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Por que é relevante a ambientação e a aculturação visando pesquisas qualitativas em serviços para dependência química?.

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Academic year: 2017

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TEMAS LIVRES FREE THEMES

1 Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Cidade Universitária Zeferino Vaz. Caixa Postal 6111. 13083-970 Campinas SP. erturato@uol.com.br

Por que é relevante a ambientação e a aculturação visando

pesquisas qualitativas em serviços para dependência química?

Why is environmental adaptation and acculturation relevant

when seeking to conduct qualitative research

in drug dependency services?

Resumo Este trabalho realizado no Ambulatório

de Substâncias Psicoativas do Hospital das Clíni-cas da Unicamp, objetivou relatar uma experiên-cia de entrada em campo como fator de facilitação do estudo das vivências de sujeitos dependentes químicos vistos em um serviço universitário espe-cializado. As observações surgiram a partir das vivências da pesquisadora em fase de ambientação e aculturação, ou seja, a partir da inserção no ambulatório, em fase preliminar à coleta de dados para uma pesquisa qualitativa. A experiência foi importante, pois permitiu compreender melhor o universo psicocultural da população atendida e como se dão as relações profissional-paciente, am-pliando o conhecimento do campo onde depois foi realizada a pesquisa. A partir desta entrada inicial em campo, delimitou-se melhor o tema e a popu-lação a ser pesquisada, adequando às necessidades e à realidade observada naquele serviço, bem como refletir sobre o método de pesquisa (clínico-quali-tativo) que melhor serviria para compreender as questões levantadas, e, inclusive, elaborar um ro-teiro para as futuras entrevistas do estudo. Con-clui-se ser muito útil esse momento preliminar como fase habitual em novas pesquisas que usem a mesma metodologia nos settings clínicos.

Palavras-chave Aculturação, Transtornos rela-cionados ao uso de substâncias, Pesquisa qualita-tiva

Abstract This study conducted at the Outpatient

Service of Psychoactive Substances, in the Uni-versity General Hospital of Campinas, sought to report on an experience of proactive participation to study the life experience of chemically depen-dent patients attended in a specialized university service. These observations emerged from the re-searcher’s experiences in the environmental ad-aptation and acculturation period, namely through the researcher insertion in the outpa-tient service, during the preliminary data collec-tion for qualitative research. This experience was important as it enabled clearer comprehension of the psycho-cultural universe of the population attended and how the relation professional-pa-tient is conducted, broadening the knowledge of the field where the research was later carried out. From this initial entry in the field, it was possible to define the subject-matter and the population being studied more clearly, adapting to the needs and the reality observed in that service, as well as to reflect on the research method that serve to bet-ter understand the issues raised, and even draw up a roadmap for future interviews in the study. It was concluded that this preliminary stage is very useful as standard practice in new studies using the same methodology in clinical settings.

Key words Acculturation, Substance-related dis-orders, Qualitative research

Dione Viégas de Almeida Ribeiro 1

Renata Cruz Soares de Azevedo 1

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Introdução

O presente artigo pretende discutir a relevância da aproximação do objeto de uma pesquisa e do lugar onde esta se desenvolverá, através de estra-tégias de ambientação e de aculturação. Opta-mos por vivenciar um primeiro momento de ambientação e aculturação em um ambulatório universitário para dependentes de substâncias psicoativas (SPA), visando posterior pesquisa utilizando o método clínico-qualitativo.

A antropologia e a psicanálise, dentre outras áreas do conhecimento científico, têm feito uso, historicamente, dos chamados métodos qualita-tivos, desde o início do Século 20. Posteriormen-te, as disciplinas científicas da área da educação, das ciências sociais, das ciências da saúde e da psicologia também passaram a se valer desses métodos. Essas disciplinas são consideradas per-tencentes ou associadas às Ciências Humanas, as quais visam compreender e interpretar os ne-xos de significados presentes nos fenômenos

in-dividuais e sociais1.

Um amplo estudo de revisão bibliográfica apontou que, ao longo dos anos, constituiu-se um representativo campo para estudos sobre a construção científica na área das ciências sociais em saúde. Na década de 60 surgiram no Brasil importantes cientistas sociais, muitos como au-todidatas em questões da Saúde, começando tra-balhos multiprofissionais especialmente voltados para a comunidade. O material que surge desses trabalhos – e que incorpora tanto um conheci-mento dos aspectos médicos, assim como soci-ais, culturais e psicológicos – pretendia ser uma aproximação interdisciplinar e conduzia a um

retrato biopsicossocial2-3.

Ao buscar um refinamento da compreensão de significados pessoais atribuídos aos diversos

fenômenos observados, especificamente em

set-tings da Saúde, e considerando a experiência clí-nica do pesquisador, o método eleito para este estudo conduzido em serviço ambulatorial uni-versitário de referência, é o clínico-qualitativo. Este nasce da necessidade de uma estruturação metodológica específica com os cuidados clíni-cos com a saúde, nomeadamente ao sofrimento existencial e psicológico, associados às

manifes-tações no processo saúde-doença4.

Quando se pretende utilizar uma metodolo-gia qualitativa, na compreensão de um fenômeno ou setting, faz-se fundamental antes de qualquer intervenção, conhecer bem o campo em que se dará a coleta dos dados, ainda que não lacemos mão do trabalho etnográfico propriamente dito.

“Na virada do século XIX para o XX, localiza-se o projeto de uma Antropologia do indivíduo e da singularidade cultural, projeto que se opõe à anterior tendência de buscar a universalidade do homem nos estudos comparativos das diferentes culturas. É, ainda nesta virada de séculos que a

Antropologia moderna, se institui como ciência”5.

Nesse momento surge então, o interesse em conhecer o indivíduo imerso em sua cultura. Essa Antropologia moderna exige então uma postura do pesquisador de observação participante, dan-do origem aos métodan-dos atuais de pesquisa etno-gráfica, na qual o observador é também inserido

na cultura que pretende pesquisar5.

A pesquisa etnográfica privilegia a observação sistemática das situações reais no local onde os fe-nômenos ocorrem. Esse tipo de pesquisa não se configura como uma aplicação de uma técnica, mas vai se desenvolvendo “na medida em que o pesqui-sador vai se imbricando no campo, vai se relacio-nando com os sujeitos e construindo um processo

reflexivo sobre suas vivências e impressões”6.

O antropólogo Bronislaw Malinowiski se tor-nou referência primordial para estudos clássicos, desenvolvidos pioneiramente em trabalho de cam-po com nativos em cultura do extremo oriente. Para ele, o trabalho de campo deveria produzir uma visão autêntica da vida da comunidade em estudo, devendo-se ultrapassar alguns obstácu-los, tais como a falta de domínio da língua nativa, os preconceitos e opiniões de pessoas externas ao grupo observado. O trabalho de campo também deveria estar integrado a problematizações teóri-cas ao propiciar um contato, o mais íntimo

pos-sível, na perspectiva do grupo estudado7.

Trabalhos em campo constituem-se etapa central da pesquisa qualitativa em saúde. Nesse tipo de pesquisa, é crucial uma relação de inter-subjetividades e de interação social com o pes-quisador, que resulte em conhecimentos novos, que podem ser confrontados com a realidade concreta e com pressupostos teóricos, gerando

uma construção mais ampla de saberes8.

Este artigo trata de descrever as experiências de entrada em campo, as quais são chamadas de aculturação e ambientação, mas que não se trata de uma etnografia, mas parte da importância destacada em trabalhos etnográficos ao conhe-cimento prévio da população e ambiente a serem estudados.

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en-trada em campo8. Sempre considerando que a

pesquisa qualitativa preocupa-se com o aprofun-damento e a abrangência da compreensão seja de um grupo humano, de uma organização ou de uma instituição. É necessário à pesquisa qualita-tiva conhecer amplamente os sujeitos envolvidos, com idas repetidas a campo, antes do trabalho de coleta propriamente dito. Tal fase de ambienta-ção e aculturaambienta-ção permite o fluir da rede de rela-ções e possíveis correrela-ções iniciais dos

instrumen-tos da futura coleta formal de informações8.

Pressupõe-se que, a todo pesquisador que

parte para a fase da investigação em settings, é

necessário essa fase de ambientação e

acultura-ção, em espaço de tempo se não longo, porém em

profundidade. O termo ambientação está aqui

entendido como a adaptação geral à rotina do

setting onde se coletarão os dados, bem como a aquisição de informações sobre o cotidiano das pessoas que ali trabalham e daquelas que são

aten-didas no local. Por sua vez, aculturação, conceito

mais abrangente, pressupõe um contato com a incorporação das mentalidades, costumes e

valo-res da população deste campo de investigação9.

Apesar de propormos os processos de ambi-entação e aculturação de forma simultânea e com-plementar, devemos apontar que, conforme defi-nições anteriores, são conceitos diferentes e, por vezes, podem ter pesos diferentes em uma pesqui-sa de campo, sendo priorizado ora um, ora outro.

Turato4 acrescenta, ainda: havendo uma

adap-tação do pesquisador, a partir da ambienadap-tação e da aculturação, ao espaço do serviço de saúde onde ocorrerá a pesquisa, à rotina de trabalho, aos hábitos, à linguagem e à problemática

viven-ciada, poderá ser construído um setting, um

ambiente delimitado para a realização das futu-ras entrevistas.

A necessidade desse momento de ambienta-ção e aculturaambienta-ção surge com a necessidade de transpor barreiras que afastam pesquisador e pesquisado. Conhecer anteriormente a rotina de trabalho, a linguagem utilizada, a problemática ali exposta, é fundamental para que se possa rea-lizar uma pesquisa qualitativa de forma mais

apurada e com menos vieses4.

Na pesquisa qualitativa em Ciências Sociais, o estudo etnográfico é a principal ferramenta utilizada para se conhecer mais profundamente uma população. Este se dá exatamente a partir da inserção do pesquisador no ambiente a ser estudado, por um espaço de tempo por vezes prolongado, com contato direto com o objeto de estudo, sendo posteriormente relatado em

tex-to, de forma sistemática10.

Verificamos na literatura a importância de se buscar uma maior aproximação do grupo a ser estudado, não apenas para se conhecer melhor as especificidades do mesmo, mas também para que o pesquisador seja previamente aceito pelos sujei-tos, posto que a qualidade dos dados obtidos de-pende, em grande parte, de como se dá a relação entre sujeito e pesquisador. “Dessa forma é possí-vel manter uma relação dialógica, de proximidade

e confiança, baseada em princípios éticos”10.

Leite e Vasconcellos11, também apontam que

a entrada em campo e o contato inicial com os informantes merecem atenção especial por de-terminarem o início de uma relação que preten-de ser preten-de confiança. Sendo que, quando o pes-quisador consegue assimilar a linguagem e o universo cultural do grupo em estudo, ocorre uma maior aceitação por parte dos seus interlo-cutores e a interação entre eles pode ser aprofun-dada. Todavia, tal interação é um processo que demanda tempo, por isso a necessidade de uma aproximação do grupo, antes do início da pes-quisa propriamente dita.

Clifford12 aponta a importância de se

cons-truir “um mundo de experiências partilhadas, em relação ao qual todos os ‘fatos’, ‘textos’, ‘eventos’ e suas interpretações serão construídos”. A qual se dá a partir da experiência do pesquisador em campo, com seus sentimentos intuitivos, percep-ções e inferências.

A observação participante exige um bom aprendizado da língua ou mesmo da linguagem do grupo estudado em sentido amplo, o que fa-vorece ainda certo grau de envolvimento. Tam-bém é preciso algum despojamento das

expecta-tivas pessoais e culturais do observador12.

Paul Rabinow13, também demonstra em seus

trabalhos etnográficos um cuidado com as pes-soas envolvidas. Buscando estar “separado o suficiente para evitar uma identificação fácil, pró-ximo o suficiente para compreender de uma for-ma benevolente, embora crítica”.

O antropólogo Roberto da Mata14 afirma que

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de nós pela reificação e pelos mecanismos de le-gitimação”.

A partir do que conhecemos em estudos an-teriores, apontados nesta revisão bibliográfica, compreendemos ser fundamental haver um con-tato prévio com o grupo a ser estudado, sem ambicionarmos o trabalho de um etnógrafo, trei-nado para esses fins, mas ainda buscando nos familiarizar com o grupo a ser pesquisado, sua linguagem e seu modo de funcionamento. Acre-ditando que o conhecimento acerca de um grupo se dá de forma constante, como uma constru-ção, que inclusive só se faz possível com a figura do pesquisador inserida naquele grupo e atento aos seus próprios movimentos internos, por isso propõe-se a aculturação e a ambientação.

Entre as subáreas que compõe a saúde men-tal, algumas se beneficiam particularmente da aproximação do objeto em função de especifici-dades relacionadas aos sujeitos, ao contexto e à visão social do tema, entre outras. Neste sentido o estudo de temas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas merece particular atenção. O uso de substâncias psicoativas, com maior repercussão social, é um fenômeno relativamente recente. Embora o consumo de drogas psicoati-vas seja milenar, seu uso só se tornou um proble-ma social amplo, na proble-maior parte dos países oci-dentais, a partir do quarto final do século XIX, com a criminalização e a medicalização dessas substâncias. Tal ocorreu inicialmente nos EUA, em função de movimentos religiosos e sociais, e,

prin-cipalmente, por interesses de ordem econômica15.

A dependência de Substâncias Psicoativas (SPA) é considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um transtorno mental e do comportamento. A Classificação Internacio-nal das doenças (CID–10) e o Manual Diagnós-tico e EstatísDiagnós-tico de Transtornos Mentais norte-americano (DSM–IV) discriminam os principais quadros relacionados ao uso de SPA, bem como a dependência, caracterizada de forma semelhante em ambos, a saber: um desejo pronunciado de tomar a substância; dificuldade em controlar o uso; estado de abstinência fisiológica; tolerância; relegar a um segundo plano as necessidades, in-teresses e atividades prazerosas; e uso persisten-te, não obstante os danos causados à própria pessoa e aos outros; e por fim, um critério que descreve um padrão intermediário entre uso e

dependência que é o uso nocivo ou abuso16-17.

Para a compreensão dos diversos aspectos da dependência de SPA faz-se necessária a exis-tência de um enfoque abrangente, que leve em

consideração a diversidade de usos e de compor-tamentos, tanto em relação aos produtos como em relação ao contexto social em que ocorrem. A especificidade das dependências químicas proce-de do encontro do indivíduo com uma SPA em um determinado contexto sociocultural. O uso indevido de drogas, como dito, constitui fenô-meno de grande complexidade, não podendo ser reduzido a componentes biológicos, nem com-preendido apenas a partir de aspectos da condu-ta dependente ou da psicodinâmica envolvida, mas pensando que todos estes enfoques estão presentes concomitantemente e se influenciam

mutuamente18. Sendo que, em função de tais

es-pecificidades, a dependência química se faz pre-sente não apenas no campo da saúde, mas tam-bém em campos como o jurídico e o sociológico. A dependência química, também é uma área envolta em preconceitos, e mesmo entre os espe-cialistas há divergências nas formas de compre-ender a problemática e atuar junto a essa popu-lação. Assim sendo, uma aproximação anterior do objeto de estudo, pode ser fundamental para minimizar a possibilidade de haver uma imposi-ção de um olhar contaminado com ideias pre-conceituosas, ao trabalho de pesquisa propria-mente dito.

Portanto, o olhar antropológico sobre a for-ma de se fazer pesquisa em saúde, pode ser mui-to útil nos estudos em dependência de SPA. Ele favorece aqueles voltados para as relações entre saúde e condições de vida, incorporando tam-bém a visão do sujeito, por exemplo, o usuário de um serviço de saúde. Deve buscar um redi-mensionamento dos limites da ciência, amplian-do a sua interação com outras formas de apre-ender a realidade. Com isso, abre-se espaço para novas formas de construção científica que

expli-quem a realidade19.

Neste relato, mencionamos a experiência da ambientação e da aculturação da pesquisadora em ambulatório universitário especializado, vol-tado para tratamento de dependência de SPA. Fundamental foi conhecer intimamente a reali-dade de um serviço de saúde, a linguagem das pessoas ali atendidas e as dinâmicas das relações envolvidas a fim de se ter inserção suficiente para o subsequente trabalho de pesquisa na aborda-gem qualitativa.

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Relato de vivências da pesquisadora frente à estruturação do campo

(percurso dos procedimentos)

Contextualizando a descrição do campo, o tra-balho aqui apresentado deu-se a partir da inserção da pesquisadora, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, no serviço assisten-cial de seu hospital público de referência. O Ambu-latório de Substâncias Psicoativas (ASPA) é parte do conjunto de ambulatórios psiquiátricos do Hospital das Clínicas de Campinas (HC/UNI-CAMP) e atende principalmente à população do Município e Região. Os atendimentos são sema-nais para os habitantes locais, enquanto pessoas vindas de municípios distantes ou mesmo de ou-tros estados são atendidas para devida avaliação e encaminhamento a serviços próximos à localidade de origem. O atendimento é integralmente gratui-to e a entrada no serviço é ágil, gratui-todos que procu-ram o serviço são imediatamente inseridos no ambulatório, já iniciando participação em grupos. A inserção no ambulatório independe de encami-nhamentos via rede básica de saúde.

A população ambulatorial é composta princi-palmente por adultos que têm o diagnóstico de dependência de álcool, tabaco e/ou drogas ilícitas, sendo frequente a existência de comorbidades clí-nicas e/ou psiquiátricas. Os pacientes participam inicialmente de um grupo de recepção onde se tra-balha a motivação para o tratamento, sendo pro-postas reflexões sobre as consequências da droga em sua vida, o real desejo de mudança, de deixar ou de diminuir o uso de substâncias. Os pacientes também são atendidos individualmente por médi-cos residentes de psiquiatria, para devida avaliação clínica e possível farmacoterapia. Após estas eta-pas, alguns grupos são oferecidos, conforme o in-dicado a cada pessoa. Para álcool e outras drogas, há o grupo que trabalha técnicas de prevenção à recaída e o grupo no qual são fornecidas informa-ções sobre as drogas, sua constituição e efeitos a curto e longo prazo, bem como o grupo de apoio para familiares. Para tabagistas, há um grupo onde se trabalha a motivação para o tratamento e o aban-dono do hábito de fumar, e um grupo terapêutico. Além dos médicos residentes, atuam nos atendi-mentos: psicólogos, assistentes sociais, enfermei-ros e auxiliares de enfermagem; todos, de algum modo, vinculados à Unicamp, como funcionários, estagiários ou voluntários. Lembrando que se tra-ta de um hospitra-tal-escola e, assim sendo, os atendi-mentos geralmente são acompanhados por alu-nos-observadores.

Este período de ambientação e aculturação foi uma fase preliminar à coleta de dados de uma pesquisa qualitativa, marcada pela observação do campo. A pesquisadora esteve presente no am-bulatório uma vez por semana, no período da manhã, durante seis meses consecutivos, até o início da pesquisa propriamente dita. Acompa-nhou as discussões de casos clínicos conduzidas por equipe multiprofissional, e também frequen-tou seminários teóricos. Participando do ASPA, a pesquisadora teve ainda a oportunidade de diri-gir um grupo informativo, a cada dois meses, sen-do responsável por discutir aspectos psicológicos da dependência de SPA em reuniões. Também conduziu um grupo motivacional misto, de fre-quência semanal. Nele, pacientes são atendidos antes mesmo de passarem por consulta médica, sendo um momento de recepção, uma primeira escuta sobre o que os levou a buscar esta ajuda. É desempenhada uma tarefa que, além de oferecer uma escuta para as angústias trazidas, visa forta-lecer a motivação para o tratamento.

Reflexões acerca da experiência de ambientação e aculturação do pesquisador

O primeiro ponto que merece reflexão trata-se do emprego dos conceitos de ambientação e aculturação. Em pesquisa qualitativa, não lança-mos mão dos chamados pré-testes ou das entre-vistas-piloto, cujo objetivo, equivalentemente, é assegurar-se de que os instrumentos de investi-gação estão ‘regulados’ para a aplicação e a coleta validadas visando o alcance dos objetivos do empreendimento. Nas pesquisas qualitativas, nas quais o pesquisador é o próprio instrumento, o entrevistador deve adquirir experiência prévia em

coletar os dados adequadamente planejados4.

Neste período, de ambientação e acultura-ção, pôde-se conhecer de perto, além do funcio-namento operacional do serviço de ambulató-rio, enquanto campo físico desenhado para a pesquisa, também o universo psicocultural da população atendida e como se dão as relações profissional-paciente; bem como aspectos rele-vantes para serem aprofundados na investiga-ção clínico-qualitativa.

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Os profissionais, particularmente os residen-tes, demonstraram essa boa receptividade em relação à pesquisadora, principalmente ao pro-curarem sua opinião nos casos atendidos por ela e também encaminhando pacientes para seu gru-po. Percebeu-se nos profissionais um real pro-pósito de ajudar seus pacientes, embora lidas-sem com a frustração das constantes recaídas.

As mais importantes reflexões e conclusões acerca do que era observado e experimentado em campo ocorriam, efetivamente, a posteriori. Durante a vivência no ambulatório, a pesquisa-dora envolvia-se de tal modo com o serviço e a agitada rotina dos atendimentos, discussões e encaminhamentos, que se sentia como membro da equipe, não como mero observador.

Verificou-se que para profissionais e pacien-tes uma nova ajuda, uma visão adicional sobre a problemática atendida era bem-vinda. Não se pode esquecer que se tratava de um ambulatório dentro de um hospital-escola, onde as pessoas tenderiam a ser mais receptivas a qualquer nova informação. Todavia, podemos compreender que os profissionais demonstravam uma angústia semelhante à de seus pacientes, talvez identifica-dos com eles em seus sofrimentos, no desejo de cessar a dor. Mas, por outro lado, talvez sentin-do a necessidade de dividir as angústias e os ques-tionamentos despertados pelos atendimentos.

Conforme anteriormente descrito, a pesqui-sadora teve contato com os pacientes do ambu-latório em dois grupos, sendo que o motivacio-nal, por ser de frequência semanal e com menos participantes, foi o campo onde se fez a maior parte das observações. Dessa forma, é impor-tante compreender o processo deste grupo, no qual a pesquisadora desempenhava um duplo papel, o de observadora e o de terapeuta.

O que seria então motivação? Miller e

Rollni-ck20 falam de motivação como um “estado de

pron-tidão para mudança”, que varia de pessoa a pes-soa, é mutável e influenciável. Portanto, um paci-ente pode estar mais ou menos pronto para a pro-posta do tratamento, mas, com um trabalho espe-cífico, pode-se favorecer a tal prontidão. Isto pode ser alcançado através de algumas estratégias pro-postas pelos autores anteriormente citados, a sa-ber: oferecer orientação, remover barreiras, proporcionar escolhas, diminuir o aspecto desejá-vel do comportamento, praticar a empatia,

pro-porcionar feedback, esclarecer objetivos e ajudar

ati-vamente20.

No referido grupo motivacional, conduzido pela pesquisadora, buscava-se oferecer um mo-mento de reflexão inicial sobre o porquê dos

pa-cientes buscarem o tratamento e o que espera-vam receber no ambulatório. Seguia-se pelo ques-tionamento de como estava o envolvimento com a substância, quais as perdas acumuladas no decorrer do tempo de uso, quais objetivos de cada um com o tratamento, que atitudes poderiam ajudá-los a atingir seus objetivos. No papel de terapeuta, procurava ser empática com os pro-blemas trazidos pelo grupo, oferecia alguns es-clarecimentos sobre as substâncias e seus efeitos no organismo, e sobre os atendimentos ofereci-dos no ASPA, mas deixava claro que respeitaria as escolhas individuais. No decorrer do processo a terapeuta também passou a discutir com os médicos possíveis encaminhamentos.

Este papel desempenhado pela pesquisadora foi bastante enriquecedor, pois dessa forma pôde, ao mesmo tempo, estar mais próxima dos paci-entes e vivenciar um pouco os papéis exercidos pelos profissionais envolvidos no serviço. Isso favoreceu uma maior compreensão das reais de-mandas e necessidades do ambulatório e da po-pulação nele atendida.

Essa integração entre papéis assistenciais e de investigação científica consiste em rica estratégia, já que usa este meio disponível e a condição de favorecimento com o fim de alcançar o objetivo específico da pesquisa. Pode-se considerar uma forma de se conhecer mais profundamente este campo, inclusive tendo um papel definido em um grupo, com as mesmas características da popu-lação a ser pesquisada.

Como vimos na literatura, é um elemento central em pesquisa de metodologia qualitativa a incorporação do campo, não partindo de um pressuposto dado, mas sim da construção de seu

sentido, do mergulho em suas singularidades21.

Enquanto observadora do serviço em ques-tão, a pesquisadora adotou uma postura mais ativa, não somente a de escuta, mas também par-ticipando e opinando a respeito dos casos aten-didos. Ela pôde ter uma compreensão mais am-pla, não apenas da dinâmica do serviço, mas tam-bém sobre a de cada paciente ali atendido. Tal compreensão, mais global e profunda, favore-ceu o trabalho terapêutico da pesquisadora no grupo motivacional que coordenava, tendo ob-tido mais ferramentas para discutir as dificulda-des trazidas pelo grupo, dificulda-descrever a eles o serviço ali oferecido e a importância do tratamento.

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“exóticos” em meu familiar papel de terapeuta, mas perceber aquela realidade em toda sua complexi-dade. Como visto na teoria, o processo de “estra-nhar o familiar” ocorre quando confrontamos in-telectualmente, e mesmo emocionalmente, diferen-tes versões e interpretações pré-existendiferen-tes. Haja vis-ta que “o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser

exóti-co, mas, até certo ponto, conhecido”22.

Através desse recurso de observação partici-pante, constatou-se que o papel de terapeuta pre-cisa ser flexível, ora acolhendo o sofrimento, ora ensinando conceitos (como efeitos e consequên-cias do uso de substânconsequên-cias), ora motivando, ora esclarecendo ao paciente uma realidade que ele não consegue ou não quer ver. Vivenciou-se ain-da o sentimento de frustração em situação de abandono do tratamento, ou recaídas dos paci-entes, bem como a necessidade do terapeuta bus-car em si mesmo a referida “motivação” para transmitir ao paciente.

Com relação às observações da população atendida pelo ASPA, destaca-se a importância dada pelos pacientes ao apoio sentido por parte da equipe técnica e do grupo. Na pesquisadora ficou a impressão de que, em um espaço no qual os pacientes pudessem falar livremente de seu sofrimento frente à substância e ouvir relatos de companheiros que vivenciam situações seme-lhantes, seria uma ajuda fundamental.

Percebeu-se ser frequente o abandono do tra-tamento, sendo grande a rotatividade no grupo. Muitos retornavam algum tempo depois e rela-tavam os motivos do abandono. Verificou-se que tais motivos passavam por processos de recaída do uso, porém, foi constatado também o aban-dono em função da melhora do paciente, que interrompia o tratamento e seguia reconstruin-do sua vida com a família e o trabalho. Havenreconstruin-do o retorno ao ambulatório em um momento pos-terior quando novamente sentiam que precisa-vam de ajuda.

Outro ponto rapidamente observado, foi que no grupo motivacional conduzido pela pesqui-sadora, havia uma quantidade maior de homens do que mulheres (cerca de sete homens para cada mulher), sendo mais frequente o abandono por parte das mulheres. Percebeu-se que estas intera-giam menos nos grupos, falando quando esti-muladas e demonstrando certo enfado com as falas dos companheiros homens.

Devido às diferenças constatadas durante o processo de aculturação e ambientação entre a população masculina e feminina atendida no

ambulatório, decidiu-se o tema da futura pes-quisa clínico-qualitativa. Percebeu-se a necessi-dade de compreender o significado do tratamento ali oferecido para as pacientes mulheres. Inicial-mente pensamos em estudar apenas uma popu-lação de mulheres dependentes de cocaína e cra-ck, mas com o conhecimento prévio do serviço, percebemos que não haveria um número sufici-ente de sujeitos para a pesquisa. Assim sendo, propusemos um estudo sobre as significações psicológicas da adesão ao tratamento de mulhe-res dependentes de SPA.

Considerações finais

A experiência de ambientação e aculturação foi entendida como momento importante para um trabalho de investigação clínico-qualitativo, de-vendo ser indicado como fase habitual em novas pesquisas que utilizem a mesma metodologia nos

settings clínicos. No tocante à ambientação, per-cebemos que um serviço ambulatorial, dentro de um hospital-escola, possui particularidades que o diferencia de outros serviços especializa-dos em dependência. Pôde-se conhecer as limita-ções e as vantagens de um serviço como este, bem como perceber que a população que busca o ASPA também tem suas condições. Quanto à acultura-ção, esta se mostrou importante para facilitar a aproximação da pesquisadora das mulheres a serem pesquisadas, como por exemplo, ao co-nhecer e utilizar a linguagem verbal e gestual da referida população, que em parte servem para criar uma cultura própria de comunicação (que por vezes exclui o profissional) e por outro lado, uma vez entendida, permite uma maior compre-ensão de sentidos.

A pesquisadora registrou, já no primeiro con-tato com a população do ASPA, a importância de se oferecer uma recepção cuidadosa a pacien-tes que procuram tratamento em função do uso de drogas, a fim de ajudá-los a superar medos de exporem-se e de serem julgados como estão ha-bituados. Demonstraram a necessidade de serem ouvidos e auxiliados na melhor compreensão de seus problemas.

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tífica de se empreender o estudo das representa-ções psicossociais e significarepresenta-ções simbólicas so-bre a adesão de mulheres ao tratamento especi-alizado para dependência de SPA.

Colaboradores

DVA Ribeiro participou pesquisa em campo, dis-cussão e redação do artigo. RCS Azevedo e ER Turato orientaram a pesquisa de campo e parti-ciparam das discussões e redação do artigo.

Agradecimento

Agradecemos a Capes pelo financiamento da pes-quisa envolvida no estudo descrito neste artigo.

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Artigo apresentado em 05/03/2012 Aprovado em 02/05/2012

Versão final apresentada em 25/05/2012 13.

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