• Nenhum resultado encontrado

A mulher sábia e a sabedoria da mulher – símbolos de co-inspiração. Um estudo sobre a mulher em textos de Provérbios

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "A mulher sábia e a sabedoria da mulher – símbolos de co-inspiração. Um estudo sobre a mulher em textos de Provérbios"

Copied!
234
0
0

Texto

(1)

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

A mulher sábia e a sabedoria mulher – símbolos de co-inspiração

Um estudo sobre a mulher em textos de Provérbios

por Mercedes Lopes

ORIENTADOR: Prof. Dr.

Milton Schwantes

Tese de doutorado apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, para obtenção do grau de Doutor.

(2)

LOPES, Mercedes, A mulher sábia e a sabedoria mulher – símbolos de co -inspiração, um estudo sobre a mulher em textos de Provérbios, Tese de doutorado, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2007.

Sinopse

Nos textos de Provérbios 1,20-23; 8 e 9, encontra-se o instigante símbolo da sabedoria mulher, que possui uma longa e controvertida história de interpretação. Ao analisar as ligações textuais entre estes textos e o poema de Pr 31, descobrimos que o símbolo da sabedoria mulher inspira-se na mulher da vida real, que participa corajosamente na reconstrução da história e das relações do povo de Judá, no período pós-exílico. Estas ligações desvelam uma grande valorização da mulher e sua proximidade com Deus ao apresentá- la com o poder de oferecer vida (Pr 8,35; 9,6) e de cuidá-la (Pr 31), vivenciando e transmitindo valores éticos fundamentais para as relações cotidianas da casa (Pr 1,8; 6,20; 31,2-9.26).

Este símbolo carrega ainda a memória de antigos cultos realizados na casa para celebrar e garantir a vida. Embora estes rituais contivessem a memória de Deusas, eles não eram opostos ao culto de Javé, pois, dentro da dinâmica da casa, estavam inteiramente integrados na religião de Israel pela priorização da vida e pela prática da jus tiça.

Esses textos de Provérbios atestam uma grande mudança na visão da mulher. A origem desta nova visão encontra-se na época do cativeiro, quando já não havia templo e nem um governo que canalizasse a organização do povo e sua luta pela libertação. A casa passa a ter funções de prover a subsistência e de transmitir as tradições religiosas do povo bíblico com a finalidade de obter a inspiração e a força necessárias para garantir o futuro. Na casa interiorana, a mulher tem autoridade e liderança, apesar dos preconceitos da sociedade patriarcal. É no pequeno espaço da casa judaíta que o movimento da sabedoria mulher situa-se, gerando relações de inclusão e de solidariedade, na época da dominação do 2º templo, com suas normas sobre a impureza.

(3)

LOPES, Mercedes, The wise woman and the wisdom manifested through the woman- symbols of co-inspiration, a study of the woman in the book of Proverbs, Doctoral Thesis in Religious Studies, Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo, 2007.

Abstract

In the book of Proverbs, specifically in chapter 1 verses 20-23 and chapters 8 and 9, it is possible to perceive references that lead us to identify a symbol which has been called the wisdom- woman, or wise-woman. Its interpretation has a long and polemic history. While analyzing the textual links between these verses and the poem of Proverbs 31, it is possible to realize that the symbol related to the wisdom of a woman seems to be taken from the daily life of a person that, with great audacity, participates in the process of building history and human relationships in the context of that moment (the post-exilic period), in Judah. These links and texts emphasize the great value of the woman and her proximity to God. She is presented as the one who has the power of offering (Pr 8,35; 9,6) and preserving life (Pr 31), the one capable of experiencing and transmitting the ethical values that are fundamental to every day family relationships (Pr 1,8; 6,20; 31,2-9.26).

This symbol also represents the memory of the ancient cults that were celebrated in private homes to commemorate and guarantee on-going life. Even the memory of different goddess were present in these rituals, in that they were not opposed to the rituals dedicated to Yahveh. It is possible to state this because in the inner dynamic of the celebrations that took place in those homes these divinities (goddess-Yahveh) were worshiped.

These texts show a change in the way of understanding the role of the woman in her context. This new understanding appeared during the period of captivity, when there was neither sanctuary nor government to provide adequate organization for the people in their struggle for liberation. In this case, homes became substitutes for sanctuaries and women were empowered, even in the midst of a patriarchal society. The wisdom of the women is manifested in the home space, emphasizing relationships of inclusion and solidarity during the period of the second temple, a time in which various laws related to impurity were significant.

(4)

LOPES, Mercedes, La mujer sabia y la sabiduría mujer – símbolos de co-inspiración, un estudio sobre la mujer en textos de Proverbios, Tesis de doctorado, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2007.

Sinopsis

En los textos de Proverbios 1,20-23; 8 y 9 se encuentra el instigador símbolo de la sabiduría mujer, que posee una larga y polémica historia de interpretación. Al analizar las ligaciones textuales entre estos textos y el poema de Pr 31, descubrimos que el símbolo de la sabiduría mujer se inspira en la mujer de la vida real que participa valientemente en la reconstrucción de la historia y de las relaciones del pueblo de Judá, en el periodo del post-exilio. Estas ligaciones desvelan una gran valoración de la mujer y su proximidad con Dios al presentarla con el poder de ofrecer vida (Pr 8,35; 9,6) y de cuidarla (Pr 31), vivenciando y transmitiendo valores éticos fundamentales para las relaciones cotidianas de la casa (Pr 1,8; 6,20; 31,2-9.26).

Este símbolo carga además la memoria de antiguos cultos realizados en la casa para celebrar y garantizar la vida. Aunque estos rituales estuviesen penetrados por la memoria de Diosas, ellos no eran opuestos a Yavé, pues dentro de la dinámica de la casa estaban enteramente integrados en la religión de Israel por priorizar más que todo a la vida y practicar la justicia.

Esos textos de Proverbios atestiguan un grande cambio en la visión de la mujer. El origen de esta nueva visión ubicase en la época del cautiverio, cuando ya no había templo ni gobierno que canalizase la organización del pueblo y su lucha por la liberación. Entonces, la casa pasó a tener las funciones de proveer la subsistencia y de transmitir las tradiciones religiosas del pueblo bíblico con la finalidad de obtener la inspiración y la fuerza necesarias para garantizar el futuro. En la casa interiorana la mujer tiene autoridad y liderazgo, a pesar de los prejuicios de la sociedad patriarcal. Es en el pequeño espacio de la casa judiíta que el movimiento de la sabiduría mujer se ubica, generando relaciones de inclusión y de solidaridad en la época del 2º templo, con sus normas sobre la impureza.

(5)

SUMÁRIO

Introdução 6

Cap. 1 – Discussões sobre a sabedoria mulher em Provérbios 14 1.1 – Diferentes opiniões sobre a sabedoria mulher em Provérbios 1-9 16 1.2 – Fontes e tendências da sabedoria bíblica 25 1.3 – A época em que foi elaborado Provérbios 1-9 32

1.4 – O livro dos Provérbios 39

1.5 – Alguns problemas que apontam o caminho 42

Cap. 2 – A sabedoria mulher em Provérbios 1; 8 e 9 50

2.1 – Um estudo de Provérbios 1,20-23 51

2.1.1 – Tradução e comentário 51

2.1.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna 52

2.1.3 – Gêneros literários 55

2.1.4 – Uma visão da sabedoria mulher 57

2.2 – Um estudo de Provérbios 8 59

2.2.1 – Tradução e comentário 60 2.2.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna 65 2.2.3 – Estrutura de Pr 8,1-36 69

2.2.4 – Campo semântico 71

2.2.5 – Gêneros literários 77

2.2.6 – Uma visão da sabedoria mulher 80

2.3 – Um estudo de Provérbios 9 82

2.3.1 – Tradução e comentário 82 2.3.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna 86

2.3.3 – Gêneros literários 94

2.3.4 – Uma visão mais clara da sabedoria mulher 95 2.4 – O contexto de Provérbios 1,20-23; 8 e 9 97

Cap. 3 – A mulher sábia e forte de Provérbios 31 108

3.1 – Tradução e crítica textual 109

3.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna 114

3.3 – Estilo e gêneros literários 116

3.4 – O contexto 122

3.5 – Conteúdo 128

Cap. 4 – O símbolo da sabedoria mulher e sua ligação com a realidade 154

4.1 – Ligações transversais entre Provérbios 1-9 e 31 157 4.2 – A atuação das mulheres nos espaços privados e públicos 163

4.3 – A religião da casa no pós-exílio 169

4.4 – A sabedoria mulher e a Deusa 174

4.5 – A sabedoria mulher e a mulher insensata 179

4.6 – Funções sociais e religiosas 185

Conclusão 192

Conclusão 199

Trasnliteração utilizada 208

(6)

Introdução

No livro de Provérbios 1,20-23; 8 e 9 encontram- se poemas muito bonitos, com uma rica linguagem simbólica, que possibilita múltiplas interpretações. A personagem central destes poemas é a sabedoria personificada em uma figura de mulher, que busca os lugares públicos mais movimentados para transmitir sua mensagem. Estes poemas têm uma linguagem tão forte e poderosa, que às vezes a sabedoria mulher se parece aos antigos profetas bíblicos, e outras, parece representar o próprio Deus de Israel, em linguagem feminina. No poema de Pr 8,22-31, torna-se quase evidente que o poeta se refere a uma Deusa, deixando no ar uma pergunta sobre tal possibilidade. Mas, os editores do livro dos Provérbios conseguiram encaixar de tal maneira a sabedoria mulher dentro dos padrões da religião israelita que até hoje não há um consenso sobre seu significado. Por um lado, isto é uma demonstração de que os “modos hegemônicos de indagação”1 não conseguiram aprisionar a figura da sabedoria mulher. Por outro, demonstra a necessidade de se realizar uma investigação sobre o símbolo da sabedoria mulher em Provérbios de maneira que se possa enfocar as diferenças e as diversidades inerentes ao texto bíblico e aos contextos em que estes textos foram elaborados. Para realizar uma aproximação ao contexto de Pr 1-9, buscarei relacioná-lo com Pr 31, onde a mulher sábia e forte é apresentada, também de forma poética. Suspeito que o símbolo da sabedoria mulher seja um reflexo da realidade das mulheres israelitas da vida real, no contexto do pós-exílio.

Faz anos que estes poemas sobre a sabedoria mulher, em Pr 1-9, me atraem e me convidam a uma aproximação. Esta sedução provém da maneira como a sabedoria é apresentada nesses textos e também da minha convivência com as mulheres pobres de vários países da América Latina.2 Apesar da dedicação destas mulheres aos serviços gerais

1 Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría – Una introducción a la interpretación feminista

de la Biblia, Santander: Sal Terrae, 2004, p.53 (Colección “Presencia Teológica” 132).

2 Desde a década de 70 optei por morar no meio dos pobres, assumindo suas lutas. Durante dez anos, convivi

(7)

nas igrejas cristãs, elas são excluídas de uma participação efetiva nas instâncias de decisão e marginalizadas do processo de elaboração teológica. Contudo, em suas buscas e nos seus discernimentos cotidianos, estas mulheres demonstram possuir uma sabedoria que brota das suas lutas e resistências, de seu insistente desejo de mais vida. Ao lutar por uma vida melhor para todas as pessoas e pela conquista dos seus direitos, elas crescem na auto-estima e na determinação, exigindo espaços de participação na sociedade e nas igrejas. Segundo Elisabeth Schüssler Fiorenza, “as lutas das mulheres pela transformação e pelo reconhecimento de sua plena cidadania na sociedade, no mundo acadêmico e nas igrejas geram conhecimentos emancipadores e intuições libertadoras”3.

Considero meu longo período de convivência com as mulheres pobres da América Latina como uma etapa de treinamento da subjetividade e da emoção, meios importantes de aprendizagem. Elas me levaram a comprovar como a teologia cristã, de um modo geral, mantém engessado o discurso religioso, insistindo nas metáforas patriarcais e triunfalistas para falar sobre Deus. O problema de tal discurso reside, em primeiro lugar, na ausência de uma contraparte feminina em sua concepção da divindade, pois, segundo José Severino Croatto “construímos uma imagem irreal de Deus, que não tem equivalente em nossa experiência cotidiana. Com isso, perde seus contornos a linguagem simbólica que projeta na divindade o que é parte de nossa experiência.”4 Outro problema é que as imagens de Deus que tal discurso privilegia justificam e mantêm a dominação e a exclusão de leigos, especialmente das mulheres, das estruturas da s igrejas cristãs. O que é, ainda, mais trágico é que as estruturas de dominação e opressão que se encontram em textos bíblicos e em suas interpretações têm influência direta sobre a vida das mulheres. Por isso, Elisabeth Schüssler Fiorenza afirma que “devemos adotar uma ‘postura feminista’ ao lado das mulheres que lutam no lugar mais baixo da pirâmide kyriarcal de dominação e exploração, porque suas lutas nos revelam tanto a base da desumanizadora opressão que ameaça a toda mulher como o poder da Divina Sabedoria, que já está no meio de nós”5.

3 Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría – Una introducción a la interpretación feminista

de la Biblia, p.124.

4 José Severino Croatto, “A sexualidade da divindade – Reflexões sobre a linguagem acerca de Deus”, em

Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/RIBLA, vol.38, Petrópolis: Vozes, 2001, p.28.

5 Veja Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría – Una introducción a la interpretación

(8)

Minha decisão de acolher a sedução que os poemas da sabedoria mulher em Pr 1-9 exercem sobre mim tem duas principais motivações: 1. desvelar o discurso religioso elaborado a partir do símbolo da sabedoria mulher; 2. buscar a mulher israelita sábia, que se reflete neste símbolo. Acredito que este procedimento poderá proporcionar um material que possibilite novos discursos sobre a divindade, extraindo da rica tradição bíblica uma imagem com nome, função e representação femininas. Mas, tal procedimento não deixa de ter seus problemas. Conterá, realmente, este símbolo da sabedoria mulher uma fala sobre Deus? Por que este símbolo feminino encontrou aceitação nos círculos sapienciais da sua época? Que situações concretas permitiram sua elaboração e aceitação?

Silvia Schroer chama a atenção para ligações transversais muito interessantes entre Pr 1-9 e 31,1-31.6 Seria possível ampliar esta percepção das ligações transversais entre a primeira seção e a última do livro dos Provérbios? Que aspectos sobre a vida das mulheres israelitas estas ligações visibilizariam? Que posturas e reações estes textos representam? Quais os espaços ocupados pela sabedoria mulher nestes poemas? Será que a mulher da vida real tinha acesso a estes espaços? Um diálogo com outros textos bíblicos poderia ajudar a ver melhor esta figura da sabedoria mulher em Pr 1-9? Além do capítulo 31 de Provérbios, que outros textos bíblicos ajudariam a encontrar os sentidos do símbolo da sabedoria mulher?

Estas perguntas dirigem minha atenção tanto para o símbolo da sabedoria mulher como para a mulher da vida real, com a intenção bem definida de investigar sobre a relação entre ambas. Suspeito que o símbolo da sabedoria mulher, nos poemas de Pr 1,20-23; 8 e 9 não seria uma hipóstase de Javé e não deixaria transparecer somente as antigas deusas, mas seria, sobretudo, transparente em relação à situação das mulheres judaítas do pós-exílio. Por trás do símbolo da sabedoria mulher poderia ser encontrada a situação da casa interiorana, onde as mulheres teriam liderança e autoridade. Nos tempos conturbados do período persa e frente às exclusões normatizadas pelos sacerdotes do segundo templo, as

6 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, em Der eine Gott und die

(9)

mulheres de Judá insistiriam no resgate das antigas tradições, inclusive da solidariedade tribal e da inclusão de diferentes como uma pequena saída para garantir o futuro das famílias.

Várias são as ferramentas que utilizarei nesta minha pesquisa. Uma delas é a hermenêutica de gênero. Segundo Delir Brunelli, “gênero indica os traços típicos, os papéis que culturalmente foram atribuídos a homens e mulheres, estabelecendo um determinado padrão nas relações sociais”7. Estes padrões são gerados a partir da maneira como um grupo social se compreende e exerce o poder. Eles mostram os tabus e as dificuldades de integração da sexualidade e da afetividade por um determinado grupo social. Mitos e tabus servem para justificar a dominação e esconder o medo. Estes mitos e tabus estão presentes também na Bíblia. São um reflexo da sociedade patriarcal dentro da qual a Bíblia foi escrita, já que as antigas religiões nasceram dentro deste tipo de sociedade. Mas, uma hermenêutica com ótica de gênero não está relacionada apenas aos textos que se referem às mulheres, ou que as silenciam, mas a todo trabalho com um texto bíblico. Ela se preocupa com as relações, buscando dialogar com as diferenças. Ela se pergunta pelas situações, indagando sobre a realidade das comunidades e grupos que estão por trás de cada texto.8

A questão de gênero não somente me desperta para as históricas construções que constituem nosso modo de viver como homens e mulheres, mas também me convida a rever os modelos de Deus que interiorizei e a ideologia de dominação subjacente aos discursos religiosos. Segundo Ivone Gebara, a questão de gênero “nos convida a rever nossos modelos de construção teórica sobre Deus e a examinar as implicações culturais e sociais na vida das mulheres e dos homens de um determinado contexto”9. Segundo Tânia Mara Vieira Sampaio, “a concepção das relações sociais de gênero se apresentam como um novo paradigma, capaz não somente de visibilizar mulheres e/ou grupos oprimidos, mas também de iluminar as descobertas sobre a estrutura das opressões e dos jogos de poder que organizam discursos normativos e estabelecem controles sociais. Mais que um encontro

7 Delir Brunelli, “O que é mesmo gênero?” em Sonhos e sementes, Rio de Janeiro: Cadernos da CRB, nº 30,

2001, p.9.

8 Veja Mercedes Lopes, “Gênero e leitura bíblica,” em Sonhos e sementes, Rio de Janeiro: Cadernos da CRB,

nº 30, 2001, p.18.

(10)

entre histórias de vida, essa maneira de ler a realidade quer demarcar uma nova trajetória dos paradigmas de construção dos conhecimentos e de decodificação dos discursos”10.

Utilizando métodos exegéticos,11 combinados com a hermenêutica feminista, buscarei verificar a possibilidade de detectar a situação das mulheres na época da elaboração dos poemas citados, concentrando- me na investigação sobre a situação da casa, famílias e clãs, onde as mulheres tinham important e papel.

Outra ferramenta importante para minha pesquisa é o método histórico-crítico, que entende o texto bíblico como um documento histórico “que deve ser analisado sem os condicionamentos de uma visão dogmática. Na evolução desse método, exige-se uma nova visão da história, superando a visão positivista e assumindo um conceito dialético”12. Apesar de sua importância, o método histórico-crítico busca, às vezes, uma objetividade absoluta, que vem sendo criticada e superada pela hermenêutica feminista. Para Ernst Käsemann, “uma postura crítica poderia ser a expressão de uma objetividade real e deveria constituir-se em um meio de resistir à subjetividade”13. Mas, segundo M. O’Brien, “os estudos bíblicos contemporâneos estão muito mais autoconscientes ideologicamente do que nas gerações passadas. Em particular, adquiriram uma aguda consciência do fator subjetivo, do impacto que a posição do leitor tem sobre a experiência e a compreensão do texto bíblico.”14 É com esta perspectiva que utilizarei este método, analisando o texto bíblico como um documento histórico, consciente do fator subjetivo que provém da minha própria experiência como leitora e da subjetividade das pessoas que elaboraram e editaram esses textos, em suas diferentes etapas.

10Tânia Mara Vieira Sampaio, “Horizontes en discusión en el arte de hacer teología”, em Revista Alternativas,

Manágua: Lascasiana, a no 10, nº 26, julho-dezembro de 2003, p.82.

11 Para a metodologia exegética vou seguir alguns autores, como Cássio Murilo Dias da Silva, Metodologia de

exegese bíblica, São Paulo: Paulinas, 2000, 515p.; Hans de Wit, En la dispersión el texto es patria – Introducción a la hermenéutica clásica, moderna e posmoderna, San José: Universidad Bíblica Latinoamericana, 2002, 557p.; Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, Fundamentos para exegese do antigo testamento – Manual de sintaxe hebraica, São Paulo: Vida Nova, 1998, 154p.; Ernst Käsemann, Ensayos exegéticos, Salamanca: Sígueme, 1978, 299p. (Biblioteca de Estudios Bíblicos 20); Uwe Wegner, Exegese do Novo Testamento – Manual de metodologia, São Paulo: Paulus, 2001, 407p., entre outros.

12 Martin Volkmann, “Introdução”, em O método histórico crítico, São Paulo: CEDI, 1992, p.32. 13 Ernst Käsemann, Ensayos exegéticos, p.71-72.

14 M. O’Brien, “A natureza do monoteísmo bíblico - Experiência e ideologia”, em Concilium, vol.289,

(11)

A hermenêutica da suspeita ajuda- me a perceber que o texto e seus leitores padecem de preconceitos que podem passar despercebidos. Para M. O’Brien “uma abordagem feminista ou liberacionista do texto, quando aplicada e avaliada criticamente, permite ver coisas que podem ter sido obscurecidas por outras leituras. Uma vez que alguém toma consciência do preconceito presente na Bíblia, isso pode ter um impacto sobre a compreensão que essa pessoa tem da autoridade da Bíblia e sobre como ela transmite a experiência de Deus. Apesar disso, quando tratado criticamente, este preconceito pode ser visto numa luz menos negativa.”15 O’Brien lembra, também, que “um estudo crítico dos textos bíblicos considera os autores como teólogos criativos e seus textos como discursos teológicos e não como registros”16.

Nesta pesquisa, buscarei superar a tensão entre a hermenêutica da suspeita e a hermenêutica do “crédito”, já que ambas têm se mostrado extremamente férteis para a investigação bíblica.17 Esta superação somente será possível, se eu conseguir identificar a época do texto e os grupos de mulheres e homens que conseguiram expressar sua experiência de Deus, através dos hinos e símbolos presentes na primeira e última seções do livro dos Provérbios. Segundo Maria Izilda S. de Matos, “os estudos de gênero estão revelando os limites da utilização de certas categorias descontextualizadas, assinalando a necessidade de estudos específicos que evitem a tendência a generalizações e premissas pré-estabelecidas, buscando revelar o processo artificial na construção de certos conceitos supostamente ‘naturais’, como observar a heterogeneidade das experiências, incorporando toda a complexidade do processo histórico”18.

15 M. O’Brien, “A natureza do monoteísmo bíblico – Experiência e ideologia”, p.77. 16 M. O’Brien, “A natureza do monoteísmo bíblico – Experiência e ideologia”, p.71.

17 Este termo “hermenêutica do crédito” encontra-se em Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução

feminista da história de Israel”, em Feministische Exegese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, organizado por Luise Schottroff, Silvia Schroer e Marie-Theres Wacker, Darmstadt: Wissenschafttliche Buchgesellschchaft, 1995,p.5.

18 Maria Izilda S. de Matos, “De la invisibilidad al género: Odisea del pensamiento”, em Revista Alternativas,

(12)

No primeiro capítulo desta tese, apresentarei um debate entre diferentes autores e autoras sobre o significado do símbolo da sabedoria mulher, ou sabedoria personificada19. Para obter uma compreensão mais clara do processo de elaboração destes poemas sobre a sabedoria, buscarei ouvir diferentes autores sobre as fontes e tendências da sabedoria bíblica e sobre a época em que foi elaborado Pr 1-9 e 31. Uma visão geral do livro dos Provérbios ajudará a situar melhor o objeto da minha pesquisa: os capítulos 1-9 e 31. Encerrarei o primeiro capítulo, percorrendo alguns autores e autoras para identificar a problemática presente nas posturas de alguns estudiosos e no próprio texto bíblico.

Estes contatos com diferentes autores me permitirão obter uma visão ampla da pesquisa bíblica sobre o símbolo da sabedoria mulher, inclusive sobre a época e o contexto de Pr 1-9 e 31, permitindo-me adentrar na análise literária, nos dois capítulos seguintes. Sem perder de vista as questões levantadas, seguirei os passos da exegese para uma análise de Pr 1,20-23; 8; 9 e 31. Apresentarei uma tradução e crítica textual de cada um desses textos, além de sua delimitação e estrutura, buscando encontrar a coesão interna de cada poema. Esta análise compreende, ainda, o campo semântico e o gênero literário, buscando observar as particularidades de cada um dos textos citados. Depois da análise literária, buscarei verificar as diferentes visões da sabedoria mulher, apresentadas nestes poemas e proporcionarei uma visão detalhada sobre o contexto sócio-econômico, cultural, político e religioso no qual estes textos foram elaborados e editados.

Um enfoque sobre os sentidos do símbolo da sabedoria mulher e da sua ligação com a realidade será o tema central do capítulo 4. Nesse capítulo, buscarei visualizar a realidade subjacente ao símbolo, desenvolvendo uma análise das ligações entre a mulher sábia e forte do capítulo 31 e o símbolo da sabedoria mulher, apresentado nos poemas dos capítulos 1,20-23; 8 e 9 de Provérbios. Diante dos questionamentos apresentados sobre a confinação da sabedoria mulher e da mulher da vida real no espaço privado da casa, buscarei descobrir se existem, nos textos citados, indicações sobre a atuação das mulheres nos espaços

19 A expressão “sabedoria personificada” já está condicionada pelos estudos literários sobre personificação em

(13)
(14)

Capítulo 1

Discussões sobre a sabedoria mulher em Provérbios

O símbolo bíblico da sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8,1-36; 9,1-6; Jó 28; Eclo 24) tem sido pouco estudado. O reduzido material que existe sobre este assunto caracteriza-se quase exclusivamente pelo gênero comentário bíblico. Meu objetivo é oferecer uma exegese formal dos textos de Provérbios que se referem a este símbolo, a partir de uma perspectiva feminista, democrática e inclusiva. Um estudo sobre o símbolo da sabedoria mulher no livro dos Provérbios com essa perspectiva poderá abrir uma janela sobre estes e outros textos bíblicos, unindo meu esforço ao de mulheres e homens que desde algumas décadas entraram no campo da pesquisa bíblica na perspectiva de gênero.

No decorrer dos últimos anos, já foram realizadas muitas desconstruções das imagens patriarcais de Deus, mas faltam ainda trabalhos de construção de novos modelos. Resgatar uma imagem bíblica poética e atraente como a da sabedoria mulher, em Provérbios 1,20-23; 8 e 9, pode ser, no mínimo, uma pergunta frente ao monoteísmo fundamentalista dos nossos tempos e uma proposta de organização social. Para isso, pretendo analisar a situação social da época, que transparece nos textos e confrontá- la com outros textos contemporâneos, para descobrir se o símbolo da sabedoria mulher contém uma proposta alternativa de relação com Deus, além de uma utopia política e uma proposta de relações novas entre as pessoas.

(15)

mesmo que nesses trabalhos não se dê muita atenção ao aspecto da feminilidade.20 Estas observações de Silvia Schroer são relevantes, ainda que suas investigações se concentrem, sobretudo, na imagem da Sophia, pois é uma especialista no estudo do livro da Sabedoria. Ela mostra a necessidade de situar a época em que surge a imagem da sabedoria mulher e de analisar o imaginário simbólico dessa época. Sua experiência na investigação bíblica sobre este tema a leva a afirmar que “metodologicamente, é decisivo para a exegese feminista ir dos textos da sabedoria personificada até os seus contextos. Isto significa que a sabedoria personificada deve ser lida em relação íntima com os escritos de sabedoria correspondentes”21.

É com esta perspectiva que pretendo analisar a trama religiosa e social que se encontra por trás de Pr 1-9 e 31. Suspeito que estes textos, que estão elaborados na sua maioria a partir da linguagem poética, contêm um discurso sobre Deus. Um aspecto teológico dos poemas estaria concentrado, sobretudo, no símbolo da sabedoria mulher (Pr 1.20-23; 8,22-31; 9,1-6). Mas, o símbolo não seria outra coisa que um reflexo de uma situação vivenciada pela mulher israelita da vida real? Por trás deste símbolo, não estariam presentes tanto a mulher contemporânea ao texto, como as mulheres sábias e profetisas que contribuíram para a construção da história do povo bíblico? Suspeito, ainda, que estes textos tenham sua origem na casa. É possível que as famílias pobres que cultivavam os campos de Canaã mantivessem antigos rituais relacionados às etapas de semeaduras e colheitas, nascimentos e funerais, enfim, ligados à sua própria subsistência e às questões mais importantes do seu cotidiano. Já que as terras áridas de Canaã necessitavam da chuva para a fertilidade do solo, a abundância das colheitas e reprodução dos rebanhos, esta seria obtida através de um ritual celebrado na casa. Embora estes rituais carregassem memórias de antigos cultos às Deusas, eles não eram opostos ao culto de Javé. Pelo contrário, dentro da dinâmica da casa, eles estariam inteiramente integrados. O que caracterizaria a religião da casa seria a sua abertura e a priorização da vida como seu motivo e base de sustentação. Desta maneira, a religião da casa não seria uma religião opressora, usada para manter o

20Confira Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im Buch der Weisheit”, em Ein Gott allein? –

Jhwh-Verehrung und biblisher Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen religiongeschichte, Walter Dietrich e Martin A. Klopfenstein (organizadores), Freiburg/Göttingen: Göttingen,Vanderhoeck & Ruprecht, 1994, p.543.

(16)

controle e para dar sustentação aos interesses de um grupo da elite. Seria, antes de tudo, uma religião lúdica e alegre que cultuava uma Deusa bem humorada que se deliciava na sua relação com a humanidade e que proporcionava vida e bem estar a todas as pessoas.

Antes, porém, de realizar uma investigação sobre o símbolo da sabedoria mulher em Pr 1,20-23; 8 e 9, buscando uma aproximação ao seu contexto e relacionando-o com outros textos da literatura sapiencial, quero ouvir outras autoras e autores que já investigaram este tema. No item 1.1 deste capítulo, apresentarei diferentes opiniões de autores e autoras sobre o símbolo da sabedoria mulher em Provérbios. Para situar melhor este texto, no item 1.2, buscarei ouvir diferentes vozes sobre as raízes da sabedoria em Israel e, no item 1.3, sobre a época de elaboração de Pr 1-9. No item 1.4, apresentarei uma visão geral do livro dos Provérbios. Encerrarei esta visita a diferentes autores e autoras ouvindo suas experiências e questionamentos que apresentam dificuldades no estudo deste tema. Não são unicamente as descobertas que transmitem conhecimentos, mas, sobretudo, as perguntas, as suspeitas e o desconcerto frente ao inusitado.

1.1 – Diferentes opiniões sobre a sabedoria mulher de Provérbios 1-9

Em Pr 1,20-23; 8 e 9 temos alguns poemas didáticos que apresentam a sabedoria mulher falando em primeira pessoa e buscando seus interlocutores em lugares públicos e muito movimentados. Algumas autoras e autores têm encontrado nestes poemas e, sobretudo, em Pr 8,22-31 o estilo próprio de proclamações dos deuses egípcios, mais precisamente de Maat, a Deusa da verdade e do amor.22 Há também autoras que têm visto por trás deste símbolo da sabedoria mulher a presença da Deusa Aserá.23 Estas afirmações

22Christa Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9: eine form-und motivgeschichtliche Untersuchung unter

Einbeziehung ägyptischen Vergleichs-materials, Neukirchen-vluyn: Neukirchener Vesrlag, 1966, p.94-95, (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament 22); Alviero Nicacci, A casa da sabedoria –Vozes e rostos da sabedoria bíblica, São Paulo: Paulinas, 1997, p.253-254; Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, Madri: Fax, 1973, p. 200, entre outros.

23 Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’: archaeological and textual evidence for the cult of the

(17)

são questionadas por outros autores24, já que desde a reforma deuteronomista houve uma grande repressão em Israel contra o culto das divindades estrangeiras.

Para sair deste dilema, José Vílchez Líndez adverte que “no mundo literário existe uma figura chamada personificação, que consiste em fazer passar como pessoa algo que não é, como uma abstração, uma planta, um animal. É o caso dos Autos sacramentales, em que entram em cena como personagens as virtudes e os vícios, ou das fábulas, nas quais falam plantas e animais. Esse recurso literário é com freqüência aplicado à sabedoria nos livros sapienciais”25, afirma o referido autor.

Frente ao símbolo da sabedoria personificada, Alviero Nicacci se interroga: “mas, quem é a senhora sabedoria?” Sua resposta inicial é muito breve e generalizada: “é uma figura que supera qualquer outra criatura. Estava ao lado de Deus no momento em que ele criava o universo, encontrando suas delícias diante dele... é uma figura de algum modo divina e humana”26. Tentando explicar sua opinião, Alviero Nicacci comenta um pouco mais adiante, no mesmo livro, que o gênero literário dos discursos da sabedoria personificada é próprio da auto-revelação de uma divindade e que é um gênero literário antigo, já presente na literatura egípcia. Em seguida, este autor faz um comentário específico sobre Pr 8: “a sabedoria convida para ouvir, como fazem os mestres, mas há uma diferença significativa. Ela fala em lugares públicos, nas encruzilhadas dos caminhos, junto às portas, onde o pessoal vai e vem, onde se realizam os negócios e se administra a justiça. Ela fala a todos, indiscriminadamente, e não a um grupo de discípulos”27. E acrescenta: “o melhor paralelo parece ser Maat, concepção egípcia da verdade e justiça”28.

und altorientalischen Religionsgeschichte, Walter Dietrich e Martin A. Klopfenstein (organizadores), Freiburg/Göttingen: Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1994, p.235-268.

24 John Day, “Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan”, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung und

Biblischer Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religionsgeschichte, Walter Dietrich/Martin A. Klopfenstein (Organizadores), Friburgo/Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1994, p.186.

25 José Vílchez Líndez, Sabedoria e sábios em Israel, São Paulo: Loyola, 1999, p.53, (Bíblica Loyola, 25). 26 Alviero Nicacci, A casa da sabedoria –Vozes e rostos da sabedoria bíblica, p.12.

(18)

Esta é também a opinião de Christa Kayatz, para quem no texto de Provérbios não só se detectam traços estilísticos e imagens da literatura egípcia, mas a presença da idéia de

Maat. Esta idéia constitui o núcleo da sabedoria egípcia e pode ser traduzida como “ordem primordial”, “direito”, “justiça”29.

Silvia Schroer também afirma que a representação principal que está por trás da sabedoria personificada é Maat. Ela abrange o divino e a natureza, o reino, a sociedade e as relações humanas; ela representa as ordens cósmicas queridas pelos deuses, isto é, as ordens culturais ideais. Esta Deusa faz parte do panteão egípcio, mas ela ocupa uma posição especial, já que as outras divindades se orientam para ela como princípio cósmico. Para mostrar com maior clareza sua identidade, Silvia Schroer afirma que “o conceito oposto a Maat é Isfet, a condição de ausência do direito e a vigência da violência e da opressão”30. Esclarece ainda essa autora que a ordem social que tal Deusa representa não é uma ordem democrática e sim hierárquica. Porém o direito que ela representa é o direito que dá chance ao mais fraco, a idéia de uma solidariedade vertical dos bem situados para com todas as partes da sociedade... A hokmah, de maneira semelhante à Maat, representa idéias de ordens divinas do mundo, inclusive as ordens do cosmos e da natureza. Quando o direito é corrompido, irrompe sobre a terra uma seca (Os 4,2s); quando o enviado de Javé restaurar a justiça, toda a ordem da criação será restabelecida (Is 11,1-9).31 Com estas afirmações, Silvia Schroer não está fazendo somente uma relação entre hokmah e Maat, mas sobre a sabedoria e a prática da justiça, o restabelecimento do direito e o equilíbrio ecológico.

Para Gerhard von Rad, Provérbios 1-9 é uma coleção de poemas didático-teológicos que parece seguir a antiga tradição de Israel. Porém, na medida em que se avança na leitura, surge, de repente, algo totalmente inesperado. E este algo inesperado seria a separação da sabedoria imanente, presente na criação como uma ordem harmoniosa e sábia, das obras da

29Veja Christa Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9: eine form-und Motivgeschichtliche Untersuchung unter

Einbeziehung ägyptischen Vergleichs-materials, p.94-95.

30 Silvia Schroer, “A justiça da Sophia: tradições sapienciais bíblicas e discursos feministas”, em Concilium,

vol.288, Petrópolis: Vozes, 2000, p.74[702].

31 Confira Silvia Schroer, “A justiça da Sophia: tradições sapienciais bíblicas e discursos feministas”,

(19)

criação propriamente ditas. Seria como uma separação ontológica dos fenômenos dentro da criação, modificando-se também a relação do ser humano com esses fenômenos.32 “Porém, tudo isso, separado radicalmente de seu sentido original, constitui um fenômeno hermenêutico que ainda não foi suficientemente considerado em todos os seus aspectos: o fato de que não só se tenham tomado idéias ou figuras egípcias, mas às vezes séries inteiras de Provérbios puderam ser mantidas em seu primeiro teor literário”33, comenta Gerhard von Rad. A perplexidade causada pelo texto de Provérbios 8,22-31 tem produzido mal-estar em muitos estudiosos, levando alguns a tentar fazer correções ao texto massorético.34

Há também aqueles que encontram no texto exatamente aquilo que a teologia cristã definiu. Esta é a postura de Ernesto Lussier, para quem “a sabedoria em Provérbios 8 é claramente uma personificação da inteligência essencial de Deus, atributo que presidiu a criação. Na apresentação literária existem alguns elementos que podem sugerir uma pessoa real e distinta na Trindade, porém são, quando muito, vagas antecipações, preparação longínqua da revelação que se encontra no Prólogo de São João e em Col 1,16-17”35.

Há, ainda, estudiosos que interpretam o símbolo da sabedoria mulher simplesmente como uma figura literária. Para Luis Alonso Schökel “os investigadores falam indiscriminadamente de personificação ou de hipóstase da sabedoria, confundindo os termos e prestando assim um mau serviço à interpretação dos textos. Hipóstase em terminologia teológica quer dizer pessoa; personificação não chega a tanto: é uma figura literária conhecida e empregada universalmente”36.

32Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel Los sapienciales, lo sapiencial, p.222. Em nota ao pé da página

200, Gerhard von Rad afirma estar claro que “no poema de Provérbios 8,22-29 há formas estilísticas próprias de determinadas proclamações de Deuses egípcios e que nos versículos 30-31está presente uma concepção egípcia de uma divindade que ama com todas as entranhas a verdade personificada, cujo nome é Ma’at”.

33Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel Los sapienciales, lo sapiencial, p.225.

34Veja Maurice Gilbert e Jean-Noël Aletti, A sabedoria e Jesus Cristo, São Paulo: Edições Paulinas, 1985,

p.26. Estes autores comentam que se em Pr 8,30 o termo

!Ama'

for lido como ’amon, que significa “artista” ou mestre de obras, daria a entender que a sabedoria teria exercido um papel ativo na organização do mundo. E, afirma: “pode-se ler, também, ’amun, no sentido de “criança de colo”, “criança querida”, “criancinha”. Na tradução e crítica textual de Pr 8, voltarei a este assunto e farei uma investigação mais apurada.

35 Ernesto Lussier, Libros de los Proverbios y del Eclesiástico, Bilbao: Mensajero e Santander: Sal Terrae,

1970, p.24-25 (Conoce la Biblia: Antiguo Testamento 24).

36 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez con la colaboración de A. Pinto, Sapienciales I – Proverbios,

(20)

A seguir, Luis Alonso Schökel recolhe a opinião de vários autores sobre a sabedoria personificada, citando aqueles que a apresentam como uma hipóstase, ao menos em algumas passagens importantes, e comenta: “quase todos os autores modernos rejeitam a tese da hipóstase da sabedoria, admitindo a sabedoria personificada, entendendo-se como tal, personificação literária ou poética”37. Aqui, Luis Alonso Schökel entra diretamente na questão do monoteísmo bíblico. Ele afirma: “pode-se dizer que o recurso da personificação da sabedoria é a melhor saída que o judaísmo encontrou para defender sua ortodoxia. A fé monoteísta em Javé adaptou-se ao máximo às concepções pagãs, porém sem renunciar ao seu monoteísmo.”38 Esta explicação de Luis Alonso Schökel desvela um problema que impede os estudiosos a avançarem na investigação sobre este tema.

Apesar das opiniões contrárias, Karen Armstrong parece seguir a idéia de hipóstase. Segundo esta autora, a sabedoria mulher representa o plano de Deus ao criar o mundo. Ela afirma: “o autor do livro dos Provérbios, que escreveu no século III a.C., foi um pouco mais longe e sugeriu que a sabedoria era o plano mestre que Deus idealizara ao criar o mundo e, como tal, a primeira de suas criaturas”39.

Víctor Morla Asensio deixa transparecer sua perplexidade ante as divergentes opiniões sobre a sabedoria mulher: “com relação à questão da possível natureza hipostática da Sabedoria de Pr 8,22-31, as posturas dos especialistas divergem. Enquanto alguns estudiosos opinam que aqui a sabedoria é uma realidade radicalmente intramundana, uma qualidade do mundo, e que por isso não se pode aceitar que represente um atributo de Javé,40 outros acreditam que o texto de Provérbios oferece ocasião para admitir-se semelhante natureza da sabedoria”41.

37Luis Alonso Schökel, Sapienciales I – Proverbios, p.77.

38Luis Alonso Schökel, Sapienciales I – Proverbios, p.77. Esta mesma afirmação encontra-se em José Vílchez

Líndez, Sabedoria e sábios em Israel, p.55.

39Karen Armstrong, Uma história de Deus – Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo,

São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.77.

40 Víctor Morla Asensio apresenta como um exemplo desta postura R. N. Whybray, “Proverbs VIII 22 -31 and

Its Supposed Prototypes”, em J. L. Crenshaw (ed.), Studies in Ancient Israelite Wisdom, Nova York, 1976, p.390-400.

(21)

Para Leo G. Perdue “a sabedoria mulher em Provérbios 1-9 é a força divina e criativa que origina e continua a permear o cosmos; é a justiça social que forma e proporciona um caráter justo para as instituições humanas; é a fascinante amante do sábio que procura encontrar bem-estar e jovialidade no seu encanto e no seu abraço vital... Mas, antes de tudo, sabedoria mulher, através dos ensinamentos da sabedoria cuja voz ela encarna, é a voz de Deus, cujos convites para vir e aprender dela e de suas instruções que revelam um conhecimento e uma perspicácia divina , indicam ao simples um caminho para a plenitude da vida.”42

Bernhard Lang tem apresentado dois tipos de interpretação deste símbolo da sabedoria mulher: uma psicológica e outra mitológica. Discordando de C. G. Jung, Bernhard Lang afirma que os antigos israelitas não eliminaram a figura da Anima do seu meio. Ao contrário, fizeram dela uma Deusa pessoal. A visão poética da sabedoria seria um resgate desse antigo mito e, ao mesmo tempo, uma projeção de arquétipos inconscientes. No entanto, para Bernhard Lang a visão poética da sabedoria é mera figura de linguagem, figura que continua atraindo até os dias atuais.43

Jack Miles desafia as opiniões moderadas dos estudiosos conhecidos com esta sua opinião: “metaforicamente, a senhora sabedoria é ‘parceira de Deus’ ou ‘esposa de Deus’, representando a humanidade cooperando com Deus e como mãe da humanidade. Nessa metáfora da humanidade cuidando de si mesma como esposa e mãe, a sabedoria nos lembra Aserá.”44 Para explicitar esta relação que faz entre a sabedoria e Aserá, Jack Miles chama a atenção para a comparação da sabedoria com a “árvore”, em Pr 3,18 (confira Gn 3,22).45 É interessante esta comparação, pois a árvore era um dos símbolos de Aserá.

42 Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and Social History in Proverbs 1-9”, em Wisdom, You Are My Sister,

Michael L. Barré, (organizador), Washington: The Catholic Biblical Quarterly Monograph, 1997, p.91, (Series 29).

43 Bernhard Lang, “Lady Wisdom: a polytheistic and psychological interpretation of a biblical goddess”, em

Reading the Bible – Approaches, methods and strategies, editado por Athalya Brenner e Carole Fontaine, Sheffield: Sheffield Academic Press, 1977, p.400-423.

(22)

Segundo Herculano Alves, “a sabedoria aparece ainda como figura feminina com função mediadora na criação, em Pr 8,23-31 e Jó 28,17-27 (ver Bar 3,9-4,4); como uma mãe que comunica sabedoria aos seus filhos: Ecl 15,1-5; Pr 8,32-36. A sabedoria divina é como uma mãe, um mestre que conduz pedagogicamente os seus filhos ou os seus discípulos. Aparece, pois, uma estreita relação entre a sabedoria divina e a mulher, e acontece uma transmutação simbólica entre uma e a outra (Pr 19,14; 31, 10.26.30; Sb 7,28).”46

Em seu estudo sobre o livro da Sabedoria e especificamente sobre o cap.7, Ney Brasil Pereira chama a atenção para as cinco metáforas da sabedoria que aparecem nos v.25-26, pertencentes a vários campos simbólicos: “a exalação (v.25a), hálito, vapor, tem a ver com o sopro, o ar, como no texto de Eclo 24,3: “saí da boca do altíssimo e, como névoa, recobri a terra”. A emanação ou efusão (v.25b), leva -nos ao campo simbólico da água, dando à “glória” uma consistência que se derrama benevolamente e que, por ser “pura”, nada de imundo se lhe apega. Já a “irradiação” (v.26a) e, depois, o “espelho”(v.26b) se mantêm no campo da luz e da visão, como também da imagem (v.26). Notar o enlace de cada metáfora com uma qualidade divina: poder, glória, luz, energia, bondade.47 E este autor acrescenta: “no pós-exílio, onde ouvimos a sabedoria como profetisa em praça pública (Pr 1,20-23 e 8,1-36), recebemos seu convite para o banquete que ela mesma preparou, como generosa anfitriã (Pr 9,1-6).48

Ney Brasil Pereira continua com sua análise da figura da sabedoria e sua natureza divina, mostrando que em Sb 6,12-16 a sabedoria é apresentada como mulher que deve ser procurada e amada. Nova alusão ao “amor” e à “posse” da sabedoria em 7,10, seguindo-se a exaltação dos seus dons, da sua natureza divina, ou quase divina (7,22-8,1). No cap.8, é visível o erotismo nos v.2.9.16.21, não só na relação do ser humano com ela, mas também na relação dela com o próprio Deus, que a ama e com quem ela “convive”esponsalmente

46Herculano Alves, “Deus no Feminino no Antigo Testamento”, em A mulher na Bíblia, na Igreja e na

Sociedade – Questões actuais na moral familiar, Lisboa: Difusora Bíblica, ano 2, nº 3, Dezembro de 1994, p.59, (Bíblic a série científica).

47Confira Ney Brasil Pereira, Livro da Sabedoria – Aos governantes, sobre a justiça, São Leopoldo: Sinodal,

Petrópolis: Vozes, 1999, p.115, (Comentário Bíblico AT).

(23)

(8,3). “É essa esponsal convivência com Deus que a torna onisciente e mediadora de todos os bens, sentada como está no trono divino (em grego páredros, conferir Sb 9,4), conceito que evoca os divinos casais das religiões politeístas. O indubitável monoteísmo do autor permite- lhe, porém, essa ousadia na linguagem, que evidentemente reflete seu ambiente cultural. No cap.10 é notável como a sabedoria toma o lugar tradicional do nome de Deus, como sujeito dos fatos salvíficos da história do seu povo: a sabedoria é o Deus de Israel em figura feminina.”49

Para Juan José Tamayo-Acosta, “a sophia é personificada em uma mulher que goza de sabedoria; é apresentada como mestra da justiça e aparece junto a Deus no momento da criação”50. Segundo este autor, no símbolo da sophia unem-se o nacionalismo de Israel e o universalismo da cultura helenista para criticar toda tirania e introduzir uma nova linguagem sobre Deus.51

Uma autora que vem pesquisando há décadas a tradição da sabedoria é Silvia Schroer. Ela afirma que “a tradição da sophia sempre foi um símbolo da crítica ao poder, voltada contra a arbitrariedade e a tirania”52. Para Silvia Schroer a palavra chave “sabedoria de mulher” liga a moldura pós-exílica do escrito de Pr 1-9 e 31 com o corpo mais antigo das sentenças (Pr 10-30). “A mulher forte de Pr 31,10-31 possui uma casa e gerencia toda uma empresa. Mulheres que constroem casas, ensinam e aconselham, e também as imagens das deusas do Antigo Oriente confluem na imagem complexa da hokmah, da sabedoria personificada, que pode ser traçada aqui pela primeira vez.”53

Mas há autoras que não vêe m em Provérbios 1-9 uma “sabedoria de mulher”, mas uma definição prática do limite nas relações dos homens com as mulheres. Esta é a opinião de Janneke Bekkenkam e Fokkelien van Dijk -Hemmes. Elas afirmam: “a senhora sabedoria

49Ney Brasil Pereira, Livro da Sabedoria – Aos governantes, sobre a justiça, p.38.

50Juan José Tamayo-Acosta, “Hacia un nuevo paradigma teológico intercultural”, em La teología ante el

pluralismo religioso,Revista Alternativas, Manágua: Lascasiana, ano 11, nº 27, janeiro -junho de 2004, p.85.

51Juan José Tamayo-Acosta, “Hacia un nuevo paradigma teológico intercultural”, em La teología ante el

pluralismo religioso, p.86.

52Silvia Schroer “Transformações na fé, Documentos de natureza intercultural na Bíblia”, em Concilium, vol.

251, Petrópolis: Vozes, 1994, p.20.

53Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische Exgese

(24)

e a senhora tolice são símbolos dos dois extremos entre os quais a vida dos homens se desdobra. Elas definem os limites dentro dos quais os homens são chamados a tomar decisões”54.

Martin A. Klopfenstein escreveu um artigo com o sugestivo título: “A ressurreição da Deusa na sabedoria tardia de Israel, em Provérbios 1-9?”55 Depois de fazer um levantamento sobre aspectos internos e externos a Israel que poderiam ter contribuído para a elaboração desta imagem ou símbolo da sabedoria mulher, este autor conclui que “no símbolo da personificação da sabedoria encontramos a expressão do fortalecimento da posição social e religiosa da casa, da família e da mulher, no início do pós-exílio. Nele se condensa a busca de uma contra-corrente carregada de círculos sapienciais que são subterrâneos à religião e à cultura do pós-exílio, que marginalizava e excluía o feminino. No símbolo se juntam expressões imaginárias das mais diversas situações e funções das mulheres na história de Israel. No símbolo se concentram, de uma forma mais inconsciente do que consciente, representações de Deusas cuja influência é difícil reconhecer individualmente.”56

Para Martin A. Klophenstein, a compreensão mais importante é esta: “este símbolo foi capaz de estourar, de alguma maneira, a imagem de Deus na religião javista durante o exílio e no pós-exílio, marcada por uma compreensão patriarcal muito estreita. Este símbolo amplia dimensões femininas, abrindo a possibilidade de uma participação mais aberta na fé javista, incluindo principalmente as mulheres.”57

As opiniões dos estudiosos e estudiosas sobre a identidade da sabedoria mulher são diferentes e até contraditórias. Uns autores a consideram simples figura ou gênero literário

54 Janneke Bekkenkamp e Fokkelien van Dijk-Hemmes, “O cânon do Antigo Testamento e as tradições

culturais das mulheres”, em Cântico dos Cânticos a partir de uma leitura de gênero, Athalya Brenner (organizadora), São Paulo: Paulinas, 2000, p.92.

55 Martin A. Klopfenstein,“Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen weisheit von Proverbien 1-9?”,

em Ein Gott allein? – Jhwh-Verehrung und biblisher Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religiongenschichte, Walter Dietrich e Martin A. Klopfenstein (organizadores), Göttingen: Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1994, p.531-541.

56 Martin A. Klopfenstein, afirma que no símbolo da sabedoria mulher há, inconscientemente, a memória de

várias Deusas como Aserá, Ma’at e Isis. Veja Martin A. Klopfenstein, “Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen weisheit von Pro 1-9?”, p.540.

(25)

já presente na literatura egípcia e próprio para a auto-revelação dos Deuses. Há autores que descartam a possibilidade de uma hipóstase e há outros que parecem aceitá- la. Alguns estudiosos e estudiosas ligam a sabedoria personificada à mulher forte e guerreira, que gerencia sua casa, enquanto outros autores vêem este símbolo como uma definição prática das relações entre homens e mulheres, no período pós-exílico.

Depois de ouvir todas estas diferentes vozes, podemos concluir que no símbolo da Sabedoria Mulher em Provérbios 1,20-23; 8-9 pode estar incluída uma tradição oral antiga, relacionada ao culto das Deusas. Mas, no momento em que se editou o livro dos Provérbios, esta tradição oral foi confrontada com a situação histórica e religiosa de Israel, através de um cuidadoso trabalho literário que ainda hoje possibilita manter escondida a identidade da sabedoria mulher. Esta contradição entre uma evidência literária e uma identidade oculta me atrai, chama a atenção, pede que me aproxime. Ela parece estar ancorada na vida real de mulheres sábias (Pr 31,1-9) e fortes (Pr 31,10-31), que tomam decisões impor tantes para encaminhar seus próprios destinos e a história do seu povo. Esta é a relação que necessita ser verificada.

1.2 – Fontes e tendências da sabedoria bíblica

Fica latente uma pergunta incisiva sobre o imaginário simbólico presente nos textos em relação à sabedoria mulher. Termos que se encontram tanto na moldura do livro dos Provérbios (Pr 1-9 e 31), como no livro de Rute e no Cântico dos Cânticos chamam a atenção para a possibilidade de haver uma tendência ou tradição comum na origem destes textos. Um desses elos é a expressão “casa da mãe” bet’em (Rt 1,8; Ct 3,4; 8,2),58 tão pouco utilizada na Bíblia Hebraica, em contraposição à expressão mais repetida “casa do pai” (bet’ab). Em Ct 3,4 e 8,2, escutamos a voz da moça que expressa seu desejo de levar seu amado à “casa da minha mãe”. Estas expressões chamam a atenção para algo inusitado

58 Em Rt 1,8 a expressão é bet ’imah “casa de sua mãe”, já em Ct 3,4 e 8,2 a expressão é bet ’imi “casa da

(26)

dentro da cultura patriarcal da época. Indicam uma pista para encontrar uma nova atuação da mulher na casa e na comunidade do seu tempo, capaz de influenciar na mudança da linguagem59.

Segundo Alviero Nicacci, “a sabedoria bíblica é um grande movimento religioso autônomo no âmbito do Antigo Testamento, mas não estranho a ele. Um movimento que não está fundado na revelação histórica ou história da salvação, mas na experiência do crente israelita, que vai à procura do sentido das coisas e de como orientar a sua própria vida”60. Uma das características deste movimento é uma visão unificada do mundo, sem a necessidade de fazer distinção entre sagrado e profano. Para Luis Alonso Schökel, esta visão integradora dos diferentes aspectos da vida faz parte da sabedoria dos povos do Antigo Oriente. “Não existe distinção entre sabedoria religiosa e secular no Antigo Testamento e nem no Antigo Oriente; não se conhece a dicotomia entre o sagrado e o profano” 61, comenta este autor.

Também Gerhard von Rad afirma que a sabedoria de Israel tem suas raízes na vida cotidiana, sobretudo na observação da ordem ou harmonia da natureza. Além disso, Gerhard von Rad percebe que há uma evolução literária em Pr 1-9: “ninguém pode imaginar que este caso modelo da tradição sapiencial foi expresso por um cérebro original ou que foi tomada do Egito. Suas raízes são muito antigas em Israel. A novidade de Pr 1-9 consiste, sobretudo, em que a ordem concebida de maneira ainda essencialmente acrítica na sabedoria experiencial mais antiga se converte, agora, em objeto de elaboração teológica penetrante.”62

Neste seu estudo sobre Pr 1-9, Gerhard von Rad faz um comentário sobre os poemas de Pr 8 e os relaciona com outros textos do Antigo Testamento, observando que “a ordem captada inicialmente de maneira imprecisa, sem reflexão e sob múltiplas formas vai se

59 Na Bíblia hebraica, encontra-se entre os Escritos a seguinte sequência: Provérbios, Rute e Cântico dos

Cânticos, indicando que existe alguma relação entre eles.

(27)

convertendo cada vez mais em objeto de reflexão”63. Este autor adverte que a sabedoria imanente na criação foi separada nos poemas didáticos (Jó 28; Pr 8; Eclo 24) das obras da criação propriamente ditas (ventos, fontes, mar, montanhas, etc.). Esta separação ontológica dos fenômenos da criação é o mais interessante para Gerhard von Rad, que comenta: “ficava claro que aquilo que os mestres consideravam uma chamada procedente da criação, auto-testemunho da sua ordem, não era algo simplesmente idêntico às obras da criação propriamente ditas”64.

Acabo de citar fielmente o texto de Gehrard von Rad, que chama a atenção para a novidade ou o salto hermenêutico que acontece em Pr 8, 30-31. No entanto, questiono o termo “ordem” usado para expressar a harmonia do universo captada pelas antigas tradições culturais e religiosas como sabedoria. O conceito de ordem é ambíguo e não permite perceber o novo e inusitado, tanto na percepção sapiencial antiga, como na visão moderna, que compreende o universo como um vasto oceano de energia em constante transformação. “O universo é um movimento incessante buscando seu equilíbrio, sempre frágil e exposto a mutações.”65

Talvez tenha sido este salto hermenêutico, este sentido novo, esta cuidadosa elaboração poética, presente no poema de Pr 8,22-31, que tenha levado alguns autores à conclusão de que Pr 1-9 tem sua origem nas escolas de sábios. Esta é a opinião de Leo G. Perdue, para quem “os materiais teológicos e éticos encontrados em Provérbios 1-9 provavelmente derivam de um ou mais sistemas de escolas no início da primeira metade do período persa: a(s) escola(s) do templo, grêmios de famílias e/ou academias civis. É mais do que provável que surgiu uma escola do templo no período persa, educando escribas para auxiliar aos sacerdotes na interpretação da torah escrita em hebraico para a população cada vez mais dependente do aramaico (a língua comum do período persa), com o fim de sistematizar e argumentar os casos da lei, para as regulamentações e disputas civis e religiosas, para administrar e registrar os numerosos recursos do templo, e para formar uma

63Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios,p.222-223. 64 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios,p.223.

65Conferir Leonordo Boff, O despertar da águia – o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade,

(28)

maior causa teológica e política para legitimar as reclamações do poder e da influência das classes governantes”66.

No entanto, a influência da escola de sábios aparece muito mais claramente em Ben Sira (Eclo 51,23)67, cuja postura e conteúdo diferem de Pr 1-9. Ainda que algumas sentenças desta primeira unidade sejam provenientes de escolas de sábios (conferir Pr 6,27s), há autores que identificam esta unidade inicial do livro dos Provérbios (capítulos 1-9) com as preocupações das famílias, nos seus enfrentamentos diários com situações desafiadoras e na sua busca de preparar os filhos para enfrentar tais situações.68

Outra questão que não encontra uma interpretação comum entre os estudiosos é a respeito da influência estrangeira na sabedoria de Israel. Luis Alonso Schökel, em seu livro

Sapienciales I – Proverbios, comenta: “Desde a publicação dos ‘ensinamentos de Amenemope’, alguns autores acentuaram a dependência da sabedoria israelita da estrangeira, o que gerou um verdadeiro problema ainda não suficientemente resolvido.”69 A sabedoria é mais antiga que Israel, afirma Luis Alonso Schökel.70 No entanto, a maioria dos autores e das autoras que aceitam esta influência estrangeira na sabedoria israelita, limita-se a encontrar aspectos das culturas egípcia e mesopotâmica na tradição sapiencial de Israel. Faz séculos que Egito e Mesopotâmia foram considerados o principal berço de nossas culturas ocidentais e o testificam documentos escritos até 3.000 anos a.C. Mas as descobertas arqueológicas dos últimos anos confirmam definitivamente que o norte da Síria foi outro grande centro de cultura, cuja capital foi Ebla71, afirma Luis Alonso Schökel.

Depois de assinalar a influência de Egito, Mesopotâmia e Síria na tradição sapiencial de Israel, Luis Alonso Schökel busca explicar como se dá a influência de Canaã sobre Israel: “uma vez chegados em Canaã, os israelitas tiveram que conviver com outras

66 Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and Social History in Proverbs 1-9”, em Wisdom, You Are My Sister,

p.89.

67 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.35.

68 Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische

Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.83-172.

(29)

etnias que já possuíam uma cultura mais avançada que a própria de uns seminômades”72. Ao reconhecer a presença de aspectos das antigas tradições de Canaã na sabedoria israelita, Luis Alonso Schökel formula uma questão: “o pensamento sapiencial ou a sabedoria, pelo seu caráter internacional, é realmente assimilável pela fé tradicional javista de Israel?”73.

Gerhard von Rad faz uma afirmação contundente sobre a influência egípcia na sabedoria de Israel, especialmente no cap. 8 de Provérbios. Ele afirma: “está claro que em Pr 8,22-29 foram tomados modos estilísticos próprios de determinadas proclamações de deuses egípcios, e que nos v.30s encontra-se a concepção egípcia de uma divindade que ama entranhadamente a verdade personificada”74. Mais adiante, o mesmo autor desenvolve esta afirmação, comparando a Sabedoria de Pr 8 com Maat, a Deusa da verdade e do amor.75

Além de afirmar a influência egípcia, Gerhard von Rad amplia a questão, mostrando que há também outras influências na sabedoria de Israel e, especificamente, nesta unidade literária formada pelos cap. 1-9 de Provérbios: “é impossível negar influências, tanto das idéias e imagens egípcias como da poesia amorosa mundana”76, afirma este autor. Além desse comentário sobre toda a seção, Gerhard von Rad considera que o texto de Pr 9,1-6, onde aparece o banquete da sabedoria, “é uma composição dos mestres como imagem de contraste para defender-se dos usos introduzidos também em Israel pelo culto de Astarte, deusa do amor”77.

José Severino Croatto esclarece esta confusão entre as Deusas Astarte e Aserá, comentando que “até à descoberta dos textos de Ugarit, em 1929 e nos anos seguintes, era comum negar a existência da Deusa Aserá, fora e dentro da Bíblia, enquanto alguns pesquisadores a identificavam erroneamente com Astarte. Hoje, o panorama mudou totalmente. Não só Aserá reaparece como uma Deusa principal nos textos ugaríticos, mas é

(30)

identificada claramente na Bíblia, apesar da forte repressão exercida pela religião oficial de Israel. Além do mais, não faz tanto tempo que a arqueologia nos forneceu material epigráfico do sul de Israel em que a Deusa Aserá aparece em notável associação com Javé.”78

José Severino Croatto refere-se aqui às descobertas arqueológicas feitas em Khirbet el-Qon e Kuntillet ‘Agrud, lugares que estavam situados na parte sul do reino pré-exílico de Judá. Tais documentos foram escritos em hebraico antigo ou paleo hebraico, em alguma época, entre a metade do final do nono século e o final do oitavo século a.C.79

Outra grande contribuição neste sentido de encontrar as raízes da sabedoria em Israel vem de Gregorio del Olmo Lete, um estudioso dos mitos e lendas de Canaã. Ele afirma que “no continuo cultural que forma a tradição hebraica com a cultura cananéia, em cujo âmbito esta se desenvolveu, encontram-se numerosos elementos que têm suas raízes na sociedade siro-palestinense do II milênio”80. Olmo Lete apresenta um exemplo concreto da presença desses eleme ntos da cultura siro-cananéia no culto oficial judaico: “a grande perícope que descreve a purificação cultual, levada a cabo pelo rei Josias (2 Rs 23, 4-20. 24) vem a ser o melhor testemunho, próximo aos fatos, do cananeísmo religioso professado por Israel ao longo da sua história. O texto recorda que se trata de usos estabelecidos no templo oficial do javismo por seus próprios titulares, os reis de Judá, e que esses usos se remontam à própria origem da dinastia (Salomão).”81

Gregorio del Olmo Lete acrescenta que estes usos estabelecidos no templo oficial “afetam em primeiro lugar à redução e polarização do panteão, no qual assume um papel decisivo a presença de Aserá no templo de Javé, que foi também o templo de Aserá. Ela é a única divindade expressamente tirada dali e minuciosamente aniquilada, segundo um

78 José Severino Croatto, “A deusa Ashera no antigo Israel – A contribuição epigráfica da arqueologia”, em

Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/RIBLA, vol.38, Petrópolis: Vozes, 2001, p.33.

79 Para mais informações sobre este tema, veja Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’”, p.235.

80Gregorio del Olmo Lete, “Antecedentes y concomitantes del culto hebreo-bíblico, em Los Caminos

inexhauribles de la palabra, Buenos Aires: LUMEN – ISEDET, 2000, p.115.

(31)

procedimento que recorda a mítica e talvez ritual destruição do Deus Mot pela Deusa Anat

(KTU 1.6 II 30-35; IV 11-19).”82

Estas descobertas levantaram uma pergunta a respeito do monoteísmo israelita. Haroldo Reimer recolhe as pesquisas recentes sobre este tema, concluindo que “o importante é perceber que todo este processo deve ser entendido de acordo com as coordenadas de um sincretismo religioso, em que atribuições e funções de determinada divindade são transferidas a outra no mesmo compasso em que, na base social, isto é, junto aos sujeitos religiosos, há um processo de amalgamação e inculturação das expressões religiosas”83.

No desejo de ouvir vozes diferentes sobre este tema, busco ouvir também a opinião de um judeu, de alguém que não está preocupado com as investigações bíblicas que fazemos nas academias, mas se mantém fiel às suas tradições e às interpretações místicas que seu povo faz de Pr 8,22-31. Segundo Adolpho Wasserman, de acordo com as visões místicas da Cabalá, a sabedoria da torah é representada como modelo ideal da criação. Todos os universos são descritos como formados segundo seu padrão. Além disso, a sabedoria era o princípio inerente em todas as primordiais manifestações do criador, no seu relacionamento providencial com o mundo criado. É isso que significa “o início do seu caminho” (8,22). Seu caminho é seu modo de se relacionar com seu mundo.”84

Concluindo, podemos identificar a casa ou o clã como a fonte principal da sabedoria, que surge da experiência, iluminada pela tradição religiosa e a reflexão. Não há dúvida de que o intercâmbio com outros povos, através das diásporas, do comércio e dos casamentos foi enriquecendo a sabedoria de Israel, que na sua evolução histórica desenvolveu dois tipos de sabedoria: a sabedoria popular que vinha do chão da vida das famílias, a partir da observação e da luta pela sobrevivência; e a sabedoria da corte, durante a monarquia, que teve sua continuidade nas escolas dos sábios, no pós-exílio. Estes

82 Gregorio del Olmo Lete, “Antecedentes y concomitantes del culto hebreo-bíblico”, p.117.

83 Haroldo Reimer, “Sobre os início s do monoteísmo no Antigo Israel”, em Fragmentos de Cultura, Goiânia:

UCG/SCG, (v.13, n.5, set./out.), 2003, p.985.

84 Adolpho Wasserman, O livro dos Provérbios – Tradução e compilação dos comentários, São Paulo:

Referências

Documentos relacionados

São eles, Alexandrino Garcia (futuro empreendedor do Grupo Algar – nome dado em sua homenagem) com sete anos, Palmira com cinco anos, Georgina com três e José Maria com três meses.

Artigo 20 - A Assembleia Geral será convocada, a qualquer tempo, pela ADMINISTRADORA, podendo também ser convocada diretamente por cotistas que detenham, no

9º Orientado pelo traçado e diretrizes oficiais, quando houver, o projeto, contendo desenhos, memorial descritivo e cronograma de execução das obras com duração máxima de

Acreditamos que o estágio supervisionado na formação de professores é uma oportunidade de reflexão sobre a prática docente, pois os estudantes têm contato

A variação da fração volumétrica de gás imposta para o escoamento, na entrada do duto, como observado na Figura 7, não influencia, significantemente, no processo

transformador da sociedade oferecendo momentos de descontração ao trabalhador de forma a compensar a insatisfação provocada pela mecanização das ações profissionais e contribuindo

Um percentual expressivo das empresas (83%), está utilizando o balanço social como ferramenta de gestão, considerando-o como parte integrante de suas estratégias de negócios, bem

A Santa Casa de Votuporanga – Núcleo de Atenção à Saúde, no uso de suas atribuições legais, torna público aos interessados que estarão abertas, no período de 30 de Março de