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Boa notícia: a crise não derrubou o país

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GETULIO

janeiro 2009

DEPOIMENTO

PERISCÓPIO

janeiro 2009

GETULIO

11

U

ma catástrofe. Essa é a visão

de boa parte da mídia sobre as conseqüências da crise finan-ceira internacional em rela-ção à economia brasileira. É até difícil ouvir comentários como os da jornalista Miriam Leitão, para ficar num exemplo, e achar sério. Mais pare-ce um misto de pessimismo com pare-certa dose de determinismo. Claro, boas notí-cias não dão ibope. É óbvio: a economia

brasileira será afetada – não crescere-mos em 2009 como em 2008. Mas o Brasil (e sua economia) mudou. Hoje os fundamentos macroeconômicos es-tão sólidos. E a vulnerabilidade externa do país, se comparada com a de uma década atrás, está em outro patamar.

Sim, a economia brasileira se ressen-tirá com o mundo em recessão. Mas não é menos verdade que os países emergen-tes hoje estão em situação diferente. O Brasil tem altas reservas. A dívida ex-terna não é o problema que já foi e a interna está caindo. Existe, sobretudo, consciência fiscal por parte do governo federal e outros níveis do poder – resul-tado do doloroso aprendizado com a Lei de Responsabilidade Fiscal. O governo toma sérias medidas para enfrentar a cri-se. E, se ainda não temos a dimensão de alcance das decisões, elas certamente atenuarão o impacto na economia.

História de uma arquitetura financeira

Analisando cronologicamente, a cri-se atual não tem precedente – exceção feita à dos anos 1930/40, conseqüência do Crash de 1929 e da Segunda Guerra.

Com o término da guerra, o mundo en-trou em ritmo de crescimento acelerado. Esse período se interrompe na metade dos anos 70, após o primeiro choque do petróleo, em 1973, coincidindo com o

final do Governo Medici[1969-74].

O Governo Geisel [1974-79] enfren-tou o desafio com o II Plano Nacional de Desenvolvimento, vigoroso projeto de substituição das importações que ampliou o parque industrial, expandiu as áreas de telecomunicações e petro-química, detonando um processo que, mais tarde, culminaria em nossa auto-suficiência em petróleo. Por incrível que pareça, a ditadura militar brasileira tinha um projeto econômico, ao contrá-rio do que aconteceu com a argentina.

Mas o final daquela década encon-trou os países latino-americanos endivi-dados. O México quebrou em 1982. O Brasil ficou em situação complicada, a inflação chegando a limites nunca atin-gidos. No início do Governo Figueire-do [1979-85] a taxa de crescimento foi negativa, após as históricas médias anu-ais entre 7% e 7,5%. O Brasil recorreu ao FMI e teve de adotar uma série de

medidas recessivas para combater a in-flação – que, mesmo assim, não caiu.

Em 15 de janeiro de 1985 a eleição de um civil interrompeu o ciclo militar: Tancredo Neves presidente. Com sua súbita morte, assume José Sarney. Com ele assistimos ao primeiro plano de combate à inflação, o Plano Cruzado, lançado em 28 de fevereiro de 1986 – e que deu errado. Chamada de “década perdida”, os anos 80 foram marcados pela política neoliberal impulsionada

por Thatcher [1979-90]eReagan

[1981-89] e que resultou no Consenso de Wa-shington, a política oficial do FMI nos anos 90. Apontava, entre outros dogmas, a diminuição da presença do Estado na economia, atacando o welfare state mon-tado após a Segunda Guerra, quando o keynesianismo ganhara força. Afinal, a crise dos anos 30 fora também uma crise da teoria econômica – e assistiu à emer-gência do maior economista do século 20, John Maynard Keynes [1883-46] e a uma nova ordem econômica, em que a intervenção do Estado ganhava força e, com ela, o Estado de Bem-Estar Social.

Agora essa ordem era posta em xeque pelo Consenso de Washington, que de-cretou: a presença do Estado era grande demais. Na era Reagan-Thatcher o mer-cado passou a prevalecer na economia. E ganharam força as posições de outro

O atual colapso da economia mundial pega o Brasil com outro fôlego, pois aprendeu a lição e estabeleceu

controles. Não é um oásis, será afetado, mas seu projeto é sólido

BOA NOTÍCIA:

A CRISE NÃO

DERRUBOU O PAÍS

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economista, Milton Friedman [1912-2006], da Escola de Chicago. Thatcher, por exemplo, parte para um acentuado processo de privatização. Nos EUA o FED (banco central americano) passa às mãos de um entusiasta desse proces-so, o economista Alan Greenspan. E com isso uma nova arquitetura finan-ceira estava sendo montada.

Entre 1986 e 1994 vivemos anos conturbados pelas baixas taxas de cres-cimento, sucessivos planos de combate à inflação, mudanças de padrão mone-tário e congelamento de preços. No pri-meiro ano do Governo Collor [1990-92], por exemplo, a taxa de crescimento foi a mais baixa da história do Brasil. Até que, em 1994, foi posto em prática o Plano Real, o mais bem-sucedido plano de es-tabilização que o país já teve – e um dos mais bem-sucedidos do mundo.

O efeito de emitir a moeda do mundo

O Plano Real foi realizado em três fa-ses. A primeira, em setembro de 1993, foi a de ajuste das contas: a inflação foi cor-retamente diagnosticada como resultado do desequilíbrio nas contas públicas. A segunda foi de uma engenharia extre-mamente bem-feita: a URV (Unidade Real de Valor), uma quase moeda com data certa de vida e morte – início em 1º de março, término em 30 de junho de 1994. Teve o papel crucial de interrom-per a inércia inflacionária. Na terceira fase, em 1º de julho, o Real entra como âncora cambial. Por que âncora? Porque âncora estabiliza. E o objetivo era apro-ximar a inflação interna da externa, por isso cambial. E assim se explica a moeda supervalorizada em relação ao dólar.

Seguiu-se uma série de atropelos. Nessa época o México quebrou e, para receber auxílio dos EUA, teve de assinar o Nafta, tratado de livre-comércio. Em 1997, houve a crise dos tigres asiáticos. Em 1998 Rússia. Em 1999, Brasil: a polí-tica econômica implementada foi jogan-do por terra conquistas fundamentais para o sucesso da estabilização, como o

controle do déficit público. A vulnera-bilidade externa de nossa economia au-mentou no período porque a oscilação lá fora provocava oscilações aqui dentro – o nível de reserva era formado por capital especulativo. Ora, choque especulativo é fuga de capitais: ao primeiro sinal de crise, o capital vai embora.

Com Fernando Henrique Cardoso reeleito no primeiro turno para o segun-do mandato, entre o final de novembro e início de janeiro de 1999, o nível de reserva brasileiro caiu de 73 para 29 bi-lhões. A situação se complicou para o país, que, novamente, recorreu ao FMI. Mas mudou o discurso da política eco-nômica: “É fundamental ter equilíbrio fiscal e exportar”, passou a ser o refrão. E a economia foi reorientada nesse sen-tido. Para dar uma idéia, a dívida atingiu quase 700 bilhões de reais – ou dólares, o que na época dava no mesmo.

Com as privatizações, seguindo um dos dogmas do Consenso de Washington, para “diminuir a presença do Estado e so-brar mais dinheiro para aplicar na saúde e na educação”, o governo vendeu o filet mignon das estatais (as teles, as

energéti-cas, a Vale do Rio Doce). Arrecadou 70 bilhões (10% da dívida) – e nada foi apli-cado em saúde ou educação. O dinheiro era usado para pagar dívida. As taxas de crescimento continuavam baixíssimas. Mas a inflação se manteve sob controle. Enquanto isso, a economia ameri-cana “bombava”. No final da década de 1990 houve a entrada das chamadas “pontocom” no mercado de capitais, empresas de tecnologia que atuavam no universo da internet. Criaram um índice específico na bolsa, o Nasdaq. E então, entrando no ano 2000, Geor-ge Walker Bush foi eleito presidente e entraria para a história como um dos piores mandatários dos EUA. Não só ele, mas sua equipe. Ora, a economia americana é bastante singular: há um alto grau de “senhoriagem” – termo da época do feudalismo, quando o senhor cunhava a própria moeda. Os

EUA hoje cunham a moeda do mundo. Em termos relativos, qualquer país que tenha déficit de mesma proporção da economia americana estaria numa crise sem precedentes. Por que o efeito não é o mesmo lá? A resposta é simples: eles emitem a própria moeda.

O sistema financeiro internacio-nal acompanhou o Governo Bush e se apropriou do processo de inovação tecnológica a favor da mobilidade. O sujeito que investe na Bovespa, por exemplo, pode ser o mesmo que horas antes retirou dinheiro da Bolsa de Tó-quio. É a tecnologia da informação. No bojo desse processo, nos EUA ocorreu uma combinação de juros baixos, cré-dito fácil e estímulo da compra da casa própria. Os americanos sempre traba-lharam com hipotecas múltiplas, o grau de endividamento médio das famílias é de 120%. É a cultura do consumo exa-cerbado. O cidadão faz uma hipoteca para comprar uma casa. Quando o filho entra na universidade, faz outra. Troca de carro? Hipoteca. É difícil um ameri-cano não estar pagando hipoteca.

Inicialmente a coqueluche do pro-cesso foi a criação dos “derivativos”, um papel cujo valor deriva de outro. O mercado vai lançando novos produtos, visando alavancar esse sistema. Acon-tece então um boom imobiliário nos EUA, com crédito fácil a juros baixos. Vende-se muita casa para a população de baixa renda (e a questão aqui não é o crédito à população, mas a forma dessa contratação). Em cima desses papéis hi-potecários foram lançados outros papéis. E depois outros que passaram a circular no sistema financeiro mundial. Quan-do o primeiro elo da cadeia se rompeu, ou seja, quando o devedor da hipoteca lá atrás deixou de pagar, ocorreu toda uma reação seqüencial. Por isso não dá para dimensionar o tamanho da crise atual. Não há noção de quantos desses papéis circulam no mundo.

Patifaria? Nossos bancos estão fora

Em 2007 houve um primeiro sinto-ma: algumas hipotecas não foram pagas e o efeito foi sentido. Bush falou: “Os investidores do mercado financeiro fi-zeram o que não deviam”. Os bancos com volume significativo desses papéis começaram a ter problema de solvência. Um ano depois, entre agosto e setembro

de 2008, a notícia vazou para a impren-sa. E o banco de investimentos Lehman Brothers entrou em colapso,

anuncian-do concordata em 15 de setembro. As

primeiras reações mostraram certo grau de pânico. Quando o Lehman Brothers pediu ajuda e o governo americano, numa aposta que considero errada, dei-xou que quebrasse, houve reação em cadeia. A partir de então muitos bancos foram afetados em toda a Europa. Não aconteceu no Brasil. Por quê?

Porque nosso grau de regulação é enorme se comparado com o grau exter-no. Nosso sistema financeiro tem regula-ção forte. Circulou uma frase boa nessa época: “Esta crise mostra que o mercado sem regulação morre de overdose”. Ou seja, sozinho ele se mata. Em nosso caso, o Banco Central desenvolveu sérios me-canismos ao longo dos anos. Com a esta-bilização da moeda, os bancos brasileiros deixaram de obter ganhos fáceis e muitos entraram em crise. Alguns quebraram, como o Excel. O lucro inflacionário mascarava o prejuízo e a incompetên-cia tanto no sistema financeiro quanto no lado real da economia.

A estabilidade econômica é uma con-quista da sociedade brasileira – que não abre mão disso. Moeda estável significa ganho real no poder aquisitivo, renda não corroída pela inflação. As condições do Brasil hoje são distintas de dez anos atrás. Estamos saindo da condição de gigante adormecido para nos tornar uma potên-cia. Temos um grau de regulação acen-tuado. Nossos bancos não participam da “patifaria internacional”, usando uma expressão de Delfim Netto. Eles não têm papéis “podres” – ou “tóxicos”, como são agora chamados, numa referência ao seu poder de contaminação. Portanto, o sistema financeiro nacional não está

tão afetado pela crise. Pontualmente, há empresas afetadas porque se deram mal fazendo procedimentos de proteção para assegurar eventuais perdas em função do câmbio. Mas não os bancos.

Gastar e assegurar investimento

Por tudo isso, não endosso essa visão pessimista em relação à economia bra-sileira para 2009. Certamente não ire-mos repetir o crescimento de 2008, mas daí à recessão há uma baita distância. A crise internacional provoca no Brasil uma crise de crédito tanto do ponto de

vista do setor externo (de quem exporta e importa) como internamente. Ainda estamos vivendo essa situação. O go-verno tomou uma série de medidas e injetou dinheiro na economia. Usando uma expressão popular, “tinha vasilme para vender”. Isso significa que ha-via depósito compulsório alto. Ou seja, é alta a quantia que os bancos têm em depósito junto ao Banco Central. A própria indústria automobilística, que teve crescimento enorme nos últimos anos, começou a fazer promoções, a buscar soluções junto ao Governo Fe-deral e aos estaduais, como maior prazo para recolher tributos, alguma isenção. Essas ações terão efeito atenuador. Es-truturalmente, a economia brasileira está com elevado nível de reserva, me-nor relação PIB/dívida interna e com a inflação dentro da meta.

O Governo Federal tem atuado no mercado de câmbio para evitar um pro-cesso de especulação. A gestão da polí-tica econômica em função da crise está sendo correta. O governo se antecipa e toma atitudes no sentido de projetar o futuro, tentando atenuar os efeitos da crise. Para entrar em recessão, teorica-mente, é preciso haver dois trimestres de crescimento zero ou abaixo de zero. O atual governo tem política industrial definida, tanto na conquista de novos mercados como na diversificação de ex-portação e diminuição de dependência da economia americana. Nosso cresci-mento é bancado pelo mercado interno. Existe uma política industrial construída com o apoio do BNDES, que financia projetos de investimentos. Hoje, se a economia americana vai mal, o baque não é tão grande: o Brasil diminuiu a de-pendência do mercado americano – di-ferentemente do México, que tem quase 82% das exportações voltadas para lá.

O governo pode contribuir na medi-da em que haja esforço significativo no controle dos gastos e, sobretudo, garan-tindo o fluxo de investimento, pelo seu efeito propagador. Os governos mundiais

já entenderam a saída: gastar e assegurar investimentos. A comunidade européia bate na tônica dos investimentos. Nos EUA o discurso do recém-eleito Barack Obama sinaliza geração de empregos e ampliação de investimentos.

Claro, não somos um oásis, mas a nossa vulnerabilidade externa é de ou-tro grau. Com o tempo essas ações do governo irão gerar confiança nos agen-tes econômicos. São medidas elogiadas até pela oposição. A visão pessimista da imprensa, portanto, não tem cabimen-to, não é oportuna. Em economia é fun-damental gerar confiança no ambiente financeiro. Estamos crescendo. Temos o maior programa de alimentação in-fantil do mundo: cerca de 38 milhões de crianças comem diariamente a me-renda escolar. Um programa assistencial criado pela Constituição de 1988, a Apo-sentadoria Rural. O crédito consignado elevou o consumo interno, emprestan-do dinheiro a pessoas historicamente sem crédito. Sem falar na complemen-tação de renda do Bolsa Família, indis-cutível sucesso no país. Segundo análise do professor da FGV do Rio de Janeiro Marcelo Néri, o efeito dessa política é “assustador”, no bom sentido.

Considerando as condições estrutu-rais criadas em nossa economia, retoma-remos o ritmo dentro de algum tempo. Não estamos mais na economia “vôo de galinha”, que cresce um ano e depois cai. Estamos num círculo virtuoso de cresci-mento momentaneamente interrompi-do por essa hecatombe. A mídia pode até não gostar, mas há notícias boas, sim.

Graduado em Administração Pú-blica e mestre em Economia, Fran-cisco Humberto Vignoli é consultor e professor do Departamento de Pla-nejamento e Análise Econômica da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da Fundação Getulio Vargas.

[Depoimento transcrito de entrevis-ta a Carlos Cosentrevis-ta]

Geisel implantou um projeto de substituição

das importações que ampliou o parque

industrial. A ditadura militar brasileira teve

um projeto econômico para o país

O governo tomou uma série de medidas

e injetou dinheiro na economia, pois

“tinha vasilhame para vender”. A política

econômica em função da crise está correta

Referências

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