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inhaexposiçãopretende,aprincípio,darumapequena contribuiçãoaumproblemadehistóriabastantecontro-verso:adatada“invenção”doobjetoaporJacquesLacan.1Em seguida,gostariadeilustraroquemepareceserumaregraem nossadisciplina,asaber,adequeasnovasnoçõesesclarecem naturalmenteasmaisantigas,merecendoateoriaanalítica, portanto,serqualificadade“discurso”,jáquesecomporta umpoucoàmaneiradas“construções”freudianas(FREUD, 1937/1985),cujaenunciaçãoantecipaavalidaçãoretroativa dealgumasdesuasprecondições.DoutoremMedicina eemCiências HumanasClínicas (Psicopatologia Fundamental ePsicanálise). PsiquiatranoCentro HospitalarSainte-Anne.Psicanalista. Professorna Universidade deParisV,na Universidadede ParisVIIeno ColégioClínicode Paris.Membroda EscoladePsicanálise dosFórunsdo CampoLacaniano.
Tradução:Contra Capa
NATEORIAPSICANALÍTICA
FrédéricPellionRESUMO: Desenvolve-seahipótesedequeaelaboraçãoda“cate-goria”particularde“faltadeobjeto”queéaprivação,feitapor LacanaolongodoquartoanodeseuSeminário,nãoapenasantecipaa “invenção”ulteriordoobjetoa,comotambémserevela,aposteriori, algoquelheénecessariamenteprévio.
Palavras-chave:Objetoa,privação,estrutura,sujeito.
ABSTRACT:Objectaandprivation.Asignificantcaseofretroaction in the psychoanalytic theory. A hypothesis is developed so that theelaborationofaparticularcategoryof“lackofobject”,which istheprivation,donebyLacanthroughouthisfourthyearinthe Seminary,notonlyanticipatestheulterior“invention”ofobjecta, butitalsoreveals,later,somethingthatwillbepreviouslyneces-sarytohim.
Keywords:Objecta,privation,structure,subject.
1IntervençãonasJornadasdaEPFCL,França,“OobjetoadeLacan:
Noqueconcerneaoobjetoa,otermo“invenção”temsuaprópriahistória,e essahistória,algumarelevância.Comefeito,otermofoiempregadoporLacan em1966,nasessãodeseuSeminárioquecoincidiucomapublicaçãodeseu Escritos:“Oquevocêfez,dizia-meumdeles[ospsicanalistas],paraterdeinventar esseobjetoa?”(1966-67/inédito)—observemos,depassagem,amalíciadesse exemplodemensagemrecebidasobformainvertida—edepois,outravez,na terceiraliçãodoSeminário,livroXVI:deumOutroaooutro(1968-69/2006,p.45):“Esse objetoa,emcertosentido,euoinventei...”
Aescolhaeareiteraçãodotermosão,evidentemente,algosustentadopor Lacannodebatequeoopõeàquelesalunosqueparecemconsideraressa“in-venção”sobretudouma“descoberta”,ouseja,um“tornarevidente”umobjeto darealidade,oudapercepção,sequiserem,quebastariaservalorizadoparaque seuusoencontrassefundamentação.2Emsuma,ainvençãoéumatoinseparável daenunciaçãodoinventor,aopassoqueadescobertaseriaoresultadodeuma apropriação de um novo fragmento da suposta “realidade não modificável”, caraaFreud.
Parece-mequeoproblemaconceitualdaprivaçãoaomesmotemporecortae esclareceadistinçãoentreinvençãoedescoberta.Comefeito,apartirdomo-mentoemqueseadmitedefinir,deacordocomLacan,aprivaçãocomofalta realdeumobjetosimbólico—retomareiadianteàquestãodoagente—,surge oseguinteproblema:comoosujeito,entendidocomoefeitodeumdiscurso, pode apreender, nesse mesmo discurso, aquilo de que é privado? E quais as conseqüênciasdessaapreensãoparaosujeito,mastambémparaoobjeto?
OSeminário,livro4:Arelaçãodeobjeto(1956-57)seguemetodicamentearedução doimaginárioqueguiaLacanrumoàelaboraçãodeseuobjetoa.Eoprojeto que,decertamaneira,constituiacolunavertebraldesseSeminário,odeuma “teoriadafaltadeobjeto”(LACAN,1956-57/1994),claramenteparticipadessa empreitada:afaltaéomaiordenominadorcomumdaexperiênciadossujeitos, emparticulardossujeitosneuróticos,podendoaparecerinclusivecomoo“sujei-to”,nosentidooriginaldesolo,oudebase(DESANTI,2001,p.12),3dodiscurso queésustentadoemanálise.Isso,porém,nãodispensaLacandeelaboraressa teoria—eemtermosde“relaçãodelugares”(LACAN,1956-57/1994,p.17),já
2Palavra,porexemplo,repetidatrêsvezesemumamesmacomunicaçãoporSergeLeclaire,
em1971,demaneiraquaseencantatória(LECLAIRE,1971/1999,p.151,158e159).
queeleambicionafigurarastransformaçõesdafaltadeobjetoemumquadro (Idem,p.215)—soboriscodetomaraevidênciaàsavessas.
Entreastrês,eapenastrês,4 “categorias”(LACAN,1956-57/1994,p.37)teo-ricamenteestáveisdessafaltadeobjetotematizadasporLacan—frustração, privaçãoecastração—,aprivação5semdúvidaéamaisdifícildecompreender, deapreenderdemodointuitivo:elaseassentasobreomenosevidente,omais impensável,istoé,sobreahipótesedeuma“faltareal”,ouseja,deumafalta estranhaatodarepresentaçãodafaltaquepodeviraserarticuladapelosujeito aquemsesupõeessafalta.
Defato,apartirdomomentoemqueLacanrealizaumaespéciederedo-bramentodoreal,eobservaque,“sendoorealplenoporsuapróprianatureza, épreciso,parafazerumfuroreal,introduzirneleumobjetosimbólico”(Idem, p.250),6jáque“umaprivaçãosópodeserefetivamenteconcebidaparaumser quearticulealgonoplanosimbólico”(Idem,p.100),torna-seclaroqueessafalta sópodeserformuladadolugardoOutro,desdequeentendidocomoumlugar absolutamentedescentradoemrelaçãoaolugardosujeitofaltante.
Podia-seler,nasentrelinhasfreudianas,certadiscórdiaentreduasfacescon-traditóriasdoobjeto:umarepresentáveleaoutranão.Ora,afaltareal,o“furo
4Defato,podemosobservarqueascombinaçõestrêsatrês(falta,objeto,agente)dostrês
registros (real, simbólico, imaginário) são teoricamente seis. Privação, frustração e cas-traçãosórecobrem,portanto,ametadedascombinaçõespossíveis.Veremosadianteum exemplodecomoascombinaçõesintermediárias,emvezdeseremrecalcadas,sustentam aconstruçãodeconjunto.
5 Nas seis primeiras lições doSeminário, livro 4, Lacan (1956-571994) estabelece, pouco a
pouco,aseguintedefiniçãodaprivação:“faltarealdeumobjetosimbólico,causadaporum agenteimaginário”.AnoçãodeagenteésecundáriaaolongodoSeminário—lembremosque oquadrocompletosófiguranapágina215—,poisdealgummodoelaésuperestrutural, ouseja,completaadescriçãofenomenaldeumahipótesesobreacausa.
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real”dequefalaLacan,pareceocuparolugarestritamenteantinaturalevocado porFreud,quando,em1896,abordaasexualidadenãoapenascomouma“fonte independentedeliberaçãodedesprazer”,mastambémcomo“aúnicapossibi-lidadedeverumalembrançaproduzirumefeitobemmaisconsideráveldoque opróprioincidente”(FREUD,1896/1956,p.130-131)—proposiçãoretomada porLacan,quaseaopédaletra,nomesmoSeminário,livro4:“aabordagemdo objeto sexual apresenta uma dificuldade essencial que é de ordem interna” (1956-57/1994,p.59).
Assim,parece-mequeacategoriadeprivaçãotornaexplícitaaheterogenei-dadedoobjeto:aprimeiradesuasfaces,asimbólica,ocupanaprivaçãoolugar dasrepresentaçõesdoobjetofaltante,aopassoqueasegunda,areal,intervém nolugar,rigorosamentedistinto,dafalta.Asduasfacesdoobjeto,porquese referemaregistrosdistintos,nãoserecortamemnenhumoutroponto,eomito deumagentepessoalresponsávelpelaprivação,emsuaprópriacondiçãodemito —comocorrênciasnumerosas,masestruturale“regressivamente”idênticoao “mitoindividualdoneurótico”(Idem,p.228,229e249ess)—,escavamuito maisdoqueresolveessaheterogeneidade.
Anecessidadedeconstruir,umavezmais,umanoçãodoobjetoqueretireas ambigüidadesdoparceirolibidinaldosujeito—quejamaispoderia,porrazões estruturaisenãoporqueligadasàimperfeiçãodesuanatureza,serplenamente “remediador”(FREUD,1895/1956,p.95)—origina-seaíe,deimediato,pres-siona.
Noperíodoinicialdeseuensino,Lacantentaráresponderaessanecessidade explorandoasconseqüênciasdoquechamade“falocentrismo”(1956-57/1994, p.29)analítico:tratar-se-ádeexaminarseoprivilégioconferidoporFreudao falotornaesseconceitocapazdesuturar,demaneiraválida,aheterogeneidade doobjeto.Parece-mequeessaesperançaétestemunhadapelasdefiniçõesde falo,cujasvicissitudesseencontramaté“Adireçãodotratamentoeosprincípios deseupoder”(1958),como“alibradecarnepagapelavidaparafazerdeleo significantedossignificantes”(LACAN,1958,p.630).Notemosqueainvisibi-lidadedessa“libradecarne”pretendefazê-laparticipardoreal,apesardesua texturacorporal:osexemplosinvocadosporLacan—“ofaloperdidodeOsíris embalsamado” (Idem) ou ainda, mais tarde, o coração de Shylock (LACAN, 1962-63/2004,p.250ess)—nãodeixamdúvidasobreesseponto.
osauspíciosdeumvalorque“marca”,ouseja,quesignifica—nosentidoda designação,daBedeutung—semnadarepresentar.
HáumapassagemdoSeminário,livro4queparecemostrarissodemodomuito claro.Ei-la:
“Oqueaconteceseoagentesimbólico[Lacanserefereaseuescritodafrustraçãocomofalta imagináriadeumobjetorealdevidaaumagentesimbólico],otermoessencialdarelaçãoda criançacomoobjetoreal,amãe[...],nãorespondemais[...]aoapelodosujeito?[...] Eladecai.[...]Atéentão,elaexistianaestruturaçãocomoagente,distintodoobjeto realqueéoobjetodasatisfaçãodacriança.Quandoelapassaaresponderapenas[...] aoseuagrado,saidaestruturaçãoesetornareal,istoé,torna-seumapotência.”
Enfatizo, sem entrar em detalhes, o termo ‘potência’, cujo papel de en-cruzilhadaentrefaloeobjetoaéabsolutamenteessencial,sobretudonotexto “ObservaçãosobreorelatóriodeDanielLagache”(LACAN,1960).
Masretomemosacitação:
“Correlativamente,produz-seumareversãodaposiçãodoobjeto[...].Essesobjetos que,atéentão,erampuraesimplesmenteobjetosdesatisfaçãosetornam,pormeio dessapotência,objetosdedom.[...]Elessãoamarcadovalordessapotênciaquepode nãoresponder.”(LACAN,1956-57/1994,p.29,grifosnossos)7
Desdobremos,comalgumcuidado,atopologiadoqueacontecenessaslinhas, emquevemosLacanpensartambémemumadireçãodotratamentoqueultrapas-seoplanoexclusivodafrustração.Podemosdizerquea“não-respostadamãe”, decertomodo,tornainstáveloternáriofrustração,privaçãoecastração:
1.Oagenteatéentãosimbólico,aptoafazerpassaroobjetorealdanecessi-dadeàrepresentação,ainterpretá-la,tornou-seelepróprioreal;
2.Masafalta,esperandoser“efetivamenteconcebida[...]noplanosimbó-lico”e,emseguida,8passarparaoreal—oque,vimos,defineaprivação—, permaneceimaginária;
3.Dissodeduz-seocaráterinelutavelmentesimbólico,mesmoque,emcerto sentido,exorbitante,doobjetoemcausa—algoqueé,parece-me,indicadopor Lacanaofalarde“marcadovalor”.
7Notemosqueessatemáticadodomcomo“fatosocialtotal”,constitutivodo“serlegal”do
homem,tinhasidoabordadaporLacanem“LachosefreudienneousensduretouràFreud enpsychanalyse”(1956,p.15).
8Lembremosque,maistarde,oconceitoserádefinidoporLacan,demaneiramuitoprecisa,
Emresumo,realesimbólicotrocamdelugar,valendo-sedamesmafalta imaginária.
Essasituaçãoinéditanateoria,porémmuitopertinentenaclínicadaneurose —afaltaimagináriadeumobjetosimbólicodecorrentedeumagentereal—, éintermediáriaentreaprivação,daqualtomaemprestadaacaracterizaçãosim-bólicadoobjeto,eacastração,comaqualpartilhaostatusrealdoagente.
Todaaquestãoaquiésaberemdireçãoaqualdasduasformasestáveisdafalta deobjeto,decertomodosituadasparaalémdafrustração,aanáliseorientará preferencialmenteessasituação.
Poderáiremdireçãoàprivação,seosujeitotrocar9suafaltaimagináriapela faltarealdessa“potência”,prestando-lheumcultoquetomaráabertamenteuma formamaisoumenosmítica,porexemplo,da“causalidadefamiliar”(SOLER, 2006).Aqui,aúnicaoperaçãoquepodedesequilibraressadialéticadacrença seconfundecomoque,maistarde,Lacanindicarácomo“extração”10doobjeto a(LACAN,1958,p.553-554).Oupoderáiremdireçãoàcastração,seolutodas “marcas”dessapotência,umaauma,chegaraserconsumidopelosujeito.Com efeito,damesmamaneiraqueaetnologiaacabouporfazerobjeçãoàequivalência levistraussianaentretrocaedom(GODELIER,1996/2002),pensaroobjetode satisfaçãocomoalgointegralmentecambiávelcoma“marcadovalor”serevela outromito—domesmoteoraproximativoqueodeacreditarnapossibilidade desubsumirnadesignação“falo”tudooqueressaltadovalor,inclusiveaparte dovalor,essevalorabsoluto,quenãoéassimilável,nempodeserrelativizado noscircuitosdatroca.
Umpoucoadiante,nessemesmoSeminário,opróprioLacanparece,numa primeiraleitura,subscreveressaaproximação:“Ofaloéesteelementoimagináriopelo qualosujeitosevêintroduzidonasimbólicadodom”(1956-57/1994,p.122,grifo nosso).Masleiamosapassagemoutravez,comumpoucomaisdeatenção:com efeito,desdequeofaloépostonessaambigüidadederegistros,queosituam,a umsótempo,comosimbólico(“elemento”)ecomoimaginário,seu“luto”(LACAN, 1958-59/1982,p.39)parececomeçar—esselutoaofimdoqualo“símboloΦ” (Idem,liçãode22deabrilde1959)terásidoretomadodoladodosujeito,eo falo,cessadodeesmagaraestruturaporcarregarasombradeumaadequação imagináriaentreumafaltasupostamentereversíveleoobjetodessafalta.
9Sendoopivôdessatrocaoobjetosimbólicoqueé“amarcadovalor”.
10Jáveremoscomoessaoperaçãoéestreitamentesolidáriadapassagemdofalodosimbólico
Emresumo,ograndeesforçoemdarlugardefatoànoçãodeprivaçãonateoria redistribuidemaneiradecisiva,muitoantesda“invenção”propriamentedita doobjetoa,ascartasdojogodevalores:“amarcadovalor”,brindedegozo religadoaos“traços”eaos“signosdoamor”(LACAN,1957-58/1998,p.342-345), assinalaumamais-valia11deOutraordem,cujaindicaçãojánãopodemaisser feitaapenaspelosignificante“falo”.
Recebidoem18/12/2006.Aprovadoem14/1/2007.
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11Mais-valiaquesereencontraránaereçãoulteriordo“mais-de-gozar”comocontravalor
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FrédéricPellion