uma das economias mais desmonetizadas do planeta e que, culturalmente, já ab-sorveu a inevitável substituição da moeda manual pela moeda escritural, principalmente pela moeda eletrônica3.
“Não haveria mais Imposto de Renda
sobre a pessoa física e sobre a pessoa
jurídica; não haveria tributação sobre
a circulação, como o ICMS e o ISS; os
salários não sofreriam retenção de
qualquer tipo, como antecipação de
Imposto de Renda; não haveria mais
necessidade de escrituração fiscal ou
tributária nas empresas; não haveria
mais qualquer forma de declaração
para impostos de renda, de serviço,
de circulação ou de qualquer outro
tipo; não haveria mais necessidade de
manutenção das múltiplas estruturas de
“O Imposto Único, tomando-se a
experiência da CPMF como
exem-plo, acarretaria a virtual
elimina-ção da sonegaelimina-ção, da corrupelimina-ção
fiscal e da economia informal, com
custos administrativos ou de
fisca-lização pouco significativos”
Características do Imposto Único
e suas vantagens
O Imposto Único traz inúmeras van-tagens de ordem tributária. A fiscalização torna-se mais simples; os critérios de taxa-ção ficam mais transparentes; os custos por parte do poder público, e também os custos do setor privado vinculados às exigências tributárias, tornam-se menores. A simplifi-cação do processo fiscal é evidente quando toda a arrecadação se concentra em um úni-co tributo, incidente sobre uma única base.
São dois os pontos fundamentais da proposta do Imposto Único. Em
primei-ro lugar, a existência de apenas um imposto. Todos os demais seriam extintos, com exceção feita aos impostos extra-fiscais, como no caso das tarifas aduaneiras e outros tributos não--arrecadatórios, utilizados como instrumentos de intervenção na atividade econômica. Não haveria mais Imposto de Renda para a pessoa física e para a pessoa jurídica; não haveria tribu-tação sobre a circulação, como o ICMS e o ISS; os salários não sofreriam retenção de qualquer tipo, como antecipação de Im-posto de Renda; não haveria mais necessidade de escrituração fiscal ou tributária nas empresas; não haveria mais qualquer forma de declaração para impostos de renda, de serviço, de circulação ou de qualquer outro tipo; não haveria mais neces-sidade de manutenção das múltiplas estruturas de fiscalização hoje existentes.
exclusi-“O Imposto Único,
tomando-se a
experiência da CPMF
como exemplo,
acarretaria a virtual
eliminação da
sonegação, da corrupção
fiscal e da economia
informal, com custos
administrativos ou
de fiscalização pouco
significativos
”
vamente para as transações bancárias, em substituição à multiplicidade das atuais bases de tributação. Assim, toda vez que qualquer agente econômico efetuar um pa-gamento através do sistema bancário have-rá a incidência de imposto cobrado sobre o valor da transação. O tributo será dividido em partes iguais e cobrado do emitente e do beneficiado. Vale lembrar que o imposto não incidirá sobre transações nos mercados financeiro e de capital.
O Imposto Único, tomando-se a experiência da CPMF como exemplo, acar-retaria a virtual eliminação da sonegação, da corrupção fiscal e da economia informal, com custos administrativos ou de fiscaliza-ção pouco significativos. A arrecadafiscaliza-ção tri-butária seria efetuada automaticamente a
A cada transação, a conta credora e a conta devedora seriam debitadas em um percentual fixo do valor da transação. Assim, em toda transação efetuada mediante cheque ou qualquer ou-tro tipo de ordem de pagamento, o sistema automaticamente transferirá o produto de arrecadação à conta dos tesouros fede-ral, estaduais e municipais, segundo critérios predefinidos.
Esse sistema torna impraticável qualquer tentativa de sonegação, pois bastaria uma fiscalização nos sistemas de com-pensação do setor bancário para que ela fosse totalmente eli-minada.
O mais significativo nessa proposta é que a alíquota do imposto pode ser baixa. A experiência da CPMF mostrou que, apesar de todas as imunidades constitucionais existentes, e mesmo não havendo adequada fiscalização da Receita Fede-ral4 nos sistemas de pagamentos bancários, a arrecadação foi
significativa, e indica que uma alíquota de 2,81% em cada lado da transação seria capaz de gerar o equivalente a 80% da atual carga tributária. Vale dizer que, esse volume equivale a toda a arrecadação de tributos federais, estaduais, municipais de na-tureza arrecadatória. A diferença se refere a tributos regulató-rios como os de comércio exterior e o ITR, taxas nos três níveis de governo, INSS de empregado e contribuições que configu-ram poupança do trabalhador (PIS e FGTS).
ou depósito de numerário (moeda circulan-te) do sistema bancário poderia ser taxado de acordo com uma alíquota que em média reproduzisse o número de transações que se realizasse com essa mesma moeda até seu retorno ao sistema bancário.
Portanto, esse sistema de tributação eliminaria a sonegação e implicaria signifi-cativa liberação de recursos reais. Haveria uma sensível redução nos custos de pro-dução das empresas, no custo da máquina pública e nos preços, concomitantemente com a possibilidade de sensível redução na carga tributária. Certamente, alguns desses ganhos seriam do tipo once and for all, mas seriam suficientes para permitir um expres-sivo ajuste fiscal e uma sensível recuperação da capacidade de investimento do país.
As críticas ao Imposto Único e o
projeto no Congresso
Desde que a ideia do Imposto Único
“Desde que a ideia do Imposto Único
foi lançada, em 1990, quase todas as
teses elaboradas pelos seus críticos
foram refutadas através da
experiên-cia da CPMF. Hoje os adversários
des-sa proposta de tributação se apegam
apenas a uma delas, inerente a essa
metodologia de arrecadação, que é a
cumulatividade”
foi lançada, em 1990, quase todas as teses elaboradas pelos seus críticos foram refutadas através da experiência da CPMF. Hoje os adversários dessa proposta de tributação se apegam apenas a uma delas, inerente a essa metodologia de arreca-dação, que é a cumulatividade. Porém, a comparação desse tipo de imposto com a alternativa consubstanciada no imposto sobre valor agregado revela que a tributação sobre a movimen-tação financeira, mesmo cumulativa, gera mais benefícios.
O Imposto Único é inegavelmente um imposto cumulativo, incidindo sucessivamente em cada etapa do pro-cesso econômico que se traduza numa movimentação finan-ceira. Mas isso em nada o descredencia como bom imposto. Aqui é preciso advertir que a exigência da não-cumulatividade é apenas um fetiche tolo. Não existe imposto perfeitamente não cumulativo, a não ser na imaginação teórica descolada da realidade, ou no Diário Oficial.
Os impostos sobre valor adicionado seriam impraticá-veis se não comportassem, como de fato comportam em todos os lugares do mundo em que são praticados, as mais diversas exceções e regimes especiais que lhes conferem graus apreciá-veis de cumulatividade.
O Brasil tem uma parafernália de tributos cumulati-vos, dentre os quais, curiosamente, alguns são execrados (parte do PIS-Cofins), outros tolerados (ISS, parte do ICMS e do IPI),
ou-“O Brasil tem uma parafernália de tributos cumulativos, dentre
os quais, curiosamente, alguns são execrados (parte do
PIS-Co-fins), outros tolerados (ISS, parte do ICMS e do IPI), outros ainda
aci-igualmente cumulativos (IRPJ presumido e SIMPLES). O Imposto Único não é diferente deles sob esse aspecto, mas exibe as vanta-gens notáveis des critas acima, é simples e de baixo custo.
Ademais, os conhecidos postulados da teoria do second best e as conclusões da moderna teoria da tributação ótima mos-tram que não se pode afirmar a priori, que um imposto cumulativo seja menos eficien-te que os não cumulativos. Simulações mos-tram que um imposto cumulativo com uma alíquota baixa causa menos distorção sobre os preços relativos comparativamente a um sistema tradicional com tributos sobre valor agregado com alíquota alta. Por exemplo, um imposto sobre movimentação financei-ra com alíquota de 2,81% tem impacto, por exemplo, de 16% sobre os preços da indús-tria e no caso da tributação sobre o valor agregado (ICMS, IPI e INSS patronal) o ônus é de 45%5.
Cumpre lembrar que está parada há doze anos no Congresso Nacional a PEC 474/01, que cria o Imposto Único sobre mo-vimentação financeira. O projeto foi aprova-do por unanimidade pela Comissão de Re-forma Tributária da Câmara dos Deputados em 2002.
1- Cintra, Marcos, Por uma revolução tributária, Folha de S. Paulo, 14 jan.1990; transcrito em Al-buquerque, Marcos Cintra C. de (organizador), Tributação no Brasil e o Imposto Único, Makron Books, São Paulo, 1994.
2- Ver CORREA FONSECA, C. E. , Brasil é referên-cia mundial em tecnologia bancária , Valor Eco-nômico, 30 abr. 2002. Neste artigo, o diretor de Tecnologia da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) reproduz dados de pesquisa reali-zada pela empresa McKinsey & Company e pela Fundação Getúlio Vargas, e afirma que “os ban-cos são os maiores investidores brasileiros em tecnologia, destinando anualmente 8,5% de seu patrimônio para aprimorar o parque tecnológico instalado, mais do que o dobro da média nacio-nal”. O início do funcionamento do Sistema de Pagamentos Brasileiro, SPB, a partir de abril de 2002, atesta o avanço da informatização bancá-ria no Brasil, onde a compensação bancábancá-ria co-meça a ser feita em tempo real.
pagamento no país advém do processo hiperinflacionário que duran-te cerca de 40 anos existiu no país. Naquelas circunstâncias, a moeda manual não-indexada foi abandonada pelos agentes econômicos, e a atividade bancária, estimulada pelo elevado float bancário, tornou-se tão mais rentável quanto mais rápida fosse a capacidade de captação e aplicação de depósitos junto ao público. Daí a informatização e o hiperdesenvolvimento da atividade bancária entre nós.
4- Ver Anexo V de Cintra (2003). [CINTRA Marcos, A Verdade sobre o Imposto Único, LCTE, São Paulo, 2003].Nesse texto, o Secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, em resposta a pergunta formulada pelo autor, evidencia a precariedade dos mecanismos de fiscalização da CPMF. A fiscalização deficiente fica evidenciada nas notícias surgi-das na imprensa em abril e maio de 2002 segundo as quais o Banco Central revelou a existência de mecanismos de burla da cobrança da CPMF oferecidos pelos bancos aos seus clientes de maior porte, e que resultou em autuações de bancos e de seus clientes feitas pela Receita Federal. As fraudes tornaram-se possíveis a partir de exceções permi-tidas na cobrança da CPMF para a movimentação de contas corren-tes de titularidade dos próprios bancos ou de entidades financeiras a eles associadas, em conjunto com a permissão de um endosso nos cheques. Ver Carta Capital, 15/05/2002; Valor Econômico, 24/04/2002; 09/05/2002. Cumpre lembrar que o projeto do Imposto Único Fede-ral, em tramitação no Congresso Nacional, inclui providências sim-ples que praticamente impossibilitariam tais fraudes.
5- Para obter a metodologia de cálculo e a comparação dos impactos do Imposto Único e de um sistema tributário tradicional sobre os pre-ços de 110 produtos ver capítulo 2 de Bank Transaction: pathway to the single tax ideal deMarcos Cintra, 2009, disponível em http://mpra. ub.uni-muenchen.de/16710/1/MPRA_paper_16710.pdf