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Esperando Ulisses: o mito de Penélope à luz da comparação diferencial e discursiva

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA

LINGUAGEM

PPGEL

DEPARTAMENTO DE LETRAS

Janeide Maia Campelo

ESPERANDO ULISSES: o mito de Penélope à luz da comparação

diferencial e discursiva

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Janeide Maia Campelo

ESPERANDO ULISSES: o mito de Penélope à luz da comparação

diferencial e discursiva

Orientador: Prof. Dr. Márcio Venicio Barbosa

Natal 2014

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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Campelo, Janeide Maia.

Esperando Ulisses: o mito de Penélope à luz da comparação diferencial e discursiva / Janeide Maia Campelo. – 2014.

100 f.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Letras. Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem, 2014.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Venicio Barbosa.

1. Literatura comparada. 2. Análise do discurso. 3. João, do Rio, 1881-1921 - Penélope. 4. Trevisan, Dalton, 1925- - Penélope. I. Barbosa, Márcio Venicio. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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JANEIDE MAIA CAMPELO

FOLHA DE APROVAÇÃO

Data da defesa: 31 de janeiro de 2014

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Márcio Venicio Barbosa (UFRN) Orientador

Prof. Dra. Tâmara Maria Costa e Silva N de Abreu (UFRN) Examinadora interna

Prof. Dra. Alyanne de Freitas Chacon (UFPB) Examinadora externa

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AGRADECIMENTOS

Sempre acreditei que o impossível é uma questão de tempo, esforço e fé. Logo, meus agradecimentos não poderiam deixar de passar por essas pessoas que, de alguma forma, dedicaram seu tempo e esforço em prol da realização deste trabalho:

A Deus, por me dar saúde e condições de concluir mais uma etapa da minha vida acadêmica.

Aos meus pais, por me ensinarem a ter fé.

Ao meu professor-orientador Dr. Márcio Venicio Barbosa, por ter me dado a oportunidade de entrar no mestrado, por me ensinar a alargar o passo e por exercer tão bem a profissão que escolheu, você nos inspira!

A CAPES, que me proporcionou alguns meses de bolsa, fator fundamental para que eu pudesse adquirir os livros que precisei.

Aos professores Carlos Galvão Braga, Tâmara Abreu e Alyanne Chacon, pelas gratas contribuições e por escolherem fazer parte disso.

A minha irmã, Nilda Maia Campelo, pelo bálsamo nas horas difíceis. É isso mesmo, nós demos mais um passo!

A Ana Paula Cacho, pelos milagres cotidianos.

E a você, Hudson Rocha, pela presença, pelas mãos dadas, pelo sorriso calmo, enfim, o silêncio pelo simples fato de eu já não saber dizer o quanto você é parte disso.

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RESUMO

Das inúmeras tecelãs de que se tem notícia, a rainha de Ítaca está, certamente, entre as mais célebres. Muitos escritores ao longo dos séculos dedicaram-se a retomar o mito de Penélope em suas obras e recontá-lo a sua maneira.De acordo com Ute Heidmann, “a recorrência de escritores modernos aos mitos gregos para produzirem seus textos é uma prática discursiva ‘renovadora’, que dá ao mito ‘novas escritas e pertinência’(2003, p.47). Esse trabalho faz uma análise comparativo-diferencial e discursiva do mito de Penélope relacionando-o com dois contos de autores brasileiros: Penélope de João do Rio (1919) e Penélope de Dalton Trevisan (1959). Para tal, temos como embasamento teórico: obras de Ute Heidmann (2003, 2006, 2008) e de Dominique Maingueneau (2006). Debruçamo-nos ainda sobre o aspecto temporal presente tanto no mito clássico de Penélope como em suas reescritas modernas de forma a identificar como cada reconfiguraçãodesenvolve um dos atos mais célebres desse mito: a espera. Para tal, nos baseamos nos estudos de Paul Ricoeur (2006), Hans Meyerhoff (1976) e Benedito Nunes (1988).

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ABSTRACT

From the many weavers known, the Queen of Ithaca is certainly among the most famous.Over the years,many writers have dedicated themselves to retell the myth of Penelope in their works by their own way. According to Ute Heidmann, “the modern writers recurrence to the Greek myths in order to produce their texts is a “renewing” discursive practice, which gives “new writing and relevance” to the myth.” (2003, p.47). This work deals with a differential and discursive comparative analysis on the myth of Penelope linking it with two short stories from Brazilian authors: Penélope by João do Rio (1919) and Penélope by Dalton Trevisan (1959). In order to do it, we are supported by: the works of Heidmann (2003, 2006, 2008) and Maingueneau (2006). We also concentrate ourselves on the temporal trace presented in both Penelope’s myth and in its modern rewriting so that we can identify how each configuration of the classical myth develops into one of the most celebrated acts of this myth: the waiting. In order to so, we seek support on the studies by Paul Ricoeur (2006), Hans Meyerhoff (1976) and Benedito Nunes (1988).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 08

1 PENÉLOPE, PENÉLOPES... 18

1.1 A dialética do espelho: o dândi e seus reflexos ... 23

1.2 Dalton Trevisan nos estudos teóricos ... 26

1.3 Estado da arte ... 29

1.4 Mutatis mutandis: a comparação diferencial como abordagem metodológica 31

2

URBI ET ORBI

... 38

3 PENÉLOPE EM CURITIBA ... 47

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(RE)

CONTANDO O TEMPO,

(RE)

FAZENDO OS PONTOS ... 60

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 75

6 REFERÊNCIAS ... 79

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9 INTRODUÇÃO

Esperar é um à-toa muito ativo. Guimarães Rosa

Das inúmeras tecelãs de que se tem notícia, a rainha de Ítaca está, certamente, entre as mais célebres. Das muitas mulheres, amantes e deusas que, nos trabalhos com o tear e a lã, protagonizam romances, contos e poemas da literatura, a fiandeira que, enclausurada no seu quarto, canta sua má sorte e chora o marido ausente tornou-se um dos personagens mais emblemáticos da espera nos textos literários.

No poema que narra a volta de Ulisses à sua ilha depois da guerra empreendida em Tróia, para resgatar Helena, Penélope e sua longa espera parecemter assegurado um lugar não menos importante. No entanto, séculos depois de sua primeira menção na obra de Homero e de inúmeras referênciasà esposa de Ulisses como ideal de fidelidade; uma questão parece ainda digna de retomada: deve-se a fama de Penélope à sua espera ou à forma como ela o faz? Afinal, não podemos, em um poema que exalta a argúcia de Ulisses, o “multifacetado”, esquecermos dos versos dedicados pelo poeta à Penélope:

E se persiste em afligir argivos ínclitos, excogitando um dom que Atena lhe faculta, produzir obras belas, usufruir de espírito brilhante e astúcia, acima até de argivas de eras priscas, seja a belicomada Tiro, Alcmena, sejaMicena, belo diadema (acima

Penélope sobrepairando em tino fino)

(HOMERO, Trad. Trajano Vieira, canto II, v 116 – 122).

Homero ressalta a inteligência da rainha de Ítaca colocando-a acima de personagens como Tiro, Alcmena e Micena, também célebres por sua inteligência e perspicácia. A esposa de Ulisses mostra-se, portanto, dotada de ardis comparáveis do marido ausente.

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Telêmaco, filho de Ulisses e já adulto, divide com sua mãe e um grupo de pretendentes desta, a casa onde vive. Esses últimos buscam, de toda forma, persuadir Penélope de que seu marido está morto e de que ela, agora viúva, deve se casar com um deles. Penélope, habilidosa nos trabalhos manuais, adverte todos os pretendentes de que não se casará antes de tecer a mortalha de seu sogro Laertes. A confecção que dura três anos é forçosamente concluída quando, no quarto ano, descobre-se que a rainha desmanchava de noite o que tecia durante o dia.

Embora a inteligência e a astúcia de Penélope sejam características bastante exaltadas por Homero, o mito da tecelã se resumiu por muito tempo a conferir lugar coadjuvante à esposa fiel e paciente, em detrimento da atuação da astuciosa rainha que, na sua espera confiante, influi na trama, à sua maneira, para a prorrogação dos acontecimentos.

Em Ouvrages des dames: Ariane, Hélène, Pénélope..., Françoise Frontisi-Ducroux afirma que “a mais inteligente das mulheres é aquela que sabe subverter a tecedura. Aquela que ultrapassa a prática artesanal para fazer desta um uso quase intelectual” (DUCROUX, 2009, p.88, tradução nossa)1.

A rainha de Ítaca espera, mas sua espera não é inativa: Penélope vive por meio do seu tear em um fiar e desfiar que interfere no seu destino como se recuasse, esperando sempre o momento mais oportuno para agir.

Na mitologia grega, o ato de tecer está diretamente ligado ao destino do homem. As Moiras, as irmãs Clótos, Laquésis e Átropos são respectivamente responsáveis por fabricar,tecere cortar o “fio de vida” de todos os mortais.

Ao contrário das Moiras, cuja ação é inflexível - dada a impossibilidade de o fio voltar à forma de floco - a metáfora do tecido que volta à forma de fio, representada pelos trabalhos de Penélope no tear, revela-se particularmente interessante para a nossa pesquisa, pois a espera e a fidelidade atribuídas à personagem tornaram-na, para todos os efeitos, o ideal de esposa ao longo da história.

Muitos escritores dedicaram-se a retomar o mito clássico em suas obras e recontá-lo a sua maneira. Assim, tal como a esposa de Ulisses que desfia à noite o trabalho realizado durante o dia; esses novos autores se dedicaram a desconstruir o mito e, na troca do tear pela pena, reescrever a história da rainha tecelã.

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Esses novos textos, de gêneros e contextos sócio-históricos tão distanciados no tempo e no espaço, só podem ser concebidos como uma retomada do mito clássico na medida em que o negam ou o questionam.

Romances como Ulisses, escrito pelo irlandês James Joyce, em 1922, são exemplos de retomada dos mitos de Ulisses, Penélope e Telêmaco que se tornam, nesse caso, respectivamente, Leopold Bloom, sua esposa Molly Bloom e Stephen Dedalus, cujos caracteres contrastam com aqueles dos nobres personagens de Homero.

Mais tarde, a escritora canadense Margaret Atwood se propõe a ousada tarefa de dar voz a Penélope. A obra, intitulada A Odisseia de Penélope: o mito de Penélope e Odisseu (2005) reconta a Odisseia do ponto de vista da própria Penélope que está agora nos Campos Elísios, morada das almas virtuosas no reino de Hades: “Agora que todos perderam o fôlego, é a minha vez de fazer o relato. Devo isso a mim mesma. [...] vou tecer minha própria narrativa” (ATWOOD, 2005, p.17).

No Brasil, Cecília Meireles, no poema intitulado Uma pequena aldeia também faz uma clara referência ao mito: “[...] São umas corajosas mulheres / que tecem em teares antigos /são umas Penélopes obscuras / em suas casas de pedra [...]” (MEIRELES, 2001, p. 1893).

Na literatura infanto-juvenil, Ruth Rocha (2000) adapta o poema épico de Homero e, em uma edição em prosa e ilustrada, narra não só as aventuras de Ulisses e a espera de Penélope, mas também alguns eventos ocorridos antes de Ulisses começar sua viagem de volta à Ítaca. A autora também se preocupa em tornar a linguagem mais acessível ao público juvenil, assim, na Introdução, temos: “Há muito, muito tempo, havia um grande e poderoso reino cuja capital, Tróia, era uma enorme cidade, fortificada, muito rica e muito poderosa” (2000, p. 6).

Mas Cecília Meireles e Ruth Rocha não estão sozinhas. Ainda no Brasil, dois outros autores recorreram ao mito da tecelã na composição de suas obras: João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, ou ainda, Paulo Barreto, jornalista, cronista e escritor carioca do fim do século XIX, em sua coletânea composta por dezoito contos e intitulada A mulher e os espelhos (1919) também reservou um lugar a Penélope ao lado de Créssida, Cleópatra e D. Joaquina.

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século – e da de São Clemente o cenário dos fatos ocorridos na vida da protagonista que também pertence à “alta classe carioca” da época, retratada à exaustão na literatura brasileira do início do século XX.

Algumas décadas mais tarde é a vez de outro autor brasileiro, em sua obra de estreia Novelas nada exemplares (1959), coletânea de 32 contos, apresentar-nos a sua Penélope. Dalton Trevisan, famoso contista e jornalista curitibano, também conhecido como “o vampiro de Curitiba”, dada a sua natureza reclusa, abre as cortinas para nos mostrar uma já velha e tímida mulher que foge da desconfiança do marido atormentado pela dúvida da traição.

No conto, com exceção do título, também “Penélope”, os personagens são designados apenas como “a mulher” e “o marido”. Ambos se mudam para Curitiba após a morte dos filhos e vivem uma vida aparentemente tranquila até o momento em que, voltando de um passeio semanal, o casal encontra um envelope azul sem remetente e com as palavras – corno manso – em letras recortadas de jornal. O frequente recebimento do envelope acaba por ocasionar a total desconfiança do marido e o silêncio da mulher. Esta, ao finalizar uma toalhinha de tricô que costumava trançar durante a noite, suicida-se. Ao voltar do enterro, o marido encontra mais uma carta e a narrativa tem fim.

Em ambos os contos, é possível encontrar, direta ou indiretamente, referências ao mito clássico, seja na escolha do título “Penélope”, seja na condição em que se encontram as personagens femininas: Alda Guimarães, viúva, honesta e de profundo respeito ao marido “em sua vida e morte”, na narrativa de João do Rio ou “a mulher”, no conto de Dalton Trevisan, cuja aparente passividade diante das desconfianças do marido só termina quando ela se suicida.

No entanto, é no mínimo curioso, que apesar de os dois contos trazerem no título o nome da esposa de Ulisses, suas personagens são designadas nas narrativas de João do Rio e de Dalton Trevisan como: “Alda Guimarães” e “a mulher”, respectivamente.

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As referências ao mito clássico ou a características que o tornaram célebre como o luto vivido pela personagem de João do Rio, ou ainda, o próprio ato de tecer, na personagem de Trevisan nos levam, à primeira vista, a identificar seus aspectos comuns.

No entanto, elementos como a paixão entre Alda e Manuel, um “rapaz quase menino”, ou ainda a fragilidade das relações familiares, mesmo em relacionamentos duradouros e aparentemente estáveis, como no caso do conto de Trevisan, permitem-nos realizar outro tipo de análise que não a de comparação dos elementos parecidos em cada obra; mas daquilo que se difere de uma narrativa para outra, considerando, principalmente, seu contexto de produção.

Diante dessa perspectiva, o mito clássico é compreendido mais como um traço comum a narrativas fundamentalmente diferentes, que como significado final dessas obras.

Se, na narrativa grega, Penélope tornou-se figura emblemática da fidelidade e da obediência feminina, acreditamos não ser este o único sentido a que se pode atribuir à esposa de Ulisses. Tampouco se trata de defender a influência do mito clássico na significação dessas novas personagens.

Tal análise só é possível se abandonarmos as interpretações já cristalizadas que acompanham a leitura dos mitos clássicos, contextualizando as (re)escritas destes em favor de uma análise das diferenças capaz de contrapô-las.

De acordo com Ute Heidmann (2003, p.47), a recorrência de escritores modernos aos mitos gregos para produzirem seus textos é uma prática discursiva “renovadora”, que dá ao mito “novas escritas e pertinência”. Sob esse aspecto, podemos dizer que não se trata de uma única Penélope que espera um único Ulisses, não se trata de uma guerra de Tróia. São diversas as Penélopes porque são diversos os contextos, os conflitos. São diversos os leitores.

Uma comparação das diferenças presentes em textos que “retomam” mitos gregos, associada a uma análise discursiva desses mesmos textos, é a proposta de Ute Heidmann (2008) em estudo desenvolvido acerca dos mitos de Medeia e Orfeu. A comparação diferencial e discursiva dos mitos gregos chama-nos a atenção para duas

práticas fundamentais e indissociáveis em sua proposta: a diferenciação e o discurso. Nesse sentido, noções particulares à análise do discurso como as de texto, discurso, co-texto entre outras se revelam importantes no processo de (re)escrita de um

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obra foi produzida, mas também indicam práticas sociais pertencentes à comunidade na qual esse autor está inserido.

Segundo Heidmann, “se escolhemos a opção diferenciação, comprometemo-nos em construir um eixo de comparação suficientemente pertinente e complexo para considerar ao mesmo tempo o traço comum percebido e as diferenças fundamentais dos fenômenos a serem comparados” (2003, p. 4). Ao considerar a importância da análise do discurso em seu estudo comparativo, a autora afirma que

Em vez de comparar os textos de um lado e os contextos do outro, somos levados a comparar as formas pelas quais os textos estabelecem relações com seus contextos discursivos e socioculturais respectivos. Trata-se então de comparar os textos com relação ao que se pode chamar de suas dinâmicas discursivas. A comparação de suas dinâmicas discursivas respectivas permite extrair dos dois textos efeitos que escapam aos estudos tradicionais focalizados principalmente na ocorrência e na comparação dos motivos (HEIDMANN, 2003, p. 7).

Dessa forma, uma análise comparativa de textos que retomam mitos clássicos não é, pura e simplesmente, a identificação de traços que os aproximam, mas a identificação das suas diferenças fundamentais apesar de seus traços comuns. Se ambos os contos intitulam-se “Penélope”, em nada somos obrigados a nos determos nos aspectos semelhantes.

Se a personagem de João do Rio é uma generala e mora no charmoso bairro de Botafogo no Rio de Janeiro do início do século XX; ou se em Dalton Trevisan, é uma idosa e mora em Curitiba com o seu marido, parece-nos mais interessante, do ponto de vista heurístico, identificar em tais textos suas diferenças em relação à forma como eles reconfiguram essas “velhas histórias” e constroem sentidos pertinentes a nossa época.

Em trabalhos recentes - vários deles em colaboração com Jean-Michel Adam -, Ute Heidmann, ao estudar a reescrita dos mitos gregos, propõe uma análise mais atenta no que concerne às formas de inserção dessas narrativas em sistemas discursivos próprios às culturas de seus enunciadores. Essa abordagem nos permite analisar as diversas formas – culturalmente, historicamente e linguisticamente diversificadas – de (re)escrever os mitos. Segundo a autora,

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esse traço para constituir universais. É perfeitamente possível imaginar outro procedimento: aquele que consiste em reconhecer que, apesar do traço comum, percebido em primeiro lugar, os fenômenos ou textos a serem comparados são fundamentalmente diferentes. Trata-se, então, de se perguntar em que eles são diferentes com relação ao traço comum observado. Proponho chamar essa comparação de diferencial (2003, p.50).

O objeto do nosso estudo trata, portanto, das Penélopes propostas por dois autores brasileiros, nascidos em épocas e cidades diferentes, que se valem de um traço comum ao mito clássico para criar personagens totalmente diferentes e que, segundo o próprio João do Rio, anseiam “encontrar um dia o espelho revelador” (1919, p.10).

Ao considerar os aspectos históricos, culturais e lingüísticos presentes nessas narrativas que (re)escrevem o mito clássico, pressupomos, assim como Heidmann, a interdisciplinaridade nas ciências humanas e a indispensável contribuição dos estudos lingüísticos para a análise do texto literário.

Nossa pesquisa firma-se, portanto, em dois pilares: proceder ao estudo desse caráter dinâmico de escrita e (re)escrita do mito tendo como suporte teórico a análise comparativo-diferencial e discursiva proposta por Ute Heidmann e; em um segundo

momento, observar como elementos próprios à análise do discurso, tal como concebe Dominique Maingueneau (2006), contribuem para construir em cada personagem a espera que tornou célebre a rainha de Ítaca.

Assim, durante a seleção do corpus desta pesquisa, partimos da leitura de Homero e da personagem retratada na Ilíada e na Odisséia, primeira menção ao mito e de dois contos homônimos: Penélope (1919) do escritor carioca João do Rio e, Penélope (1959), do autor curitibano Dalton Trevisan.

Partimos, portanto, de um traço comum presente em cada texto: a figura de Penélope, no título, no corpo da narrativa ou ainda em traços de caráter das personagens, para observarmos em que essas mulheres diferem, uma da outra, de forma a se tornarem verdadeiros espelhos da sociedade à qual pertencem.

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Dessa forma, nossa proposta justifica-se pela relevância do tema para a abordagem do mito na perspectiva do universo feminino e, dentro desse universo, pelas relações temporais, sempre vistas na perspectiva dos feitos de Ulisses e que aqui pretendemos desenvolver a partir do conceito de espera e de toda atividade que, paradoxalmente, ele pode sugerir. Assim como Adam e Heidmann, percebemos a importância da relação entre lingüística e literatura nas pesquisas atuais em estudos da linguagem. Uma análise da personagem Penélope e de suas reinterpretações ao longo dos anos na literatura não é importante apenas pelo fato de ela ser mulher, esposa, mãe e “modelo” para muitas outras mulheres, fictícias ou não até hoje. Ela justifica-se também pela ausência de um estudo comparativo-diferencial da reconfiguração desse mito clássico em relação aos dois contos constituintes do corpus.

No que concerne ao estudo da (re)escrita do mito grego a partir da Análise Textual dos Discursos desenvolvida por Dominique Maingueneau (2004) e da Análise comparativo-diferencial discursiva proposta por Ute Heidmann (2008), apenas a própria Heidmann o realizou. Analisando, no entanto, o processo de reconfiguração nos mitos de Medeia e Orfeu2, elemento motivador da nossa pesquisa.

No que diz respeito às obras dos dois autores, as pesquisas concentram-se até hoje no caráter urbano-sociológico de algumas crônicas do autor e sua relação com a cidade do Rio de Janeiro, no caso de João do Rio.

Quanto às pesquisas relacionadas ao autor curitibano, bem mais numerosas do que as que foram dedicadas a João do Rio, ainda estão muito centradas nas questões de gênero e na representação da mulher nos seus contos.

Nossa proposta revela-se, do ponto de vista heurístico, bastante produtiva, uma vez que une dois autores genuinamente brasileiros e completamente identificados com as cidades em que nasceram, a ponto de escolherem essas mesmas cidades como cenário para as narrativas de seus personagens. Assim como Ítaca é um espaço importante na narrativa mítica, uma vez que a volta para casa e para a família funciona como motor de todas as aventuras de Ulisses, as cidades de Curitiba e do Rio de Janeiro são cenários de relevante valor significativo, pois indicam a profunda relação existente entre os autores e suas respectivas cidades, aspecto que não pode ser desconsiderado em uma abordagem comparativo-diferencial.

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Como suporte teórico para nosso estudo sobre a espera desenvolvida por cada (re)escrita do mito, compõem nossa bibliografia: Tempo e narrativa (2006) de Paul

Ricoeur, O tempo na narrativa (1988), de Benedito Nunes e O tempo na literatura (1976), de Hans Meyerhoff.

Nosso trabalho parte, portanto, da concepção de que a (re)escrita de um mito ou o simples fato de um escritor lançar mão de alguma característica dele, como o faz Dalton Trevisan em seu conto, por exemplo, obriga-nos a atentar para elementos não apenas do texto, mas também exteriores a ele, tais como: enunciado, enunciação, co-texto, cena discursiva.

Lançando mão dos procedimentos da análise do discurso, entendemos, assim como Adam e Heidmann (2011), que elementos paratextuais, como dedicatórias, notas e preâmbulos podem interferir significativamente no processo de (re)escrita do texto. Ainda como Adam e Heidmann, partimos da compreensão de análise textual de Dominique Maingueneau, segundo a qual, obras que parecem muito diferentes podem revelar-se próximas e outras que se mostram parecidas, podem divergir consideravelmente.

É nessa nova perspectiva de análise, em que se relacionam o comparatismo e a análise do discurso como meio de interpretação do texto literário, e a que Ute Heidmann chama “comparação diferencial”, que nos propomos analisar nos capítulos que seguem a (re)construção do mito de Penélope.

Dessa forma, no primeiro capítulo, intitulado Penélope, Penélopes, buscamos realizar um breve levantamento acerca das pesquisas realizadas a partir do mito da esposa de Ulisses, bem como daquelas relacionadas aos autores dos contos sobre os quais nos debruçamos. Ainda no primeiro capítulo, abordaremos a comparação diferencial como método comparativo, principalmente no que diz respeito aos conceitos de inscrição genérica e dialogismo intratextual, bem como as modalidades de enunciação nas quais essas narrativas estão inseridas.

No segundo e terceiro capítulos, dedicamo-nos à análise dos dois contos constituintes do corpus dessa pesquisa. Dessa forma, Urbi et orbi e Penélope em Curitiba tratam, respectivamente, das narrativas de João do Rio e Dalton Trevisan.

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19 1 PENÉLOPE, PENÉLOPES

Contar uma história é sempre contá-la de novo; e atribuir, à primeira experiência de leitura, um pouco de nós e do novo ouvinte e assim, a qualquer momento, lá estamos nós, como detentores de um direito de contar, à nossa maneira, uma velha história que se renovará cada vez que a ela recorrermos.

Mais do que povoar o imaginário coletivo, o mito clássico atualiza as “velhas histórias” gregas, na medida em que é apreendido por uma sociedade nova.

O ato de (re)contar o mito poderia ser concebido com um esforço para contá-lo melhor, e nesse esforço,atualizá-lo e adaptá-lo a essa sociedade.

O recurso dos muitos escritores modernos aos mitos gregos na composição de suas obras atrai o estudioso de literatura não apenas pelo seu caráter clássico, mas pela sua capacidade de interagir em cada contexto em que ressurge. Mas não é somente essa capacidade de (des)construção desempenhada pelo mito que precisa ser investigada; a função exercida por esse mesmo mito no momento em que é “transposto” e “reconfigurado” numa dada sociedade deve ser considerada como elemento fundamental de qualquer estudo literário que o tenha como objeto.

Assim como nos casos de Édipo e de Orfeu, mitos clássicos que tiveram suas histórias recontadas em outras linguagens, além da literária, incluindo aqui os estudos teóricos, o mito de Penélope também foi – e ainda é - objeto de grande interesse de artistas e estudiosos.A história da rainha tecelã que se esquiva dos pretendentes enquanto pranteia o marido desaparecido foi tema de diversos livros de análise literária e sociológica, entre outros. Um exemplo é a pesquisa Penélope y el feminismo: la reinterpretación de un mito realizada por Perez Miranda (2007), que investiga uma

suposta ordem matriarcal, anterior à patriarcal, através de mitos influentes como os de Penélope e Jocasta.

Estudos acerca das inúmeras relações de poder e de hierarquia dentro de uma sociedade, analisadas a partir da figura do mito, seja ele clássico – em sua primeira referência na literatura –, seja reconfigurado, reescrito, “transportado” para outra sociedade, como ocorre com o mito de Penélope na ficção A Odisséia de Penélope: o mito de Penélope e Odisseu, de Margaret Atwood (2005), tomam como base o seu

significado “universal” para discutir questões particulares.

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e em sua atividade de tecelã, evidencia como o fazer artístico da mulher é, metaforicamente, uma forma de escritura, “numa íntima associação entre a agulha e a pena, o fiar e o escrever” (CAMPELLO, 2008, p. 1).

Segundo a autora, “todos os mitos que envolvem a tecelã ou a fiandeira demonstram que o poder recai justamente no fato de a mulher lidar com o fio e, por meio de sua ação, determinar o destino da humanidade” (CAMPELLO, 2008, p. 1). A atividade no tear e a sua influência nas ações humanas não foi exclusividade de Penélope. No Canto IV da Odisséia, ao ser consultado por Ulisses sobre seu retorno ao lar, Proteu ressalta a necessidade de que sejam feitas oferendas aos deuses, do contrário a Moira não permitiria seu regresso:

Escapa à tua moira retornar ao lar

em solo ancestre, reabraçar amigos, antes que te dirijas novamente ao rio do Egito, cuja nascente é Zeus, e sacras hecatombes faças aos numes, donos da morada urânica. (HOMERO, canto IV, v. 475-479)

A Moira3, designada no singular na mitologia grega, era identificada como sendo o Destino, cujas leis se impunham sobre homens e deuses; no plural, era representada pelas três lúgubres irmãs tecelãs filhas de Nix, deusa da noite. Era na lida com o tear que Clótos, Laquésis e Átropos se ocupavam respectivamente de fabricar, tecer e cortar o que seria o fio da vida.

É também um novelo de lã um dos presentes de Ariadne, filha do rei Minos e princesa de Creta, ofertados ao herói grego Teseu. Na história do mito, junto com uma espada, o novelo é ofertado a Teseu quando este enfrenta o Minotauro. Para não se perder no labirinto em que vivia o Minotauro, Ariadne segura uma das pontas do fio enquanto Teseu conduz a outra, façanha que lhe permite encontrar o caminho de volta do labirinto. Daí o termo “fio de Ariadne” ter se tornado célebre.

Assim como as Moiras e Ariadne, Penélope interfere, por meio de sua atividade no tear, nas decisões de uma sociedade patriarcal, na medida em que se esquiva dos

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pretendentes, retardando seu casamento por três anos, quando é descoberta por uma de suas criadas.

Outro aspecto influente e bastante explorado em estudos teóricos do mito de Penélope é o ideal feminino de mulher e esposa que cristalizou a personagem. Trabalhos como o de Denise de Carvalho Dumith, O mito de Penélope e sua retomada na literatura brasileira: Clarice Lispector e Nélida Piñon(2012) que observa como o

imaginário penelopeano influencia a sociedade brasileira do início do século XX, além de se atualizar por meio das narrativas de Clarice e Piñon, são exemplos de pesquisas que apreendem o mito como resultado da ação de uma sociedade que o reconfigura.

A capacidade de reatualização que investe o mito faz com que diversos textos possam incorporar essas velhas histórias por meio de suportes também distintos, dessa forma, recontar um mito clássico adaptando-o para um outro gênero (ou uma outra linguagem artística) faz com que esse mito perca muitas características particulares ao seu gênero de origem ou ganhe outras características próprias do novo gênero ou da nova configuração sócio-discursiva em que se insere.

É o caso do mito de Édipo, por exemplo, cuja história é contada na trilogia de Sófocles. Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colono e foi transposta por Dias Gomes para a telenovela Mandala produzida pela Rede Globo em 1987, com sérias alterações exigidas pelo público brasileiro, ocasionando até mesmo a saída do autor do projeto.

Um outro exemplo, no cinema nacional, é o do mito de Orfeu que foi por duas vezes retratado em cenário brasileiro: a primeira, Orfeu Negro (1959), produção ítalo-franco-brasileira dirigida por Marcel Camus e a segunda, quatro décadas mais tarde, intitulada Orfeu (1999) e dirigida por Cacá Diegues, ambas baseadas na peça teatral Orfeu da Conceição (1954), de Vinícius de Moraes.

No universo do conto, gênero escolhido para nossa pesquisa, dois autores brasileiros optaram por uma “(re)escrita” do mito de Penélope: João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, nascido no Rio de Janeiro do fim do século XIX, então capital do império; e Dalton Trevisan, famoso por suas produções no universo da crônica e do conto, além de sua opção por ambientá-las, na maioria das vezes, na sua cidade natal, a capital paranaense, Curitiba.

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Dalton Trevisan em seu livro de estreia Novelas nada exemplares (1959), traz-nos o conto também intitulado Penélope.

Apesar de intitular-se Penélope, o conto de Paulo Barreto nos conta a história da cobiçada e rica viúva Alda Guimarães que vive, agora só, no Rio de Janeiro do início do século XX e se apaixona por um simples vendedor de véus de idade bem inferior à sua.

Na narrativa de Dalton Trevisan, deparamo-nos com um casal de velhos indicados como “o marido” e “a mulher” que, após a perda dos filhos, muda-se para Curitiba e não mantém relações sociais com vizinhos ou amigos. A aparente felicidade tem fim quando o casal começa a receber cartas anônimas com as palavras “corno manso” recortadas de letras de jornal. Uma noite, enquanto observa a mulher tricotar uma toalhinha para a mesa, o marido lembra-se do mito de Penélope e questiona uma possível traição por parte da filha de Icário.

A escolha, por parte dos dois autores brasileiros, do nome “Penélope” reforçada pela solidão e fidelidade que vive a personagem de João do Rio, ou ainda, a traição não confirmada da mulher em Dalton Trevisan, bem como o hábito desta de tecer, parece-nos ser o traço comum entre elas e o mito clássico que, apesar de não significá-las em sua totalidade, insinua em uma, a presença das demais.

Aproximar tais textos é, pois, admitir sua relação, mas não sua dependência. Uma leitura do conto de João do Rio é suficiente para percebermos que as diferenças são tão ressaltadas no texto que, ao final dele, temos a sensação de que o mito de Penélope perdeu-se em meio a uma narrativa protagonizada por outra mulher completamente inserida no Rio de Janeiro do escritor carioca.

Essa mulher se chama Alda Guimarães e pertence à alta sociedade carioca do início do século XX, viúva de um casamento sem amor e que, em um belo dia, apaixona-se perdidamente por um rapaz mais jovem e de classe inferior à sua, seduzindo-o a ponto de uma semana depois, mudar-se com ele para a Europa.

Diante de tantas diferenças, não nos parece possível, senão a partir de uma análise temática ou histórica, atribuir a Alda o significado do mito em sua forma clássica. É, portanto, a diferença o nosso viés. É o confronto de Penélopes essencialmente diferentes, dado o próprio contexto de produção, sem estabelecimento de hierarquia entre elas, o nosso ponto de partida.

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Associar elementos próprios à análise do discurso ao interpretar a (re)escrita de um mito clássico em uma determinada sociedade é reconhecer a importância de elementos que embora exteriores ao texto, influenciam decisivamente na sua interpretação.

Dessa forma, não consideramos apenas o que está no texto, mas também o seu co-texto. Parece-nos interessante investigar como dois autores brasileiros profundamente identificados com suas cidades de origem (re)contam o mito clássico, agora em solo brasileiro.

Nesse sentido, uma análise comparativa e diferencial do “discurso” desses autores revela-se fundamental; mais que investigar o que é dito, deve-se investigar a forma como cada autor diz, ou seja, como cada um deles instaura sua narrativa em um contexto específico e que obedece a uma sociedade discursiva também específica.

A inexistência de estudos que relacionem as duas (re)escritas do mito clássico realizadas por João do Rio e Dalton Trevisan, bem como a forma como cada autor reconfigura a espera vivenciada por cada personagem justificam nossa investigação.

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24 1.1A dialética do espelho: o dândi e seus reflexos

Em 1978, Carmen Lúcia Tindó Secco publicou o livro Morte e prazer em João do Rio, resultado de sua dissertação de mestrado no qual analisa a relação de morte x

prazer no espaço ficcional de Dentro da noite (1910).

Ainda na introdução, Secco atenta para o ostracismo que ameaçava a obra do autor apenas cinco décadas após a sua morte, além de ressaltar o “pouco material encontrado em bibliotecas”, referência ao fato de, quando da sua pesquisa, ter encontrado apenas 21 livros - de um total de 25 - do autor na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

A autora assinala ainda a raridade com que estudos críticos sobre a obra de João do Rio eram desenvolvidos e, dos poucos que se tinha notícia, a grande maioria ou se prendia ao biografismo ou ao psicologismo. Para ilustrar, cita os trabalhos de Inaldo Neves Manta (A arte e a neurose de João do Rio, 1947, e a A individualidade e a obra mental de João do Rio em face da psiquiatria, 1960), aos quais não tivemos acesso

quando do desenvolvimento desta pesquisa.

Quase uma década depois, Raúl Antelo propôs um novo olhar sobre a obra do autor carioca: o dandismo4 e a escrita ficcional de João do Rio.

João do Rio, o dândi e a especulação (1989) analisa o que Antelo chama de

“gosto pelo disfarce” ao qual se dedica o escritor carioca e, como seu comportamento influencia na composição da sua obra. Silviano Santiago, que prefacia Antelo, ressalta o uso constante da prosolepsia na obra ficcional de João do Rio, principalmente em suas crônicas:

[...] a escrita ficcional de João do Rio vai se valer de uma figura de retórica que tudo engloba: a prosopolepsia. Explica-nos Raúl: ‘o desvio da prosopolepsia reside em considerar a máscara e não o sujeito, a persona e não a pessoa, deixando-se enganar pela aparência de superfície, sem levar em conta a substância mais íntima dos

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fenômenos’. ‘Recusado pela sociedade como um marginal, condenado a viver e morrer preso ao espelho, o dândi se constrói uno enquanto

personagem’(SANTIAGO apud ANTELO, 1989, p. 117).

O “gosto pelo disfarce”, a figura do dândi, normalmente atribuída ao autor, dá-se possivelmente pelo seu gosto refinado, sua paixão pelos requintados e bem frequentados cafés cariocas da época, tais como o Café do Rio e o Café Paris, ou ainda pela forma caprichosa como se vestia, forma essa ressaltada por Graciliano Ramos em Linhas tortas (1962): “Paulo Barreto, cronista admirável, tradutor de Oscar Wilde, redator da

Gazeta de Notícias, defendia Portugal, cortava os cabelos à escovinha, para evitar

possíveis indiscrições raciais, e era membro da Academia Brasileira de Letras”.

Apesar dos inúmeros estereótipos a ele atribuídos, e a freqüência ainda maior com que estes foram considerados motor de suas obras, João Paulo Alberto Coelho Barreto ou simplesmente Paulo Barreto e, mais tarde, João do Rio, pseudônimo com o qual assinará todos os seus livros e obterá fama, parece nunca os ter desafiado.

Aos quinze anos, ingressa na vida literária como repórter investigativo, passa a escrever contos e crônicas além de traduzir várias obras de Oscar Wilde cujo panteísmo e neorromantismo influenciariam o autor nos primeiros anos de sua produção literária.

Mas, apesar do intenso trabalho nas letras, no Rio de Janeiro do início do século XX, o estereótipo do intelectual foi esquecido frente aos do negro, do gordo e do homossexual. Persuadido de figurar a era do exasperante artificialismo e da constante ruptura de valores, é na figura do dândi que Paulo Barreto, muitas vezes sob pseudônimos, busca sua realização poética.

É na relação entre o ser e o parecer-ser que João do Rio compõe sua obra. Dessa forma, uma análise dos textos de João do Rio na qual se considere sua condição social, ou seja, sua condição de sujeito inserido em uma sociedade determinada com valores e costumes particulares deve levar em conta seu caráter de dândi e ainda como este último, reflexo deformado do autor, constrói seu texto.

A relação entre o homem, sua imagem especular e as construções de significado decorrentes dessa relação é tema de um curioso ensaio de Umberto Eco.

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por exemplo, de nos tornar mais gordos ou maiores do que realmente somos: “Se não sabemos nem que é espelho, nem que é deformante, então nos encontramos numa situação de engano perceptivo normal” (1985, p. 27).

No entanto, essa alteração da imagem refletida pelo espelho parece ser usada por João do Rio em favor próprio. Ao se prender na imagem, naquilo que o espelho reflete, o autor contribui para a ilusão criada pelo espelho, ele o “ajuda a mentir” (p.27).

É na valorização da máscara, do “parecer-ser” que João do Rio desenvolve a sua escrita repleta de adornos estéticos. Essa observação é feita a partir de uma aguda análise dos contos “O homem de cabeça de papelão” e “O bebê de tartalana rosa”. A figura do dândi, central na vida e na obra de João do Rio permanece à margem das análises de cunho literário, desde o trabalho de Raúl Antelo até os dias de hoje.

A figura do dândi e a própria noção de dandismo associada a questões como teatralidade e performatividade já foram tema de análise em estudos teóricos, contudo ligados ao teatro, e não à literatura.

Acerca dos estudos literários suscitados pelos livros do autor, verificamos que muito da sua obra, em especial, suas crônicas, assim como na década de 1970, são analisadas sob uma ótica historicista ou sociológica e que, quando não tratam do império decadente que contextualizava a sua obra, optam por uma compreensão desta como reflexo da sociedade em que se insere ou ainda por uma análise do caráter jornalístico dos textos do autor.

Em A mulher e os espelhos (1919), a figura do dândi decadentista que brinda ao ócio e ao prazer é compreendida, segundo Raúl Antelo, como uma “poderosa denegação da moral vigente”. Pois não haveria “nada mais inútil que a psicologia das mulheres”.

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27 1.2 Dalton Trevisan nos estudos teóricos

O conto é sempre melhor que o contista Dalton Trevisan

Se João do Rio parece esquecido pelos estudos críticos em literatura, o mesmo não se deu com Dalton Trevisan; célebre por suas crônicas e pelo isolamento a que se propõe ao se negar a dar entrevistas ou depoimentos acerca de suas obras além de não permitir ser fotografado.

A única entrevista consentida pelo autor de Novelas nada exemplares foi realizada pelo então jornalista e amigo do autor Mussa José de Assis para a coluna Suplemento literário do jornal O estado de S. Paulo e data de agosto de 1972. Mesmo assim, ainda

no início, é Trevisan que pergunta: “Por que, em lugar da entrevista, vocês não publicam um conto meu?”.

Daí por diante, a entrevista se desenvolve mais como a resenha de uma conversa entre o jornalista e o escritor (na qual Mussa insere em seu texto comentários de Dalton Trevisan), que como entrevista em si, ou seja, sequência de perguntas e respostas.

O texto, disponível para leitura no site do jornal paulista traz, dentre as poucas opiniões do autor sobre a sua obra, três das quais ele não só parece ter conservado até hoje, mas também apurado nos textos que republicou: “Não tenho nada a dizer fora de meus livros. O autor não vale o personagem” e acrescenta: “Quem quiser saber o que eu penso, que leia o que escrevo. Garanto que na minha obra estão as respostas para todas as perguntas. E as que não existirem, eu não as darei”.

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28 A esse respeito, Trevisan afirma: “Para escrever o menor dos contos, a vida inteira é curta. Nunca termino uma história”. A concisão nas narrativas de Trevisan parece dizer que, em literatura, “o menos é mais” e o seu trabalho de reescrita, que sempre o faz desconsiderar as edições anteriores, torna-o paradoxalmente um incansável (re)contador de uma história nova. O autor que se tornou célebre por suas Novelas, já em 1972 afirmava ser o gênero conto o caminho que percorreria: “Meu caminho será do conto para o soneto e do soneto para o haicai” em resposta à convenção, segundo o próprio autor, de que depois do conto, o escritor deve escrever novelas e romances.

Talvez por isso, seu livro de estreia, Novelas nada exemplares (1959), mais que estabelecer uma relação intertextual com o clássico Novelas Exemplares de Cervantes, reforce o gosto de Trevisan para este gênero.

No entanto, quando da publicação do volume, a referência estabelecida no título, pelo autor curitibano, foi alvo de uma crítica severa de Otto Maria Carpeaux (1960), que em um ensaio intitulado Pretensão sem surpresa que, mais que demonstrar a inadequação das narrativas de Trevisan ao gênero novela “Várias só têm quatro páginas; a mais comprida, 14 páginas. Não correspondem, portanto, ao conceito usual da ‘novela’ como conto longo ou romance breve”, ressalta o que parece ser aspecto comum entre as narrativas do volume:

A matéria do senhor Dalton Trevisan é a vida de gente primitiva: crianças, adolescentes. Pequenos empregados, prostitutas, criminosos, idiotas, loucos. Seriam ‘nada exemplares’? Não. São exemplos perfeitos daquele gênero ‘ennuyeux’. Caracterizam-se pela ausência total de humor” (CARPEAUX, 1960, p. 250-251).

Carpeaux parece ter razão; e a tem exatamente por tê-la buscado nas narrativas para as quais direciona sua crítica:

“É este o lado positivo da novelística do sr. Dalton Trevisan: é observador atento dos pormenores da realidade. Sabe imitar a fala da gente primitiva. Talvez sua verdadeira vocação seja a de cronista do cotidiano; e o cotidiano nem sempre é muito limpo” (CARPEAUX, 1960, p. 252-253).

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mesquinhez humana. Os personagens de Trevisan podem, como ele mesmo o diz, ser encontrados em qualquer esquina de Curitiba ou de qualquer outra cidade; pois nada têm de extraordinário, nenhum feito heróico, nenhuma reflexão relevante acerca do comportamento humano ou qualquer outro tema. Ao invés disso, o retrato cotidiano do homem moderno, cuja eterna (re)produção, (re)escrita, faz com que o escritor - tal como fotógrafo que ajusta a lente para melhor captar a imagem -sempre ajuste o texto, para melhor captar o homem, o vazio homem moderno.

A compreensão deste processo de reescrita compreendido como espaço fotográfico e até mesmo pictórico já foi tema de pesquisa embora não seja a temática mais preponderante nos estudos teóricos sobre a obra do autor.

A violência e a crueldade que permeiam seus contos, além da total ausência de humor, como nas palavras de Carpeaux, ainda é o fio condutor de muitos estudos críticos dedicados à sua obra. Suas narrativas, sempre curtas e “fotográficas” de relações sociais permeadas por sentimentos como o medo e a agressividade, foram a base para uma pretensa “poética da violência”, proposta em tese recente de doutoramento na UFMG5.

Como podemos observar, as narrativas de Trevisan, principalmente as que constituem o volume Novelas, parecem mais uma vez falar pelo autor. Famoso por sua reclusão, Dalton afirmou há quarenta anos, quando da sua entrevista a Mussa, participar de seu tempo através de seus contos, pois, segundo ele: “o conto é sempre melhor que o contista” e acrescenta: “Posso escrever um conto sobre os buracos da Lua. E se eu for um bom escritor, qualquer pessoa saberá onde eu moro, qual é a minha metafísica, e qual é a minha posição política”. Resta-nos, portanto, nas páginas que seguem, tentar compreender a metafísica do “vampiro de Curitiba”.

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A tese intitula-se “Repetição, crueldade e trauma: reflexos dos confrontos suburbanos na narrativa de

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30 1.3. Estado da arte

Os dois contos homônimos constituintes do corpus do nosso trabalho - Penélope, de Dalton Trevisan, e Penélope, de João do Rio - foram pouco abordados em estudos críticos. Os estudos que tiveram como base a narrativa do autor curitibano detiveram-se, em sua grande maioria, na análise da paródia da personagem de Homero feita por Trevisan;6 outro viés de análise foi o dos estudos de gênero e a associação da personagem do autor curitibano ao papel da mulher na luta contra a opressão social.

Até o presente momento, encontramos apenas uma análise contrastiva voltada para a reconfiguração do mito clássico na sociedade moderna por meio do personagem do autor paranaense.

No que diz respeito à personagem de João do Rio, Márcio Salgado propõe em artigo intitulado No tapete de Penélope, uma nova concepção da personagem que, constantemente associada à fidelidade, mais seria, de acordo com o autor, o “melhor sinônimo de dissimulação e desejo” (SALGADO, 2008).

Citamos ainda a recente dissertação de mestrado intitulada A importância do corpo feminino nos contos de João do Rio (2007), que analisa as personagens femininas do

autor como personagens sinalizadoras dos tempos modernos que se anunciam no Rio de Janeiro do início do século XX. O referido trabalho analisa as personagens femininas do autor, entre elas, Penélope, e compara suas atitudes com as características e condições das mulheres do século anterior.

Não encontramos, em nossa busca, trabalhos que contemplassem as atividades linguageiras ou inserissem o viés de análise que adotamos como instrumento de pesquisa no estudo da representação do mito. Ao contrário, observamos uma forte presença da análise temática, na qual o mito clássico, ou mesmo reconfigurado, representa mais um protótipo de mulher fiel ou sua representação na sociedade e negligencia aspectos linguageiros que podem revelar-se importantes instrumentos de análise ao compararmos textos literários.

Dessa forma, o elemento motivador do nosso estudo é exatamente o número reduzido de pesquisas acerca da reconfiguração desse mito. Não pretendemos aqui abordar o caráter historicista ou de gênero (homem x mulher), nossa pesquisa está centrada na reconfiguração do mito clássico realizada pelos escritores brasileiros através

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dos seus contos. Buscamos ainda identificar como cada reconfiguração do mito vivencia sua espera, pois acreditamos que o ato de esperar não só tornou célebre o mito clássico, mas também serviu às suas reconfigurações modernas como um elemento importante na construção da cena enunciativa.

Nossa pesquisa nada mais é que uma comparação das diferenças. Às Penélopes, nenhuma hierarquia; estão todas postas lado a lado com seus véus, suas agulhas e seus teares.

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32 1.4 Mutatis mutandis: a comparação diferencial como abordagem metodológica

Ao justificar sua teoria para a análise comparativa dos textos literários em artigo intitulado A comparação diferencial como abordagem literária (2012), Ute Heidmann destaca a definição do verbo “comparar” pelo Dictionnaire historique de la langue française, segundo o qual, “comparar” significa: “aproximar objetos de natureza

diferente para deles extrair elementos de igualdade e examinar os elementos de semelhança e dessemelhança (entre pessoas e coisas)”. Heidmann atenta para o fato de que os objetos que nos propomos comparar são, prioritariamente, “de natureza diferente”, diferença esta que muitas vezes ignoramos em favor dos aspectos comuns às obras comparadas.

Muitos dos estudos comparativos em literatura realizados a partir dos mitos gregos possuem como ponto de partida um traço comum que une as obras e, a partir desse traço, direcionam a pesquisa para a Antropologia, a Sociologia ou outro ramo das ciências humanas que o mito clássico frequentemente investe. Dessa forma, não é difícil encontrar grande número de publicações acerca de papel do mito grego ou sua influência em trabalhos que mais contemplariam as pesquisas no ramo da História, Ciências Sociais ou Artes que os Estudos da Linguagem em si.

No campo da Literatura Comparada, o que se deveria diferenciar – uma vez que o objeto de análise é, fundamentalmente, o texto – acaba por efetuar quando não uma mera aproximação de aspectos comuns às obras, uma velha análise temática ou sociológica que negligencia o texto e as ferramentas que o constituem enquanto produto de uma sociedade, além de deslocar a obra do seu meio de produção, fato esse que reduz fundamentalmente o caráter heurístico da pesquisa em literatura.

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“objeto” e “sujeito” se acham em permanente interação no âmbito de práticas e instituições que, a diversos títulos, se ocupam dos textos. A constituição de “objetos” e de procedimentos de análise varia de acordo com o estatuto dos agentes, bem como dos lugares que estes ocupam na produção e na circulação dos discursos (MAINGUENEAU, 2006, p. 8).

É exatamente essa indissociabilidade que ele reivindica ao propor uma análise da obra literária em que se considerem as condições de sua emergência. Ao situarmos um texto em seu contexto, ou seja, ao considerarmos suas condições de produção e de

recepção, passamos a envolver questões não só de ordem textual, mas também externas ao texto; passa-se,então,a uma análise da ordem do discurso7. Assim, não podemos desenvolver um estudo comparativo em Análise do Discurso se não partirmos da concepção de que cada texto é essencialmente diferente, pois reflete e legitima sua própria condição de enunciação, ou seja, “acontecimento em um tipo de contexto e apreendido na multiplicidade de suas dimensões sociais e psicológicas”(ADAM,1999, p.39 apud CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,2008, p. 169):

Vem daí o papel crucial que deve desempenhar a “cena da enunciação” que não é redutível nem ao texto nem a uma situação de comunicação do exterior que se possa descrever. A instituição discursiva é o movimento pelo qual passam de uma para outra, a fim de se alicerçar mutuamente, a obra e suas condições de enunciação. Esse alicerçar recíproco constitui o motor da atividade literária (MAINGUENEAU, 2006, p. 54).

As noções de enunciação e cena da enunciação são particularmente importantes, sobretudo porque rejeitam a explicação sociológica pura e simples do texto literário. Faz-se o caminho inverso. São o texto e as marcas nele presentes que justificam e indicam o quadro em que o primeiro se insere, a situação de fala que pretende demonstrar no momento em que esta se desenvolve, sua cena.

É esse duplo propósito de se autovalidar na medida em que tenta validar a cena de fala da qual emergiu que nos permite concluir que a emergência de uma obra não é o resultado de um quadro preestabelecido; pelo contrário, muitos elementos de ordem textual ou externos ao próprio texto, podem interferir na composição de uma obra.

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Nesse sentido, três aspectos abordados por Maingueneau são particularmente importantes para o tipo de análise que nos propomos realizar: as modalidades de enunciação, ou seja, a forma como o enunciador apresenta a obra ou ainda qual é a

“cena de fala” que ele constrói para dizer ou fazer dizer; as modalidades de inscrição genérica, a partir das quais podemos observar as diferentes formas de inserção dos

textos em análise nas configurações de gênero praticada na sua comunidade discursiva e ainda, o dialogismo intertextual e interdiscursivo presente em cada obra, que passa a ser concebida mais como uma “resposta” que como uma “imitação” de uma obra anterior.

A compreensão de que o recurso aos mitos gregos é uma prática renovadora, no sentido em que esses novos textos atribuem significados também novos às velhas histórias, nos faz pensar essa dinâmica, segundo Heidmann (2010), como um exercício de “(re)escritura” que dá ao mito efeitos de sentido também novos.Assim sendo, o prefixo “re”deve indicar “que toda configuração textual e genérica se cria a partir de configurações textuais e genéricas já existentes que são reconfiguradas de forma inovadora” (HEIDMANN, 2010, p.03). A comparação diferencial e discursiva, tal como a propõe Ute Heidmann, tem como objeto de análise esse processo de “mise en écriture”, a construção do texto. Ao direcionarmos nossa atenção à forma como se constrói cada obra que recorre ao mito clássico e abandonarmos sua interpretação cristalizada, abrimos novas possibilidades de interpretação que partem não só do texto, mas também de elementos extratextuais, a partir dos quais se criam os efeitos de sentido.

A opção por uma comparação diferencial deve ainda obedecer a outra exigência: a necessidade de que o eixo de comparação seja estabelecido de forma não hierárquica, ou seja, “convém elaborar conceitos e critérios de comparação que não privilegiem nem um nem outro texto ou obra, nem ainda uma ou outra área linguística e cultural da qual eles emanam” (HEIDMANN, 2012, p. 05).

O abandono de uma comparação “universalizante”8

em favor de uma comparação diferencial, segundo Heidmann “permite descobrir, ao contrário, que a escrita literária é fundamentalmente dialógica e que ela tira sua capacidade de criar dos

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efeitos de sentido diferentes e novamente pertinentes de seu diálogo constitutivo com outras criações, línguas e culturas” (2012, p.01). Se considerarmos que o contexto e as práticas discursivas presentes no processo de reescrita do mito clássico são fundamentalmente diferentes de uma cultura para outra, perceberemos que apesar do(s) traço(s) comum(ns) que podem existir entre esse mito clássico e sua reconfiguração moderna são insuficientes para compreender um mito que, deslocado de sua cena enunciativa para outra torna-se, ele mesmo, outro.

A essa reconfiguração não se pode atribuir estereótipos sem que se perca grande parte dos elementos que fazem desse mito clássico uma reescrita moderna, ou seja, o mito reconfigurado por novos acordos sociais, muitas vezes identificáveis no próprio texto, prontos para resignificá-lo.

Ainda segundo Heidmann, “Esses indícios textuais nos informam, de forma mais ou menos explícita, sobre o enunciador, sua forma de (re)configurar a velha história helênica e suas razões de recorrer a ela” (2010, p.02).

Sendo assim, uma comparação diferencial e discursiva justifica-se não só por explorar o processo de diferenciação em detrimento do de universalização, mas também por lançar mão de recursos próprios à Análise Textual do Discurso ao analisar cada obra. Nesse sentido, os conceitos de cena de fala, reconfiguração genérica, reconfiguração intertextual propostos por Maingueneau (2006) são de fundamental importância para o desenvolvimento de uma comparação diferencial dos textos literários.

Ao propor uma análise diferencial do discurso, Heidmann (2012) nos alerta para a importância de se analisar, antes do dito, a forma como este se apresenta.

Examinar a modalidade de enunciação de um texto pressupõe conceber a obra como um evento enunciativo ligado a um contexto de enunciação, no qual o que é dito e a forma como se diz possuem valores equivalentes. Assim, o “dizer” do autor, a forma como ele constrói e apresenta sua fala, revela-se tão significativo quanto a fala em si.

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Considerar o enunciado literário é considerar, portanto, que os elementos paratextuais possuem grande valor significativo na construção de sentido do texto literário. A presença de dedicatórias, prefácios, posfácios, ilustrações, indicam a cena da qual a obra emerge e contribuem para a construção desse “dizer” do autor. Segundo Heidmann, “é nesses espaços que se encontram os indícios da cenografia e das cenas de fala significativas” (2012, p.8).

O segundo critério de análise estabelecido por Heidmann (2012) é o de modalidade de inscrição genérica. No centro das pesquisas em análise do discurso, a

categoria de gênero - não como um elemento exterior à obra, mas como uma de suas condições - tem lugar de destaque, pois indica que as obras devem ser sempre relacionadas ao surgimento de modalidades específicas de enunciação.

Assim, uma obra literária não deve ser compreendida como um reflexo puro e simples de uma sociedade, pois essa obra, em consonância ou desacordo com essa mesma sociedade, procura nada mais que se afirmar enquanto parte integrante de um universo que lhe atribui sentido. Sentido esse, que não obedece a critérios puramente sociológicos ou linguísticos, mas a acordos preestabelecidos que englobam desde usuários até professores, pesquisadores e bibliotecários. De acordo com Maingueneau,

A categoria do gênero do discurso é definida a partir de critérios situacionais; ela designa, na verdade, dispositivos de comunicação sócio-historicamente definidos e que são concebidos habitualmente com a ajuda das metáforas do “contrato”, do “ritual” ou do “jogo” (MAINGUENEAU, 2008, p.234).

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o conceito de ‘reconfiguração genérica’ permite compreender a inscrição de enunciados nos sistemas de gêneros existentes como uma tentativa de flexibilizar as convenções genéricas em vigor e de criar novas convenções, mais bem adaptadas aos contextos socioculturais e discursivos que diferem de uma época e de uma esfera cultural e linguística à outra(HEIDMANN, 2012, p.08).

Nesse caso, o próprio Novelas nada exemplares de Trevisan pode configurar um exemplo dessa “inscrição genérica”. O livro, que não possui prefácio ou posfácio, traz no título uma indicação importante: a menção ao clássico Novelas exemplares, de Miguel de Cervantes, publicado na Espanha do século XVII. Enquanto este reúne 12 novelas e deve seu nome (exemplares) ao fato de serem as primeiras novelas castelhanas escritas ao estilo italiano, ou seja, de caráter didático e moral, o de Trevisan, reúne trinta contos curtos que em nada se assemelham ao gênero novela e menos ainda à obra de Cervantes. A ausência de indicação por parte do autor curitibano acerca do título da obra só reforça a sua aparente (in)diferença em relação à obra de Cervantes, que desde o prólogo, conduz a interpretação do leitor: “Para isto se aplicou meu engenho, leva-me por aqui a minha vocação; eu me considero – e assim o é – o primeiro a novelar em língua castelhana, [...] não são imitadas, nem roubadas; concebeu-as o meu talento, pariu-as a minha pena [...]” (CERVANTES, p.11). O silêncio de Trevisan acerca do título do seu livro de estreia permite que o “nada” por ele acrescido ganhe interpretações que vão desde a ausência do caráter moralizador em seus contos até a sua completa inadequação ao gênero novela, tão em voga na época de Cervantes, e que perdeu espaço no século XX, quando o romance e, principalmente, o conto já figuravam entre os gêneros mais consumidos na sociedade brasileira.

Dalton Trevisan classifica sua obra como novelas e acaba por frustrar o leitor desavisado que espera semelhanças entre ele e Cervantes. A dificuldade, bem conhecida dos estudiosos da literatura, em estabelecer uma estrutura rígida para o gênero conto é, dessa forma, reforçada pelo jogo – por parte do autor que, ao fazer menção a Cervantes, não afasta nem reitera as inscrições genéricas estabelecidas, mas abre uma discussão que pode se revelar interessante no campo da Análise do discurso.

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38 que a obra seja concebida mais como “resposta” que como “imitação” ou “influência” de uma obra anterior.

Nesse sentido, a noção de resposta intertextual permite que cada reescrita do mito seja dotada de efeitos de sentido sempre novos e diferentes que nada têm a dever ao mito clássico em sua forma universal.

Dessa forma, as pesquisas em literatura comparada ganham ao conceber cada reescrita como verdadeiras criações que, na verdade, são. Essa relação intertextual, de acordo com Heidmann,

é muito mais que um indicador de filiação ou de fonte. No diálogo intertextual, um motivo ou tema não é somente retomado ou desenvolvido no sentido indicado pelo texto antigo que ele nada faria além de modular. O novo texto desloca, condensa ou inverte o mais frequente dos motivos e sequências referidas nas obras antigas, criando assim, em resposta aos textos antigos, significações diferentes e novas (HEIDMANN, 2012, p. 10).

Essa prática é comum a autores que se dedicaram, ainda que fortuitamente, a tratar o mito clássico. A referência ao mito, que nos atrai ao primeiro contato, dilui-se no novo texto e nos novos elementos que o compõem. Assim, em João do Rio, a Penélope clássica que imaginamos encontrar desaparece em função de uma personagem ligada a outros hábitos e desejos.

Referências

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