• Nenhum resultado encontrado

Saúde mental e direitos humanos

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Saúde mental e direitos humanos"

Copied!
2
0
0

Texto

(1)

3 Rev Bras Psiquiatr 2002;24(1):3-4

“Um bom poema leva anos

cinco jogando bola,

mais cinco estudando sânscrito, seis carregando pedra,

nove namorando a vizinha, sete levando porrada, quatro andando sozinho, três mudando de cidade, dez trocando de assunto, uma eternidade, eu e você, caminhando junto”

O poema de Paulo Leminski1 serve de inspiração para expor algumas idéias, ainda que iniciais, sobre a relação entre saúde mental e promoção de direitos, ou melhor, privação dos direi-tos fundamentais, realidade em que vive grande parte da po-pulação, sobretudo nas periferias das grandes cidades.

Os dois pilares dessa reflexão são: (1) é fundamental descon-fiar que talvez “o mais profundo seja a pele”.1 Os aconteci-mentos da vida freqüentam a sua superfície. A criança vive plenamente a descoberta das novidades da existência, plas-mando e sendo plasmada nas circunstâncias que a envolvem e nas profundidades que a constituem; (2) os encontros com o outro e os percursos compartilhados, seja com o seio da mãe nas relações primais, seja o amor por uma mulher nas rela-ções sexualizadas adultas ou com o bom professor na escola, são a siderurgia da psique, vitais à saúde e ao desenvolvi-mento da personalidade.

Essas duas idéias estão no poema em uma extensa biblio-grafia psicanalítica e filosófica. Melanie Klein, D.W.Winnicott e Oswaldo DiLoreto, há muito tempo, chamam a atenção dos psicólogos e a de outros clínicos da infância para a impor-tância dos dois primeiros anos do desenvolvimento. Desde o nascimento, a criança vai confeccionando um repertório a partir da memória de acontecimentos e de sensações inéditas, construindo verdadeiros moldes de afetos que serão revividos, reeditados, conforme o tempo e o espaço, durante toda a vida. A mãe alimenta o filho com seu próprio corpo, como, aliás, já fazia durante os nove meses de gestação. O filhote humano, dentre os mamíferos, é o que por mais tempo depende dessa relação. O calor, a sensação táctil, o cheiro, o gosto do colostro (futuro leite) são estímulos muito intensos. É fácil imaginar o tamanho das dores que surgem de deformações, privações e negligências, desde esse primeiro encontro amoroso. É con-senso entre os clínicos que quanto mais precoces os proble-mas, mais graves serão os distúrbios, se aparecerem.

Felizmente, a vida é plástica. Cada indivíduo é absoluta-mente singular, e as possibilidades são múltiplas, senão

in-Saúde mental e direitos humanos

finitas, como expressa aquele ícone existencialista: o mais importante não é aquilo que fazem com o homem, mas aquilo que o homem faz com o que fazem com ele. Um verdadeiro bálsamo até para as certezas dos psicanalistas mais ortodoxos. A construção da identidade e da autonomia, a partir de uma situação de absoluta dependência, é tarefa árdua. Um proces-so inesgotável durante toda a vida, mas que tem na primeira infância e, mais tarde, na adolescência, períodos em que as transformações são tão velozes quanto intensas.

O adolescente é como Alice, no País das Maravilhas, esti-cando-se e encolhendo-se, passando através dos espelhos, em um movimento frenético na busca de si mesmo, em sua real medida. Adolescer é ousar e experimentar esse sublime jogo da construção dos próprios limites. O jogo com a lei e sua transgressão faz parte do processo, tanto quanto as espi-nhas na cara ou as paixões em estado bruto. É fundamental para a estruturação dos seus próprios limites o questionamento dos limites que lhe são impostos “de fora”, e isso não tem nada a ver com delinqüência ou psicopatia.

Nas sociedades ditas primitivas, a transformação de uma fase à outra da vida é fortemente ritualizada: o menino fica restrito à sombra das ocas até aprender a lutar como um guer-reiro, a pescar, a esculpir um remo e manejar o arco e a flecha. Ritos de passagem que o jovem da sociedade atual não dis-põe de maneira tão marcada. O coletivo, o social, não lhe oferece uma rede de suporte que sinalize essa intensa traves-sia; muito pelo contrário, estamos rodeados de adultos que como modelos de identificação exercem perversa influência, de um político corrupto a um traficante burro.

Nos últimos dez anos, convivo diariamente com crianças e jovens privados das condições básicas para a vida com dignidade – que é o fundamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ajudando uns a afirmarem sua criatividade e crescimento, outros a amenizarem sua dor e mutilações, físicas e psíquicas, que os abandonos sucessi-vos e a vida nas ruas lhes impuseram. E, também, vendo outros serem seduzidos pelas ofertas que o crime lhes faz, vulneráveis que estão por não lhes serem honestamente apre-sentadas alternativas reais, interessantes e com qualidade em saúde, educação, lazer etc. A adrenalina das “correrias-do-mal” passa a ser a opção, engordando as estatísticas do IML ou da Febem.

Meio clínico e meio educador, tenho aprendido e ensina-do que as crianças que vivem nas ruas são crianças tristes. Que a tristeza na criança e a violência que a juventude sofre e reproduz são os dois principais sintomas da grave doença social. Delatam a falência de um modelo e de um paradigma, que não se resolverão, segundo as leis de mercado e os nú-meros dos economistas.

(2)

Rev Bras Psiquiatr 2002;24(1):3-4

4

Saúde mental e direitos humanos Lescher AD

Que nova clínica e que nova pedagogia precisa-se reinventar para que a complexidade da situação não seja negada, e sim acolhida?

Se reconhecer que a privação dos Direitos Humanos pro-duz doença e que, inversamente, a promoção desses direitos produz saúde, mesmo que os tempos sejam difíceis para os

Auro Danny Lescher

Projeto Quixote – serviço ligado à disciplina de Psiquiatria Social da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina.

Referências

1. Gilles D. Logique du Sens. França: Les Editions de Minuit; 1969. p. 11.

Referências

Documentos relacionados

Resumo – O objetivo deste trabalho foi avaliar o efeito da suplementação de rações, com prebiótico (mananoligossacarídeo), probiótico (Bacillus subtilis) e simbiótico, em

So, it could be programmed the bilateral mandible sagittal split osteotomy, Le Fort I osteotomy and horizontal chin osteotomy, allowing a predictive vision of where hard and

entanto, são ainda escassos os estudos que analisem estas associações em idosos residentes na comunidade. Deste modo, estruturou-se esta dissertação em: I) revisão

Este artigo possui a seguinte estrutura: na se¸ c˜ ao II s˜ ao explanados os Fundamentos da Termodinˆ amica aplicados ` as m´ aquinas t´ ermicas; a se¸ c˜ ao III exp˜ oe o

In this case, would expect each lineage to recognize only the variation in the number of notes of the same population; e.g., if a lineage calls with three notes, it will only

This study aimed to assess the effect of cagaita fruit juices, clarified and non-clarified, rich in phenolic compounds including ellagitannins and proanthocyanidins, on the

For example, it pursues evidence that will help (a) clarify why students dissociate from, or leave, school (Archambault, Janosz, Fallu, & Pagani, 2009; Freire, Carvalho,

Apesar de o Ensino Religioso existir há décadas, ainda falta orientação por parte do Ministério da Educação – MEC, sobre a formação docente para o ensino religioso, sobre