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Na tessitura do processo penal :: a argumentação no tribunal do júri

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Academic year: 2017

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--- Helcira Maria Rodrigues de Lima

Na tessitura do Processo Penal: a

argumentação no Tribunal do Júri

Belo Horizonte Faculdade de Letras

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2 Helcira Maria Rodrigues de Lima

Na tessitura do Processo Penal:

a argumentação no Tribunal do Júri

Tese ap resentad a ao Program a d e Pós-grad u ação em Estu d os Lingü ísticos d a Facu ld ad e d e Letras d a Universid ad e Fed eral d e Minas Gerais, com o requ isito parcial para a obtenção do título de Doutor em Lingü ística, sob a orientação d a Profa. Dra. Sueli Pires.

Linha de pesquisa: Análise do Discurso

Belo Horizonte

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AGRADECIMENTOS

À p rofessora Su eli Pires, p elos inestim áveis ensinam entos e p elo rigor com qu e sem p re avaliou meus trabalhos.

À p rofessora Id a Lú cia, p or se fazer sem p re p resente, com generosid ad e e elegância. Agrad eço tam bém su a enorm e d em onstração d e d ed icação acad êm ica p or m e am p arar em u m m om ento tão necessário, com tanta sim p atia, incentivand o-m e a su p erar as dificuldades e proporcionando-me um enorme aprendizado.

Ao Roberto, p or su a p resença constante e am orosa em m inha vid a. Por tu d o qu e não se pode mensurar.

Ao p rofessor William Menezes, p ela abertu ra ao d iálogo, p ela com p anhia constante nesta jornada e, sobretudo, pela amizade, que me é tão cara.

À p rofessora Eneid a Maria d e Sou za, m estra generosa e am iga, com p anheira qu e tanto me ensina e estimula.

Ao p rofessor Patrick Charau d eau , p ela acolhid a generosa e atenta e p elo acompanhamento de meu trabalho em Paris.

À p rofessora Marianne Dou ry, p ela d isp onibilid ad e na orientação d e m eu s trabalhos e p or d escortinar u m u niverso d e p ossibilid ad es teóricas. Agrad eço aind a a gentileza, a simpatia e a abertura de caminhos.

Às p rofessoras Cristina Magro, Márcia Cançad o e Janice Marinho, p ela am izad e, p elo incentivo e pela abertura ao diálogo.

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--- Ao p rofessor Wand er Em ed iato, p elo acom p anham ento d e m inhas ativid ad es na Letras, p or seu incentivo. Pela elegância e com p etência com qu e avaliou o texto d e qualificação.

Aos funcionários do Fórum de Belo Horizonte.

Aos meus irm ãos e irm ãs qu e sem p re se fazem p resentes d e algu m m od o e se esforçam p ara entend er m inhas au sências. Pelas alegrias, d ores e sonhos com p artilhad os. Em esp ecial à H elenice e à lind a e d oce “Babi”, grand es com p anheiras nesta e em ou tras jornad as. À H élia e à su a p equ ena “Doroty”. Ao H eld er e ao H am ilton p ela orientação na área jurídica.

Ao am igo Ed gar, p or su a p resença constante e am iga e, sobretu d o, p or m e aju d ar a compreender “A melancolia do vulcão”.

Aos professores e colegas do Núcleo de Análise do Discurso e, em especial a Maísa, por sua companhia, doçura e empenho.

À Marialice Em boava, coord enad ora d o Cu rso d e Jornalism o d o Unicentro N ew ton Paiva, p ela am izad e, com p reensão e com p anheirism o. Agrad eço tam bém aos m eu s alunos.

À Fapemig, pelo apoio financeiro durante o doutoramento.

À Capes, por me proporcionar a oportunidade de estudar em Paris.

À Buenos Aires, fonte de inspiração.

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6

Se você virar a metade de você mesmo, e

lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros.

Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a metade que resta será mil vezes mais profunda

e preciosa. E você há de querer que tudo seja partido ao meio e talhado segundo sua imagem, pois

a beleza, sapiência e justiça existem só no que é composto de pedaços.

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RESUMO

O objetivo d este trabalho é abord ar o fenôm eno d a argu m entação, tend o com o fio cond u tor u m a leitu ra d as p eças com p onentes d e u m Processo Penal ju lgad o p elo Tribu nal d o Jú ri. A p rop osta é erigir u m a visão ap rofu nd ad a acerca d o fu ncionam ento d a argu m entação, a p artir d e u m p onto d e vista teórico qu e a consid era com o send o ancorad a em três d im ensões: dimensão patêmica, dimensão da construção de imagens e

dimensão demonstrativa. Se, p or u m lad o, consid ero qu e a argu m entação se ancora em

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RESUMÉ

Cette recherche tient à ap p rocher le p hénom ène d e l’argu m entation en

p renant com m e fil cond u cteu r la lectu re d es actes d ’u n p rocès p orté a la Cou r

d’Assise. N ou s avons vou lu regard er d e p rès le fonctionnem ent d e

l’argu m entation à p artir d ’u n p oint d e vu e théoriqu e qu i la consid ère à travers

trois d im ensions: (i) la p athém iqu e; (ii) la d ém onstrative et (iii) celle qu i se lie à

la constru ction d ’im ages. Si, d ’u n côté, nou s p ensons qu e l’argu m entation est

étayée p ar ces trois d im ensions, d e l’au tre, nou s p artons d u p résu p p osé

suivant : d ans les cas d es p rocès qu i sont p ortés en ju gem ent d evant u n

Tribu nal, la d im ension p athém iqu e occu p e u ne p lace p lu s large qu e les au tres

qu e nou s venons d e citer. N ou s avons d onc essayé d e faire u ne analyse d es

d iscou rs u tilisés p ar cet organism e. Dans ce contexte, nou s avons consid éré le

fait qu e, lors d ’u n p rocès, tou t est constru it à p artir d u m om ent où le crim e

d evient connu , c’est-à-d ire, à p artir d o m om ent où il est consigné p ar écrit

d evant les au torités p olicières/ ju d iciaires. Les rep résentations sociales, les

im ages p réfabriqu ées constru ites et insérées d ans tou t ce d iscou rs qu i va se

form er à p artir d e ce m om ent-là, ju squ ’à arriver a la Cou r d ’Assise constitu ent

d onc les «cibles» p rivilégiées d e notre observation : en analysant ces stratégies

argu m entatives à travers les p rocéd és d e la d iscu rsivité, on verra qu ’elles

m ènent le «jeu langagier», m ais bien sû r, ces d im ensions p ou r nou s nom m ées

(i) et (iii) sont sou tenu es p ar la d im ension (ii). En p artant d e ce p oint d e vu e et

sou s l’égid e d e la Théorie Sém iolingu istiqu e, nou s avons p rocéd é à u n exam en

d u d isp ositif com m u nicationnel - le d isp ositif p ar excellence - qu i p résid e les

échanges langagiers et d iscu rsifs lors d es séances tenu es d ans u ne Cou r

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--- SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

PARTE I 18

1. Tribunal do júri: a arena dos passos perdidos 19

1.1 Passos perdidos? 21 1.2 Eficácias descontínuas 30 1.3 Os atores na mise en scène do Tribunal do Júri 39 1.4 Uma relação necessária 40 1.5 Do crime ao rol dos culpados: a dinâmica do Tribunal do Júri 44

2. O Tribunal do Júri : sob a óptica da Semiolingüística 47

2.1 Bricolage 49 2.2 A ancoragem do contrato 51

Nível situacional 55 Nível discursivo 58 Nível semiolingüístico 60 2.3 Uma primeira tentativa de desvendar os liames do processo 61 2.3.1 Um breve passeio pelas peças processuais: os trâmites 62 2.3.2 A sessão de julgamento 67 1a instância de produção de discurso: os magistrados 70 2a instância de produção de discurso: os advogados 72

A instância-alvo dos discursos: os jurados 74 A finalidade 75 Uma viséé de captação 75 Uma visée de demonstração 77 As circunstâncias 79 O espaço de estratégias 80

PARTE II 82

3. A argumentação 84

3.1 O que é argumentação? 86 3.2 Um breve passeio pelas origens 88 3.3 O declínio 96 3.4 A retomada: alguns destaques 97 3.5 Perspectivas contemporâneas 106

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10

4.1 A dimensão patêmica: o papel das emoções na argumentação 119 4.1.1 O domínio do pathos: emoção, sentimento e paixão. 123 4.1.2 Ação, motivação, visée 130 4.1.3 Patemização : saberes de crença e saberes de conhecimento 136 4.2 A dimensão da construção das imagens de si e do outro 140 4.2.1 A encenação do orador 143 4.2.2 Imagens de si e do outro 148 4.3 A dimensão demonstrativa 154

PARTE III 160

5. A tessitura do processo: passos iniciais da construção do caso 165

5.1 A fase Policial do Processo: o caso sob o viés do Inquérito Policial 165 5.1.1 No local do crime: a óptica do Policial 166 5.1.2 A reprodução da cena do crime: os Peritos 170 5.1.3 O Delegado: um olhar avaliador 175 5.2 O caso sob o viés dos envolvidos ou afetados: réu e testemunhas 192

5.2.1 O réu 193 5.2.2 Outras vozes: algumas testemunhas 200

6. A costura das teses e o desfecho do Processo 214

6.1 Fase judiciária 214 6.1.1 O caso sob o viés da Acusação e da Defesa 215 A apresentação da “denúncia”: o Ministério Público 215 “Lance-se o réu no rol dos culpados”: o Assistente de Acusação 219 Alegações da Defesa a favor do réu 221 6.1.2 Acusação e Defesa na preparação para o julgamento 220 6.1.3 O Juiz Sumariante 223 O Libelo Acusatório 226 O Contra-Libelo Acusatório 228 6.1.4 O desfecho do crime: o papel do júri popular 227 6.2 Uma nova fase se instaura: por um novo júri 231 Apelação e Contra-Apelação 232 6.2.1 Novo julgamento: condenação, prisão, soltura 238

Conclusão 243

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12 INTRODUÇÃO

L’ homme est affectivement au monde, l’existence est un fil continu de sentiments plus ou moins vifs ou diffus, changeants, se contredisant au fil du temps selon les circonstances.

David Le Breton.

A relação do pesquisador com seu objeto de estudo não me parece tranqüila, e

nem deveria ser. Ela é reveladora não apenas de uma curiosidade, mas de um desejo de

luta; e também de desprezo e ódio, como assinala Foucault1. O envolvimento é fatal. A

escapatória difícil. E é nesse jogo, nessa trama que o conhecimento pode ser produzido.

Nesse cenário muito incômodo vou traçando linhas, desvendando discursos, identidades

e produzindo, com muito estranhamento, um texto que deve se adequar, nesse caso, a

um campo de saber.

Para m inha sorte, ocu p and o u m esp aço lim iar, fronteiriço, fru to d e su a relação

com d iversas áreas, encontra-se a Análise d o Discu rso, cu jo caráter lim iar m e convoca, d esp ertand o m inha atenção. Sinto-m e, assim , à vontad e p ara p ercorrer, nessa tese,

d iversos cam inhos relativos a d istintos saberes ad vind os d a Sociologia, Filosofia,

Antrop ologia, Com u nicação Social, entre ou tros, sem , contu d o, esqu ecer-m e d e qu e estou inserid a em u m d om ínio esp ecífico, a Lingü ística. É nessa p ersp ectiva qu e situ arei

as d iscu ssões d a tese, p orqu e não m e p arece p ossível tratar d e Análise d o Discu rso sem p ensar na id éia d e troca, d e d iálogo e d e interação. N esses term os, p elo fato d e ser

“necessário qu e o exp lorad or-lingü ista com ece p or fazer u m a id éia sobre as

características e os lim ites d eterm inantes d o território qu e irá exp lorar”2, é p reciso qu e

eu apresente as hipóteses norteadoras da pesquisa.

1 Para saber mais sobre o assunto, ver: FOUCAULT, 2002. 2

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Em busca de um caminho

Meu p rop ósito, ao iniciar este trabalho, era, a p artir d a análise d e três Processos

Penais referentes a crim es com etid os p or hom ens contra m u lheres, verificar em qu e m ed id a as rep resentações sociais exerceriam influ ência na constru ção d os d iscu rsos

p roferid os na tribu na. Além d isso, eu p retend ia verificar com o tal influ ência p od eria d eterm inar os ru m os d o ju lgam ento, com d estaqu e p ara o p ap el d a m íd ia nesse

p ercu rso. Entretanto, d ois d os casos selecionad os inicialm ente im p u seram -me d ificu ld ad es qu e inviabilizaram o recorte alm ejad o: u m d eles aind a não foi ju lgad o e

ou tro d everá ser su bm etid o a u m segu nd o ju lgam ento, m as sem d ata m arcad a. Desse

m od o, p or m e d ep arar tanto com a m orosid ad e d a Ju stiça Penal na resolu ção d os conflitos, qu anto com a d ificu ld ad e d e ter acesso às sessões d e ju lgam entos e às p eças

processuais3, op tei p or u m a m u d ança nos ru m os d a p esqu isa. Se, p or u m lad o, essa

m u d ança gerou ansied ad e e insegu rança, p or ou tro, além d e m e p erm itir tratar, m esm o

indiretamente, do tema desejado, abriu caminhos para que eu pudesse dar continuidade a um estudo sobre a argumentação, iniciado no Mestrado.

Assim send o, a p artir d e entrevistas inform ais com algu ns fu ncionários d o

Fóru m d e Belo H orizonte, entrei em contato com u m Processo Penal relativo a u m caso qu e agu çou m eu interesse a p onto d e escolhê-lo com o corpus d a tese. Além d isso, a

p artir d as p esqu isas atu ais, a resp eito d a argu m entação, d ecid i lançar-m e em ou tros cam inhos. N essa trilha, m eu olhar se volta m ais u m a vez p ara a argu m entação e p ara o

discurso jurídico, com destaque para o Tribunal do Júri. Todavia, pretendo empreender, p ara além d e u m a análise d as m arcas lingü ísticas d e argu m entação, u m d ebate a

respeito de sua ancoragem, das questões psicossociais que sedimentam suas bases, a fim

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14 d e avaliar em qu e m ed id a ela se m aterializa d iscu rsivam ente em u m Processo Penal. A m aterialid ad e d iscu rsiva p rod u zid a p ara e no Tribu nal d o Jú ri constitu em objetos

p rivilegiad os p ara a observação d o fu ncionam ento d a argu m entação, u m a vez qu e tu d o

se constrói visand o à d efesa d e d u as teses op ostas. N esse sentid o, se, p or u m lad o, tom o com o p ressu p osto a concep ção d e qu e a argu m entação se constitu i d e três d im ensões4,

p or ou tro, p arto d o p rincíp io d e qu e em Processos ju lgad os no Tribu nal d o Jú ri predomina uma dimensão que denomino de patêmica5.

A op ção p ela análise d as p eças com p onentes d e u m Processo Penal e não p ela

sessão d e ju lgam ento p rop riam ente d ita se d eve, além d o sabor d o d esafio, a m eu interesse em verificar, no percurso de construção do caso na Justiça Penal, como se daria

d iscu rsivam ente a constru ção d a im agem d a vítim a e d o assassino e em qu e m ed id a essa constru ção seria retom ad a p elos agentes no d ecorrer d o Processo. Pretend o

verificar com o a elaboração d essas im agens se alia à p atem ização na d efesa d e u m determinado p onto d e vista. Para tanto, p arto d o p rincíp io d e qu e tu d o se constrói

d esd e o instante em qu e o crim e se torna p ú blico, com a red ação d o Boletim d e

Ocorrências. A p artir d a leitu ra d as p eças p rocessu ais su p onho ser p ossível verificar com o se d á essa arqu itetu ra e em qu e m ed id a isso se faz argu m entativam ente. As

rep resentações sociais, as im agens p ré-fabricad as e aqu elas constru íd as no d iscu rso serão, nesses termos, alvos de minha observação, uma vez que, através dos processos de

d iscu rsivização, elas cond u zem a cena, am p arad as p ela d im ensão d em onstrativa. A

id éia d e qu e as p eças p rocessu ais não consistem , na verd ad e, em textos técnicos, m as sim em textos argumentativos também perpassará a reflexão da tese.

4 Esse caráter tridimensional será abordado no Capítulo 4. 5

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--- O foco da análise

Com o m eu objetivo é analisar as p eças d e u m Processo Penal, op tei p or estu d ar

os d ad os referentes à ap u ração d e u m crim e com etid o contra u m a m u lher. Tal escolha

d ecorre tanto d e m eu interesse p elo d ebate acerca d a qu estão fem inina qu anto p elo caráter emblemático do caso. Este crime, ocorrido em Belo Horizonte na década de 1980,

reavivou uma discussão iniciada nas décadas anteriores, motivada pelos assassinatos de Jô d e Lim a e Sou za e d e Ângela Diniz, am bas m ineiras, acerca d a violência contra a

m u lher no Brasil e, esp ecificam ente, acerca d os “crim es d a p aixão”. Os crim es d a p aixão

consistem em u m tem a trágico e fascinante p or se tratarem d e crim es com etid os sob a ju stificativa d o am or traíd o. Ju stam ente p or isso são cap azes d e incitar as m ais d iversas

emoções, desde a indignação ao sentim ento d a vingança cu m p rid a. O sim p les fato d e as vítim as serem assassinad as p or seu s su p ostos am ores já evoca sentim entos d e d iversas

ord ens. Qu and o nos d ep aram os com inform ações m ais ap rofu nd ad as sobre o caso nem se fala...

Apesar de se tratar de um crime ocorrido há duas décadas, as discussões em

torno da questão feminina, não obstante o progresso alcançado, avançaram pouco em

casos de julgamento de Tribunal do Júri. 6 Ainda hoje se faz uso da tese da legítima

defesa da honra, por exemplo. Além disso, trata-se de um crime emblemático, que

abalou a sociedade mineira justamente no início da década de 1980, momento em que as

mudanças provocadas pelos movimentos feministas da década anterior começavam a

aparecer. Após a condenação de Doca Street, ocorrida em seu segundo julgamento,

havia uma expectativa de que este tipo de crime desaparecesse das tribunas, mas o que a

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16 história nos mostra é que os assassinatos cometidos sob a máscara do amor traído

permanecem em cena.

Por fim, é preciso dizer a opção pela análise das peças processuais decorre

menos dos entraves encontrados na coleta dos dados que do fato de elas constituírem

fontes privilegiadas de pesquisa, ao permitirem uma visão abrangente do caso-crime.

Nelas, pode-se encontrar um vasto leque de informações, bem como o posicionamento

de diversos atores no percurso de construção da “verdade jurídica”.

O mapa

A tese foi d ivid id a em três p artes, send o cad a u m a d elas com p osta d e d ois

cap ítu los. N a p rim eira, p rivilegio u m a d iscu ssão sobre a origem , estru tu ra e

fu ncionam ento d o Tribu nal d o Jú ri. Meu objetivo é ap resentar u m a leitu ra, ancorad a, em esp ecial, no filósofo Michel Fou cau lt7, a resp eito d as origens d a Ju stiça Penal e,

conseqü entem ente, d o Tribu nal d o Jú ri. Desse d ebate, p retend o d estacar, sob a égid e d e algu ns m om entos históricos, com o as relações d e p od er cond icionaram a

constitu ição d o qu e hoje d enom inam os com o “Ju stiça”. Além d isso, p retend o p roced er

a u m a d iscu ssão sobre o fu ncionam ento d esse p olêm ico órgão, a fim d e m elhor com p reend er com o se constrói u m Processo Penal. N o segu nd o cap ítu lo, am p arad a na

Teoria Sem iolingü ística, m eu objetivo é p roced er a u m a leitu ra d o d isp ositivo com u nicacional d o Tribu nal d o Jú ri, a fim d e m elhor su stentar a d iscu ssão sobre a

argu m entação, qu e terá esp aço no cap ítu lo segu inte. Desse m od o, a Parte II inicia-se com u m a breve p assagem p or algu ns m arcos teóricos d a argu m entação p ara qu e, em

segu id a, no Cap ítu lo 4, eu p ossa ap resentar u m p osicionam ento acerca d a constitu ição

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--- p rocessu ais tend o com o eixo as hip óteses e as d iscu ssões qu e p erp assarão a elaboração d a tese. A p artir d a leitu ra d os textos, p retend o refletir acerca d as relações entre o

caso-crim e d estacad o e d o p róp rio fu ncionam ento d a Ju stiça, levand o em conta os atores

sociais e a posição ocupada por eles nesse percurso.

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PARTE I

A DINÂMICA DO TRIBUNAL DO JÚRI

Esta p arte é com p osta, assim com o as d em ais, d e d ois cap ítu los. N o p rim eiro d eles ap resento u m breve p ercu rso histórico acerca d a origem e fu ncionam ento d o Tribu nal d o Jú ri. A p artir d as id éias lançad as p or Michel Fou cau lt, traço u m a reflexão

acerca d a criação d a noção d e inqu érito, d os cód igos p enais, entre ou tros asp ectos. Por

fim , ap resento u m a d iscu ssão a resp eito d e algu m as qu estões p olêm icas em torno d o caráter vago d as noções u sad as na área ju ríd ica, d a form ação insu ficiente d os

Ad vogad os, d a m anu tenção e escolha d os ju rad os e d a interferência d a su bjetivid ad e dos magistrados e jurados nos julgamentos.

N o segu nd o cap ítu lo, trato d e algu m as consid erações sobre a Teoria Sem iolingü ística, d esenvolvid a p or Patrick Charau d eau , ap rop riand o-m e d e seu s

p ressu p ostos p ara m elhor com p reend er a d inâm ica d iscu rsiva d o Tribu nal d o Jú ri.

N esse cap ítu lo, assim com o no anterior, ap resento inform ações relativas tanto às p eças p rocessu ais qu anto acerca d a sessão d e ju lgam ento. Tod avia, é p reciso salientar qu e

m eu olhar está voltad o, com m ais cu id ad o, ap enas p ara as p eças com p onentes d o Processo. A ap resentação d os ou tros d ad os é relevante na m ed id a em qu e m e p ossibilita

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TRI BUNAL DO JÚRI :

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CAPÍTULO 1– TRIBUNAL DO JÚRI: A ARENA DOS PASSOS PERDIDOS8

O conhecim ento esqu em atiza, ignora as d iferenças, assim ila as coisas entre si, e isto sem nenhu m fu nd am ento em

verd ad e. Devid o a isso, o

conhecim ento é sem p re u m

d esconhecim ento. Por ou tro lad o, é algo qu e visa, m ald osa, insid iosa e agressivam ente, ind ivíd u os, coisas e situ ações. Só há conhecim ento na m ed id a em qu e, entre o hom em e o qu e ele conhece, se estabelece, se tram a algo com o u m a lu ta singu lar, u m tête-à-tête, u m d u elo. H á sem p re no conhecim ento algu m a coisa qu e faz com que ele seja sempre singular.

Michel Foucault.

A exp ressão “salão d os p assos p erd id os” d esigna o esp aço situ ad o entre a sala

secreta e a tribu na, no Tribu nal d o Jú ri. É nesse lu gar fronteiriço, d e p assos, vozes e su jeitos p erd id os, qu e se esp era a d ecisão acerca d a cu lp a ou inocência d e algu ém . É lá

qu e o sim bólico d a lei tom a corp o. É o lu gar em qu e o saber-p od er ap resenta u m a d e su as faces m ais obscu ras. Em virtu d e d isso, em bora eu reconheça haver u m a trad ição

ju ríd ica em relação ao d ebate sobre este p olêm ico Tribu nal d o Jú ri, acred ito aind a ser necessário p ensar sobre esse órgão em term os d os d iscu rsos qu e o p erp assam e são

veicu lad os p or ele, os qu ais, d e certa form a, d eterm inaram seu fu ncionam ento. Os

jogos, as m áscaras, as id entid ad es, o ritu al e, sobretu d o, as relações d e p od er provocam , agu çam m eu s sentid os, fazend o-m e d esejar p enetrar nesse u niverso. A

entrada não é fácil. E muito menos a saída.

É ju stam ente refletind o sobre o entrecru zam ento d e tantas fronteiras

d iscu rsivas qu e p retend o com este cap ítu lo com p reend er m elhor as sinu osas linhas

8

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--- qu e traçam o fu ncionam ento d o Tribu nal d o Jú ri brasileiro. Essa p assagem p or su as origens e form ação p od erá contribu ir com u m olhar m ais agu d o tanto em relação à

leitura – sob o viés d a Teoria Sem iolingü ística d e Patrick Charau d eau – a ser

desenvolvid a no cap ítu lo segu inte, qu anto no m om ento d a análise d as p eças com p onentes d e u m Processo Penal acerca d e u m crim e ju lgad o nessa instância, a qu al

se efetivará nos Capítulos 5 e 6.

1.1 Passos perdidos?

La question naïve du pouvoir des mots est

logiquement impliquée dans la

suppression initiale de la question des usages du langage, donc des conditions sociales d’utilisation des mots.

Pierre Bourdieu.

O Tribu nal d o Jú ri su rgiu em 1822 no Brasil e, em bora d iretam ente d erivad o

d as noções e conceitos d o Direito Francês, não se d estinava, nos p rim eiros tem p os, a ju lgar crim es contra a vid a, m as d e im p rensa, p or m ais estranho qu e isto p ossa p arecer.

Era, p ortanto, u m órgão d e censu ra. N aqu ela ocasião era com p osto p or 24 m em bros, os

qu ais eram selecionad os entre os “hom ens bons, honrad os, inteligentes e p atriotas”. Desd e o início, su a valid ad e foi qu estionad a d evid o à form ação d o jú ri, p ois em nossa

socied ad e escravocrata, com certeza, som ente os d etentores d e cap ital e p restígio social eram consid erad os bons e honestos. Com o não p od eria d eixar d e ser, qu estionava-se o

valor d e vered ictos d efend id os p or u m a p equ ena p arcela d a p op u lação, qu e p rivilegiava os interesses d e su a classe. H oje aind a se coloca em xequ e a cap acid ad e d e

os ju rad os serem resp onsáveis p elo vered icto d e crim es, m as o qu e se d estaca agora é a

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22 recai sobre a im p erícia técnica d os ju rad os. Este assu nto p rovoca acirrad os d ebates entre os ju ristas e, com o coloca em cena u m qu estionam ento m u ito m ais am p lo a

resp eito d a relação entre conhecim ento e p od er vigentes no m u nd o ocid ental, não

permite que se chegue a termos pacíficos.

É p ossível observar, a p artir d as id éias lançad as p or Michel Fou cau lt9, qu e a

form ação d o qu e hoje se conhece p or Tribu nal d o Jú ri ocorreu d e form a lenta e p rogressiva no entrecru zam ento d e várias p ráticas ju ríd icas d esd e a Grécia Antiga. Em

Éd ip o, d e Sófocles, há u m a am ostra d o inqu érito, no qu al a voz d a testem u nha ganha

força, d iferentem ente d o qu e ocorria nos textos hom éricos, com o a Ilíada, p or exem p lo, em qu e a d isp u ta entre Menelau e Antíloco resolveu -se através d e u m a p rova. O

inqu érito, sistem a ou m étod o d e bu sca d a verd ad e p erm aneceu , segu nd o Fou cau lt10,

esqu ecid o p or vários sécu los, send o retom ad o, a p artir d e u m d esejo d e controle social,

mais tarde na Idade Média.

N o Direito Germ ânico, qu e anteced e a esse m om ento-au ge d o inqu érito, a

resolução d os conflitos ocorria ap enas entre as p artes envolvid as, p elo jogo d a p rova –

d u elos d os m ais d iversos tip os. N o d ireito feu d al, qu e é originário d o Direito Germ ânico, tam bém não havia aind a os elem entos relativos ao inqu érito. Parece haver

nessas “m aneiras d e se fazer ju stiça”, as qu ais contribu íram cad a qu al, a seu m od o e p or su as razões, com a form ação d o em brião d o nosso Cód igo Penal, qu estões

interessantes para essa breve reflexão, em especial no que se refere às provas realizadas

para resolver as questões jurídicas entre dois indivíduos.11

Tais p rovas faziam p arte d a constitu ição d o d ireito feu d al e eram d enom inad as

com o sociais, verbais, m ágico-religiosas e corp orais. Em relação as p rim eiras, é interessante observar qu e u m acu sad o d e u m crim e p od eria p rovar su a inocência

9

Para saber mais sobre o assunto, ver: FOUCAULT, 2002.

10

(23)

--- reu nind o d oze testem u nhas d e su a fam ília, o qu e realçava, na verd ad e, não su a inocência, m as seu p restígio social. Ao refletir sobre o atu al fu ncionam ento d o jú ri, é

im p ossível não observar com o as relações d e p od er form aram , com o p assar d os

sécu los, u m a grand e teia qu e inclu i ou exclu i os ind ivíd u os d e acord o com su a vontad e. Essa m aneira d e p rovar a verd ad e, através d o aval d e p essoas escolhid as,

p arece ter algu m tip o d e relação com o qu e m ais tard e seria consid erad o o Conselho d e Sentença, além d e evid entem ente p ossu ir relações d iretas com o valor social d as

vítim as e d os acu sad os. É evid ente o fato d e não ser p ossível d esconsid erar o Tribu nal

d o Jú ri com o oriu nd o não ap enas d e u m elem ento, m as d e m u itas vozes, d e m u itos d iscu rsos. N esses term os, entend o qu e não ap enas estes fatos d eterm inaram su a

formação atual, apesar de serem bastante importantes.

A segu nd a p rova, d e tip o verbal, é tam bém m u ito ú til à hip ótese d e qu e os

jogos d e p od er e, conseqü entem ente, as rep resentações sociais d eterm inaram a form ação d a Ju stiça Penal e, em esp ecial, d o Tribu nal d o Jú ri. De acord o com essas

p rovas, o acu sad o d e u m crim e d everia p rovar su a inocência p ronu nciand o u m certo

nú m ero d e fórm u las. Caso com etesse algu m erro gram atical, p or exem p lo, seria cond enad o. N esse jogo, o p od er-saber d eterm inava a cu lp a d o acu sad o, p or isso,

obviam ente, os d etentores d e m aior cap ital cu ltu ral seriam sem p re absolvid os, enqu anto os ou tros seriam qu ase sem p re cond enad os. N essa p rática, aind a há d ois

elem entos qu e m erecem d estaqu e, send o qu e o p rim eiro d iz resp eito à p osição social ocu p ad a p ela m u lher. Caso ela fosse acu sad a d e algu m crim e, p od eria (ou d everia) ser

rep resentad a p or algu ém qu e p u d esse p ronu nciar as fórm u las em seu lu gar. Além d e

haver algo relativo à qu estão fem inina, há, aind a, o testem u nho d a p rim eira ap arição d o qu e viria a ser consid erad o, m ais tard e, com o Ad vogad o. Esse ind ivíd u o, qu e

11 Nesse momento as questões jurídicas ainda estavam restritas às partes envolvidas, sem a interferência

(24)

---

24 su rgiu p ara rep resentar os m ais fracos – m u lher, p ad res, inválid os, etc. - carrega a m arca, d esd e su a em ergência, d e certo cap ital sim bólico qu e o d iferencia d as d em ais

pessoas.

A terceira p rova era referente ao ju ram ento, ou seja, o su jeito d everia ju rar qu e não com etera o crim e, sem titu bear, p ois, caso contrário, seria cond enad o. O valor d o

ju ram ento era com o aind a se d eseja atu alm ente, bastante im p ortante. Ju rar significava dizer a verdade.12

N as p rovas físicas ou corp orais – ord álios –, p or su a vez, o ind ivíd u o era

su bm etid o a u m jogo d e exp osição extrem a d e seu corp o ao fogo ou à águ a, a fim d e p rovar ser o m ais forte. Com o se vê, novam ente, não se qu estionava a verd ad e tal

com o fazem os hoje nos ju lgam entos, m as sim nos resu ltad os d as p rovas. A cap acid ad e d e su p ortar o em bate físico era m ais im p ortante qu e a investigação. A p artir d essas

consid erações é p ossível observar, com Fou cau lt13, qu e a verd ad e ju ríd ica, tal com o a

u tilizam os, foi algo criad o ao longo d a história d a form ação d o m u nd o ocid ental,

m antend o p erm anente relação com algu m interesse d e u m a p equ ena p arcela d a

socied ad e. Tod a a d iscu ssão acerca d a verd ad e está intim am ente relacionad a com a d iscu ssão sobre o conhecim ento e o p od er. É p or isso qu e, ao d iscorrer sobre a qu estão,

Fou cau lt afirm a qu e o fato d e o inqu érito ganhar d estaqu e e ser consolid ad o no lu gar d as p rovas, u sad as inclu sive no m eio acad êm ico, foi d ecisivo p ara a form ação d e u m a

determinada forma de saber.

Com o os litígios estavam ao lad o d as gu erras e d a circu lação d e bens ao longo d a Id ad e Méd ia, e a riqu eza era u m m eio d e exercer violência e ter d ireito sobre a vid a

12

(25)

--- e a m orte d as p essoas, as qu estões com eçaram a ser resolvid as d e ou tra form a: o tribu nal arbitral foi su bstitu íd o “p or u m conju nto d e institu ições estáveis, esp ecíficas,

intervind o d e m aneira au toritária e d ep end ente d o p od er p olítico”.14 Os m ais

p od erosos p assaram a controlar tu d o, im p ed ind o qu e os litígios se resolvessem ap enas entre as p artes interessad as, o qu e p ossibilitou a concentração d a circu lação ju d iciária e

d os bens nas m ãos d os m esm os ind ivíd u os. Doravante, as qu erelas não p od iam m ais ser resolvid as sem a figu ra d o p rocu rad or, qu e era o rep resentante d o soberano, rei ou

senhor. N ão se lesava m ais u m ind ivíd u o, m as o Estad o. Evid entem ente, o p eso d a

falta com etid a ganhou u m a conotação totalm ente d iferente. O fu ncionam ento arcaico d a ju stiça se inverte e a p artir d aí ele se torna “u m d ireito (lu crativo) p ara o p od er e

uma obrigação (custosa) para os subordinados”.15

Além d isso, a noção d e d ano p assa a ser su bstitu íd a p ela d e infração, qu e é

“u m a d as grand es invenções d o p ensam ento m ed ieval”.16 Ap arece tam bém nesse

m om ento o sistem a d e m u ltas, as qu ais d everiam ser p agas ao Estad o, o qu e

contribu iu , d e form a d ecisiva, p ara a ap rop riação d os bens p elas m onarqu ias

nascentes. Com o a p artir d esse m om ento a qu estão se resolvia com o Estad o e, conseqü entem ente, com seu rep resentante m aior, os em bates físicos não p od eriam

m ais ocorrer, p or isso foram criad as ou tras form as d e se chegar à verd ad e. Um a d elas p arece m u ito se ap roxim ar tam bém d o qu e se conhece com o Conselho d e Sentença,

p ois se reu niam p essoas cap azes d e conhecer os costu m es, o Direito ou os títu los d e

p rop ried ad e (o qu e realm ente interessava à m onarqu ia na lu ta p elas terras). Ap ós fazê-las ju rar d izer a verd ad e sobre o qu e viram ou ou viram d izer, d eixavam -nas a sós p ara

qu e d ecid issem sobre o d esfecho d a d isp u ta. Além d o m ais, elas d everiam ap resentar u m a solu ção p ara o p roblem a. Essa form ação é ou tro índ ice d e u m a fu tu ra concep ção

13

FOUCAULT, 2002.

14

(26)

---

26 d o jú ri, qu e já d ava m ostras d e seu caráter exclu d ente. Aind a nas trilhas d e Fou cau lt, é p ossível verificar qu e as m arcas p resentes na origem d o tribu nal d em onstram bem qu e

este órgão não consiste em u m a institu ição p op u lar, voltad a verd ad eiram ente p ara os

interesses do povo.17

Ou tras form as d e inqu irir as p essoas, ap rend id as, entre ou tros, com a Igreja,

foram su rgind o, segu nd o Fou cau lt, d e u m a form a cad a vez m ais op ressora e d esigu al. Ao em p reend er su a arqu eologia d as concep ções ju ríd icas, o teórico lança a hip ótese d e

qu e o inqu érito teve u m a d u p la origem : d e ord em ad m inistrativa e religiosa.18 A p artir

d o m om ento em qu e ele vai ganhand o corp o, a p rova vai d esap arecend o. Ela d esap arece nesse p ercu rso não ap enas d a p rática ju ríd ica, m as tam bém d os d om ínios

do saber, como já destaquei anteriormente. Isto leva Foucault a concluir que o inquérito não é absolu tam ente u m conteú d o, m as u m a form a d e saber e, m ais p recisam ente, u m a

forma de saber-poder:

O inqu érito é p recisam ente u m a form a p olítica, u m a form a d e gestão, d e exercício d o p od er qu e, p or m eio d a institu ição ju d iciária, veio a ser u m a m aneira, na cu ltu ra ocid ental, d e au tenticar a verd ad e, d e ad qu irir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir.19

É d essa form a qu e, na p ersp ectiva fou cau ltiana, nasce u m a d as d im ensões d a

“sociedade disciplinar”. O que me interessa, no momento, acerca desse surgimento, são

as m u d anças sofrid as p ela Ju stiça Penal, as qu ais d eterm inaram a form ação atu al d e nosso Tribu nal d o Jú ri. Fatos ocorrid os d esd e o final d o sécu lo 17 até o início d o sécu lo

19, tais com o a Reform a e a reorganização d o sistem a ju d iciário e d o sistem a p enal, nos d iferentes p aíses d a Eu rop a e d o m u nd o, foram d ecisivos p ara a form ação d e nossa

Ju stiça Penal. O p rim eiro e o segu nd o Cód igo Penal Francês, p or exem p lo, lançaram as

15

Idem.

16

FOUCAULT, 2002: 66.

17

Para saber mais sobre o assunto, ver: FOUCAULT, 1999.

(27)

--- sem entes p ara a criação d o Cód igo brasileiro. Contu d o, as id éias originais não foram m antid as na íntegra, p ois em virtu d e d os interesses d as classes d om inantes, foram

realizad as ad ap tações ao p ensam ento d e Beccaria.20 Para este ju rista, a qu erela não

d everia m ais ser resolvid a sem se consid erar u m a lei, o qu e d esloca a qu estão d o coletivo p ara o ind ivid u al. Com isso, o crim inoso p assou a ser consid erad o com o u m a

erva daninha, ou seja, como o sujeito que perturba a ordem da sociedade:

[...] a lei p enal não p od e p rescrever u m a vingança, a red enção d e u m p ecad o. A lei p enal d eve ap enas p erm itir a rep aração d a p erturbação cau sad a à socied ad e. Ela d eve ser feita d e tal m aneira qu e o d ano causado pelo indivíduo à sociedade seja apagado.21

Além d isso, havia as várias p ossibilid ad es d e p u nição: d ep ortação, escând alo,

trabalho forçad o, lei d e Talião e, p or fim , a p risão, a qu al não constava originalm ente no Cód igo, m as ap enas foi m encionad a d e p assagem . Tod avia, ap esar d a grand e

varied ad e d e p enas, foi ju stam ente a p risão a ú nica a ser realm ente u tilizad a até hoje, sem qu e hou vesse nenhu m a ju stificativa teórica, com o nos ou tros casos. Acred ito qu e

essa qu estão está ligad a à relação d o hom em com o corp o. O corp o d everia ser vigiad o,

é nele qu e se d everia m arcar u m d eterm inad o lu gar d e d om ínio, d e p od er. Então, na m ed id a em qu e o su jeito é confinad o a u m a p risão, há u m a p ossibilid ad e m aior d e

controle de seu corpo. Este controle, na verdade, é signo de um controle social.

Um ou tro p onto qu e d eve ser m encionad o, nessa leitu ra d a obra d e Fou cau lt, é

relativo ao su rgim ento d as “circu nstâncias atenu antes”, as qu ais foram assu mindo

u m a im p ortância cad a vez m aior. De form a grad ativa, a legislação com eçou a se d esviar d e seu p rojeto original, d eixand o d e lad o o qu e é socialm ente ú til e p assand o a

visar ap enas ao ind ivíd u o. Assim , essas tão conhecid as “circu nstâncias” entraram em

19

FOUCAULT, 2002: 78.

20

(28)

---

28 cena, abrind o p ossibilid ad es p ara qu e “a ap licação rigorosa d a lei, tal com o se acha no Cód igo, p u d esse ser m od ificad a p or u m a d eterm inação d o Ju iz ou d o jú ri e em fu nção

d o ind ivíd u o em ju lgam ento”.22 É interessante qu e o term o “circu nstância atenu ante” é

largam ente u tilizad o nos ju lgam entos d e Tribu nal d o Jú ri, inclu sive na sentença d o caso qu e cond ena R.23 Além d esta, há aind a ou tra noção bastante u tilizad a nos

ju lgam entos: a “p ericu losid ad e”. Os ind ivíd u os d eixaram , aos p ou cos, d e constitu írem alvos d e p u nição em d ecorrência d o crim e qu e p raticaram , p assand o a ser alvos d a

Justiça pela possibilidade de cometerem algum delito. Em outras palavras,

[...] a grand e noção d a crim inologia e d a p enalid ad e em fins d o sécu lo XIX foi a escand alosa noção, em term os d e teoria p enal, d e periculosidade. A noção de periculosidade significa que o indivíduo deva ser consid erad o p ela socied ad e ao nível d e su as virtu alid ad es e não ao nível d e seu s atos; não ao nível d as infrações efetivas a u m a lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam. 24

Tanto a noção d e “circu nstância atenu ante” qu anto a d e “p ericu losid ad e” contribu íram d e form a d ecisiva com o resu ltad o d e d ois ju lgam entos, qu e eu gostaria

d e d estacar. N o p rim eiro caso, o réu havia sid o acu sad o d e ter com etid o u m crim e

ocorrid o qu atorze anos (fevereiro d e 1984) antes d o ju lgam ento (ou tu bro d e 1998) e, com o já cu m p ria p ena p ela m orte d e d u as ou tras m u lheres no Maranhão, foi

cond enad o sem assu m ir a cu lp a p or este crim e e sem qu e hou vesse p rovas suficientes d e su a au toria. Su a alta p ericu losid ad e foi extrem am ente d estacad a p elos acu sad ores,

como é possível observar na sustentação oral do Representante do Ministério Público:

A bru talid ad e com qu e ele fez isso... N ÃO É COISA DE H OMEM FAZER E nem de animal. Eu vou resp eitar os anim ais. Está a-qu i:, está lá. Ele

21

FOUCAULT, 2002: 81-82.

22

FOUCAULT, 2002: 84.

23

Este caso será analisado detidamente nos Capítulos 5 e 6. Por hora, é suficiente dizer que o fato deste criminoso possuir emprego fixo, ser considerado bom pai, por exemplo, contribuiu para atenuar sua pena pelo assassinato da esposa.

24

(29)

--- sim p lesm ente colocou a faca até o cabo, ele che-gou com a vítim a desfalecida:: É FORTE A CEN A. Eu p ergu nto a Vossas Excelências, o qu e leva o hom em ... SE É QUE SE POSSA DAR A DE-NO-MI-NA-ÇÃO DE HOMEM... qu e faz u m a coisa d essas, crava u m a faca no p eito d e u m a menina, de uma moça? Talvez a filha dos senhores...25

Ao proferir tais palavras, o Promotor insinua, entre outras coisas, que o acusado

é d e alta p ericu losid ad e e qu e, p or isso, as filhas d os ju rad os estão su jeitas a u m a m orte d esse tip o, caso ele não seja cond enad o. Além d isso, a cond enação p elos crim es

cometidos no Maranhão funcionou como agravante para a pena a ele imputada.

Em ou tra situ ação a ser analisad a nesta tese, focalizam os u m m arid o qu e,

tom ad o p or ciú m e, assassinou a esp osa em seu qu arto d e d orm ir e foi p raticam ente

absolvid o p elas circu nstâncias atenu antes: era bom p ai, tinha p restígio social, em p rego fixo etc. Isto p od e ser observad o em u m trecho d o vered icto: “[...] Tend o tam bém

reconhecid a a circu nstância atenu ante contid a na letra 'd ' d o inciso III d o art. 65 d o Cód igo Penal, qu e beneficia o réu , d im inu o esta p ena em 1/ 6, ou seja, 02 anos, 06

meses e 10 dias [...]”.26

N esses breves com entários, é p reciso, aind a, d estacar qu e atu alm ente não se trabalha ap enas com a noção d e “circu nstância atenu ante”, m as tam bém com a d e

agravante, a qu al, refere-se, com o é p ossível notar p elo m od alizad or “agravante”, a tu d o o qu e p od e tornar m ais cond enável o ato com etid o p elo acu sad o. Dentre as

circu nstâncias agravantes há u m a qu e m e cham a a atenção e será tratad a com m ais cu id ad o nos Cap ítu los 5 e 6: m atar a esp osa torna o crim e m ais grave.27 A p artir d esses

d ad os qu e testem u nham o nascim ento d o em brião d o Tribu nal d o Jú ri não d esejo

afirm ar serem som ente estes os elem entos e noções resp onsáveis p or su a constitu ição

25

Para saber mais sobre o julgamento, ver: LIMA: 2001.

26

Trecho da sentença relativa ao julgamento de R, no II Tribunal do Júri de Belo Horizonte.

27

(30)

---

30 atu al e m u ito m enos qu e não haja saíd a p ara seu s p roblem as. Mesm o p orqu e, nas trilhas d e Fou cau lt28, acred ito qu e o nascim ento d o Tribu nal está intim am en te

relacionad o com tod a a d iscu ssão sobre verd ad e e p od er, o qu e d enota a am p litu d e d o

tem a. Meu objetivo m aior consiste em com p reend er e, com o conseqü ência, contribu ir p ara a com p reensão a resp eito d o fu ncionam ento d esse órgão, sob u m a óp tica

d iscu rsiva, a fim d e refletir com m ais clareza sobre os liam es d o Processo e d os vered ictos qu e d ele resu ltaram . Para realizar tal intento, faz-se necessário, então, u m a

análise d as cond ições sociais d e p rod u ção d os d iscu rsos, além d e u m exam e d etid o d os

recu rsos lingü ísticos u tilizad os, já qu e m eu olhar é d eterm inad o p or m eu lu gar d e origem – a Lingüística e, mais precisamente, a Análise do Discurso.

1.2 Eficácias descontínuas

H á m u ito ju rad o qu e resolve cond enar o réu ou absolver, conform e venha, ou não, a p ou sar-lhe na p onta d o nariz a mosca que voeja em torno.

Nelson Hungria

Ao d estacar em ep ígrafe u m a crítica tão m ord az ao fu ncionam ento d o jú ri

p op u lar, lançad a p or u m d os nom es m ais im p ortantes d a Ju stiça Penal brasileira, d esejo cham ar a atenção p ara o qu anto a p articip ação d os ju rad os é alvo d e

controvérsias. Se, por um lado, há uma tentativa da manutenção de um poder supremo

p or p arte d os m agistrad os, p or ou tro, visa-se à m anu tenção d e u m a ou tra form a d e p od er, d eterm inad a p ela p articip ação d os su jeitos com u ns. A im p ortância e influ ência

d o Tribu nal d o Jú ri não são d e m od o algu m p ontos p acíficos no âm bito d o Direito. Ao contrário, as regras, os d isp ositivos institu cionais e d iscu rsivos qu e regem seu

28

(31)

--- fu ncionam ento são objeto d e d ebates e controvérsias, as qu ais d ivid em as op iniões d e magistrad os e estu d iosos d o ram o. Existem tanto os d efensores d e su a p erm anência,

p or acred itarem ser ele u m im p ortante órgão d em ocrático, qu anto os qu e d efend em a

necessid ad e d e os crim es serem ju lgad os ú nica e exclu sivam ente p elos m agistrad os, os qu ais estão legitim ad os e p ossu em o cap ital sim bólico p ara exercer tal fu nção. O

Tribu nal d o Jú ri d ivid e p aixões, colocand o em jogo os conflitos e antagonism os próprios ao processo de consolidação de um sistema de leis e penas.

N esse terreno p antanoso não m e p arece p ossível d eterm inar se a Ju stiça d everá

ser efetivam ente realizad a p or hom ens p rep arad os ou não. N ad a garante qu e se a estru tu ra d o jú ri fosse m od ificad a e se os crim es não fossem ju lgad os p elas “p essoas

com u ns”, haveria m ais acerto, correção e, sobretu d o, m enos interferência d a su bjetivid ad e envolvend o os vered ictos. É evid ente qu e u m a boa form ação na área

ju ríd ica acrescenta d ad os relevantes a u m ju lgam ento e contribu i p ara u m a visão m ais p ragm ática sobre os fatos, m as não se p od e afirm ar qu e u m Ju iz m u ito bem p rep arad o

consegu irá se livrar d e su a p osição na estru tu ra social, d a interferência d as qu estões

id eológicas, d e seu s m ed os e d e su as cu lp as d u rante u m ju lgam ento. Além d o m ais, o Tribu nal d o Jú ri p arece ser u m a tentativa, m esm o com d iversos p roblem as, d e se

conferir p od er d e d ecisão ao p ovo. Evid entem ente, esse p od er já é p erp assad o p or ou tras relações d e p od er, qu e acabaram fazend o d ele m ais u m a instância d o ap arelho

ideológico.

É p or tu d o isso qu e não se p od e esqu ecer d e qu e tod os os integrantes d a mise en

scène d o Tribu nal d o Jú ri fazem p arte d e u m m u nd o lingu ageiro e interp retam as

d iversas situ ações a p artir d as rep resentações sociais e estereótip os, o qu e p ossibilita, p or exem p lo, qu e se ju lgu e algu ém com o Doca Street inocente e u m lad rão d e galinhas,

(32)

---

32 p orqu e, na verd ad e, ao Ju iz é conferid a u m a au torid ad e sócio-ju ríd ica e m oral, a p onto de ele ser consid erad o u m a figu ra “neu tra”, sob vários asp ectos, e d ou ta o su ficiente a

p onto d e ele p roferir sentenças qu e esp elhem o ju lgam ento d o conju nto d a socied ad e.

Essa id éia d e neu tralid ad e, d e au sência d e interferência d a su bjetivid ad e qu e se d eseja conferir aos Ju ízes está p resente não ap enas nos trâm ites ju ríd icos, m as tam bém em

d iversas áreas d e conhecim ento, o qu e é fru to d e u m a d eterm inad a id éia d e saber em vigor no m u nd o ocid ental. Esse é u m valor d erivad o d a ciência, consolid ad o no sécu lo

19 ju ntam ente com a m od ernid ad e, e atu a com o u m fantasm a, encobrind o saberes

d iversos e d eterm inand o u m u so abu sivo d e p od er. Por trás d essa id éia, d essa racionalid ad e com o valor absolu to, encontra-se u m a im p ortante m arca d e u m tip o d e

cap ital sim bólico qu e circu la em nossa socied ad e. Ser cap az d e se d istanciar d os objetos e, sobretudo, de manter essa distância, é índice de saber e funciona como argumento de

au torid ad e, além d e conferir cred ibilid ad e e legitim ar “o observad or objetivo e imparcial”.29 Send o assim , os Ju ízes são, no olhar d o senso-com u m , esses seres cap azes

d e olhar com u m olhar d os d eu ses. Olhar d e Tirésias, qu e é cego e im p arcial, m as qu e

tu d o vê e tu d o sabe. A ele é conferid o o d ireito d e p rescrever. É p or essa razão qu e acredito – e sei qu e im petuosamente – ser p reciso rep ensar u m d os p ontos nevrálgicos

d os d itam es ju ríd icos, qu e consiste na interferência d a su bjetivid ad e. Tod avia, entend o qu e esse d ebate não se restringe a nossa socied ad e, p ois, com o bem p ond era

Boaventura Souza Santos,

[...] estu d os d e cientistas italianos incid ind o sobre as d ecisões d os tribu nais d e p rim eira instância, tanto nos d om ínios p enais com o no civil, m ostraram em qu e m ed id a as características sociais, p olíticas, fam iliares, econôm icas e religiosas d os m agistrad os influenciaram a sua definição da situ ação e d os interesses em jogo no Processo e conseqü entem ente o sentido da decisão.30

29

(33)

--- N esses term os, a p artir d e u m a reflexão sobre a relação d o su jeito com seu objeto, não há com o d efend er o fim d o jú ri em d ecorrência ap enas d o d esp rep aro e d a

m aior su scetibilid ad e d os su jeitos à em oção. Isso p orqu e, no âm bito d as ciências

hu m anas e sociais, o objeto não é externo ao hom em , com o no caso d a Física, p or exem p lo. O objeto, nesse caso, su rge d a ativid ad e d e “sim bolização” d o homem,

ad qu ire sentid o na cond u ta, na organização social e nos d iscu rsos qu e ele p rod u z. O objeto se confu nd e com o hom em ap esar d e tod os os esforços realizad os p ara sep

ará-los.31 Além d o m ais, nas trilhas d e Fou cau lt32, creio qu e a d iscu ssão sobre o Tribu nal se

relaciona com um poder, que é capilar, que se espalha, formando uma cadeia.

Um a ou tra contribu ição à d iscu ssão acerca d o fu ncionam ento d o jú ri é

ap resentad a p or Mackaay33, o qu al d iscorre sobre o caráter vago d as noções u sad as n o

m eio ju ríd ico. O au tor afirm a qu e o Direito é constitu íd o d e u m a lingu agem em p arte

artificial, qu e p od e ser tratad a com o “form alizad a”. Entretanto, ele d estaca qu e o ju rista não em p rega a d efinição e a classificação d a m esm a m aneira qu e o cientista. A

classificação d o ju rista é sem p re fixa: os term os p erm anecem os m esm os, d e form a qu e

seu sentid o é p rogressivam ente aju stad o às m od ificações d a vid a social. O au tor ap onta, aind a, qu e term os com o “bom p ai d e fam ília”, “bom filho”, “boa m ãe”, “boa

esp osa” são ap licad os a várias situ ações e são flu id os d em ais. Tod avia, essa flu id ez sem ântica d as noções não constitu i u m entrave ao bom fu ncionam ento d o Direito, m as

é essencial a ele.

Tal vagu id ão serve p ara d im inu ir cu stos, ou seja, m inim izam os cu stos associad os à form u lação e à ap licação d as regras ju ríd icas, além d e, a m eu ver,

escam otear sentid os obscu ros qu e p od em vir a ser u tilizad os, caso seja necessário. É

30

SANTOS, 1997: 173.

31

CHARAUDEAU, 1997.

32

FOUCAULT, 1999.

33 Para saber mais sobre a discussão do autor, ver "Les notions floues en droit ou l'économie de

(34)

---

34 evid ente qu e essa d iscu ssão é bem m ais com p lexa e exigiria u m ap rofu nd am ento qu e não faz p arte d e m eu s objetivos, m as m e p areceu im p ortante ressaltar com o as

reflexões acerca d o “fazer ju ríd ico” aqu i no Brasil não estão d esarticu lad as d aqu elas

em p au ta m u nd o afora. Ao d iscorrer sobre a constru ção d os textos ju ríd icos, Streck34

afirm a qu e a d ogm ática ju ríd ica, resp onsável p or instru m entalizar o d ireito, é refém d e

u m p ensam ento m etafísico e não se im p orta com o fato d e qu e seu s significad os se p ercam a cad a d ia com o u so vazio d e seu s cap ítu los, p arágrafos etc. A isso se

acrescenta a discussão de Bourdieu35, o qual afirma que, ao privilegiar um determinado

u so d a língu a, o cam p o ju ríd ico cria u m efeito d e ap riorização, inscrito na lógica d e seu fu ncionam ento. Ao se com binar elem entos d iretam ente retirad os d a língu a com u m e

elem entos estranhos ao seu sistem a, cria-se u m a retórica d a im p essoalid ad e e d a neu tralid ad e. O qu e se p rod u z com isso é u m efeito m u ito m aior d o qu e se su p õe à

primeira vista. O sociólogo acrescenta ainda que:

Esta retórica d a au tonom ia, d a neu tralid ad e e d a u niversalid ad e, qu e p od e ser o p rincíp io d e u m a au tonom ia real d os p ensam entos e d as p ráticas, está longe d e ser u m a sim p les m áscara id eológica. Ela é a p róp ria exp ressão d e tod o o fu ncionam ento d o cam p o ju ríd ico e, em esp ecial, d o trabalho d e racionalização, no d u p lo sentid o d e Freu d e d e Weber, a que o sistema das normas jurídicas está continuamente sujeito, e isto desde há séculos.36

Desse m od o, com o é p ossível acred itar em tantas p alavras-p rontas? Com o

acred itar ser o objetivo m aior d o Cód igo Penal d efend er a vid a se isso não está

exp licitad o nele, e ap enas macpalavras e mac-enunciados ap arecem nos Processos e durante os julgamentos? 37

34

STRECK, 2001.

35

BOURDIEU, 1989.

36

BOURDIEU, 1989: 216.

37

(35)

--- Por tu d o isso, creio qu e o d ebate a resp eito d a Ju stiça Penal não d eve se restringir ap enas a esse órgão, m as d eve se referir à p róp ria id éia d e Ju stiça e às

p ráticas ju d iciárias qu e vigoram no m u nd o. O d iscu rso ju ríd ico d o Ocid ente é o

d iscu rso d o p od er p or excelência; é ju stam ente d e su as relações com o saber e com a política que ele dita a marcha da humanidade. Isto porque

as cond ições p olíticas, econôm icas d e existência não são u m véu ou u m obstácu lo p ara o su jeito d e conhecim ento m as aqu ilo através d o qu e se form am os su jeitos d e conhecim ento e, p or consegu inte, as relações d e verd ad e. Só p od e haver certos tip os d e su jeito d e conhecim ento, certas ord ens d e verd ad e, certos d om ínios d e saber a p artir d e cond ições p olíticas qu e são o solo em qu e se form am o su jeito, os d om ínios d e saber e as relações com a verdade.38

O corp o d e ju rad os é signo d essas relações, visto qu e é form ad o p or su jeitos escolhid os entre os cid ad ãos com u ns, em virtu d e d e u m a certa “notória id oneid ad e”.

Assim com o em relação aos ou tros term os, não p osso m e exim ir d a tarefa d e d estacar o qu anto este é vago; nad a d iz, nad a confirm a acerca d e su jeito algu m . A escolha

p roced e d e form a arbitrária, p ois p od e ser feita p elo Ju iz, d entre os qu e fazem p arte d e

su as relações p essoais ou através d e ind icação feita p or algu m Ad vogad o ou ou tro servid or d a Ju stiça. Tu d o se p assa entre os “hom ens id ôneos”. Em virtu d e d isso,

concordo com Streck quando ele afirma que

[...] no âm bito d o Tribu nal d o Jú ri, a noção d e “cid ad ão d e notória id oneid ad e” p od e ser vista com o u m a d efinição p ersu asiva, qu e exp ressa crenças valorativas e id eológicas d o m agistrad o (e qu em o au xilia/ influ i) sobre o m od o d e escolha d os ju rad os. A d esignação/ nom eação d o qu e seja u m cid ad ão d e notória id oneid ad e estará p erm ead a p elo p od er d e violência sim bólica qu e se estabelece. O resu ltad o d esse p rocesso é a

usada para me referir à prática jurídica, a qual apenas toma o Código como mandamento, aplicando-o, forçosamente, sem a menor reflexão, mesmo em casos que exigiriam uma diferente posição. Assim como os jornalistas, os Advogados recebem uma educação que privilegia a técnica, a instrumentalização. Os valores são reproduzidos, mas não explicados, o que gera os conflitos.

38

(36)

---

36 form ação/ introjeção no im aginário social d e u m p ad rão d e norm alid ad e acerca do que seja “notória idoneidade”.39

Levand o em conta o caráter p ersu asivo d essa escolha, o qu al d eterm inará os ru m os d os ju lgam entos, ap roveito o m om ento p ara lançar algu m as sem entes acerca d o

d ebate sobre a p articip ação fem inina no jú ri. Som ente na d écad a d e 1970 hou ve u m a abertu ra p ara qu e as m u lheres com eçassem a fazer p arte d o corp o d e ju rad os.

Entretanto, essa p articip ação é aind a lim itad a. Segu nd o consta no art. 342 d o Cód igo d e Processo Penal, tod as as m u lheres qu e p ossu írem algu m a d ificu ld ad e d e conciliar

su as tarefas d om ésticas com o serviço d o jú ri estão isentas d o com p rom isso com a

Ju stiça Penal. Isto, p ara Tu benchlak40, abre esp aço p ara se qu estionar se a p ossibilid ad e

d e p articip ação d as m u lheres trata-se d e u m d ireito legítim o ou d e u m p seu d od ireito,

cam u fland o a d iscrim inação qu e aind a recai sobre elas. Ap esar d e não constitu ir m eu objetivo a realização d e u m a análise d as p eças d o Processo Penal d estacad o nesse

m om ento, não p osso d eixar d e d estacar qu e, nos Processos a serem m encionad os na

tese, há u m a p resença qu ase insignificante d as m u lheres no corp o d e ju rad os, o qu e confirm a, em certo sentid o, a tese d o au tor.41 Essa p osição em relação à figu ra fem inina

é signo d o p reconceito qu e aind a incid e sobre a m u lher, o qu al p arece ser aind a m ais evid ente no âm bito ju ríd ico. A p articip ação fem inina não som ente com o ju rad a, m as

em cargos d e chefia nos tribu nais d o p aís d em onstram bem o lim ite im p osto p ela bip olarização d os sexos, em bora su a p articip ação em ou tras áreas já se faça p resente.

Vejam-se, p or exem p lo, nos tribu nais. O Su p erior Tribu nal Fed eral tem , som ente agora,

a p rim eira p resid ente. Minas Gerais nu nca teve u m a m u lher na p resid ência d o Tribu nal d e Ju stiça ou no Ministério Pú blico. Talvez seja p ossível arriscar d izer qu e a

Ju stiça, d e tod as as institu ições, seja u m a d as qu e m ais resistem à atu ação fem inina.

39 STRECK, 2001: 100. 40

(37)

--- N ão acred ito qu e isso se d eva ao “d esp rep aro” intelectu al ou à aceitação p or p arte d a socied ad e, m as, sobretu d o, ao argu m ento falacioso d e qu e a fragilid ad e fem inina torna

as m u lheres m ais vu lneráveis e instáveis nas su as d ecisões e, p ortanto, incap azes d e

julgar e emitir sentenças aceitáveis pela sociedade.

Um ou tro p onto qu e d eve ser avaliad o com cu id ad o refere-se ao fato d e qu e, no

Brasil, os crim es contra a p rop ried ad e são p assíveis d e u m a p ena m aior qu e aqu eles contra a p essoa.42 Send o assim , não é d ifícil im aginar p or qu e os resu ltad os d os

ju lgam entos tanto nos su rp reend em . Ap esar d e se im aginar qu e ap enas os ju rad os são

resp onsáveis p or d eterm inad os vered ictos absu rd os, é p ossível observar, a p artir d a leitura da obra de Streck, que as leis precisam também de uma reformulação.43

Tal necessid ad e p od e ser observad a em casos d e grand e rep ercu ssão em nossa socied ad e com o o seqü estro d o em p resário Roberto Med ina, qu e p rovocou m u d anças

em relação a este tip o d e crim e, e o assassinato d e atriz Daniela Perez, qu e ocasionou ou tras m u d anças significativas. Em am bos os casos as leis foram m od ificad as em

virtu d e d a p ressão realizad a p ela socied ad e, aliás, d a p ressão realizad a p or u m a

d eterm inad a p arcela d a socied ad e. Com isso, p od e-se d ed u zir qu e os tip os d e p enas têm u m a relação d ireta com os bens ju ríd icos qu e as cam ad as d om inantes d a socied ad e

p retend em ou não p reservar. Para casos d e crim es d e colarinho branco e congêneres, p or su a vez, as m u d anças ocorrem d e form a m orosa, já qu e elas não interessam às

elites.

Com o se vê, os conflitos gerad os p ela p rática d o d ireito no Tribu nal d o Jú ri d evem ser encarad os não ap enas com o d ecorrentes d o corp o d e ju rad os, m as tam bém

e, sobretu d o, com o d ecorrentes d a d ogm ática ju ríd ica qu e p erm ite os excessos e a

41

Isto pode ser confirmado nos próximos capítulos, nos quais serão apresentados dados mais concretos acerca da participação feminina no júri.

42 Para saber mais sobre o assunto, ver MENEZES: 1993. 43

(38)

---

38 p erp etu ação d o d iscu rso d as classes d om inantes. Isto p orqu e, em d ecorrência d o caráter altamente ritualístico do júri, o papel dos jurados fica apagado.

Discorrend o sobre o ensino nas facu ld ad es d e Direito, Streck afirm a qu e a falta

d e p esqu isa contribu i com a p erp etu ação e rep rod u ção d e u m d iscu rso d a lei, d a verdade.44 O ensino, p ara o au tor, ap enas rep rod u z o conteú d o d os cód igos, o qu e

im p ed e a reflexão e, conseqü entem ente, as m u d anças. As p etições, os p areceres e as sentenças são rechead os d e conceitos sem sentid o, já qu e se estabeleceu no p aís u m a

cu ltu ra ju ríd ica m od elo, oferecid a p elos m anu ais d a área. Assim , o contexto

sócio-histórico-político-id eológico no qu al estão inserid os os atores ju ríd icos não é consid erad o, salvo no caso d e crim es contra algu m m em bro d a elite, obviam ente. O

d iscu rso d a d ogm ática ju ríd ica, com su as fórm u las p rontas, na m aioria d as vezes sem sentid o, fu nciona, então, com o argu m ento d e au torid ad e, o qu e faz seu s enu nciad os

serem aceitos sem restrição e questionamento pela sociedade.

Observem os o segu inte fragm ento d o d iscu rso p roferid o p elo Ad vogad o d e

Defesa, em um dos julgamentos já mencionados:

[...] m as, nad a d isso é im p ortante, senhores, nad a d isso é relevante se com p ararm os esta conceitu ação valorativa d e u m hom em com o qu e os au tos m ostram , com o qu e os senhores ou viram aqu i, d esd e a m anhã d e hoje, sobre as qu alid ad es com o ser hu m ano, com o p ai, com o esp oso, como filho (grifo nosso). Isto sim, senhores, deve ser destacado[...].45

Com o se vê, o Ad vogad o u sa a id éia d e “bom filho”, “bom esp oso”, “bom p ai”

em sua argumentação a fim de persuadir os jurados acerca de um determinado ethos do

acusado.

44

Imagem

Figura 1 – Esquema ilustrativo da ancoragem da argumentação.

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