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Analogias e contrastes na poesia de Alphonsus de Guimaraens e de Edgar Allan Poe

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Academic year: 2017

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JOSÉ CARLOS AISSA

ANALOGIAS E CONTRASTES NA POESIA

DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS E DE EDGAR ALLAN POE

Tese apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Concentração: Teoria da Literatura)

Orientador: Prof. Dr. Carlos Daghlian

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Aissa, José Carlos.

Analogias e contrastes na poesia de Alphonsus de Guimaraens e de Edgar Allan Poe / José Carlos Aissa. - São José do Rio Preto : [s.n], 2006

140 f. ; 30 cm.

Orientador: Carlos Daghlian

Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas

1. Literatura comparada - Brasileira e americana. 2. Literatura comparada - Americana e brasileira. 3. Guimaraens, Alphonsus de, 1870-1921. 4. Poe, Edgar Allan, 1809-1849. I. Daghlian, Carlos. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título.

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COMISSÃO JULGADORA

Titulares

_________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Daghlian - Orientador

_________________________________________________ Profª. Drª. Giséle Manganelli Fernandes

_________________________________________________ Profª. Drª. Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto _________________________________________________

Profª. Drª. Maria Clara Bonetti Paro

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AGRADECIMENTOS

Um profundo sentimento de gratidão:

por todos os professores que tive até agora, que me ajudaram a perceber que é o uso do meu cérebro, e não o dos meus olhos, que determina como eu enxergo o mundo;

por todos os amigos, independentemente de rótulos de relacionamentos sociais, que me incentivaram com seu carinho e amor em momentos de cansaço e esmorecimento;

pela Professora Giséle Manganelli Fernandes, que me apresentou ao Professor Carlos Daghlian;

pelos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação da UNESP-SJRP; estes, por seu eficiente e sempre cordial auxílio nos trâmites administrativos; aqueles, em especial o Professor Rogério Chociay, por sua disposição em ajudar e pelas sugestivas conversas;

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Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome. Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

[...]

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

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SUMÁRIO

RESUMO ...8

ABSTRACT...9

INTRODUÇÃO...10

CAPÍTULO I - A MELANCOLIA COMO INGREDIENTE ESTÉTICO...16

CAPÍTULO II - ASPECTOS GÓTICOS DA POESIA MELANCÓLICA...21

CAPÍTULO III - DO ESTRANHO E DO SUBLIME...36

CAPÍTULO IV - ASPECTOS MELANCÓLICOS DO SUBLIME GÓTICO ...47

CAPÍTULO V - ASPECTOS GÓTICO-MELANCÓLICOS NA POESIA DE EDGAR ALLAN POE...60

CAPÍTULO VI - ASPECTOS GÓTICO-MELANCÓLICOS NA POESIA DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS... 85

CAPÍTULO VII - ALGUNS ASPECTOS DA RELAÇÃO EROS/TÂNATOS EM POEMAS DE EDGAR ALLAN POE E DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS...98

CONSIDERAÇÕES FINAIS...116

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...120

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RESUMO

O propósito desta tese é o de estabelecer analogias e contrastes entre Edgar Allan Poe

e Alphonsus de Guimaraens em relação aos preceitos estéticos que decidiram imprimir a sua

produção poética, mormente quanto aos temas de amor (Eros) e morte (Tânatos). Procuramos

demonstrar que esses matizes temáticos são trabalhados sob a angulação do

gótico-melancólico a fim de se atingir o sublime. Nos quatro primeiros capítulos, teorizamos sobre

como o gótico, a melancolia e o sublime podem ser alinhavados poeticamente. No quinto e

sexto capítulos, discutimos os modi operandi que Poe e de Alphonsus empregam nessa

triangulação entre traços góticos, melancolia e o sublime. No último capítulo, valemo-nos em

grande parte das teorias freudianas para demonstrar qual o resultado do jogo

gótico-melancólico entre Eros e Tânatos na poesia romântico-simbolista desses artistas.

Palavras-chave: poesia gótica; melancolia; estranho; sublime; Edgar Allan Poe; Alphonsus

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ABSTRACT

The intent of this study is to draw analogies and contrasts between Edgar Allan Poe

and Alphonsus de Guimaraens vis-à-vis the aesthetic principles they decided to impress upon

their poetic work, chiefly as far as the themes of love (Eros) and death (Thanatos) are

concerned. We have endeavored to describe that these poetic overtones are addressed from a

gothic-melancholic angle in order to reach the sublime. In the first four chapters, we theorize

on how the gothic, melancholy and the sublime can be intertwined poetically. In the fifth and

sixth chapters, we discuss the modi operandi that Poe and Alphonsus employ in this tripartite

relationship of gothic motifs, melancholy and the sublime. In the last chapter, we make use of

Freudian theories to a large extent so as to demonstrate the outcome of this

gothic-melancholic interplay between Eros and Thanatos in the romantic-symbolist poetry of these

artists.

Keywords: gothic poetry; melancholy; uncanny; sublime; Edgar Allan Poe; Alphonsus

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INTRODUÇÃO

A Natureza é uma Casa Assombrada mas a Arte uma Casa que procura ser assombrada.1 O escopo deste estudo é o de investigar a presença de traços góticos na poesia de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) e de Edgar Allan Poe (1809-1849) a fim de verificar como o manejo artístico desses elementos corrobora com o tom melancólico característico em ambos os poetas. Ademais, objetivamos mostrar a trajetória de transformação dessa melancolia em diferentes momentos de sua respectiva produção literária, seja por simples decisão estética, declarada ou não, seja pela alteração da visão de mundo de cada um deles, mas que os fez chegar a posicionamento semelhante quanto ao amor, à vida e à morte.

A fase de problematização levou em conta os abundantes comentários em textos críticos que ligam um autor ao outro, quer por meio de leitura direta de textos de Poe por Alphonsus, quer via triangulação com Charles Baudelaire e outros simbolistas franceses, principalmente com Paul Verlaine, na opinião de muitos.

Falamos de leitura direta, pois não há dúvida de que Alphonsus2 conhecia a obra de Poe, mesmo que não fosse integralmente. Em Correspondência de Alphonsus de Guimaraens, volume organizado por Alexei Bueno, encontra-se carta, datada de 15 de julho de 1919, remetida a João Alphonsus, filho mais velho, em que o poeta mineiro comenta a visita de Mário de Andrade, descrito como um rapaz de alta cultura, sabendo de cor, em inglês, todo o Corvo de Poe. (BUENO, 2002, p. 26). Em outra, com a data de 5 de agosto de 1919, também endereçada a João Alphonsus, lemos: A tua tradução ou, antes, paráfrase, da poesia de Poe, está belíssima (BUENO, 2002, p. 27). Além disso, sabemos que o comentado poema A Cabeça de Corvo , parte de Kiriale, publicado pela primeira vez no jornal Gazeta de

1

Nature is a Haunted House but Art a House that tries to be Haunted. Frase de Emily Dickinson em uma de suas cartas a Thomas Wentworth Higginson. (Apud WARDROP, 1996, p. 1)

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Notícias do Rio de janeiro em 16 de setembro de 1893 (GUIMARAENS, 2001, p. 551)3, apresenta fortíssima intertextualidade com The Raven (1845) do poeta estadunidense.

Quanto à triangulação Poe / Baudelaire et alii / Alphonsus, temos há bastante tempo referências nesse sentido desde Andrade Muricy com seu Panorama do Movimento

Simbolista Brasileiro, cuja primeira edição é de 1962, com no mínimo vinte menções à

influência de Poe, perpassando por outros livros importantes como A Estética Simbolista (1985), O Simbolismo (1994) e A Santidade do Alquimista Ensaios sobre Poe e Baudelaire

(1997), todos de Álvaro Cardoso Gomes, com reflexos em artigos, dissertações e teses. Cremos necessário destacar: a) de Francine Fernandes Weiss Ricieri, A Imagem poética em

Alphonsus de Guimaraens: espelhamentos e tensões, de 2001, tese apresentada à

Universidade Estadual de Campinas, certamente fruto de sua pesquisa de mestrado intitulada

Alphonsus de Guimaraens (1870-1921): Bibliografia Comentada, apresentada à Faculdade de

Ciências e Letras da UNESP-Assis, em 1996; b) a dissertação de Ângela Maria Salgueiro Marques, O Sublime na Poesia de Alphonsus de Guimaraens: Presença da Morte (1998), Universidade Federal de Minas Gerais. Embora nenhuma das duas pesquisadoras apresente um cotejo amplo entre as produções poéticas de Poe e de Alphonsus, mencionam apenas alguns pontos em comum.

Em língua inglesa, nosso levantamento bibliográfico vasculhou artigos e livros citados na American Literary Scholarship de 1963 a 2003, bem como bancos virtuais de dissertações e teses na Inglaterra e nos Estados Unidos disponibilizados na Internet. Não pudemos encontrar nada que relacionasse os dois poetas sob o ângulo que esta pesquisa propõe.

Em francês, sabemos existir o trabalho Les influences françaises sur Alphonsus de

Guimaraens (1970), de Aline Anglade-Aurand, ao qual não tivemos acesso; contudo, os

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textos que o citam não revelam nenhum aspecto que nossas outras leituras e reflexões não tenham abordado suficientemente.

A partir desse ponto, ficou patente que nada precisaria ser feito no intuito de relacionar Poe e Alphonsus em termos de influência direta ou indireta, até porque há que se levar em consideração que o Zeitgeist pode tê-los munido de percepções artísticas semelhantes. Assim, decidimos nos centrar no que seria mais incomum e original: explorar como teriam sido trabalhados os motivos góticos para criar um tipo de poesia marcada pelo fantástico, justamente porque o fantástico pareceria ter sido reservado para a prosa, pelo menos no entendimento de teóricos de renome, como Tzvetan Todorov, em Introdução à Literatura

Fantástica (1973):

Se, lendo um texto, recusamos qualquer representação e consideramos cada frase como pura combinação semântica, o fantástico não poderá aparecer; este exige, recordamos, uma reação aos acontecimentos tais quais se reproduzem no mundo evocado. Por essa razão, o fantástico não pode subsistir a não ser na ficção; a poesia não pode ser fantástica (ainda que haja antologias de poesia fantástica ...). Resumindo, o fantástico implica ficção. (1975, p. 68)

Entretanto, é bastante reconhecido o fato de que os poetas ingleses da Graveyard

School do século XVIII, teriam colaborado em muito para o gótico e o fantástico com seus

poemas sobre as vicissitudes da vida e da frágil condição da mortalidade, sobre a solidão da morte e do túmulo e sobre a angústia proveniente da perda do ser amado. Robert Blair com The Grave (1743), Edward Young com seus nove volumes de The Complaint, or Night

Thoughts on Life, Death, and Immortality (1742-45), and Thomas Gray com "Elegy Written

in a Country Churchyard" (1751), para mencionar apenas alguns dos principais, contribuíram para o desenvolvimento do que se denominaria de romance gótico. Sandra Guardini Vasconcelos, em Dez Lições sobre o Romance Inglês do Século XVIII (2002), salienta que

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Nesse tipo poemático, não se trabalhou apenas um vocabulário específico para o universo imagético do sombrio, do macabro e do fantástico, mas também gerou-se um gosto por esse universo, que abandonava o racionalismo e buscava o psicológico e a introspecção melancólica, o que prefigurou a tendência romântica de abordar a beleza em sentimentos

negativos , como se identifica em Dejection: an Ode

(1802) de Samuel Taylor Coleridge e Ode to Melancholy (1819) de John Keats.

A propósito dessa união nascida entre a sublime beleza melancólica, o estranho e o gótico, Umberto Eco, em A História da Beleza (2004), mostra que

A partir da segunda metade do século XVIII, afirma-se efetivamente o gosto pelas arquiteturas góticas que, em relação às medidas neoclássicas, não podem deixar de parecer desproporcionais e irregulares, e esse gosto pelo irregular e o informe leva, justamente, a uma nova apreciação das ruínas. [...] O gosto pelo gótico e pelas ruínas não caracteriza apenas o universo do visivo, mas também a literatura [...] Paralelamente, florescem a poesia cemiterial, a elegia fúnebre, uma espécie de erotismo mortuário que irá se prolongar e chegar ao ápice da morbidez com o Decadentismo do século XIX (mas que já fizera sua aparição na poesia seiscentista [...] Assim, enquanto alguns representam paisagens ou situações aterrorizantes, outros interrogam-se sobre o porquê do horror suscitar deleite, dado que até então a idéia de deleite e prazer fora associada, ao contrário, à experiência do Belo. (2004, pp. 285 e 288).

Nesse momento de nossa pesquisa, entendemos que o gótico e a melancolia, e os subprodutos dessa relação, constituíam-se na matéria-prima poética para Poe e Alphonsus. Ademais, percebemos serem esses dois poetas vozes herdeiras e ecoantes, cada um a seu modo, da beleza bizarra, mas sublime. Ratifica essa idéia Octavio Paz, no capítulo Analogia e Ironia de Os Filhos do Barro do Romantismo à Vanguarda (1974):

Na realidade, os verdadeiros herdeiros do romantismo alemão e inglês são os poetas posteriores aos românticos oficiais, de Baudelaire aos simbolistas. [...] A poesia francesa da metade do século passado [...] é inseparável do romantismo alemão e inglês: é sua prolongação, mas também sua metáfora. É uma tradução, na qual o romantismo volta-se sobre si mesmo, contempla-se e se transpassa, se interroga e se transcende. É o outro romantismo europeu. (1984, p. 92)

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Octavio Paz, no mesmo capítulo citado acima, propõe uma explicação que se aplica ao procedimento estético adotado por Alphonsus e Poe:

O grotesco, o estranho, o bizarro, o original, o singular, o único, todos estes nomes da estética romântica e simbolista não são mais que distintas maneiras de se dizer a mesma palavra: morte. Em um mundo no qual desapareceu a identidade ou seja, a eternidade cristã , a morte se transforma na grande exceção que absorve todas as outras e anula as regras e leis. O recurso contra a exceção universal é duplo: a ironia a estética do grotesco, o bizarro, o único e a analogia, a estética das correspondências. (1984, p. 100)

Esse desaparecimento da identidade citado no primeiro fragmento de Octavio Paz chamou nossa atenção. Como teriam Poe e Alphonsus exercitado seus talentos poéticos nesse macrocontexto de perda identitária? A que postura esse incômodo existencial os teria impelido? Nicole Berry, em O Sentimento de Identidade (1987), explica que

O mal estar em nossa sociedade está em ser uma sociedade de massa , escreve J. B. Pontalis. O perigo de se encontrar afogado na massa desperta provavelmente a necessidade de se sobressair, de afirmar sua identidade, de descobrir o valor da própria vida. A necessidade de afirmar uma identidade individual aumenta à proporção que o fato de pertencer a um grupo, a uma família, a uma etnia, a uma religião mobiliza menos as paixões e os ideais. [...] E podemos buscar em nossas origens os fundamentos de nossa identidade, origem de território, de língua, de cultura ou de nome, ou, ao contrário, querer forjar em nós uma identidade pessoal [...] Cada um de nós se encontra diante de tal escolha se é que ela existe entre a fidelidade e a ruptura. (1991, pp. 14-15)

Essa ponderação de Berry nos conduziu à noção de que Poe e Alphonsus teriam feito escolhas estilísticas para forjar sua identidade artística. O que nos quisemos sondar, então, foi

modus operandi desses poetas, que burilaram versos com instrumentos estéticos muito

semelhantes em nações e culturas diferentes, cada um compondo obras ímpares.

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No Capítulo II, conceituamos o termo gótico numa breve retrospectiva, desde aquela que tenha sido sua primeira inserção em arte até chegar a seu uso em literatura. Essa delimitação conceitual é necessária para se poder discutir quais seriam as imagens góticas empregadas na consecução de um tom melancólico no discurso poético. A discussão é feita num viés comparativo entre a visão gótico-melancólica de Poe e a de Alphonsus.

O estranho e o sublime são o alvo de discussão do Capítulo III. Já que a beleza gótica tem essas duas faces, buscamos as teorizações de Sigmund Freud sobre o estranho (das

Unheimliche) e de seu possível elo com o sublime tal como explanado por Vitor Hugo no

Prefácio de Cromwell , em que disserta sobre o grotesco e o sublime. Vemos nessa ligação os fundamentos para compreender como os traços góticos na poesia podem corroborar no surgimento do sublime, o que será a base da investigação do quarto capítulo, isto é, procuramos explicitar o alinhavo entre aspectos góticos e melancólicos como ferramenta poética de Poe de Alphonsus no atingimento da sublimidade.

Os capítulos V e VI ocupam-se especificamente de identificar e analisar os aspectos góticos e melancólicos em alguns poemas centrais da obra de Alphonsus e de Poe, ressaltando a técnica aplicada e seu posicionamento estético.

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CAPÍTULO I

A MELANCOLIA COMO INGREDIENTE ESTÉTICO

Ah quanta melancolia! Quanta, quanta solidão! Aquela alma, que vazia, Que sinto inútil e fria Dentro do meu coração!

Que angústia desesperada! Que mágoa que sabe a fim! Se a nau foi abandonada, E o cego caiu na estrada Deixai-os, que é tudo assim.

Sem sossego, sem sossego, Nenhum momento de meu Onde for que a alma emprego Na estrada morreu o cego A nau desapareceu.4 Soren Kierkegaard (1813-1855) indaga: O que é um poeta? Um homem infeliz que oculta profunda angústia em seu coração, mas cujos lábios são de tal forma moldados que quando suspiros ou gemidos passam por eles soam como linda música.5 Com isso em mente, procuraremos de forma breve demonstrar a relevância da melancolia como recurso estético, visto que esse desespero de alma parece encontrar refúgio na permanente busca de sentido por meio da criação artística, como discute Aristóteles em O Homem de Gênio e a Melancolia: Por que todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes são manifestadamente melancólicos[...]? (1998, p. 81).

Muito se tem escrito sobre melancolia, que também já recebeu diversos nomes: trevas, sombras sem fim, sol negro, bílis negra, nevoeiro, tempestade em céu sereno, certeza infeliz, acédia, tédio, neurose narcísica, etc. Para rememorar apenas algumas obras significativas sobre o assunto, temos o clássico de Robert Burton, The Anatomy of Melancholy (1621), que proporciona uma visão mais clínica sobre essa emoção. Dignos de nota também são: Luto e

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Pessoa, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p.504.

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Melancolia (1917) de Sigmund Freud e O Sol Negro Depressão e Melancolia (1987), de

Julia Kristeva. Num âmbito mais brasileiro, há o Retrato do Brasil Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, de Paulo Prado (1928) e o recente Saturno nos Trópicos A Melancolia Européia Chega ao Brasil (2003) de Moacyr Scliar. Ressalvemos não ser pretensão deste estudo

explorar todas as possibilidades de explicações sociológicas, antropológicas ou psicanalíticas que circundam esse tópico, apesar de aqui e acolá valermo-nos de apreciações e comentários de alguns desses trabalhos citados. Ater-nos-emos, com efeito, à percepção da melancolia em seu uso literário mais imediato, mormente no que possa aclarar nosso percurso nas discussões sobre a poesia de Alphonsus de Guimaraens e de Edgar Allan Poe.

A melancolia, como é usada por Alphonsus e Poe, tem natureza dual, ou seja, existe a face positiva e a negativa desse sentimento. Embora haja a sensação de perder algo que lhes é caro, impossível de se reaver, ela envolve o prazer da reflexão e contemplação sobre esse objeto de desejo e sobre a própria existência humana. Assim, em literatura, ao menos, não vemos uma sobreposição entre depressão e melancolia, já que a primeira, em geral, debilita, desmotiva, imobiliza; é um estado que só contém dor. Na melancolia, a dor é um trampolim para o prazer da auto-reflexão, que pode ser sublime.

A melancolia pode ser causada por inúmeros fatores externos. No entanto, a solidão, mais que isso, a consciência da solidão, é causa e conseqüência da melancolia, pois melancólico se fica por causa da solidão, isto é, do isolamento daquilo que se ama/deseja, e, quando se está melancólico, busca-se a solidão. É o que reafirma Pessoa nos dois primeiros versos epigráficos deste capítulo: Ah quanta melancolia! Quanta, quanta, solidão! .

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No caso de Poe e Alphonsus, e provavelmente de outros, a melancolia poética não é fruto de uma doença que atormenta o poeta, mas um elevadíssimo nível de consciência, ainda que doloroso, sobre o eterno conflito entre os desejos humanos e a natural e inevitável frustração de não os ver realizados. A doença é a própria existência e a melancolia é apenas um sintoma; ela produz lucidez, uma vez que a felicidade deste mundo cria um amortecimento espiritual ilusório porque é fugaz. A melancolia é o prazer que nos recorda de tudo que nos é dileto, mas também nos conscientiza da impermanência de tudo. Esse estado de consciência é sublime, pois retira o ser humano da condição de mero animal no universo e lhe dá a esperança de que tenha direito a um estado vital superior.

Martin Heidegger nos oferece a seguinte observação:

Os mortais são aqueles que podem ter a experiência da morte como morte. O animal não o pode. Mas o animal tampouco pode falar. A relação essencial entre morte e linguagem surge como um relâmpago, mas permanece impensada. Ela pode, contudo, dar-nos um indício relativo ao modo como a essência da linguagem nos reivindica para si e nos mantém desta forma junto de si, no caso de a morte pertencer originariamente àquilo que nos reivindica. (Apud AGAMBEN, 2006, p. 9)

O homem é mortal e falante ao mesmo tempo, o que já o diferencia de qualquer outro animal ele tem a faculdade para pensar e falar sobre sua finitude. Ponderemos um pouco mais: se herdamos uma separação edênica por causa de uma falha adâmica, que nos tornou conscientes da morte ainda enquanto estamos vivos, porquanto somos finitos, é natural que se nos assome o pensamento: a vida não tem sentido! E se é pela palavra que nos vem o sentido, não deve causar admiração que a incessante busca de significado advenha, com grande incidência, por meio desse elo significante a criação literária.

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românticos, que fizeram do Simbolismo seu herdeiro legítimo, redundando na estética do mal-do-século, que, para Vitor Manuel de Aguiar e Silva, foi caracterizado pelo pessimismo, pela melancolia, pelo desespero, pela volúpia do sofrimento e pela busca da solidão, exprimindo o cansaço e a frustração resultantes da impossibilidade de realizar o absoluto aspirado pelo homem romântico (1979, p. 481).

Mas a melancolia tem ultrapassado barreiras na periodização literária, o que só reforça o posicionamento que ora apresentamos: o estado de espírito melancólico tem raízes muito profundas na psique humana e sofre fluxos e refluxos de diversas intensidades conforme a época. Tomemos como exemplo dessa atemporalidade estética da melancolia um outro poema de Fernando Pessoa em Poesias Coligidas/Inéditas, datada de 11-12-1933:

Tenho esperança ? Não tenho. Tenho vontade de a ter? Não sei. Ignoro a que venho, Quero dormir e esquecer.

Se houvesse um bálsamo da alma, Que a fizesse sossegar,

Cair numa qualquer calma Em que, sem sequer pensar,

Pudesse ser toda a vida, Pensar todo o pensamento - Então [...]6

A primeira estrofe inaugura o tom melancólico, de desencantamento com uma vida sem sentido ( Ignoro a que venho ). Na verdade, a segunda estrofe nega a primeira, pois há esperança a de que exista um bálsamo da alma, que se assemelha à morte física, que tem seu prenúncio no último verso da primeira estrofe ( Quero dormir e esquecer ), em que a metáfora do sono/morte entra em cena. Nesse estado, a dor da existência cessa. Nesse instante, ultima-se o preparativo para a diluição do ser individual no todo universal ( Pudesse ser toda a vida, / Pensar todo o pensamento ). Completou-se o trajeto da angústia rumo ao sublime! Porém, mesmo assim, as reticências finais, que deixam o raciocínio inconcluso,

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demonstram a ignorância humana, e por isso insegurança humana quanto ao destino final. É a mesma incerteza hamletiana:

Morrer... dormi; nada mais! E com o sono, dizem, terminamos o pesar do coração e os mil naturais conflitos que constituem a herança da carne! Que fim poderia ser mais devotamente desejado? Morrer ... dormir! Dormir... Talvez sonhar! Sim, eis aí a dificuldade! Porque é forçoso que nos detenhamos a considerar que sonhos possam sobrevir, durante o sono da morte, quando nos tenhamos libertado do torvelinho da vida. [...] Quem gostaria de suportar tão duras cargas, gemendo e suando sob o peso de uma vida afanosa, se não fosse o temor de alguma coisa depois da morte, região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou, confundindo nossa vontade e impelindo-nos a suportar aqueles males que nos afligirem, ao invés de nos atirarmos a outros que desconhecemos? (SHAKESPEARE, 1978, pp. 252-253)

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CAPÍTULO II

ASPECTOS GÓTICOS DA POESIA MELANCÓLICA

Oh! Ela mora com a Beleza, com a Beleza que perecerá: com a Alegria de mão erguida aos lábios,

para dizer Adeus; e junto da Volúpia dolorosa que se faz veneno enquanto a boca suga, pura abelha; sim no próprio templo do Prazer

é que a Melancolia tem, velada, o seu altar supremo; embora só a veja aquele cuja língua intrépida

rompa os racimos da Alegria contra o céu da boca; sim, a alma deste provará a tristeza que é o seu poder,

e em meio aos seus troféus nublados ficará suspensa.7 Para se tratar dos traços góticos que subjazem a melancolia de poemas como os de Edgar Allan Poe e de Alphonsus de Guimaraens, cumpre tentar definir o que é esse estilo gótico em literatura, bem como sua origem, já que o termo gótico um vórtice semântico, no que se refere às diferentes manifestações artísticas em que o inserimos tem se prestado a diversos empregos e interpretações, mesmo no âmbito literário.

Comecemos por situar essa nova estética em meados do século XII na França medieval como um estilo tanto artístico em geral (em painéis, pinturas, esculturas e iluminuras de manuscritos) quanto arquitetônico que floresceu por cerca de 300 anos. Será na Itália do século XVI, fascinada pela glória da antigüidade clássica, que o fundador da história da arte, Giorgio Vasari, mencionaria o termo gótico pela primeira vez. Para esse autor e seus coetâneos, a arte da Idade Média, em particular na arquitetura, constituía-se no oposto da perfeição, tendo a ver com o obscuro e o negativo, relacionando-a neste aspecto com os

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O texto em epígrafe é terceira estrofe de Ode on Melancholy de John Keats, traduzida por Péricles Eugênio da Silva Ramos (1970, p.189)

She dwells with Beauty -- Beauty that must die; And Joy, whose hand is ever at his lips

Bidding adieu; and aching Pleasure nigh, Turning to poison while the bee-mouth sips: Ay, in the very temple of Delight

Veil'd Melancholy has her sovran shrine,

Though seen of none save him whose strenuous tongue Can burst Joy's grape against his palate fine;

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Godos (os Getas anglo-saxões), povo que instrumentalizou o desmantelamento do Império Romano no século IV. Vasari teria criado dessa forma o termo gótico com fortes tons pejorativos, descrevendo um estilo digno apenas de vândalos e bárbaros.

Assim, até o século XVII aproximadamente, gótico designava, em termos de arte em geral, qualquer artefato grosseiro e rústico. Contudo, Fred Botting, em seu Gothic explica que houve uma mudança a partir do século XVIII:

Manifestações do passado Gótico edifícios, ruínas, canções e romances eram tratados como produtos de mentes incultas, quando não infantis. Mas características como extravagância, superstição, fantasia, e imensidão que eram inicialmente consideradas em termos negativos tornaram-se associadas, durante o século XVIII, com um potencial mais aberto e imaginativo quanto à produção estética.8 (1996, p. 22)

Botting (1996, p.23) ainda argumenta que as produções góticas continuaram a abrigar uma ambivalência positivo-negativa perturbadora, a qual revelava a instabilidade que a Era da Razão havia despertado. Isso porque junto com o Iluminismo vieram significativas mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais que ajudaram a desestruturar um mundo que antes se encontrava ordenado, ao menos no que concerne ao Ocidente. Processos de industrialização, urbanização e racionalismo destronaram a religião como a autoridade para se explicar o universo, o que passou a alterar o modo como o indivíduo se relacionaria com o mundo social, natural e sobrenatural. Assim, a produção artística denominada gótica se prestaria a manifestar os temores, ansiedades e incertezas de que tal plétora de mudanças causou. Além disso, poderia servir de instrumento para se tentar explicar o que não era foco do Iluminismo.

Nesse viés é que, literariamente, credita-se, em primeira instância, a utilização do termo ora focalizado a Horace Walpole e a seu romance The Castle of Otranto: A Gothic

Story, publicado em 1764 sob o pseudônimo de Onuphrio Muralto, vindo a se tornar quase

um arquétipo textual do gênero. Porém, será apenas a partir da segunda edição desse romance que Walpole acrescentará o subtítulo A Gothic Story , pois na primeira edição lemos apenas

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The Castle of Otranto: A Story. Referia-se Walpole, contudo, conforme nos mostra no

enredo de sua história, à epoca medieval e não à pré-normanda. Por isso, ao menos no âmbito literário, é que se diz que a prosa ficcional (e o mesmo se pode aplicar à poesia) gótica nada tem de gótico no sentido histórico e literal desse vocábulo.

Mas qual poderia ser a relação entre o conceito inicial, aplicado à arquitetura, e esse gênero (ou subgênero, como querem alguns teóricos) literário? A resposta reside na ênfase dada à emoção. A arquitetura, os painéis, as pinturas e esculturas góticas pretendiam gerar um efeito mágico ou incomum no observador, provocando um sentimento de espanto, terror, de se estar à mercê de uma força superior, sentindo-se, portanto, insignificante e vulnerável. Na literatura, considerou-se a típica ambientação medieval, isto é, o misterioso castelo decadente e ameaçador um local perfeito para tramas que se propusessem a aterrorizar o leitor. Também cumpriram a mesma função os ambientes naturais cheios de perigos escondidos e amplas áreas montanhosas. Fundamentalmente, buscava-se retirar o leitor do mundo cotidiano comum.

No capítulo intitulado Introduction: the Gothic in western culture , da obra The

Cambridge Companion to Gothic Fiction (2002), explica Jerrold Hogle:

...a primeira obra publicada a se denominar Uma História Gótica foi um simulacro de uma narrativa medieval publicada bem depois das Idade Média [...] A moda que Walpole iniciou foi imitada apenas esporadicamente nas décadas seguintes, tanto em prosa quanto em drama. Porém, explodiu na década de 1790 (a década em que Walpole faleceu) em todas as Ilhas Britânicas, no continente europeu, e brevemente nos recém-formados Estados Unidos, particularmente para um público leitor feminino, tanto que permaneceu um gênero literário popular, mesmo se controverso, durante o que ainda denominamos de período Romântico na literatura européia (de 1790 até o início da década de 1830, agora especialmente conhecida como a era do Frankenstein de Mary Shelley (1818). (2002, p. 1)9

Quiçá, seja aqui o momento de começar a ajustar conceitualmente o termo gótico para o propósito do presente trabalho. Na prosa de ficção, o estilo gótico é marcado pelos

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castelos ou conventos em estado de ruína, assombrados ou não, com criptas ou torres, em que se encerram segredos, por vezes relacionados a maldições familiares, constituindo-se em ambientes nos quais personagens (geralmente, heroínas dóceis e frágeis) são perseguidas psicológica e fisicamente por malévolos tiranos endoidecidos, monstros ou espectros, em tramas que oscilam entre as leis naturais da realidade conhecida e circunstâncias do sobrenatural ignoto. Ora, esses parecem ter sido os ingredientes da diegese rotulada de gótica , cuja manifestação se faz sentir no Schauer-roman, no roman noir e no gothic novel.

Para a poesia, entretanto, objeto deste estudo comparativo entre Edgar Allan Poe e Alphonsus de Guimaraens, necessitamos de um detalhamento mais claro de traços, até mesmo motivos, que fundamentam o poema gótico. É bem provável que o grupo de poetas da

Graveyard School na Inglaterra do século XVIII tenha adaptado, cultivado e encubado

especificamente para a poesia algumas características que hoje a crítica identifica como góticas , das quais outros autores em décadas seguintes como na Gothic Revival, viriam a ter como modelos. David Punter deixa claro em sua obra The Literature of Terror: the Gothic

Tradition que

[...] a maioria dos escritores mais importantes do período de 1770 a 1820 o que significa dizer que a maioria dos poetas mais importantes desse período foi fortemente afetada pelo Gótico de uma forma ou outra. E essa não foi meramente uma recepção de influência passiva: Blake, Coleridge, Shelley, Byron e Keats, todos tiveram um papel em moldar o Gótico, em articular um conjunto de imagens de terror que exerceriam uma potente influência sobre a história literária subseqüente (1996, p.87).10

Assim, essa poesia da primeira metade do século XVIII, bem como a prosa do mesmo período, buscaria elementos temáticos na morte, noite, ruínas, em fantasmas, ou seja, em tudo o que pudesse ser considerado irracional, numa tentativa de se posicionar contra a cultura racional do Iluminismo.

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Esse fato reforça a idéia de que esses escritores românticos, com a exceção de William Wordsworth, que preferiu com freqüência a luz às trevas, foram os agentes intelectuais a consolidar a vitalidade desse estilo a ponto de ele alcançar nossos dias. Diferentes tonalidades de terror e melancolia, conforme cada poeta, estão presentes em poemas como The Book of

Urizen (Blake), Endymion (Keats), The Rime of the Ancient Mariner (Coleridge), The Revolt of Islam (Shelley), e em Childe Harold s Pilgrimage (Byron).

Nesses poemas de cada um dos cinco autores mencionados, bem como em outros textos deles, encontra-se a tendência ao uso de uma linguagem mórbida, à apresentação de eus-poemáticos reprimidos e tristes, à tentativa de exploração do inconsciente humano, ao exagero como meio de retratar o horror da vida cotidiana, à focalização do fracasso da auto-realização do ser humano em uma sociedade repressora e injusta, à discussão sobre a aterrorizante transitoriedade da beleza e do prazer, em conjunto com a busca do sublime um momento extático que visaria a compensar essa sensação consciente de vulnerabilidade e insignificância.

Obviamente, essas características foram capturadas e incorporadas pelos poetas de fin

de siècle, pois o Simbolismo viria a ser um desenvolvimento natural do recôndito mais

gótico e sombrio do Romantismo.

Álvaro Cardoso Gomes, em seu texto Simbolismo, alerta-nos para esse desdobramento de ideais estéticos e filosóficos:

De fato, a estética simbolista tem íntima relação com a romântica, ou ainda, a estética simbolista tem raízes dentro do movimento romântico, a começar que aquele movimento recupera o idealismo e o espiritualismo deste. [...] Esse idealismo romântico, por sua vez, apoiava-se nos princípios esotéricos de Emmanuel Swedenborg. Esse escritor sueco, que viveu durante o século XVIII (1688-1772), escreveu um livro que acabaria por se tornar a Bíblia tanto dos românticos quanto dos simbolistas. De coelo et de inferno (Sobre o céu e o inferno) (1758) é uma obra de caráter místico que tenta explicar as complexas relações entre o mundo celeste e os terrenos. (1994, pp. 13-15)

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isso, afirma que o homem de genialidade é o que sofre mais intensamente. Aliás, nessa mesma direção, bem mais adiante, Erich Fromm (1900-1980) viria a reforçar em The Art of

Loving (1956) que, devido ao alto nível de consciência de si mesmo, o homem passa a se

sentir separado de tudo e de todos, pois sabe que se constitui em entidade isolada um indivíduo.

Nas palavras de Fromm:

O homem é dotado de razão; é a vida consciente de si mesma; tem consciência de si, de seus semelhantes, de seu passado e das possibilidades de seu futuro. Essa consciência de si mesmo como entidade separada, a consciência de seu próprio e curto período de vida, do fato de haver nascido sem ser por vontade própria e de ter de morrer contra sua vontade, de ter de morrer antes daqueles que ama, ou estes antes dele, a consciência de sua solidão e separação, de sua impotência ante as forças da natureza e da sociedade, tudo isso faz de sua existência apartada e desunida uma prisão insuportável. [...] A experiência da separação desperta a ansiedade; é, de fato, a fonte de toda ansiedade. (1961, p. 21)

A referida conjunção filosófica Swedenborg/Schopenhauer, aliada à decepção das pessoas devido ao repetido fracasso das promessas políticas, tecnológicas, científicas e religiosas de se gerar bem-estar e harmonia, só poderia resultar num Zeitgeist sombrio que pairaria sobre os artistas e intelectuais do final do século XVIII invadindo o século XIX até a transição para o XX. Aí reside a motivação intrínseca para se criar poesia que revele a angústia aninhada em nosso inconsciente, oriunda da percepção de que somos todos partes de um todo muito maior cada vez menos compreensível, por isso aterrorizante, já que nos afastamos irremediavelmente das naturezas externa e interna e ficamos à mercê de poderes que escapam a nossa possibilidade de controle.

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A propósito dessa missão de peregrino buscador, dirá Arthur Rimbaud em sua Lettre du Voyant :

Eu digo que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O poeta se faz vidente através de um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura; ele procura a si próprio, extrai de si todos os venenos para guardar apenas as quintessências. Inefável tortura, contra a qual necessita toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual se torna, dentre todos, o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito e o supremo Sábio! Pois atinge o desconhecido!11

Poe, em seu poema Só , alude a essa mesma sina solitária de um visionário entre outras pessoas que não o compreendem, pois sua essência anímica é diferente:

Não fui, na infância, como os outros e nunca vi como outros viam. Minhas paixões eu não podia tirar de fonte igual à deles; e era outra a origem da tristeza, e era outro o canto, que acordava o coração para a alegria.

Tudo o que amei, amei sozinho.

Assim, na minha infância, na alba

da tormentosa vida, ergueu-se, no bem, no mal, de cada abismo, a encadear-me, o meu mistério. Veio dos rios, veio da fonte, da rubra escarpa da montanha, do sol, que todo me envolvia em outonais clarões dourados; e dos relâmpagos vermelhos que o céu inteiro incendiavam; e do trovão, da tempestade, daquela nuvem que se alteava, só, no amplo azul do céu puríssimo,

como um demônio, ante meus olhos.(1999, p. 72)12

A fonte das paixões desse eu-lírico característico de Poe tem origem diversa daquela que os seres comuns, não visionários, que na linguagem schopenhauriana são os que

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Je dis qu'il faut être voyant, se faire voyant. Le poète se fait voyant par un long, immense et raisonné

dérèglement de tous les sens. Toutes les formes d'amour, de souffrance, de folie ; il cherche lui-même, il épuise

en lui tous les poisons, pour n'en garder que les quintessences. Ineffable torture où il a besoin de toute la foi, de toute la force surhumaine, où il devient entre tous le grand malade, le grand criminel, le grand maudit, - et le suprême Savant ! - Car il arrive à l'inconnu ! (http://poetes.com/rimbaud/voyant.htm em 22/3/2006)

12

Para os textos de Edgar Allan Poe, usaremos as traduções de Poemas e Ensaios (1999, Ed. Globo) ou Ficção

Completa, Poesia & Ensaios (2001, Ed. Nova Aguilar) , ambos organizados por Oscar Mendes e Milton Amado.

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ainda não atingiram o conhecimento do desconhecido; a voz desses versos vive a incrível e paradoxal relação das correspondências de Swedenborg: na terra, ela, a voz poemática, presa a todos os sofrimentos materiais e psíquico-emocionais, e no céu uma nuvem livre os dois elementos tão únicos quanto sós. Segundo o princípio swedenborguiano das correspondências, se a nuvem é como um demônio, o eu do poema também o é, ou seja, traz para si simultaneamente os papéis do grande maldito e do supremo Sábio, já que, desde a aurora de uma vida cheia de tormentos, ele tem consciência da natureza mista de seu mistério vital.

Poe, inclusive, na resenha para um livro de poemas chamado Orion: an Epic Poem in

Three Books, de R. H. Horne, publicada na Graham s Magazine (1844), concorda com a

afirmação de que o poeta é um vidente ou visionário em comparação com os outros homens, incumbido de uma missão especial: Eu sou um Vidente. Minha IDÉIA a idéia para que eu fui escolhido pela Providência para desenvolver é tão vasta tão nova que palavras comuns, em concatenações comuns, serão insuficientes para seu bom desenvolvimento. 13

Assim, começamos a vislumbrar traços melancólicos em versos com traços góticos, no sentido que a crítica utiliza, em que

O Poeta deve ter dentro da alma estelada Uma deusa que o embale e acarinhe e adormeça: É a ilusão que lhe vem aureolar a cabeça, Suavizando-lhe a dor com os seus dedos de fada.

Quer surja a aurora, quer por entre sombras desça A noite, haja o clamor da vida, ou a paz sagrada Da morte, -- ela que é a fonte, o bem, a bem-amada, Dá que a palma estival do sonho resplandeça.

E o mundo, que é o sinistro ergástulo de treva, Transforma-se na irial mansão donde se eleva A prece que há de um dia aos pés de Deus chegar... E aos astros de tal modo o Poeta ascende em calma, Que o céu fica menor do que o azul da sua alma,

E nem cabe no céu a luz do seu olhar...(GUIMARAENS, 2001, p. 400)

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O poema de Alphonsus também focaliza pólos correspondentes aparentemente antitéticos, mas presentes na vida do Poeta, como o mundo, que é o sinistro ergástulo de treva que se transforma na irial mansão , bem como a aurora e a noite , ou ainda o clamor da vida e a paz sagrada da morte . O poeta vive entre esses estados dicotômicos complementares, o que lhe causa a dor constante, pois ele é hiperconsciente da realidade humana em que se insere. Essa melancolia existencial, filha de uma Weltschmerz (dor do mundo), a qual só um ser mais consciente do que a média dos seres humanos pode experenciar lucidamente. Talvez, por isso, mantenha-se a idéia, vinda da Antigüidade, de Aristóteles na verdade, sobre relação entre melancolia e genialidade. Aliás, as seguintes estrofes do poema Monólogo de uma Sombra de Augusto dos Anjos sintetizam o encontro entre melancolia e arte:

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova De que a dor como um dartro se renova, Quando o prazer barbaramente a ataca... Assim também, observa a ciência crua, Dentro da elipse ignívoma da lua A realidade de urna esfera opaca.

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, Abranda as rochas rígidas, torna água Todo o fogo telúrico profundo

E reduz, sem que, entanto, a desintegre, À condição de uma planície alegre, A aspereza orográfica do mundo!

Provo desta maneira ao mundo odiento Pelas grandes razões do sentimento, Sem os métodos da abstrusa ciência fria E os trovões gritadores da dialética, Que a mais alta expressão da dor estética Consiste essencialmente na alegria.

Continua o martírio das criaturas: O homicídio nas vielas mais escuras, O ferido que a hostil gleba atra escarva,

O último solilóquio dos suicidas E eu sinto a dor de todas essas vidas

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Ora, essa convivência da mais alta expressão da dor estética consistir essencialmente na alegria reforça as idéias de Swedenborg e a própria noção de Poe quanto à natureza poética, como lemos em A Filosofia da Composição (1999, p. 105):

Encarando, então, Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o da

tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo invariavelmente

invoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos. [...] De todos os temas mais melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico? A Morte foi a resposta evidente. E quando , insisti, esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético? Pelo que explanei, um tanto prolongadamente, a resposta aí também era evidente: Quando ele se alia, mais de perto, à

Beleza; a morte, pois de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do

mundo e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver esse tal tema é a de um amante despojado de seu amor.

Nessa teorização de Poe, quer falsa quer verdadeira em suas intenções quanto à explicação racional do processo de criação poética de O Corvo , percebe-se claramente um diálogo com a voz dos versos de Augusto dos Anjos acima, quando diz que eu sinto a dor de todas essas vidas / Em minha vida anônima de larva , pois Poe também busca identificar a dor, o martírio das criaturas , segundo a compreensão universal da humanidade , o que se torna a matéria-prima do fazer poético melancólico eivado de aspectos góticos.

É aqui que a idéia freudiana da identificação da melancolia com a perda do ser amado se instala como temática nos cenários góticos dos poemas de Poe e de Alphonsus, pois essa ambientação é perfeita para angústia, terror, culpa, amargura, nostalgia, tristeza, desolação, prostração, sofrimento, erotismo não-realizado e não-realizável, tudo isso matizado pelo escuro e pelo sombrio gélidos, mas também pelo sublime, que exploraremos mais adiante.

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se levar em conta as perdas de figuras femininas significativas na vida de cada um deles). Porém, deixaremos essa ótica de fora. Interessa-nos sobremaneira nesta pesquisa o macrocontexto que os conduziu a essa estética.

É bem possível que tal tendência estética tenha se constituído na própria natureza de Poe e de Alphonsus, seu ethos , por assim dizer, por motivos culturais e religiosos. Aliás, a manifestação desse ethos do romântico norte-americano e do simbolista brasileiro resume-se no que Max Weber denominou deresume-sencantamento do mundo (die Entzauberung der Welt). Antônio Flávio Pierucci , em seu artigo Secularização em Max Weber , explica:

Mas é o novo termo desencantamento o predileto de Weber, a ponto de se tornar uma das marcas registradas de sua escritura e de sua teoria. Com ele Weber descobriu ser possível designar com propriedade o longuíssimo período de racionalização religiosa por que passou a religiosidade ocidental em virtude da hegemonia cultural alcançada por essa forma eticizada de religião desencantadora deste mundo : o judeo-cristianismo. [...] Para Weber, o desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente religiosas, é um

processo essencialmente religioso, porquanto são as religiões éticas que operam a eliminação

da magia como meio de salvação, conforme fica explicitado nesta outra passagem de A ética, na qual Weber estabelece estilisticamente, com o uso dos dois pontos, a seguinte equação: o desencantamento do mundo: a eliminação da magia como meio de salvação . (1997, p.5)

Portanto, caso Weber esteja correto, o encantamento do mundo poderá ter sido eliminado, pelo menos em parte para Poe e para Alphonsus, respectivamente, como um subproduto de um puritanismo fanático dos peregrinos na América do Norte e de um catolicismo não menos radical que os portugueses transplantaram para o Brasil. Ambas atitudes religiosas tiveram seus momentos de extremismo, e foi somente com radicalismo férreo e ígneo, quer no caso da caça às bruxas quer na atuação da Santa Inquisição, que lograram manter os fiéis sob seu jugo, não tão suave quanto o do mestre Jesus que citavam como modelo.

Por outro lado, Moacyr Scliar, em seu recente estudo sobre a melancolia, Saturno nos

Trópicos, menciona o intrigante comentário de Leslie Stephen: Nós não somos melancólicos

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Seja a explicação qual for, o óbvio parece ser que, para intelectuais de diferentes lugares e épocas, a fé e a moralidade não neutralizam o absurdo da existência, na qual a morte preenche as mentes mais lúcidas de profundo terror, em um luto dolente e pensativo.

De um outro ângulo, havia tanto no Catolicismo da Idade Média e no Protestantismo da Reforma um certo culto à melancolia. No Catolicismo medieval, surge o conceito de acedia ou acédia, que, em um primeiro momento, teria a ver com um estado de êxtase de transe religioso. Só posteriormente, entretanto, ganhou conotação de preguiça e indolência. Já para o Protestantismo, que pregava a fé como única via de salvação, a melancolia, que viria a se tornar a culpa do pecador, seria um instrumento de conversão.

Ao fim e ao cabo, entretanto, o excesso de promessas de bem-estar que a religião e a ciência fizeram desde o Renascimento trouxe efetivamente um mal-estar, em que, entre diversos fatores desagregantes, estariam a miséria crescente das metrópoles inchadas de pessoas em padrões de vida subumanos, as permanentes crises econômicas, as guerras e revoluções, as alterações no âmbito do trabalho versus capital, as bruscas mudanças nos valores norteadores da convivência social, a falsa moralidade, a pseudoliberdade do cidadão, que, em vez de artífice do próprio destino, viu-se cada vez mais isolado e solitário. Os sentimentos de perda e culpa, por sua vez, enraízaram-se na psique desse homem moderno, acompanhado da tristeza de ser incapaz de se sentir amado e de amar, mas com uma grande ânsia de prover e receber amor eis o terreno fértil para a melancolia, a bílis negra, o

spleen do Romantismo, a angústia do Decadentismo.

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Por conseguinte, não é nada surpreendente que os românticos tenham emprestado aos simbolistas o arcabouço teórico fundamental para a consecução dos ideais propostos pelos escritores franceses malditos das últimas décadas do século XIX, os quais acabariam por passar esse bastão estético aos decadentistas brasileiros.

Em vários de seus escritos, que sabidamente, por meio de Charles Baudelaire, influenciaram sobremaneira os simbolistas franceses, Poe teoriza que

[ ] a origem da Poesia está numa sede de Beleza mais espantosa do que a Terra é capaz de oferecer aquela Poesia que em si mesma é o imperfeito esforço de saciar essa sede imortal por meio de novas combinações de belas formas (concatenações de formas) físicas ou espirituais, e essa sede mesmo quando parcialmente aplacada esse sentimento mesmo quando encontrando débil resposta produz emoção em relação à qual todas as outras emoções humanas são rápidas e insignificantes.14

E quanto a essa sede de beleza, esse instinto quase incontrolável (talvez para Poe, incontrolável) que o ser humano tem dentro de si, o mestre de Baudelaire nos ensina em O Princípio Poético aquilo que os simbolistas viriam a conceber como sinestesia, uma outra ferramenta da linguagem poética, capaz de suscitar em nossa mente senão a Beleza integral, ao menos laivos dela, pelo esquema das correspondências:

Um instinto imortal bem profundo no espírito do homem é dessa forma, plenamente, um senso do belo. É ele que dirige, para deleite seu, as múltiplas formas, sons, odores e sentimentos, entre os quais vive. [...] Mas esta simples repetição não é poesia. Quem cantar simplesmente, embora com inflamado entusiasmo, ou embora com vívida veracidade de descrição, as paisagens, os sons, cores, odores e os sentimentos que opõe em comum com toda a humanidade esse alguém, digo eu, ainda não conseguiu provar seu divino título. Há ainda algo na distância que ele não foi capaz de atingir. Temos ainda uma sede insaciável para aplacar, a qual não nos mostrou ele as fontes cristalinas. Esta sede pertence à imortalidade do Homem. [...] É o anseio da mariposa pela estrela. Não é uma mera apreciação da Beleza, que está diante de nós, mas um violento esforço, para ultrapassar a Beleza. Inspirados por uma extasiante paciência das glórias de além-túmulo, lutamos, por meio de multiformes combinações, entre as coisas e pensamentos do Tempo, para atingir uma porção daquela Beleza, cujos verdadeiros elementos só à eternidade pertencem. E assim quando pela Poesia, ou pela Música, o mais arrebatador dos meios poéticos, nos achamos a chorar, choramos então, não como supõe o padre Gravina, por excesso de prazer, mas por certo impaciente e acre pesar, diante de nossa incapacidade de apreender agora, inteiramente, aqui na terra, imediatamente e para sempre, aquelas divinas e arrebatadoras alegrias, das quais, por meio do poema, ou por meio da música, percebemos apenas breves e indeterminados vislumbres. (POE, 1999, pp. 80-81)

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Reforça Poe a concepção de que o homem não aceita sua finitude terrena, sua prisão construída com as duríssimas e intransponíveis muralhas de tempo e espaço; incomoda o fato de que a prometida glória trazida pela morte libertadora apenas lhe gera uma inquietude melancólica, um impaciente e acre pesar . Contudo, exalta a importância da criação artística, bem como a íntima relação entre poesia e música, como bálsamo que alivia, porque arrebata, ou seja, porque o lança para fora de si (ékstasis do grego), porque, ainda que momentânea e parcialmente, leva-o e enleva-o. Ora, o ser que é cônscio de sua finitude e de sua incapacidade para viver o prazer supremo só pode ser sombrio e melancólico.

Destarte, o poeta melancólico, assim como o décadent, torna-se um caçador de emoções raras, num tipo de solidão intelectual unida a um misticismo torturador, o que nos faz lembrar um pouco do poeta barroco, pois, guardadas as devidas proporções, viveram tanto o poeta romântico quanto o simbolista a pressão deformadora da morsa social de uma burguesia fútil e de uma progressiva industrialização estupidamente feroz.

Entre os vários cenários em que florescem essas emoções raras, estão o da morte e o do estranho (Das Unheimliche de Freud, de que falaremos adiante), até mesmo o do bizarro, como principais, já que é do terreno desconhecido, exótico, portanto, do inconsciente humano nascerão flores do mal (e cumpre ressaltar que em francês, numa alusão a Les Fleurs du Mal , mal não significa somente mal, mas também, dor, angústia). É da angústia melancólica, por vezes mórbida do poeta vidente que surgem flores estranhas, de encantos esquisitos, mas que paradoxalmente são símbolos de beleza transcendental.

Entretanto, é importante salientar que Poe não advoga eliminar a Verdade como um dos ingredientes do poema. Em seus artigos críticos, enfatiza a relevância da Beleza sobre qualquer outro aspecto e recomenda um distanciamento do didatismo. Isso fica claro neste trecho de A Filosofia da Composição :

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música, pelo contraste; mas o verdadeiro artista sempre se esforçará, em primeiro lugar, para harmonizá-las, na submissão conveniente ao alvo predominante, e, em segundo lugar, para revesti-las, tanto quanto possível, daquela Beleza que é a atmosfera e a essência do poema. (POE, 1999, p. 105)

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CAPÍTULO III

DO ESTRANHO E DO SUBLIME

Acho inútil e fastidioso representar aquilo que é, porque nada daquilo que existe me satisfaz. A natureza é feia, e prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade concreta.15 Charles Baudelaire

Em 1919, Sigmund Freud publica Das Unheimliche, uma resposta direta a Ernst Jentsch, psicanalista, estudioso da literatura médico-psicológica, que descreve em seu "Über die Psychologie des Unheimlichen" a sensação de incerteza provocada no leitor diante de um fato, característica do sentimento de estranheza. Constata, entretanto, que a incerteza por si só não poderia justificar o sentimento de estranheza suscitado no leitor. Após uma análise pormenorizada de alguns textos literários, conclui que dois fatores seriam os responsáveis pelo sentimento do Unheimliche (estranho), dos quais trataremos mais adiante.

Nos anos seguintes à sua publicação, pouca importância se deu a esse ensaio de Freud. Entretanto, entre o final da década de 60 e início da de 70, talvez no que possamos descrever como a transição entre estruturalismo e pós-estruturalismo, a idéia do estranho volta a receber atenção, mormente em círculos de teoria/crítica literária, filosofia e estudos culturais. Tzvetan Todorov (1939-) focalizou esse tópico em seus estudos estruturais sobre o fantástico, mantendo assim vívido o interesse no conceito do estranho em diferentes estilos, incluindo-se aí o gótico.

Embora tenha existido muita crítica negativa ao texto de Freud, pois tem-se a impressão de que ele não chegou a definir de modo preciso o que é o Unheimliche. Porém, assim como o sublime, o adjetivo substantivado o estranho está mais próximo da idéia de uma qualidade do que de uma entidade concreta e, por isso mesmo, preste-se como conceito

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estético: expressa algo subjetivo e mais difícil de se racionalizar num processo metalingüístico, sendo mais bem apreendido por exemplificação.

Por esse viés, tanto para Freud quanto para Jentsch, o sentimento de estranheza é uma forma específica, mas suave, de ansiedade, relacionada a certos fenômenos da vida cotidiana e a certas circunstâncias presentes na arte, especialmente na literatura fantástica (termo que Freud utiliza). Exemplos de tais fenômenos ou de motivos literários são o duplo (Doppelgänger), estranhas repetições, a onipotência do pensamento (a idéia de que nossos desejos ou pensamentos podem se tornar realidade), a confusão entre o animado e o inanimado, experiências relacionadas à loucura, à superstição ou à morte.

Freud, desde o início, considera o estranho como uma experiência estética, adjetivo que no texto em foco se aplica em sentido amplo ao estudo das qualidades de nossos sentimentos em oposição ao sentido mais estrito do estudo do belo, que, de acordo com Freud, limita o significado a sentimentos positivos apenas. Também insiste que nem todos somos igualmente suscetíveis a esse sentimento de estranheza e que a lista de fenômenos não é conclusiva nem aceita como regra geral. Especialmente, no caso da literatura, tudo dependerá do tratamento dado ao texto para que um determinado motivo cause estranhamento ou não.

É interessante que o pai da psicanálise nos apresenta o termo, não como o substantivo formado por derivação sufixal das Unheimlichkeit , isto é, estranheza, mas por derivação

imprópria, ou seja, pela substantivação do adjetivo: das Unheimliche, o estranho. Do ponto de vista gramatical, é o mesmo que acontece com o grotesco e o sublime. Parece criar assim uma mistura entre o caráter determinado do substantivo, por um lado, e o aspecto mais vago ou indeterminado que o adjetivo pode sugerir.

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unheimlich semântica e etimologicamente em vários idiomas, apresentando uma série de tons

que somados conduzem à idéia do gótico melancólico que mencionamos no segundo capítulo. Ensina Freud que o termo equivalente de unheimlich em latim na referência a um local seria locus suspectus; em inglês, há os matizes de tenebroso, sombrio, lúgubre, grotesco; em francês e em espanhol, sinistro, inquietante; em hebraico e em árabe, demoníaco e ameaçador. Embora esse exercício lingüístico proposto conduza mais a uma investigação cíclica, pois cada nova interpretação precisa de outra interpretação, ficando Freud prisioneiro do próprio círculo hermenêutico que criou, parece-nos uma boa amostra de significados que remetem a uma descrição bastante próxima do que se apresenta como características do gótico poético.

De qualquer forma, Freud constata que, o oposto de unheimlich, isto é heimlich, que deriva de Heim (casa, lar) tem dois sentidos possíveis, a saber: o primeiro, mais literal (e positivo) doméstico, íntimo, familiar; o segundo, mais metafórico (e negativo) escondido, clandestino, secreto, furtivo. O sentido positivo mostra a perspectiva interna da intimidade do lar, enquanto que o sentido negativo revela que as paredes da casa escondem do observador externo o interior da casa, o que conota reclusão e isolamento.

Logo, unheimlich, como estranho, sinistro, misterioso, não familiar, difere do primeiro sentido, mas se aproxima bastante do segundo.

Freud conclui, citando Schelling, que, apesar das divergências pesquisadas, uma verdade se definia claramente: o misterioso/o estranho (uncanny/unheimlich) [...]indubitavelmente pertence a tudo aquilo que é terrível a tudo aquilo que estimula o medo e o horror 16 (os destaques são meus). Portanto, o sentimento de estranheza seria produzido no momento em que algo familiar, conhecido pelo indivíduo, torna-se diferente, adquirindo facetas de desconhecido.

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Na literatura, explica Freud que o primeiro fator para o Unheimliche está associado à ansiedade gerada por um impulso emocional reprimido. O elemento reprimido retornaria provocando a estranheza. O segundo fator seria decorrência direta do primeiro, ou seja, o elemento reprimido era familiar, tornou-se alienado através de sua negação e surge inesperadamente perante o indivíduo. Freud reforça esse conceito ao afirmar a diferença entre um medo de algo estranho, não familiar, do estranhamento propriamente dito. Cita as coincidências do desejo e realização, as repetições de experiências similares em datas ou lugares, as visões ilusórias, os ruídos suspeitos e mesmo o duplo como fatores familiares, já conhecidos, mas que suscitariam o sentimento de estranheza.

No entanto, reconhece a particularidade estética da estranheza ao confrontar a teoria psicanalítica dos complexos infantis reprimidos e reavivados com a realização literária. Segundo ele, o autor [...]consegue guiar a corrente das nossas emoções, represá-la numa direção e fazê-la fluir em outra, e obtém, com freqüência uma grande variedade de efeitos diante do mesmo material. 17

A idéia de tudo aquilo que da citação da página anterior nos leva a crer que podemos sentir uma estranheza tanto diante de fenômenos sobrenaturais externos (descrição mais próxima da teoria proposta por Edmund Burke em 1757 em A Philosophical Enquiry into the

Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful) bem como diante de fenômenos internos,

isto é, a percepção do inconsciente como parte do nosso Eu, pois tais fenômenos nos confrontam com algo desconfortável, sinistro e desconhecido ou não familiar, unheimlich no termo freudiano. Assim, amiúde nos poemas que focalizaremos, o eu-poemático se mostra assombrado por algo que não consegue definir, devido ao fato de ser esse algo imensamente maior do que nosso lado racional possa equacionar. Tal sensação de incerteza evocará um

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Referências

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