Império e governo representativo: uma releitura.

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DOSSIÊ

O processo de construção do Estado nacio-nal no Brasil, n o decorrer do sécu lo XIX, en vol-veu u ma série de fatores complexos, in clu in do perspectivas diferentes sobre qual deveria ser seu perfil in stitu cion al. Nesse con texto, a opção pela monarquia constitucional foi a derrota da repúbli-ca, mas sem qu e a elite política abdicasse, pelo menos em seu discurso, da adoção de um governo representativo. O modelo de monarquia vinha da Europa, onde, a partir da experiência inglesa e da revolução francesa, estava associado à representa-ção política dos diversos setores da sociedade atra-vés do parlamento. Contudo, a presença da escra-vidão, a fraude e a violência nas eleições, o Poder Moderador, com sua atribuição de dissolver a Câ-mara dos Depu tados, levaram os h istoriadores a d e s c o n fi a r e m d a a fi r m a ç ã o d o s p o l í t i c o s oitocentistas de que estavam construindo um go-verno representativo.

IMPÉRIO E GOVERNO REPRESENTATIVO: uma releitura

Miriam Dolhnik off

*

O objetivo deste texto é recolocar essa dis-cussão em outros termos. Esta pesquisa deriva de trabalho anterior no qual foi analisada a organiza-ção in stitu cion al do Estado brasileiro n o sécu lo XIX, de modo a averiguar a forma de inserção das elites provinciais no jogo político. Utilizando o arcabouço conceitual da ciência política e uma vasta pesqu isa docu men tal, de modo a examin ar n ão apen as o discu rso dos políticos, mas também a dinâmica desse Estado, concluiu-se que predomi-nou, no século XIX, um arranjo de tipo federativo. O que significava, entre outras coisas, a capacida-de capacida-de as elites provin ciais participarem do jogo político nacional através da sua representação na Câmara dos Depu tados (Dolh n ikoff, 2004). Essa con clu são colocou a n ecessidade de repen sar o papel da Câmara n a con du ção do Estado e con si-derar a h ipótese de qu e ela efetivamen te foi u m espaço de n egociação de con flitos in tra-elite e de formulação de políticas nacionais. O que, por sua vez, passa pela an álise do con teú do do govern o representativo no Brasil dos oitocentos.

Este texto apresen ta os primeiros resu lta-dos da pesquisa, perseguindo a h ipótese de que a * Dou tora em História Econ ôm ica p ela USP. Professora

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monarquia constitucional brasileira preenchia os critérios definidos como essenciais para a existên-cia de um governo representativo, tal como ele era entendido no século XIX. O que significa abrir ca-minh o para uma nova compreensão do período que não seja pautada pela idéia de falseamento das instituições, da importação inadequada de mode-los alheios. Ao contrário, trata-se de averiguar como o desenh o institu cional previsto n a con stitu ição se con cretizou , de u m lado em h armon ia com os modelos que lhe serviram de inspiração, de outro gan h an do especificidades ditadas pelo con texto brasileiro.

A historiografia que tem se dedicado ao es-tudo da história política tem, em geral, uma abor-dagem pessimista dessa primeira experiência libe-ral. Para parte dos historiadores, a iniciativa políti-ca estava concentrada nas mãos do imperador, ten-do em vista o qu e ficou con h eciten-do como poder pessoal. Segundo essa visão, o governo represen-tativo era falseado no Brasil na medida em que, no exercício do Poder Moderador, o imperador no-meava livremente o ministério, sem compromisso com a maioria parlamen tar, e, n a au sên cia dela, também como atribuição do quarto poder, dissol-via a Câm ara d os Dep u tad os. Graças ao u so indiscriminado da fraude eleitoral, seria possível eleger uma nova Câmara, composta quase exclusi-vamente por depu tados pertencen tes ao partido no ministério e, conseqüentemente, submissa a ele. Esse mecanismo retiraria qu alqu er caráter de re-presentação do govern o. O governo represen tati-vo, assim, não expressaria efetivamente a vontade popular, e a Câmara eletiva deixava de ser o espa-ço de formulação de políticas nacionais (Holanda, 1985; Faoro, 1987; Barman, 1985).

Aceitar a h ipótese de qu e a represen tação política era uma realidade no regime monárquico, tendo em vista os modelos vigentes no século XIX, é vantajoso na medida em que coloca novas ques-tões para a pesquisa sobre o período: Qual era sua e s p e c ific id a d e , e m c om p a r a ç ã o c om s e u s congêneres europeus e norte-americano? Qual era o peso da Câmara dos Depu tados n a formu lação da política nacional? Essa última pergunta é de

especial relevância, dada a magnitude de atribui-ções da Câmara n aqu ele período e leva à n ovas perguntas: Que tipo de representantes eram sele-cionados através das eleições? Como isso afetava a formu lação das políticas n acion ais? Qu em eram os represen tados? Qu ais os in teresses em jogo? Em qu e medida impren sa e sociedades organ iza-das in flu en ciavam as decisões parlam en tares? Como os conflitos intra-elite se traduziram em di-ferentes concepções de representação? Neste texto, n ão preten do respon der a todas essas pergu n -tas, mas apontar elementos que ajudem a formular as respostas, de modo a não apenas conhecer me-lh or o fu n cion amen to do Estado brasileiro n o sé-culo XIX, mas também jogar novas luzes sobre os conflitos intra-elite que determinaram a dinâmica política.

Para compreen der o arran jo in stitu cion al brasileiro do século XIX, é útil a aproximação com a ciência política, de modo a analisá-lo de acordo com o modelo de representação política predomi-nante nos oitocentos. Os estudos baseados na com-preensão do governo representativo a partir do seu nascimento, no final do século XVIII, são de espe-cial in teresse. A abordagem h istórica perm ite desvincular representação de democracia contem-porânea, sendo esta uma variação que surgiu ape-nas no século XX. Assim, evita-se o risco de anali-sar o caso brasileiro a partir dos padrões de repre-sen tação qu e só foram formu lados n o sécu lo se-guinte. Autores como Bernard Manin, Hanna Pitkin e Giovani Sartori ressaltam o caráter elitista dos governos representativos organizados na Inglater-ra, Fran ça e Estados Un idos, n os qu ais prevaleci-am restrições e controles estranhos às democraci-as moderndemocraci-as. Também não se tratava de uma emu-lação d as d em ocracias an tigas. Com o ap on ta Bernard Manin, o governo representativo se opu-n h a à democracia ateopu-n ieopu-n se ju stameopu-n te porqu e selecion ava u ma elite qu e se acreditava capaz de agir de acordo com o in teresse n acion al, a partir de restrições à participação.

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en tre cidadãos ativos e passivos, sen do qu e só os primeiros tin h am direito de voto, e a eleição em du as fases, on de os votan tes votavam n os eleito-res qu e, por su a vez, votavam n os depu tados. Da França e da Inglaterra veio o voto censitário. Da França e da Inglaterra veio a monarquia constitucio-nal bicameral, com uma câmara eletiva temporária e outra vitalícia. Também da França veio o modelo de monarquia constitucional no qual a nomeação do ministério pelo rei não precisava corresponder à maioria parlamentar. Dos Estados Unidos veio, a partir da década de 30, a inspiração federativa que tornava os deputados representantes dos interes-ses provinciais.

Uma vez que as restrições à cidadania obe-deciam ao espírito da época, o eleitorado brasilei-ro não estava fora dos padrões do período. No que diz respeito ao u n iverso de votan tes, con forme aponta José Murilo de Carvalh o, 13% da popula-ção total (excluindo os escravos) tinham direito de voto, de acordo com o recen seamen to de 1872. Em torno de 1870, na Inglaterra, eram apenas 7%, n a Itália, 2%, e, n a Holan da, 2,5% (Carvalh o, 2001). Mas é preciso tomar com cu idado essas comparações. No Brasil, as eleições eram realiza-das em dois grau s (votan tes escolh iam eleitores qu e, por su a vez, escolh iam depu tados e sen ado-res), segu in do-se o modelo adotado n a Fran ça re-volucionária. Como aponta Rosanvallon, o voto de primeiro grau tem uma natureza distinta do de

2o. grau . Só esse ú ltimo é efetivamen te u ma

deci-são política, enquanto os votantes de 1o. grau

exer-cem apenas um papel de legitimação do processo eleitoral:

as assembléias primárias n ão fazem mais qu e design ar os eleitores: procedem somen te a u ma espécie de legitimação origin al do procedimen -to representativo. Porém, as verdadeiras eleições têm lu gar em ou tra parte, n as assembléias eleitorais, as de segu n do grau , qu e só reú n em a cen -tésima parte dos cidadãos ativos. (Rosan vallon , 1999, p.174).

Não se pode comparar como iguais a parti-cipação dos votan tes de primeiro grau n o Brasil com a participação em eleições em países on de o pleito era direto. São participações de naturezas

distin tas, u ma de legitimação, ou tra de decisão. Con sideran do qu e o n ú mero de eleitores de se-gu n do grau n o Brasil era mu ito in ferior ao de vo-tantes (cada 40 vovo-tantes escolhiam um eleitor, se-gu n do lei aprovada em 1846), provavelmen te, se tomarmos apen as os eleitores de segu n do grau , o padrão de participação no Brasil não se apresenta-ria tão superior ao padrão europeu. De todo modo, dele n ão se distan ciava e n ão se pode n egar qu e, mesmo com função apenas de legitimação, o voto de primeiro grau era uma forma de incluir setores mais amplos da população no jogo político.

Na concepção de cidadania política preva-lecente no século XIX, a exclusão do escravo tam-bém se torn ava n atu ral. Com o apon ta José de Alencar, sua incapacidade política derivava, antes de tudo, da incapacidade civil,

... an tes de cidadão, o h omem é pessoa. Dessa qu alidade depen de o títu lo de membro da co-mu n h ão. Desde, pois, qu e o in divídu o se ach a privado da atividade de seu direito civil, fica vir-tu almen te impedido de exercer o direito políti-co (Alen car, 1997, p.89).

O escravo estava fora da sociedade civil e, portanto, não cabia considerá-lo como membro da sociedade política. O mesmo problema foi enfren-tado nos Esenfren-tados Unidos. Madison, por exemplo, ad vogava qu e o escravo sequ er d everia ser contabilizado no cálculo da população que deve-ria servir de base para estabelecer o número de deputados a que cada estado teria direito:

os escravos são con siderados propriedades, n ão pessoas. Devem, portan to, ser in clu ídos em cál-cu los de tribu tação, qu e se fu n dam n a proprie-dade, e ser exclu ídos da represen tação, qu e é regu lada pelo cen so das pessoas (Madison ; Ha-milton ; Hay, 1993, p.363).

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o escravo contava como três quintos de uma pessoa. No Brasil, como se sabe, os libertos, pela Constituição de 1824, tinham direito de voto. Uma vez libertado, o ex-escravo adquiria cidadania ci-vil e, conseqüentemente, a possibilidade de cida-dania política. É bem verdade que o liberto pode-ria ser apenas votante, mesmo que preenchesse os requ isitos para ser eleitor ou can didato, mas isso se ju stificava pelo fato de qu e era aceitável qu e houvesse limites para que o portador de cidadania civil gozasse também de direitos políticos. As mulheres livres, por exemplo, desfrutavam de ci-dadania civil, mas não política, uma vez que eram consideradas intelectualmente limitadas. O mesmo valia para o liberto, com o seu passado de escravo. O interessante é que, nesse ponto, o liberto era con-siderado mais apto do que qualquer mulher, mes-mo branca e pertencente à elite, pois nem direito de ser votante ela tinha. A restrição ao liberto, além disso, restringia-se a uma geração, pois o filho do ex-escravo tinha plenos direitos políticos, desde que preenchesse os requisitos constitucionais.

Além da escravidão e as restrições ao direi-to de vodirei-to, a existên cia do Poder Moderador tem sido argumento para negar o caráter representativo da monarquia brasileira, pois supostamente con-centraria a iniciativa política nas mãos do impera-dor, prin cipalmen te porqu e, com su a atribu ição de dissolver a Câmara, podia, através da fraude eleitoral, garantir a eleição de deputados fiéis ao ministério nomeado por ele. No entanto, o gover-no representativo era con dizen te também com a presença do Poder Moderador. A opção pelo quar-to poder era uma solu ção, entre ou tras, para u ma questão presente em todas as monarquias consti-tucionais representativas do século XIX: definir o papel do rei em um governo representativo, dada a natureza hereditária e irresponsável do cargo.

Antes de continuar o argumento, é útil lem-brar que a interferência de um poder sobre o outro é da natureza dos governos representativos. A di-visão de poderes, com atribu ições defin idas pela Constituição, e a independência entre eles não era e não é entendida como ausência de interferência, já que sempre foi considerada como um elemento

necessário para o equilíbrio dos poderes na medi-da em que é a condição para evitar abusos. Assim, o veto d o Execu tivo à lei p rom u lgad a p elo Legislativo é um exemplo de interferência que ga-rante o controle necessário para que o Legislativo n ão abu se de seu poder. A in terferên cia de u m poder sobre outro era condição para evitar o abuso de poder e no século XIX, e a dissolução da câma-ra eletiva ecâma-ra aceita como forma de interferência legitima. Como aponta Constant,

... elevaram-se reclamações con tra o direito de dissolver as assembléias represen tativas, direito atribu ído, tan to por n osso ato con stitu cion al [Con stan t se refere à Fran ça] como pela con stitu ição da In glaterra, ao depositário do poder su -prem o. [...] Nen h u m a liberdade, sem dú vida, pode existir n u m gran de país sem assembléias fortes, n u merosas e in depen den tes; mas essas assembléias n ão são isen tas de riscos, e n o in te-resse d a p róp ria liberd ad e, cu m p re p rep arar m eios in falíveis p ara p reven ir seu s d esvios (Con stan t, 2005, p.31).

A dissolu ção era coeren te com a represen -tação, u m a vez qu e obrigatoriam en te eram convocadas novas eleições para deputados no prazo de alguns meses, de modo que a dissolução signi-ficava o fu n cion amen to essen cial do govern o re-p resen tativo: n o con flito en tre Execu tivo e Legislativo, a decisão voltava às mãos do eleitor. Caberia a ele, através do voto, reconduzir ao parla-mento os deputados da legislatura dissolvida, afir-man do, assim, su a preferên cia pela política por eles defen dida, ou ren ovar a Câmara de modo a modificar a tendência predominante.

Pode-se argumentar que as eleições não eram livres no Brasil, devido à fraude e à violência. Mas é preciso relativizar o papel da fraude como empe-cilh o para a representação. A fraude eleitoral não era exclusividade brasileira. Era amplamente pra-ticada n os países qu e con stitu íram o berço desse tipo de governo. Basta lembrar dos burgos podres da Inglaterra. Como observa Wanderley Guilh er-me dos San tos,

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A fraude e a violência obviamente influen-ciavam a representação, mas é preciso qualificá-las para compreender até que ponto a comprometiam. Dois elementos devem ser considerados para pen-sar a fraude no contexto do governo representati-vo brasileiro. Em primeiro lu gar, su a exten são. É difícil, quase impossível, medir o quanto a fraude con tamin ava o processo eleitoral. O famoso livro de Belisário Soares de Sou za, O sistem a eleitoral no Im pério, pu blicado em 1872, apresen ta u m quadro no qual a fraude parece ser on ipresen te. No entanto, é preciso considerar que Belisário es-creveu seu livro com u m propósito: a defesa de uma nova legislação eleitoral que eliminasse a fi-gura dos votantes, com o argumento de que se tra-tava de h omen s ign oran tes e, portan to, su jeitos a todo tipo de manipulação. Sem querer menospre-zar a dimensão da fraude naqueles tempos, é licito supor que ela n ão tin h a magnitu de de ordem a comprometer inteiramente o processo eleitoral, uma vez qu e este foi u m in stru men to importan te de estabilidade do regime. A eleição periódica de de-putados era reconhecida pelos atores como forma de garantir que a vontade nacional fosse ouvida na formulação de políticas, de modo que foi possível manter a monarquia constitucional por quase um século sem grandes abalos institucionais.

Um segundo ponto a considerar em relação à frau de diz respeito aos esforços empreen didos pela elite imperial no seu combate. Uma profusão de leis debatidas e promulgadas tinha como objetivo expresso elimin ar as frau des. Podese argu -mentar que essas tentativas eram mera formalida-de. Mas o empenho com que deputados e senado-res debatiam a legislação eleitoral denuncia uma real vontade de normatizar as eleições. Além dis-so, como aponta Bolívar Lamounier, a opção pelo governo representativo era a opção pela criação de u m espaço in stitu cion al de resolu ção dos con fli-tos inter pares, de modo a conferir estabilidade ao regime. Nesse sentido, havia “interesse em eleger interlocutores válidos, e não indivíduos desprovi-dos de liderança, ou meras criações ministeriais” (Lamounier, 2005, p.70). Havia, portanto, interes-se das próprias elites qu e os repreinteres-sen tan tes

fos-sem assim con siderados por aqu eles qu e repre-sentavam.

Por outro lado, é preciso avaliar se, no fun-cionamento efetivo do regime, o quarto poder não acabava sen do u m obstácu lo à represen tação, na medida em que resultasse no constrangimento da liberdade de decisão dos depu tados. No entanto, a dificuldade do Executivo, em determinados mo-mentos, para conseguir a aprovação de seus proje-tos n a Câmara (como a Lei do Ven tre Livre pro-mu lgada em 1871 e a dos Sexagen ários de 1886) eviden cia qu e, mesmo sob a ameaça de dissolu -ção, os deputados impunham resistência à vonta-de do imperador. Além disso, o alto custo político da dissolução provavelmente funcionava como um freio para que ela não fosse praticada com freqüên-cia. Como n ota Sérgio Bu arqu e de Holan da, era um “recurso extremo, que a própria carta de 1824 só admite em casos de exceção [...] e é de su por qu e seu u so segu ido e in discrimin ado poderia a m ea ça r a p r óp r ia segu r a n ça d o sist em a .” (Holan da, 1985, p.11). O au tor dá como exemplo a situação de 1862, quando um ministério conser-vador foi derru bado por moção de descon fiança aprovada na Câmara, com apenas um voto de dife-rença. O ministério liberal que o substituiu teria de enfrentar, assim, uma câmara dividida, na qual con tava com o apoio apen as de cerca de metade dos deputados. A solução seria a dissolução, mas o imperador decidiu n ão fazê-lo, apesar das difi-cu ldades qu e o min istério n omeado por ele com certeza en fren taria, p or con sid erar, con form e con fiden ciou a in terlocu tores, mu ito alto o cu sto político da dissolução.

Além disso, a an álise das relações en tre Legislativo, Executivo e Moderador não indica a su bmissão do primeiro aos ou tros dois. As atri-buições constitucionais do Legislativo conferiam aos parlamentares grande poder de influência no jogo político, desde a elaboração do orçamento anual, que determinava os recursos para o funcio-n amefuncio-n to dos ou tros poderes, até o cofuncio-n trole da con stitu cion alidade qu e, n o sécu lo XIX, con cen -trou-se no exame das leis provinciais.

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tomadas no parlamento: escravidão, organização institucional, força militar, criação de tributos, obras públicas, etc. Por se tratar de monarquia constitu-cion al, praticamen te todas as políticas n aconstitu-cion ais assu miam o formato de lei, con ferin do à Câmara papel fu n damen tal n o jogo político. No qu e diz respeito, por exemplo, à abolição da escravidão, a opção por uma emancipação gradual e com inde-n ização, qu e se materializou com a Lei do Veinde-n tre Livre em 1871, já estava em discussão no Senado desde 1862, quando o conservador Silveira da Mota apresentou um projeto nesse sentido. O debate se intensificou na Câmara na discussão da resposta à Fala do Trono, em 1867, na qual havia uma rápida men ção à n ecessidade de se resolver o problema do elemento servil. Na discussão da Câmara, a tô-n ica foi a defesa do parlametô-n to como o espaço institucional onde a questão deveria ser resolvida. O depu tado Martim Fran cisco expressou o qu e mu itos depu tados in sistiram em seu s discu rsos: o bom govern o deve ter o voto e a con fian ça dos parlamen tares. Por isso, deve su jeitar su as idéias à Câmara, qu e. por su a vez, deve an alisá-las de forma desapaixonada. Na visão do parlamentar:

Pron u n cia-se a câmara com toda a fran qu eza em relação à política do min istério, porqu e o min is-tério qu er saber se, gozan do da con fian ça dos represen tan tes do país, goza também da con fi-an ça do mesmo país, porqu e é n este au gu sto re-cinto que a vontade do país deve manifestar com

mais solen idade.1

Da mesma forma, Joaqu im Nabu co, an os depois, em 1882, insistia que cabia ao parlamento a decisão de como e quando abolir a escravidão. O abolicionista repudiava movimentos sociais de contestação da ordem, reconhecendo, nas institui-ções brasileiras, legitimidade e eficácia para resol-ver a questão:

A eman cipação h á de ser feita, en tre n ós, por uma lei que ten h a os requisitos, extern os e inter-nos, de todas as outras. É, assim, no parlamento e n ão em fazen das ou qu ilombos do in terior, n em n as ru as e praças das cidades, qu e se h á de ga-n h ar, ou perder, a cau sa da liberdade (Nabu co, 1988, p.40).

Esse é um ponto fundamental do debate. A questão da escravidão deveria ser resolvida no in-terior do arran jo in stitu cion al vigen te. O qu e sig-nificava respeitar as competências constitucionais. Mais do qu e resistir a u m projeto de libertação gradu al dos escravos, em 1867 os depu tados ali-nhavam-se na defesa do parlamento e de suas atri-buições contra a ingerência do Executivo.

Para além da formulação das políticas naci-onais, a influência decisiva da Câmara na condu-ção do governo estava em que nela era debatido e aprovado o orçamento anual, de modo que os de-putados detinh am grande poder de interferência nos outros poderes. Não apenas ao aprovar os meios materiais com que eles poderiam contar, como tam-bém porqu e cabia à Câmara fiscalizar os demais poderes na execução do orçamento aprovado. Por essa razão, cabia à Câmara também analisar o ba-lanço geral da receita e da despesa realizadas. Como lembra Pimenta Bueno,

... é de mister qu e os legisladores e o país saibam se os serviços pú blicos foram desempen h ados e as despesas efetu adas ou n ão n a con formidade do respectivo orçamento [...]. Sem esse contraste, sem essa prova real, sem con tas devidamen te processadas e tomadas, os orçamentos são meras e in su ficien tes formalidades. Os min istros pre-terirão ou farão as despesas qu e qu iserem; em-pregarão, an teciparão ren das, criarão créditos, e em su ma disporão dos recu rsos do Estado a seu con ten to (Bu en o, 2002, p.152).

A elaboração do orçamen to pela Câmara eletiva é da essência dos governos representativos. Como afirma António M. Hespanha, o orçamento tinha significativa centralidade política, e sua

aprovação devia ser, em todos os regimes libe-rais típicos, uma das atribuições centlibe-rais dos par-lamentos. Originariamente, esta centralidade do orçamen to resu ltava da própria h istória das re-volu ções con stitu cion alistas qu e, qu er n a Amé-rica, qu er em Fran ça, foram desen cadeadas por ações anti-fiscais. A isto acrescia o fato de, sendo a tribu tação u ma ofen sa à propriedade e sen do esta ú ltima u m valor con stitu cion al cardin al do regim e, só o parlam en to estaria au torizado a limitá-la, mesmo por via fiscal (Hespanh a, 2004, p.190).

A extração coercitiva da riqueza dos indiví-du os pelo Estado só era aceitável se decidida

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los seus representantes. Ao seguir, nesse ponto, o modelo liberal, o regime brasileiro incorporava um grande poder de interferência da Câmara sobre os demais poderes. O Execu tivo, por exemplo, n ão poderia realizar seus programas de governo sem o assentimento dos deputados.

O debate parlamentar evidencia também a existência da preocupação da elite política com a qualidade da representação nacional, no sentido de torná-la eficaz e no sentido de definir seu con-teúdo quanto ao grau de representatividade. Essa preocupação manifestou-se de forma mais expres-sa na discussão sobre a legislação eleitoral. Foram basicamente três os temas que mobilizaram os par-lamentares quanto a esse item: a fraude eleitoral, a representação das minorias e o que chamavam de in compatibilidades. Os três temas respon diam a preocu pações de fu n do, referen tes à efetividade do governo representativo: o tipo de representa-ção que deveria prevalecer e a independência en-tre os poderes. Os três temas freqü en taram os de-bates parlamentares desde pelo menos 1828 e, entre outras leis, as opções adotadas materializaram-se em qu atro mais importan tes: a lei de 1846, qu e afirmava os princípios de cidadania consagrados na constituição de 1824, a lei de 1855, que adota-va o voto distrital e definia a inelegibilidade de deten tores de determin ados cargos pú blicos (in -compatibilidade), a lei de 1875, qu e in trodu ziu o títu lo de eleitor, e a lei de 1881, qu e modificou os prin cípios de cidadania. Embora cada u ma delas tenha se centrado em pontos específicos, as ques-tões mencionadas acima permearam todo o deba-te. Por exemplo, n a discu ssão da lei promu lgada em 1846, cujo foco essencial foi regrar a qualifica-ção dos votan tes, o voto distrital foi u m tema im-portante, embora ele só fosse introdu zido n a lei promulgada em 1855. O que indica como as refor-mas eleitorais do império giraram em torn o sem-pre dos mesmos pon tos cen trais, sen do qu e os depu tados faziam opções diferen tes, em diferen -tes momentos, variando conforme os percalços da prática eleitoral. No caso do voto distrital, a sua não adoção foi justificada pelo deputado Andrada Machado, ao apresentar o projeto de reforma

eleito-ral que se tornaria a lei de 1846, da seguinte forma:

Mas se com este expedien te se evitava o mal das corvéias, ou tro mal maior pareceu a comissão dever daí derivar. Ela capacitou-se que semelhan-te divisão n ão faria sen ão en viar ao corpo repre-sentativo notabilidades de aldeia, em vez de

ver-dadeiras n otabilidades provin ciais.2

O mesmo argumento seria utilizado em 1855 por aqu eles qu e eram con tra a Lei dos Círcu los, então em discussão. Só que, dessa feita, a maioria dos depu tados optou pelo voto distrital.

No Brasil, ao con trário de ou tros países, a legislação eleitoral do império caminhou no senti-do de ampliar as restrições e n ão o eleitorasenti-do. A lei de 1846 in dexou em prata os valores exigidos para votar e ser eleito. A lei de 1875 torn ou mais rigoroso o processo de qualificação dos eleitores, e a lei de 1881 elimin ou a eleição em du as fases, excluindo os votantes, e introduziu a exigência de ser alfabetizado.

Na medida em que, no século XIX, a quali-dade da representação era considerada resultado da qu alidade do eleitor, os políticos brasileiros apostaram na gradativa diminuição do eleitorado como forma de combater a fraude. Um eleitor anal-fabeto e, portanto, mal informado e pobre era mais vulnerável às artimanh as daqueles que procura-vam man ipu lar as eleições. Qu an do, em 1846, o deputado Andrada Machado apresentou o projeto de reforma eleitoral elaborado pela comissão da Câmara e que previa a indexação do censo exigido em prata, afirmava, referindo-se à fraude:

... corrigir as faltas do govern o democrático, bases das eleições popu lares, é de mais importân -cia do que estender a esfera a que este governo se pode aplicar. Uma represen tação apresen ta ao poder das mu ltidões u m con trapeso n a in flu ên -cia das ou tras classes: ela su bstitu i legisladores h ábeis a ou tros in teiramen te in capazes de qu al-qu er fu n ção legislativa; e con tin u a a con fian ça u ma vez depositada por todo o tempo su ficien te para salvar a legislatu ra das elu sões e fren ezi

temporário do povo.3

2 An ais d a Câm ara d os Dep u tad os, sessão d e 16/8/1839, p .

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3 An ais d a Câm ara d os Dep u tad os, sessão d e 16/8/1839, p .

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No que se refere às incompatibilidades, pre-servar a independência entre os poderes era a ques-tão central. A Câmara, como instância eletiva que conferia representação ao regime através da eleição dos seus membros, deveria ser protegida da inter-ferên cia de in tegran tes de ou tros poderes qu e porventura se elegessem deputados. Assim, a par-tir de 1855, u ma série de leis foi promu lgada de-clarando impedidos de se candidatar aqueles que tivessem cargos importan tes n o Ju diciário e n o Executivo.

Por fim, a represen tação das minorias foi fonte de intenso debate, acompanh ando preocu -pações que norteavam também os legisladores eu-ropeu s e n orte-american os. Como o sistema pro-porcional ainda não era usual na Europa, tendo sido in trodu zido só n o fin al do sécu lo XIX, a pre-ocupação em garantir a eleição das minorias tinha de ser resolvida dentro do sistema majoritário. Em 1855, n o debate qu e resu ltou n a promu lgação da Lei dos Círcu los, os parlamen tares optaram, n ão sem muita discussão, pela adoção do voto distrital em substituição ao que chamavam de voto provincial, con sagrado n a Con stitu ição de 1824. No en -tanto, o voto provincial também era distrital, já qu e cada provín cia elegia u m n ú mero fixo de de-pu tados e cada eleitor votava em tan tos n omes quantos deputados compunham a bancada de sua província, sempre pelo sistema majoritário. No esforço de garantir a representação minoritária sem voto proporcional, a proposta era que o voto fosse por distritos pequ en os, ao in vés do gran de distri-to provincial.

Aqueles que a defendiam consideravam essa uma forma mais eficiente para garantir a eleição de minorias no sistema majoritário, uma vez que bas-taria ter poder local para ser eleito, enquanto uma circunscrição ampla, como a província, favorece-ria o candidato melhor articulado politicamente e, assim, tornaria quase impossível a eleição de can-didatos de grupos minoritários.

No Brasil, aqueles que defendiam a eleição dos melhores, mais sábios e mais ilustrados como ún ica forma de o parlamen to formu lar de modo competente a vontade nacional eram a favor do

distrito grande, ou seja, do voto provincial. Aque-les que estavam preocupados com a representação da diversidade batiam-se pelo distrito pequeno.

Na concepção de representação do século XIX, cabia aos representantes, ao mesmo tempo, defender os interesses dos seus eleitores e aquilo que consideravam constituir os interesses de toda a nação. Muitas vezes, havia contradição entre os dois campos, sendo que, no Brasil, a defesa dos interes-ses dos eleitores se confundia com a defesa dos interesses provinciais que, assim, eram às vezes vistos como em oposição ao interesse nacional.

As bancadas tendiam a defender os interes-ses da província que representavam quando o tema lh es dizia respeito diretamen te. Para qu e o n ovo arranjo institucional fosse fiador da unidade, era preciso qu e as elites provin ciais recon h ecessem, n as su as ban cadas, u m efetivo meio de defesa de seus interesses no interior do Estado (mesmo que nem sempre conseguissem aprovar medidas con-dizentes com suas demandas), o que se evidencia n o fato de qu e o n ú mero de depu tados de cada provín cia se torn ou a medida do seu grau de in -fluência na política nacional. Uma representação enviada pela Assembléia Legislativa de São Paulo ao governo central, em 1841, reflete claramente essa concepção, quando, ao protestar contra os rigores do recru tamen to forçado qu e sofria a popu lação paulista, propõe que

... o n ú mero de recru tas exigidos para a forma-ção do exército do Império seja repartido pelas provín cias n a proporção do n ú mero dos depu ta-dos qu e cada u ma delas en via à Assembléia Ge-ral. Sen do u m prin cípio in egável de ju stiça qu e os ôn u s devem ser proporcion ais às van tagen s qu e se colh em do con trato social, e estas van tagen s relativas à parte qu e cada u ma das provín -cias toma n a decisão dos n egócios gerais, o qu e fica eviden te pelo n ú mero de depu tados qu e n o-meia, parece qu e semelh an te regra deve ser

ado-tada como a mais ju sta.4

A representação paulista reconhecia, desse modo, que o grau de influência das províncias nas decisões do governo central era determinada pelo

4 An ais d a Assem bléia Legislativa Provin cial d e São Pau lo.

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número de deputados que elegia. A representação na Câmara tinha, assim, conteúdo territorial.

Essa concepção de representação esteve pre-sen te n a discu ssão do voto distrital em 1855. Os defensores do voto distrital (distrito pequeno) ar-gumentavam que o distrito grande favorecia a exis-tência de bancadas provinciais coesas. O que sig-n ificava qu e as provísig-n cias com maior sig-n ú mero de depu tados imporiam seu s in teresses aos demais, enquanto o voto por distrito pequeno resultaria em bancadas fragmentadas, favorecendo a negoci-ação ao in vés da imposição dos in teresses de u m setor apenas. Pimenta Bueno fazia a defesa do voto distrital alegando que as grandes províncias tinham força, através do parlamen to, de fazer valer seu s interesses frente o governo central, em detrimento das pequenas províncias, com bancadas menores:

O qu e vemos porém n o Brasil? Vemos a par de pequ en as provín cias ou tras con sideráveis, qu e relativamen te são gran des Estados, Estados pre-ponderantes, que têm interesses distintos e opos-tos, como qu e n acion alidades diversas, com for-ças desproporcion adas e capazes de en trar em lu ta com o govern o cen tral e por em dú vida a in divisibilidade do império. [...] Este é n osso es-tado, in con ven ien te e perigoso: e como sobre ele influi o atual sistema eleitoral? Tende a corrigir e n eu tralizar esses in con ven ien tes e perigos ou a reforçá-los? En qu an to as eleições con tin u arem a ser feitas por províncias, como atualmente são, a

resposta não pode ser duvidosa.5

Ao apontar o papel das bancadas parlamen-tares na representação dos interesses provin ciais frente o governo central, Pimenta Bueno associava a discussão do voto distrital ao tamanho da banca-da a que cabanca-da provín cia tin h a direito. Dessa for-ma, su a argu men tação con tin u ava n o sen tido de s a l i e n t a r o q u e c o n s i d e r a v a u m a i n ju s t a desproporcionalidade:

A provín cia de Min as tem n a câmara dos depu -tados 20 representantes e no senado 10, tem pois u ma represen tação igu al a de 10 provín cias do Brasil, tan to em u ma como n ou tra câmara, pois qu e n a câm ara dos depu tados a provín cia do Amazonas tem 1, Espírito Santo 1, Paraná 1, Santa Catarin a 1, Goiás 2, Mato Grosso 2, Piau í 2, Sergipe 2, Pará 3, Alagoas 5, ao todo 10 provín ci-as com 20 deputados. (...) Ora, haverá, porventura,

proporção algu ma razoável qu an do u ma só pro-víncia influi no parlamento brasileiro tanto como dez outras?Não direi mesmo tanto, e sim mais do que dez outras, por isso que os vinte representan-tes destas n ão se ligam en tre si, têm in teresses

divergen tes, n ão têm a força de seu n ú mero.6

A representação dos eleitores convivia, no Brasil, com uma representação de caráter nacional. Os deputados eram representantes da nação, se-guindo, aqui, a concepção burkeana: cabia a eles identificar o bem comum e legislar de acordo com ele. Claro está que o que cada qual considerava ser o bem comum variava de acordo com diversos que-sitos: extração social, origem provincial, filiação partidária, etc., e, por essa razão, o debate parla-mentar assumia papel crucial no enfrentamento entre posições e na formulação da política nacional. Em conseqüência, era preocupação central a garantia de eleição de representantes portadores de virtude que os habilitasse a atuar de acordo com o interesse nacional, definido por eles próprios.

Dessa tensão resultava que o mesmo deputa-do, em determinado momento, pautava sua atua-ção tendo em vista os interesses de sua província e, em outros, aquilo que considerava ser o interesse nacional. Obviamente, essa última posição era, em geral, tomada quando interesses específicos de sua província não estavam em jogo. A tensão ocorria na medida em que essa oscilação gerava expectativas opostas no interior do debate. Por exemplo, em 1850, a o ex er c er s u a a t r ib u iç ã o d e c on t r ole d a constitucionalidade, os deputados enfrentaram uma dura discussão sobre a constitucionalidade de uma lei promulgada pela Assembléia Legislativa de Pern ambu co. Na discu ssão, o con servador João Manuel Pereira da Silva, deputado pelo Rio de Ja-neiro, afirmava que:

A su scetibilidade dos h on rados membros depu -tados por Pern ambu co foi tal qu e até se acu sou o meu h on rado amigo, depu tado pela Bah ia e au -tor do projeto, de se deixar eivar do espírito do provin cialismo n a qu estão de qu e se trata. Se p o d e h a v e r a c u s a ç ã o d e e s p í r i t o d e provin cialismo a este respeito n ão cabe certa-men te àqu eles qu e votam con tra o adiacerta-men to e em favor do projeto, perten cen tes como são a

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versas provín cias, mas sim aos ilu stres depu ta-dos por Pernambuco, que reconh ecendo que são ilegais essas leis de su a provín cia, en tretan to

qu erem qu e elas perman eçam.7

A acu sação de provin cialismo, lan çada de parte a parte, funcionava como desqualificação da posição do oponente, mas fazia sentido justamen-te porque as bancadas mobilizavam-se para defen-der os interesses de suas províncias, de modo que a Câmara dos Deputados se tornava a instância no interior da qual as elites regionais podiam intervir n a política n acion al. Ao mesmo tempo, con tu do, estavam compenetrados de sua condição de repre-sen tan tes da n ação, situ ação bem sin tetizada por D. Man oel de Assis Mascaren h as, depu tado pelo Rio de Janeiro:

É verdade, senhores, que nós somos representan-tes da n ação, mas também é verdade qu e deve-mos mais particu larmen te advogar os in teresses de n ossas provín cias porqu e estamos de ordin á-rio mais h abilitados para con h ecermos dos in te-resses delas. Portan to, n ão se deve cen su rar qu e u m depu tado da Bah ia, por exemplo, ou do Rio de Jan eiro, propon h a a revogação de u m ato da assembléia provin cial de Pern ambu co qu e ele en ten de qu e vai de en con tro n ão só à Con stitu i-ção, mas também aos interesses da província que o honrou com os seus votos para ter assento nesta

casa.8

A Câmara dos Depu tados, como órgão de representação por excelência, era vista como o ins-trumento pelo qual o povo participava do governo do país. Seu s represen tan tes lá estavam para de-fender seus interesses. Mas uma das tensões bási-cas dos govern os represen tativos está n o fato de que o representante é também governo e, por isso, tem com o represen tado u ma relação de imposi-ção. O represen tan te é, dessa forma, sempre u m agente da localidade que o elegeu, como também um governante da nação, “his duty is to pursue both local and national interest, the one because He is a representative, the other because his job as representative is governing the nation” (Pitikin , 1967, p.218). Assim, a Câmara de Deputados era, ao mesmo tempo, o espaço de represen tação dos

interesses dos representados e o espaço de formu-lação de políticas nacionais. Sua função precípua era formu lar as leis às qu ais todos, do rei ao mais humilde dos brasileiros, teriam de se submeter.

O Poder Moderador, a fraude eleitoral, a escravidão e o voto censitário não eram incompatí-veis com o modelo de represen tação política do sécu lo XIX. Ao con trário, como se procu rou de-monstrar, com exceção do Poder Moderador, esta-vam presen tes n as experiên cias eu ropéias de go-verno representativo (fraude e voto censitário) e norte-americanas (fraude e escravidão). E estavam presentes porque não afrontavam a forma pela qual se pen sava, en tão, a cidadan ia e a represen tação. O Poder Moderador, apesar de restrito às experi-ências brasileira e portuguesa, também não falsea-va a monarquia constitucional representatifalsea-va, tal qual o modelo prevalecente no período.

No Brasil, o desafio de construir um gover-n o represegover-n tativo cegover-n trou -se gover-n a forma de orgagover-n i-zar as instituições, de modo a adaptar os modelos conh ecidos à realidade específica do país. Os po-líticos brasileiros acalen taram projetos distin tos, ten do em vista con cepções diversas de represen -tação e diferentes interesses projetados na ordem in stitu cion al. A opção por u m govern o represen -tativo permitiu trazer para o interior do Estado as disputas de interesses entre os diversos setores da elite.

No processo de construção do Estado brasi-leiro, a Câmara dos Deputados viabilizou a relação de legitimidade entre população e governo, por ser eletiva, e tornou-se espaço de negociação de confli-tos através da formulação institucional de políticas. Cumpriu, assim, o papel que suas congêneres cum-priram na Europa e Estados Unidos.

(Recebido para pu blicação em jan eiro de 2008) (Aceito em março de 2008)

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. 21, n. 52, p. 185-190, Jan./Abr

. 2008

RESUMOS,

ABSTRA

TCS, RÉSUMÉS

Miriam Dolhnikoff

This paper analyzes the representative government in Brazil, in the closing of the XIX century, so as to show that the Brazilian constitutional monarchy did not stand apart of the models of political representation then effective in Europe. With that aim, the paper examines the Poder Moderador, the citizenship criteria and the electoral legislation.

KEYWORDS: representative government,

constitutional monarchy, elections, citizenship, poder moderator.

Miriam Dolhnikoff

Este artigo analisa o governo repre-sentativo no Brasil, no decorrer do sé-culo XIX, de modo a apontar como a monarquia constitucional brasileira não se afastou dos modelos de representa-ção política então vigentes na Europa. Com esse objetivo, o artigo examina o Poder Moderador, os critérios de cidada-nia e a legislação eleitoral.

PALAVRAS-CHAVE: governo representativo,

monarquia constitucional, eleições, ci-dadania, poder moderador.

Miriam Dolhnikoff

Cet article fait une analyse du gouvernement représentatif au Brésil, au XIXe siècle. Il essaie de montrer combien la monarchie constitutionnelle brésilienne ne s’est guère éloignée des modèles de représentation politique en vigueur, à l’époque, en Europe. C’est dans ce but qu’on y étudie le Pouvoir Modérateur, les critères de citoyenneté et la législation électorale.

MOTS-CLÉS: gouvernement représentatif,

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References