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Concepção de ser humano subjacente à discussão sobre saúde na psicologia: uma proposta de orientação heideggeriana

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

CURSO DE DOUTORADO EM PSICOLOGIA

Concepção de ser humano subjacente à discussão

sobre saúde na psicologia: uma proposta de orientação

heideggeriana

Marcelo Vial Roehe

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Marcelo Vial Roehe

Concepção de ser humano subjacente à discussão sobre

saúde na psicologia: uma proposta de orientação

heideggeriana

Tese elaborada sob a orientação da Profa. Dra. Elza Dutra e apresentada para a Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Psicologia

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UFRN. Biblioteca Central Zilá Mamede. Catalogação da Publicação na Fonte.

Roehe, Marcelo Vial.

Concepção de ser humano subjacente à discussão sobre saúde na psicologia: uma proposta de orientação heideggeriana/Marcelo Vial Roehe. – Natal, RN, 2015

140f.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em

Psicologia.

Orientadora: Profa. Dra. Elza Dutra.

1. Concepção de homem. 2. Heidegger. 3. Modelo biomédico. 4. Psicologia da saúde. 5. Psicologia fenomenológico-existencial. I. Dutra, Elza. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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Agradecimentos

Meus pais, Rejane Vial Roehe e Nelson Roehe Adriana de Oliveira

CAPES

Cristiano André da Costa Elza Dutra

Jane Conterno Aquino (in memoriam) João Carlos Alchieri

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Sumário

Resumo ...vi

Abstract ...vii

Introdução ...8

1. Uma visão histórica do pensamento sobre saúde ...16

2. Aproximações da psicologia ao problema da saúde ...30

3. Sobre o emprego da Analítica de Heidegger como orientação teórica da tese ...44

4. A Analítica do Dasein ... 49

5. Método ...59

6. Analítica do Dasein e concepção de homem subjacente à discussão sobre saúde em publicações de psicologia...62

6.1 - Saúde e homem como ser-no-mundo ...62

6.2 - Saúde e homem como relação com o próprio ser ...90

7. Considerações Finais ...111

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Resumo

A crítica ao modelo biomédico é um tema recorrente em publicações de psicologia sobre saúde. O modelo é rejeitado devido à sua ênfase (1) na doença (2) como disfunção corporal. A posição presente nos trabalhos de psicologia que tratam do assunto é de que o modelo é reducionista, limitando a saúde a ser ausência de doença. As implicações da abordagem biomédica para o pensamento em saúde são o materialismo (corpóreo) de viés biológico e o mecanicismo fisiológico. Como contraponto à biomedicina e com o objetivo de apresentar uma visão ampliada do fenômeno, os trabalhos de psicologia revisados, conforme o método de leitura de Cervo e Bervian (1983), destacam os aspectos contextuais e o papel do comportamento e do estilo de vida no processo saúde-doença. Nesta discussão, é possível vislumbrar a presença de uma concepção subjacente de homem, reforçada com a referência, em alguns trabalhos, ao pensamento de Descartes como sendo a origem das ideias inspiradoras do modelo biomédico. A argumentação das publicações de psicologia a respeito de saúde destaca características do fenômeno que implicam um modo de conceber o ser humano, a quem a saúde diz respeito. Esta tese desenvolve o entendimento de que a concepção de ser humano elaborada pelo filósofo alemão Martin Heidegger em sua Analítica do Dasein é compatível com as propostas dos trabalhos de psicologia acerca da saúde selecionados. Ou seja, o que as publicações de psicologia discutem a respeito da compreensão da saúde é relativo, de modo subjacente, a uma concepção de homem que possibilita o (novo) olhar sobre o fenômeno. O Dasein heideggeriano é uma visão de ser humano que se coaduna com a posição sobre saúde presente nos trabalhos de psicologia que estabelecem uma discussão a respeito do fenômeno, entendendo-se que a maneira como se concebe um fenômeno humano é coerente, ainda que de modo implícito, com um modo de compreender o homem. A consideração dos aspectos contextuais – como sociedade, ambiente e cultura – na abordagem da saúde remete à questão da relação entre homem e mundo, para a qual Heidegger desenvolveu a noção de ser-no-mundo. A atenção ao papel do comportamento na saúde aponta para a participação da própria pessoa em sua saúde, permitindo que se estabeleça um paralelo com o pensamento heideggeriano sobre a relação que o ser humano tem com seu próprio ser.

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Abstract

A reading method (Cervo & Bervian, 1983) was applied to select psychology publications on health. The rejection of the biomedical model is a recurring theme in these publications. Its point of view is that the model is reductionistic because it emphasizes (1) the disease (2) as a body dysfunction and by consequence health is understood as the absence of disease. The implications of the biomedical model for health are biological materialism and physiological mechanicism. Psychology publications counterpoint to biomedicine is to include attention to life contexts and consider the role of individual behavior and lifestyle in the health-disease process. Those thoughts about the nature of health imply a conception of man, especially when some articles claim that Descartes’ ideas are the ground to biomedicine development. Psychology publications reviewed highlight health characteristics related to a different view of the human mode of being. The thesis presented develops an understanding that Martin Heidegger’s Dasein Analytic is a conception of human being consistent with the selected psychology works’ view of health. It means psychology’s discussion about what is health is based on an implicit approach to the human being, one that allows the rethinking of health. The heideggerian Dasein is a vision of man in tune with the comprehension of health presented in the selected publications. It is understood that the manner a human phenomenon is conceptualized is related even implicitly to a conception of man. To take into account health’s contextual aspects like society, environment, and culture call attention to the man-world relationship to which Heidegger calls being-in-the-world. To highlight the role of behavior on one’s own health makes a point of the relationship man has with her/his own being, which Heidegger calls mineness.

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Introdução

Esta tese é um estudo a respeito da concepção de homem presente em trabalhos de psicologia, selecionados conforme o método de leitura de Cervo e Bervian (1983), que discutem o problema da saúde. A discussão relativa à saúde apresentada nas publicações selecionadas é abordada como indicadora de uma concepção – subjacente – de ser humano. Entende-se que o modo como a saúde é debatida em publicações de psicologia é derivado de um questionamento que, no máximo, se insinua: como é o ser humano, a quem a saúde diz respeito?

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Considera-se que a psicologia, que mantém um debate produtivo e crítico acerca de suas relações teóricas e profissionais com a área da saúde, pode se beneficiar da leitura analítico-existencial, com vistas a dar continuidade à sua compreensão da saúde como um fenômeno não restrito ao campo biomédico. Isto porque a abordagem analítico-existencial se situa no nível do ser humano, ou seja, descreve-o a partir de sua manifestação mediana, ao passo que o modelo biomédico se mostra herdeiro de um entendimento do homem que privilegia a presença material (corpórea) e a biologia.

A biomedicina tende a identificar saúde ou doença avaliando as condições de um corpo-objeto que habita o mundo natural entre outros objetos naturais (Nogueira, 2006). Se o corpo-objeto não apresenta alterações fisiológicas, disfunções ou sintomas, poderá ser considerado saudável, do contrário poderá estar doente e, assim sendo, causas para a doença serão procuradas. São as condições do corpo, como um objeto, que determinam saúde ou doença.

Do ponto de vista das reflexões publicadas nos trabalhos de psicologia sobre saúde selecionados para o estudo, o corpo não é uma unidade em si em meio a outros corpos-objetos naturais. A discussão psicológica, que se opõe ao biologismo e chama a atenção para o contexto social, o comportamento e o estilo de vida, oferece argumentos para que se pense num modo de compreender o homem, o qual propicie que o fenômeno saúde se manifeste nos termos propostos pelos autores psicólogos. Um modo de compreensão do ser humano que não se esgota no corpo, não se define pela materialidade e não é passivo diante da natureza.

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homem, apresentada por Heidegger oferece a amplitude de visão que a psicologia procura, quando critica o reducionismo biomédico.

Na Analítica do Dasein, o homem não se restringe a ser uma unidade orgânica diferenciada (pelo pensamento ou inteligência) em meio à natureza. Além disso, no momento em que Heidegger se propõe a mostrar como o ser humano “acontece”, quais as características deste modo de ser, ele também apresenta uma base a partir da qual podem ser pensados os fenômenos humanos. Em outras palavras: qualquer fenômeno humano é uma possibilidade de manifestação do homem; as possibilidades de manifestação do homem estão dadas em seu modo de ser. Sendo assim, o questionamento a respeito de como é ou como ocorre um fenômeno qualquer, também é, indiretamente, um pensamento relativo a como é o homem.

Quando publicações de psicologia refletem acerca da abordagem à saúde, estão, ainda que implicitamente, pensando sobre um modo de compreender o homem. Pois é preciso que haja algum entendimento – mesmo que não tematizado - quanto ao modo de ser humano, para que se tenha alguma posição a respeito de um fenômeno humano. A própria Política Nacional de Humanização, apresentada pelo Ministério da Saúde (2004), reforça a ideia de que, não apenas uma maneira de realizar a atenção à saúde está em debate, mas também uma visão de homem, uma vez que, a princípio, não é necessário humanizar o que já é humano (Benevides & Passos, 2005; Garcia, Argenta, Sanchez & São Thiago, 2009).

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Nogueira da Silva (2006) observa que o saber médico visa órgãos e tecidos em si, isolados da história pessoal, da cultura e das relações político-sociais. Ou quando Witter (2008) afirma que definir saúde como “ausência de doença” implica colocar o foco da atenção não numa pessoa, mas num “paciente”, cuja “dimensão individual” não é valorizada; ao passo que defini-la nos termos da Organização Mundial da Saúde implica colocar a “pessoa” no centro da atenção. Ou ainda, nas palavras de Benevides e Passos (2005): “o humano não pode ser buscado ali onde se define a maior incidência dos casos ou onde a curva normal atinge a sua cúspide: o homem-normal ou o homem-figura-ideal, metro-padrão que não coincide com nenhuma existência concreta” (p. 391). Tais observações, entre outras menos explícitas, deixam que se acredite que uma visão diminuída de homem sustenta o olhar preponderante para a saúde.

De acordo com Shooter (1975/2012), a relevância da imagem que temos de nossa própria natureza é relativa à capacidade de planejar nosso futuro. A imagem que o homem tem de si mesmo influencia o próprio modo de vida, na medida em que ela é fonte de conhecimento a respeito de quem e o que somos e o que podemos vir a ser. O autor escreve que é a partir de nossa imagem de nós mesmos que decidimos nossos próximos passos, que enfrentamos nossas circunstâncias, ao invés de sermos subjugados por elas.

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exemplo, reprovam a visão fragmentada na saúde, que ignora a totalidade do homem, reduzindo-o à sua patologia. Para os autores, o cuidado em saúde deve se dirigir ao “homem total”. Ademais, a crítica (em geral) é desenvolvida não apenas no plano teórico: ela diz respeito à prática da atenção à saúde, a qual envolve, retomando Weikart (2008), instituições político-sociais, leis e cultura.

O principal estímulo para o desenvolvimento da discussão contemporânea sobre o que é saúde foi a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948. A OMS definiu saúde como “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (World Health Organization, 1948, p.1). Um avanço para a época, esta se tornou a mais conhecida e uma das mais criticadas definições de saúde. A definição da OMS rompeu com a exclusividade biomédica na questão da saúde, uma vez que apresentou as dimensões mental e social no mesmo plano da dimensão física vindo a ser, portanto, a base para o posterior pensamento biopsicossocial na saúde. As críticas a esta definição (que serão mais detalhadas na sequência deste texto) mostram o processo de qualificação do pensamento sobre saúde e a emergência do espaço da psicologia no campo da saúde.

A presença de psicólogos atuando no setor público de saúde no Brasil aumentou consideravelmente a partir do final dos anos 70, em função de transformações sociais, econômicas e profissionais (Carvalho & Yamamoto, 2002; Dimenstein, 1998, 2012; Kind, 2010), além da transformação na própria saúde, cuja compreensão passou a dedicar atenção a determinantes sociais e experiências pessoais (Aragaki, Spink & Bernardes, 2012); o que, por sua vez, estimulou o surgimento e o crescimento da discussão e das publicações relativas à relação entre a Psicologia e a área da saúde.

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biopsicossocial, a atenção aos aspectos contextuais e ao papel do comportamento no processo saúde-doença, assim como a ênfase na promoção de saúde são temas que se sobressaem nas publicações de psicologia revisadas, em oposição à perspectiva biomédica. O destaque que esses temas recebem, como contraponto ao modelo biomédico, revela um entendimento de saúde como um fenômeno relativo a uma visão de homem diferente daquela que sustenta a tradição biomédica.

Tendo em vista: 1- a posição de que a argumentação apresentada numa discussão sobre um fenômeno humano remete a características do modo de ser do homem e 2- que o questionamento a respeito da saúde, apresentado em trabalhos de psicologia, é um exemplo de como concepções de homem, de maneira implícita, participam deste questionamento, o objetivo desta tese é investigar a possibilidade de que o Dasein heideggeriano seja uma concepção de ser humano compatível com a que permanece subjacente à discussão sobre saúde desenvolvida em trabalhos de psicologia. Para isso, vai-se estabelecer um paralelo entre afirmações presentes em publicações de psicologia que discutem o problema da saúde e a concepção de ser humano como Dasein, elaborada por Heidegger. A tese, consequentemente, visa o estudo da saúde - conforme debatida em trabalhos de psicologia – a fim de abordar um entendimento sobre o homem.

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não se reduz ao plano biológico, a saúde – no que tem de especificamente humana – também não deverá ser reduzida ao nível dos “seres vivos” em geral.

A filosofia de Heidegger não é estranha para as áreas da saúde e da psicologia: sua principal obra – Ser e Tempo – tem sido influente no conhecimento psicológico e psiquiátrico desde os anos 40 do século passado, com o pioneiro trabalho do psiquiatra suíço Ludwig Binswanger (Needleman, 1975), que adotou o termo Daseinsanalyse em seus escritos. Outro psiquiatra suíço, Medard Boss, desenvolveu a Daseinsanalyse como abordagem psicoterapêutica, contando com a colaboração do próprio Heidegger (Boss, 1979; Roehe, 2012). Num domínio mais amplo, a Analítica do Dasein é uma das principais referências da psicologia fenomenológico-existencial (Nill & Halling, 1995). Neste século, o pensamento sobre saúde, influenciado por Heidegger, está presente nos trabalhos de autores como Ayres (2004), Nogueira (2007) e Svenaeus (2011).

A sequência da tese está organizada da seguinte maneira:

Uma visão histórica do pensamento sobre saúde revisa publicações que situam no tempo, desde a civilização grega antiga até a entrada da psicologia no campo, o modo como a saúde tem sido considerada no mundo ocidental. Autores de diferentes áreas do conhecimento são citados.

Aproximações da psicologia ao problema da saúde está centrado nas ideias sobre saúde publicadas por psicólogos, de modo a propiciar uma introdução ao modo como a psicologia discute o fenômeno, o qual encerra uma visão subliminar de homem.

Sobre o emprego da Analítica de Heidegger como orientação teórica da tese justifica a leitura da Analítica como uma concepção de homem no nível científico.

A Analítica do Dasein apresenta uma síntese da Analítica Existencial.

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Analítica do Dasein e concepção de homem subjacente à discussão sobre saúde

em publicações de psicologia estabelece o paralelo entre os trabalhos de psicologia revisados e a Analítica de Heidegger, a fim de sustentar que esta é compatível com a concepção de homem – implícita – na reflexão crítica sobre saúde. Divide-se em:

Saúde e homem como ser-no-mundo relaciona a ênfase psicológica nos aspectos contextuais da saúde com a noção de ser-no-mundo;

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1. Uma visão histórica do pensamento sobre saúde

De um ponto de vista histórico, os entendimentos sobre saúde constituem uma trajetória de construções de significações sobre a natureza, as funções e a estrutura do corpo e a respeito dos intercâmbios corpo-espírito e pessoa-ambiente (Backes et al., 2009).

Dolfman (1973b) entende que, historicamente, a palavra “saúde” tem sido usada para expressar a ideia de estado ou condição de bem-estar, entretanto os diversos propósitos, circunstâncias e contextos nos quais ela vem sendo aplicada, lhe conferem ambiguidade. A saúde pode ser um fim em si mesma ou um meio para atingir outros objetivos; pode ser algo a ser recuperado ou uma condição que se deseja manter.

Para Scliar (2007), o conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural. Ou seja: saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá da época, do lugar, da classe social. Dependerá de valores individuais, dependerá de concepções científicas, religiosas, filosóficas. O mesmo, aliás, pode ser dito das doenças.

Conforme Dolfman (1973b), a palavra saúde, em suas origens na língua inglesa (health), ao redor do ano 1000, significava firmeza e totalidade relativas ao funcionamento do corpo. Na língua portuguesa, saúde é derivado do latim salus, que diz respeito a inteiro, intacto, íntegro; salus, por sua vez, se origina do termo grego holos, que significa totalidade (Almeida Filho, 2000). Dolfman (1973b) observa que, a princípio, a palavra tinha um significado positivo, porém, posteriormente, adjetivações como boa, má ou pobre foram eventualmente acrescentadas, dando ao termo uma qualidade variável. Dolfman (1973b) também salienta um significado religioso que a palavra saúde veio a receber, a partir de traduções inglesas da Bíblia entre os séculos XII e XIV, na forma de “salvação”. Esta significação foi bastante divulgada por organizações religiosas do período.

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(2008), Oliveira e Egry (2000), Scliar (2007) e Sevalho (1993) apontam o caráter mágico das primeiras representações de saúde (e doença). Entre os povos sem escrita, a doença era vista como o resultado de influências de entidades sobrenaturais, externas como deuses, demônios ou espíritos malignos mobilizados por um inimigo, contra as quais a vítima pouco ou nada podia fazer. Ou os ataques à saúde eram castigo dos deuses: maldições e/ou punições em forma de doenças. A cura era responsabilidade de indivíduos iniciados: os sacerdotes incas, os xamãs e pajés entre os índios brasileiros; as benzedeiras e os curandeiros na África.

É com o desenvolvimento da civilização grega que se observa o início de especulações racionais a respeito do processo saúde-doença (Mendes, Lewgoy & Silveira, 2008; Scliar, 2007; Sevalho, 1993). Primeiro, ainda no campo mitológico-religioso, os gregos cultuavam Higieia, a saúde (origem do termo Higiene) e Panacea, a cura. O termo pharmakon significava sacrifícios feitos aos deuses em busca de cura. Depois, com a procura

de explicações naturais para o adoecimento, surge o nome de Hipócrates (460-377 a.C.), o futuro Pai da Medicina. Para Bergdolt (1999), Hipócrates foi influenciado por Alcmeão de Crotona (c. 500 a.C.) para quem saúde era a cooperação harmônica entre todas as partes do corpo ou o equilíbrio entre o úmido e o seco, o frio e o quente e o amargo e o doce (Altamirano, 2007).

Scliar (2007) observa a importância de Hipócrates para a transição da concepção mágico-religiosa da Medicina para a racional-naturalista. No texto “A doença sagrada”, Hipócrates afirma: “A doença chamada sagrada não é, em minha opinião, mais divina ou mais sagrada que qualquer outra doença; tem uma causa natural e sua origem supostamente divina reflete a ignorância humana” (Hipócrates citado em Scliar, 2007, p. 32).

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cuidados com o corpo, hábitos alimentares e exercícios físicos, além de uma sintonia com o ambiente natural, do qual o homem era visto como integrante (Altamirano, 2007; Oliveira & Egry, 2000; Sevalho, 1993).

Outro nome referencial é o de Galeno [129-199], médico grego que viveu na Roma antiga (De Frutos & Guerrero, 2011). Com base nos escritos de Hipócrates, Galeno associou temperamentos aos humores dominantes. Para ele, a origem das doenças estava na constituição física do indivíduo ou em hábitos de vida que gerassem desequilíbrio (Scliar, 2007). Galeno propôs a teoria das latitudes da saúde, que se dividiria em: saúde, estado neutro e má saúde. Conforme Galeno “saúde é um estado no qual nós nem sentimos dor, nem temos nossas funções cotidianas prejudicadas” (citado em Nordenfelt, 2007, p.6). Sua obra influenciou a cultura médica durante séculos (Backes et al., 2009; Barros, 2002). Os escritos de Hipócrates e Galeno chegaram e foram seguidos no mundo árabe medieval ficando, desse modo, protegidos da Inquisição Católica (Sevalho, 1993).

Na Europa da Idade Média, a influência do cristianismo determinou a retomada do pensamento religioso como suporte para questões de saúde-doença. A Igreja afirmava uma ligação entre doença e pecado e a cura dependia da fé (Scliar, 2007; Sevalho, 1993). Desse modo, as especulações científico-racionais no campo da medicina foram desencorajadas, como desafio ao poder religioso. Neste período, se destaca a observação e o controle das “seis coisas não naturais”, fatores não garantidos pela natureza que regulariam a saúde: ambiente, exercício, alimentação, sonhos, evacuações e emoções (De Frutos & Guerrero, 2011).

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Bernardes, 2012). Nomes como Paracelso, Bacon, Descartes, Galileu e Newton desenvolveram conhecimentos cuja consequência foi uma nova maneira de conceber e estudar o homem e a natureza: o sujeito racional não era mais apenas um integrante observador da natureza; podia, agora, munido de métodos e instrumentos, intervir, dissecar e transformar a si e ao ambiente (Albuquerque & Oliveira, 2002; Barros, 2002; Mendes, Lewgoy & Silveira, 2008; Scliar, 2007; Sevalho, 1993).

O pensamento físico-mecanicista é fundamental para que o homem passe a ser comparado a uma máquina em bom funcionamento (saúde) ou estragada (doente), que pode ser consertada com a devida intervenção na peça (órgão) adequada (Marcum, 2004). Descartes colabora com esta visão quando escreve que o corpo humano “à semelhança de relógios ou de uma fonte artificial ou de um moinho tem o poder de funcionar em plena harmonia com seus próprios princípios internos, dependendo somente da disposição dos órgãos relevantes” (Descartes citado em Cottingham, 1995, p. 25). Em termos de funcionalidade, Bergdolt (1999) observa que entre os séculos XIX e XX, em alguns países europeus, o critério para avaliar a saúde de uma pessoa era a sua capacidade para trabalhar. Scliar (2007) cita o anatomista francês Bichat (1771-1802) para quem saúde seria “o silêncio dos órgãos” (p.34).

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O tema da saúde passou a ser contemporaneamente questionado na Europa do século XVIII, na assim chamada “primeira revolução da saúde” (Albuquerque & Oliveira, 2002; Matos, 2004; Ribeiro, 1993). O quadro social da época apresentava crescente migração populacional para as cidades, cuja estrutura insuficiente para esse aumento de habitantes gerava insalubridade que, por sua vez, facilitava a proliferação de infecções como tuberculose, sarampo, varíola e pneumonia. Matos (2004) observa que a “teoria do germe” é típica da primeira revolução da saúde: para cada agente infeccioso há um “germe” que deve ser controlado.

Nesse período se desenvolve a noção de higiene e a saúde passa a ser uma preocupação do Estado (Giordano, 2008; Medeiros, Bernardes & Guareschi, 2005; Oliveira & Egry, 2000). Iniciativas estatais relativas ao controle de agentes patogênicos foram: a construção de sistemas de esgoto, a clorificação da água consumida, o início da produção de vacinas e a gestão das migrações.

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prevalecendo, desse modo, a dimensão física e biológica sobre a dimensão social e política na compreensão do processo saúde-doença e nas ações de saúde. Para a autora, esta perspectiva restringiu o olhar da medicina para o controle de agentes patogênicos e, portanto, para a doença. Consequentemente, a saúde se torna sinônimo de ausência de doença (ou de agentes patológicos atuantes no corpo biológico).

Nogueira (2010) escreve que a influência do pensamento moderno-cartesiano sobre a medicina estabeleceu a determinação objetal da saúde e da doença. A investigação das patologias torna-se sinônimo de identificação de objetos anormais:

Como a doença e a saúde foram concebidas a partir desse caráter de objetividade? Por meio de duas categorias puramente subjetivas do conhecimento médico, um par de conceitos mutuamente pertinentes: objeto normal / objeto anormal. É esse par de conceitos ontológicos que passará a determinar a experiência teórica e prática da saúde a partir das origens da Medicina clínica no final do século 18 (p. 138).

Forjado à luz da cientificidade objeto-físico-mecanicista, o modelo biomédico instaurou um modo de relação tecnológico-instrumental entre o profissional da saúde e os pacientes, no qual doença e doente são dissociados, perdendo-se, assim, a qualidade intersubjetiva na atenção à saúde (Anéas & Ayres, 2011; Nogueira da Silva, 2006). Como consequência, a teoria das doenças e a intervenção no corpo – “domínio instrumental da doença” (Ayres, 2007) - passaram a receber atenção prioritária e temas como sofrimento, saúde, vida, cura e morte ficaram em segundo plano (Nogueira da Silva, 2006).

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primordial de morte no mundo desenvolvido e acrescenta que a busca por distúrbios biológicos latentes levou a exitosas intervenções, como o uso de insulina para o diabetes.

“Ausência de doença” é a definição de saúde que tipifica a abordagem biomédica. É defendida, por exemplo, por Boorse (1977; 1997) na teoria bioestatística da saúde. Para o autor, saúde significa conformidade com o padrão (“design”) da espécie. O padrão da espécie é a organização funcional interna típica dos membros da espécie, que abrange as células, os tecidos, os órgãos e o comportamento e cuja finalidade é a sobrevivência e a reprodução. Uma doença é um estado interno que reduz alguma habilidade funcional para abaixo da eficiência típica (em termos estatísticos) ou uma limitação da habilidade funcional causada por agentes ambientais. Mantida a eficiência típica, tem-se a saúde, portanto saúde é a ausência de doença.

Svenaeus (2013) observa um renovado interesse pelos conceitos de saúde e doença por parte de filósofos e acadêmicos do campo da bioética, a partir dos anos 1970. Para estes profissionais, saúde não é questão de ter ou não ter uma determinada condição biológica (doença), porém um estado que a pessoa pode usufruir, mesmo que um médico encontre algum problema em seu corpo e, por outro lado, pode sentir-se privada dele, ainda que um médico não identifique doença alguma.

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Questões como o entendimento que as pessoas têm sobre sua própria saúde e crenças e comportamentos relacionados ao processo saúde-doença somente se fariam presentes na “segunda revolução da saúde”, na segunda metade do século XX (Albuquerque & Oliveira, 2002; Matos, 2004; Michael, 1982; Ribeiro, 1994).

Determinantes deste novo período são: • Melhora das condições urbanas;

• Diminuição das doenças infecciosas;

• Desenvolvimento tecnológico;

• Aumento da expectativa de vida;

• Desenvolvimento da noção de cidadania, gerando pressão sobre os governantes;

• Diversificação na organização familiar.

Note-se que, num trabalho publicado há mais de 30 anos no American Psychologist, Michael (1982) observa que a segunda revolução se desenvolve com a constatação de que padrões de comportamento, saúde ambiental e autocuidado são mais influentes na saúde da população, do que os serviços médicos. É neste contexto que o entendimento do que seja a saúde é ampliado, agregando-se aspectos psicológicos e sociais ao estudo do processo saúde-doença e indicando-se a necessidade de rever o modelo (biomédico) tradicional da medicina (Engel, 1977).

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Balog (2005) discorda da visão multidimensional da saúde. Para ele, a saúde exige um “hospedeiro”, ela reside no corpo humano e, sendo assim, é um estado de aptidão física. Do contrário, afirma, saúde não seria mais do que um conceito subjetivo criado na relação com valores culturais e normas sociais, de modo que o conceito de saúde poderia ser igualado ao que as pessoas entendem (e desejam) ser uma boa vida. Balog (2005) define estado de aptidão física como a qualidade do funcionamento do corpo de acordo com a sua finalidade natural e o quão bem esta finalidade natural habilita os indivíduos a realizar objetivos funcionais essenciais ao ser humano nos níveis biológico, como, por ex., a preservação e o prolongamento da vida e pessoal, por ex., a manutenção da autoconsciência e a avaliação das próprias habilidades e insuficiências.

Para Balog (2005), é necessário distinguir a saúde daquilo que afeta a saúde, ou seja, diferenciar entre saúde e seus possíveis determinantes. Um agente ambiental, interações sociais, crenças espirituais sobre o sentido da vida e sentimentos de amor e ódio podem estimular reações fisiológicas, porém não fazem parte da saúde de alguém. Balog (2005) reconhece que sua visão da saúde como aptidão física perde em aceitação para conceitos como o da OMS que, segundo ele, definem saúde como sendo aquilo que é desejável para uma boa vida, ou seja, erroneamente igualam saúde e virtude.

Dejours (1986) critica a ideia de completo bem-estar divulgada pela OMS, uma vez que deixa entender que o bem-estar é uma condição que se atinge e se mantém desde então, ao contrário, conforme o autor, do que indicam, por ex., a fisiologia e a psicossomática. Para ele, o completo bem-estar não existe, podendo apenas ser um objetivo, um ideal. Dejours arrisca uma definição, saúde é “ter meios de traçar um caminho pessoal e original, em direção ao bem-estar físico, psíquico e social” (p.11).

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de quem o vivencia, portanto não há como atribuí-lo externamente a alguém. Os autores afirmam que o mal-estar, o conflito e o sofrimento fazem parte das condições em que a vida humana ocorre, de tal maneira que a saúde de uma pessoa “hiper-adaptada” ou em perfeito bem-estar, seria questionável (Segre & Ferraz, 1997). Os autores sugerem que saúde poderia ser “um estado de razoável harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade” (p. 542).

Seeman (1989) considera que a definição de saúde da OMS é útil e radical, pois modifica o entendimento limitado de saúde associado à medicina ocidental, sugerindo um plano de ação mais amplo. E também, a OMS respalda uma visão sistêmica da saúde, não exclusivamente médica; abrangendo em sua conceituação as principais dimensões do que Seeman (1989) chama de “organismo humano”.

Conforme Witter (2008), o entendimento de saúde da OMS valoriza a “dimensão individual” da saúde, uma vez que seu foco de atenção é a pessoa, o que se mostra na abrangência da definição, a qual valoriza diferentes aspectos da vida humana; ao contrário da visão biomédica, cuja relevância dada à doença, visa, antes de pessoas, “pacientes”.

O conceito de saúde da OMS já era criticado 5 anos depois de sua divulgação. Lewis (1953/1998) afirma que ele é “extremamente abrangente” e “sem sentido” e acrescenta que o estado de perfeição ao qual a definição remete se equipara ao relato bíblico de “Adão antes do Pecado Original”.

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Função – refere-se à qualidade das relações do indivíduo com o seu ambiente; à sua capacidade de progredir atingindo metas e realizando objetivos;

Estresse – refere-se às “forças” que podem ser prejudiciais ao indivíduo e devem ser eliminadas;

Adaptação - refere-se à habilidade da pessoa para interagir; Normalidade – refere-se à definição de limites aceitáveis.

Chamando a atenção para a quantidade de discussões teóricas existentes a respeito do que é saúde, Van Hooft (1997) questiona se a continuidade de tais discussões ainda é necessária. Para o autor, distinções entre saúde como completo bem-estar e saúde como ausência de doença, assim como saúde como habilidade para lidar com os desafios da vida e saúde como aptidão física e vitalidade, têm sido amplamente discutidas e deverão continuar sendo, sem que isso implique, necessariamente, em maior empatia dos profissionais de saúde para com os pacientes.

Em virtude do aumento da expectativa de vida das pessoas, a incidência de doenças do envelhecimento e crônicas aumentou significativamente, o que estimulou os estudos sobre como se poderia viver bem lidando com a cronicidade. Abriu-se espaço para a atenção à influência de crenças e comportamentos sobre a saúde. Recomendações que hoje são senso comum, começaram a ser divulgadas, como, por ex., evitar as drogas, fazer exercícios físicos, regular a alimentação e evitar comportamento promíscuo (Capitão, Scortegagna & Baptista, 2005; Lyons & Chamberlain, 2005; Sebastiani, Pelicioni & Chiattoni, 2002).

Dela Coleta (2010) observa:

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relacionados ao estilo de vida. Esta mudança no cenário das causas de doenças e mortes da população trouxe grande importância à consideração dos aspectos psicológico e social para a área da saúde (p. 70).

Em 1974, no Canadá, o Relatório Lalonde (Lalonde, 1974) destaca a proposta de Promoção da Saúde, a fim de expandir, para o lado da saúde, a concepção tradicional do processo saúde-doença. Lalonde apresenta a ideia de “campo da saúde”, constituído por: biologia humana, estilo de vida, ambiente e os serviços de saúde.

É nesse contexto que a psicologia passa a dedicar atenção específica à saúde. Em 1978 a American Psychological Association cria a divisão de Psicologia da Saúde. Matarazzo (1980) apresenta uma “definição inicial” para este novo campo: “o conjunto de contribuições educacionais, científicas e profissionais específicas da Psicologia para a promoção e a manutenção da saúde, a prevenção e o tratamento da doença, a identificação dos correlatos etiológicos e diagnósticos da saúde, doença e disfunções relacionadas e para a análise e qualificação do sistema de atenção à saúde e elaboração da política de saúde” (p. 815).

A Psicologia da Saúde adota um enfoque interdisciplinar de integração biopsicossocial, cuja atenção se dirige para a conjuntura envolvida no trabalho em saúde (Gioia-Martins & Rocha Jr., 2001; Santos & Westphal, 1999):

• Transformações políticas, econômicas e sociais – produzem padrões saudáveis de vida, dificultando o aparecimento da doença;

• Vigilância à saúde – trabalho de promoção e prevenção (educação); • Clínica e reabilitação – cuidados individuais;

• Urgência e emergência - intervenções imediatas.

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disciplina e a intenção, consequente, de priorizar estudos direcionados para os contextos social (comunitário), econômico, político e cultural da saúde. Estas propostas ficaram conhecidas como Psicologia da Saúde Crítica (Carvalho, 2013; Hepworth, 2006; Murray & Polland, 2006; Stam, 2004; Teixeira, 2008).

Em 1986, realiza-se, no Brasil, a VIII Conferencia Nacional de Saúde que, ao contrário das anteriores, rompeu com a visão de saúde vinculada à biologia, à ausência de doença e à de normalidade. A Conferência associou a saúde a um conjunto de condições sociais de vida e a um direito da cidadania (Dimenstein, 1998). Pontos fundamentais da Conferência foram: ampliação da concepção de saúde, incluindo políticas sociais e econômicas; participação popular e controle social nos serviços públicos de saúde e a instituição de um Sistema Único de Saúde que tem como princípios fundamentais a universalidade, a integralidade das ações, a descentralização e a hierarquização dos serviços de saúde (Dimenstein, 1998).

A partir da vigência da Constituição de 1988, que estabelece a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), adota-se a noção de integralidade no serviço de atenção à saúde, com o objetivo de oferecer um modo de atenção distanciado da visão fragmentária e reducionista tradicional, que privilegia a dimensão biológica da saúde (Moraes, 2006). De acordo com Giovanella, Lobato, Carvalho, Conill e Cunha (2002) a integralidade na atenção à saúde envolve:

 Integração de ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, compondo níveis de prevenção primaria, secundaria e terciária;

 Atuação profissional abrangendo as dimensões biológica, psicológica e social;  Garantia de continuidade da atenção nos distintos níveis de complexidade dos sistemas de serviços de saúde;

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urbana e agrária, que incidissem sobre as condições de vida, determinantes da saúde e dos riscos de adoecimento, mediante ação intersetorial.

Pode-se concluir que a atenção da psicologia à saúde faz parte de um movimento multidisciplinar de revisão da concepção biomédica do fenômeno, movimento este que permanece em curso agregando avanços tecnocientíficos, atenção ao papel da organização social, transformações econômicas e políticas e maior respeito à dignidade humana. Como área que se dedica à teoria e à prática em saúde, a psicologia vem ocupando um lugar relevante, corroborando as palavras de Sousa e Cury (2009) para quem “a história da profissão do psicólogo confunde-se com a própria inserção deste profissional no campo da atenção à saúde pública e suas vicissitudes” (p. 1430). Sendo assim, uma posição psicológica a respeito da saúde tem suficiente respaldo para questionar a afirmação de Hamilton (2010) de que “quanto mais longe se está da medicina, mais longe se está do contexto que dá sentido a conceitos como saúde e doença” (p. 3).

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2. Aproximações da psicologia ao problema da saúde

A prioridade desta seção é apresentar reflexões de autores da psicologia a respeito da saúde. Alguns posicionamentos, porém, são de domínio mais amplo, de modo que autores de outras áreas, como medicina, educação e filosofia também são mencionados sem que haja, portanto, ruptura na linha de pensamento.

Sarriera et al. (2003) entrevistaram 5 psicólogos de diferentes escolas de pensamento a respeito de como compreendem a questão da saúde. Os autores informam que os entrevistados foram escolhidos intencionalmente, devido à sua qualificada produção científica e por atuarem na área da saúde. Um dos entrevistados define saúde assim: “um estado geral de bem estar, e bem estar social, porque a definição de saúde depende da concepção que se tem de ser humano e aí em tudo isso perpassa uma dimensão valorativa e ética, que para muita gente então algo vai ser saúde e para outros não vai ser” (p. 93). São mencionadas as seguintes conclusões: os entendimentos dos entrevistados sobre saúde estão em sintonia com suas orientações teóricas, ainda que tenham encontrado “certa dificuldade” para definir o que é saúde na relação com a teoria; o “paradigma” clínico, por exemplo, compreende a saúde como um fenômeno individual, ao passo que o paradigma social-crítico destaca o lado social da saúde. Os autores também referem a existência de posições intermediárias entre as anteriores. Com base nas respostas dos entrevistados, Sarriera et al. (2003) acreditam ser necessária maior discussão a respeito de conceitos básicos de psicologia.

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de tensões”, “ausência de traumas”). Jonas, Marques e Torrezan (1993) sugerem que a tendência dos psicólogos é caracterizar a saúde como sendo produzida pela interrelação de diversos fatores que, quando atuantes, propiciariam um “estado de equilíbrio integrativo” entre o homem e o ambiente.

São 3 os argumentos fundamentais dos trabalhos revisados, no que diz respeito à atuação de psicólogos no campo da saúde:

1) A formação acadêmica para o trabalho em saúde é inadequada e/ou insuficiente (Amaral, Gonçalves & Serpa, 2012; Andrade & Simon, 2009; Archanjo & Schraiber, 2012; Barros & Marsden, 2008; Brasil, 2004; Dimenstein, 1998, 2000; Dutra, 2004; Kubo & Botomé, 2001; Moura, 1999; Muller & Dias, 2008; Pereira, Barros & Augusto, 2011; Piña, 2010; Saldanha, 2004; Sebastiani, Pelicioni & Chiattoni, 2002; Soares, 2005; Spink, 2003). A formação tende a ser baseada em teorias essencialistas e universalistas que servem como guia para um profissional com orientação liberal, voltado para a classe média no modelo clínico-psicoterapêutico - de inspiração médica - do consultório particular. Spink (2003) identifica a prevalência do modelo psicodinâmico na graduação, voltado para a saúde mental, e a ausência de temas relativos à saúde pública. Conforme Dimenstein (1998), aplicar esse modelo ao serviço público de saúde, desconsiderando as peculiaridades dos espaços de trabalho e da população atendida, compromete a qualidade do serviço prestado. É necessária uma formação profissional flexível que permita ir ao encontro de situações de vida, valores e demandas outras que as visadas pelo modelo clínico tradicional (Barros & Marsden, 2008; Dimenstein, 2000; Kubo & Botomé, 2001).

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Augusto (2011), é imprescindível que as instituições de formação vão além do saber técnico-científico, acrescentando o desenvolvimento de habilidades para lidar com a “dimensão subjetiva” do ser humano: a do paciente, das comunidades, dos colegas de trabalho e a sua própria.

De acordo com Pires e Braga (2009), a formação do psicólogo deve ser repensada, uma vez que seus objetivos já não estão adequados às novas possibilidades de inserção profissional (ênfase, aqui, na área da saúde) cujo desenvolvimento do país e o consequente anseio social requerem.

2) O modelo biomédico de compreensão do processo saúde-doença é reducionista (Alonso, 2004; Carvalho, Bosi & Freire, 2009; Fernández, 1993; Johnson, 2013; Kubo & Botomé, 2001; Mehta, 2011; Moreira, Romagnoli & Neves, 2007; Muller & Dias, 2008; Silva, 2005; Thirlaway & Upton, 2009; Witter, 2008).

Herdeiro das primeiras concepções científicas (físico-atomistas-mecanicistas) sobre o homem e o mundo e estimulado pelo capitalismo farmacêutico, o modelo biomédico é orientado para a identificação, tratamento e cura de doenças organicamente identificáveis (Ballester, Zuccolotto, Gannam & Escobar, 2010; Barros, 2002; Czeresnia, 1999; Engel, 1977; Hewa & Hetherington, 1995; Martins, 1999; Sebastiani & Maia, 2005). Para Aho e Guignon (2011), a abordagem do modelo médico é mecanicista e desumanizante. Referindo-se à ciência médica, Gadamer (2006) afirma que ela pode Referindo-ser definida como a ciência da doença, assim como Ballester et al. (2010), que são médicos:

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De tal maneira o modelo biomédico prioriza a doença, que Ballester et al. (2010) observam que o estudo das doenças, no século XIX, era feito em corpos mortos, dissociado, portanto, das características da vida e do vivente.

Ainda que reconheça qualidades no modelo biomédico, Johnson (2013) sustenta que é típico do modelo o foco exclusivo na doença sendo, portanto, reducionista e excludente. A autora observa que o aumento das doenças crônicas e a crescente influência do comportamento na saúde explicitaram as limitações do modelo.

O trecho de Lewis (1953/1998), a seguir, exemplifica um enfoque biomédico da saúde: “[...] na prática, aquilo que se reconhece é a presença da doença, não da saúde. Não existem indicações positivas de saúde em que possamos nos basear; consideramos saudáveis todas as pessoas que não tenham evidência de doença ou enfermidade” (p. 156).

Mehta (2011) escreve que definir saúde como sendo ausência de doença é consequência da concepção biomédica de seres humanos como organismos biológicos constituídos por partes que funcionam conforme normas biológicas. Para Costa e Bernardes (2012), entender saúde como ausência de doença não diz respeito à saúde propriamente; trata-se de uma abordagem biomédica orientada para a cura de doenças baseada nos “resultados de uma série de estratégias, políticas e intervenções dirigidas à factualidade da doença”(p. 833).

Segundo Menendez (2005), as características estruturais do modelo médico são: biologismo, individualismo, a-historicidade, a-sociabilidade, mercantilismo e pragmatismo. O autor destaca que o biologismo é o traço que articula o conjunto e permite a exclusão das condições sociais e econômicas da história das enfermidades, apresentando-a como uma história natural constituída por variáveis bioecológicas.

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de saúde como prestação de serviços altamente tecnificados, com usuários tomados por seus padrões biológicos, com o processo saúde-doença tomado como história natural, com o hospital tomado como o topo de uma hierarquia qualitativa de trabalho. Ceccim e Feuerwerker (2004), entendem que o domínio do modelo médico expressa um grupo de interesses sociais que indicam um certo modo tecnológico de operar a produção dos atos em saúde, que prejudica a realização da atenção integral, subjugando a clínica à baixa interação com os usuários e à padronização do processo saúde-doença.

Referindo-se especificamente à saúde mental, Deacon (2013) afirma que a posição biomédica de que as doenças mentais são fruto de problemas no cérebro, causados por desregulação de neurotransmissores, anomalias genéticas e defeitos na estrutura cerebral ainda não passa de uma hipótese. Acrescenta que o tratamento via medicamentos psicotrópicos atua sobre um problema para o qual não há evidência de que exista: desequilíbrios químicos no cérebro. Além disso, Deacon (2013) questiona os avanços no campo da psicofarmacologia, observando que os medicamentos psiquiátricos utilizados hoje são tão efetivos quanto aqueles descobertos involuntariamente 50 anos atrás e apresenta dados dos EUA indicando que a cronicidade e a severidade das doenças mentais está aumentando.

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Engel (1977) afirma que a linha divisória entre saúde e doença não é clara, já que é atravessada por aspectos culturais, sociais e psicológicos. Sendo assim, o autor defende que a abordagem clínica deve ser biopsicossocial, levando em consideração: as características da pessoa em tratamento, o contexto social no qual ela vive e o sistema de atenção à saúde. Engel exemplifica a limitação do modelo biomédico da seguinte maneira: há pessoas cujos exames laboratoriais indicam doença, porém sentem-se bem; enquanto outras se consideram doentes, mas seus exames não indicam problemas.

Stam (2004) entende que a importância da proposta biopsicossocial de Engel é, primeiramente, retórica, servindo como argumento para que os psicólogos estudem os níveis psicológico e social da saúde, além do biomédico . Do ponto de vista teórico, Stam (2004) considera que a teorização pobre do modelo mantém intocada a base biomédica do pensamento sobre saúde, permitindo, apenas, que a psicologia se inclua de modo periférico nas discussões a respeito da saúde e doença.

Reis (1999) pergunta se, de fato, a adesão ao enfoque biopsicossocial trouxe avanços teóricos e metodológicos ao trabalho em saúde, pois mesmo este modelo pode se apresentar privilegiando a autoridade epistemológica e corporativa da biomedicina. Para Reis (1999), o modelo biopsicossocial interacionista entende que as dimensões têm existências independentes, porém comunicantes e a interação é entendida de modo hierarquizado, com a dimensão biológica sendo a principal. A alternativa apoiada pelo autor é a concepção integradora, cuja proposta é a de que as dimensões existem apenas integradas umas nas outras, gerando um todo superior à soma das partes e, portanto, sem hierarquização dimensional.

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como totalidade mente-corpo em interação com um contexto social. O psicológico e o biológico são considerados inseparáveis e interdependentes. A teoria psicossomática moderna desenvolveu-se em três fases. A primeira foi orientada pela psicanálise com os estudos sobre a gênese inconsciente das enfermidades, teorias da regressão e sobre os benefícios secundários do adoecer. A segunda fase é de orientação comportamental. Concentrou-se em pesquisas com humanos e com animais, recorrendo às ciências exatas para suas interpretações. Destacam-se os estudos sobre estresse. A atual fase, terceira, caracteriza-se pela interdisciplinaridade e ressalta a interrelação da dimensão com a visão psicossomática (Silva & Müller, 2007).

A importância de se questionar o modelo biomédico da saúde não reside apenas na observação da atenção à saúde. A relevância da saúde para contextos mais amplos é observada por Michel Foucault. Seus conceitos de biopoder e biopolítica são influentes no pensamento psicológico acerca da saúde e diretamente relacionados à revisão do enfoque biomédico (Costa & Bernardes, 2012; Martins & Peixoto Jr., 2009; Neves & Massaro, 2009). Ambos se referem às relações entre as práticas de controle estatal e os interesses capitalistas que operam no nível da saúde pública. Biopoder diz respeito às regulações do corpo humano (“anatomopolítica”) visando maximização de forças e eficiência, levando em consideração e intervindo sobre indicadores como nascimento, morbidade, mortalidade e longevidade. A biopolítica é o conjunto de estratégias levadas a cabo no nível populacional, a fim de realizar os objetivos do biopoder. Foucault (1995) afirma: “Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A Medicina é uma estratégia biopolítica” (p. 80).

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compreensão da realidade de pessoas leigas. Trabalhos publicados por médicos combatem este modelo (Ayres, 2007; Engel, 1977; Nogueira, 2007). Ao passo que autores da psicologia reconhecem a presença do pensamento biomédico na formação dos psicólogos (Deacon, 2013; Moura, 1999; Spink, 2003; Zurba, 2011).

3) O entendimento psicológico de saúde deve se distanciar do modelo biomédico (Gioia-Martins & Rocha, 2001; González, 1997; Fernández, 1993; Kubo & Botomé, 2001; Menegon & Coêlho, 2006; Pereira, Barros & Augusto, 2011; Sebastiani et al., 2002; Silva, 2005, Spink, 2003). Giacomozzi (2012) considera que a presença do psicólogo na saúde pública contribui para a superação da hegemonia biomédica por um modelo mais abrangente de entendimento da saúde. Um modelo que adote uma visão multidimensional do fenômeno, integrando fenômenos biológicos, psicológicos e sociais na compreensão do processo saúde-doença.

Andrade e Simon (2009), Menegon e Coêlho (2006) e Sebastiani et al. (2002) escrevem que a questão da saúde envolve a consideração de determinantes biológicos, psicológicos, sociais e culturais num processo (saúde-doença) caracterizado pela multicausalidade. Saldanha (2004) indica os seguintes aspectos que perpassam o problema da saúde: políticos, sociais, culturais, comportamentais, ambientais e biológicos. E acrescenta:

Considerando esses aspectos, as pessoas podem enquadrar-se em diferentes níveis de saúde e de doença relacionados às suas condições de vida, e eles podem variar dependendo da quantidade, da combinação, da importância e do significado dos fatores que os determinam e, ainda, das condições que possuem para enfrentá-las (Saldanha, 2004, p. 34).

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descontextualizados do mundo sociocultural. A autora afirma que o conceito de saúde não pode se limitar ao olhar biomédico; deve incluir disciplinas como etnografia, epidemiologia, história, psicologia, política, economia entre outras.

Kubo e Botomé (2001) afirmam que saúde e doença não são estados mutuamente excludentes. Para os autores, saúde e doença são variações de um continuum chamado “sanidade”. As oscilações no continuum se devem aos diversos determinantes da sanidade. Por ex.: alimentação, habitação, renda, trabalho, transporte, lazer, liberdade e acesso aos serviços de saúde. Desse modo, a saúde é um fenômeno dinâmico.

A perspectiva daquele que sofre, o usuário dos serviços ou o paciente, está implicada na questão da saúde. Silva (2005) entende que a psicologia tem algo a dizer sobre saúde e doença, porque o “sujeito” não só é responsável por doenças que o acometem (abordagem psicossomática), mas também comunica o seu próprio sofrimento. Fernández (1993) se aproxima da perspectiva do paciente pela via comportamental. Comportamentos podem causar ou evitar situações de saúde-doença e muitos deles dependem apenas da vontade das pessoas para fazê-los. Por isso é necessário conhecer a pessoa e até sua família e observar a relação deles com o profissional para, por ex., observar o cumprimento de prescrições médicas. Barros e Marsden (2008) buscam a perspectiva do usuário do serviço de saúde, uma vez que a origem do sofrimento diz respeito à sua identidade, aos seus ideais e à sua representação de doença.

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que o conceito de saúde deve expressar os princípios da autonomia, beneficência e justiça. A autonomia é a capacidade do ser humano de tomar decisões que afetem sua vida, com vistas ao seu bem-estar e esta autonomia deve ser respeitada na “relação médico-paciente”. A beneficência é a ação visando o bem do paciente, sem causar-lhe dano; e a justiça é a busca do bem-estar de todos na forma de uma ordem igualitária, sem privilégios ou discriminação (Araújo, Brito & Novaes, 2008).

Para Souza e Carvalho (2003), qualidade vida é uma condição biopsicossocial de bem-estar que deve ser observada respeitando-se particularidades individuais e sociais de uma situação singular. Com essa orientação, um programa de assistência à saúde não deve estar restrito a intervenções epidemiológicas e sanitárias. Os níveis pessoal, social e econômico devem ser contemplados nas ações.

Lunardi (1999) alerta que concepções de saúde amplas e externas ao indivíduo podem limitar a “governabilidade dos sujeitos”, ou seja, interferir na autonomia daquele que deve ser assistido ou tratado, impondo-lhe um ideal de saúde que pode estar em conflito com sua experiência pessoal. Reis (1999) denomina de autonomia conceitual-afetiva à capacidade que as pessoas têm de desenvolverem significações próprias sobre si mesmas, os outros, o mundo e a vida. E estas significações têm influência relevante no estado de saúde. Num modelo de “autoridade epistemológica” biomédica, observa Reis (1999), a autonomia é negligenciada, pois não faz parte do entendimento biomédico da saúde.

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Nordenfelt (1995) identifica 2 perspectivas no debate sobre saúde. Uma, que chama de holística, visa o estado geral do ser humano e questiona se a pessoa está ou não saudável perguntando “como esta pessoa se sente?”, “ o que ela tem condições de fazer?”, “como ela se comporta no contexto social?”. Outra, chamada de analítica (originária da Medicina), dirige sua atenção para partes do organismo humano e estuda sua estrutura e função questionando “este órgão está normal?”, “como está a pulsação deste homem?”, “qual o aspecto do tecido do fígado?”, “qual a capacidade pulmonar?”.

Boruchovitch e Mednick (2002) apresentam 3 enfoques conceituais relativos à saúde: 1- O conceito tradicional de saúde: Saúde como ausência de doença é o típico entendimento médico da saúde. Foi prevalente, principalmente, na primeira metade do século XX. A saúde não é identificada pela presença de certos atributos, mas pela ausência de sinais, sintomas ou problemas que indiquem doença. O conceito é criticado, porque coloca a saúde em segundo plano e porque uma pessoa saudável não está, necessariamente, livre de alguma doença.

2- O conceito da Organização Mundial da Saúde: Elaborado em 1946, veio a representar a posição da OMS a partir de sua efetiva criação em 1948. “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. É um conceito que amplia a ideia de saúde relacionando-a a constituintes até então não considerados, entretanto se mostra muito amplo, vago e utópico, o que dificulta sua aplicação.

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responsabilidades; a adaptação diz respeito a como a pessoa lida com estresse e mudanças ambientais. Ainda que a postura mais relativista permita maior aplicabilidade ao conceito ecológico de saúde, os autores ressaltam que, mesmo doente, uma pessoa ainda pode cumprir responsabilidades sociais. E acrescentam que funcionamento adequado e adaptação são noções culturais que, por conseguinte, variam em diferentes contextos sociais, de modo que o que é saudável num contexto poderá não ser em outro.

Em sua revisão bibliográfica, Boruchovitch e Mednick (2002) concluem que é difícil encontrar alguma definição da saúde que não suscite questões contrárias. Os autores afirmam que a maioria dos pesquisadores concordaria que “saúde” é um constructo multidimensional e que um conceito universalmente válido não é viável. Segundo Juarez (2011), a inexistência de um conceito ou modelo único de saúde não é um problema para o trabalho em saúde. O autor defende que cabe ao profissional de saúde determinar qual o modelo mais adequado a ser empregado, conforme o contexto, o individuo ou a comunidade. Para ele, a utilização adequada de diferentes abordagens de saúde enriquece a atuação profissional e propicia um uso mais eficiente dos recursos disponíveis.

As pesquisas com psicólogos, na área da saúde, costumam focalizar a atuação em promoção da saúde. Estratégias de promoção da saúde visam reforçar a capacidade individual e coletiva de lidar com os diversos fatores que atuam sobre a saúde (Czeresnia, 1999). As discussões sobre promoção de saúde se orientam para o quê fazer e como fazer em prol da saúde.

Alguns exemplos de trabalhos acerca de promoção de saúde:

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doença, oferecer apoio durante período de convalescença, desenvolver potencialidades e informar com vistas a estimular a autonomia

Rodrigues et al. (2008) entrevistaram 23 psicólogos escolares acerca de ideias e práticas de prevenção e promoção de saúde. Os autores concluíram que os profissionais atuam, principalmente, no sentido de evitar problemas (no contexto escolar). Acrescentam que, ainda que os entrevistados procurem uma abordagem psicológica inovadora, relacionando promoção de saúde com desenvolvimento e aprimoramento de capacidades, as atividades desenvolvidas mostram-se pouco consistentes e superficiais, revelando um planejamento assistemático quanto a uma atuação proativa no contexto educativo. Surgem ainda como estratégias preventivas e promotoras de saúde, ações tradicionais dirigidas ao atendimento individual, como testagem, diagnóstico e encaminhamentos.

Contini (2000), com base em pesquisa anterior, escreve que a proposta de promoção da saúde requer que o psicólogo modifique suas práticas profissionais, a fim de superar o entendimento de que saúde significa ausência de doença. Para isso, afirma a autora, é preciso rever a hegemonia do modelo da atuação clínica tradicional, voltado para o mundo intrapsíquico. O psicólogo deveria, conforme Contini (2000) dar ao termo saúde um significado mais amplo, a partir de uma visão sistêmica da saúde. A visão sistêmica abrange moradia, lazer, educação, trabalho, “etc.”, cujo equilíbrio constitui “o grande mosaico da saúde humana”. Adiante a autora direciona o debate da saúde para a dimensão política e cita: “A saúde envolve a eliminação da fome, da miséria, da ignorância e de qualquer forma de opressão. O compromisso do psicólogo só poderá ser com a mudança social” (Branco citado em Contini, 2000, p. 56).

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voltados para diferentes públicos. Os grupos de discussão permitem que os participantes troquem experiências e discutam temas variados “mesmo que estes não estejam diretamente ligados às doenças”. Nas oficinas ocorrem “aprendizados específicos” ou são produzidos artigos artesanais e hortas. Segundo Iglesias et al. (2009), os psicólogos entrevistados avaliaram as ações que realizam como positivas, uma vez que acreditam que a inserção em atividades tidas como saudáveis provocam mudanças na vida dos participantes. Os entrevistados entendem que estas são ações de promoção da saúde, uma vez que o foco das atividades é a saúde e não a doença.

No que diz respeito à posição da psicologia no campo da saúde, pode-se concluir, de forma geral, que: 1- saúde é mais do que apregoa o modelo biomédico e, sendo assim, 2- pode ser produzida e promovida por meio de práticas não somente biomédicas. Contudo, em se tratando de um fenômeno complexo, cuja atenção requer a participação de diferentes setores profissionais, mas ainda concebido prioritariamente em termos biomédicos, a psicologia oscila entre a adoção tácita da tradição médica (em seu próprio currículo universitário) e a reflexão crítica que é explicitada nas publicações apresentadas acima.

O pensamento dos autores da psicologia a respeito de saúde não se encerra no panorama apresentado até aqui. Com o desenvolvimento da tese outros autores serão abordados e alguns supracitados serão retomados, com vistas a explicitar uma concepção de homem.

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3. Sobre o emprego da Analítica de Heidegger como orientação teórica da tese

Se a linguagem filosófica já é difícil para quem não é filósofo, mais ainda uma linguagem filosófica que pretende rever a linguagem filosófica anterior. A impressão que fica é de que quem recorre a Heidegger, do ponto de vista das ciências humanas, está sempre prestes a se equivocar, vide o conhecido “produtivo mal-entendimento” de Binswanger (Frie, 1999). Para um psicólogo como Letteri (2009): “Os escritos de Heidegger frequentemente geram desorientação que, por vezes, chega ao desespero. Não-filósofos comumente estão em conflito com a densidade de sua linguagem” (p. xiii). Por isso, é preciso atenção ao emprego adequado dos termos heideggerianos, sem, contudo, deixar de lado a necessidade de considerá-los conforme a proposta não-filosófica desta tese.

Além do cuidado com os termos, é preciso atentar que, para a realização de seu objetivo, a tese adota a Analítica do Dasein como um entendimento sobre como é o ser humano ou como uma concepção de homem. Não era este, contudo, o objetivo de Heidegger. A prioridade da Analítica é questionar o ser, ou seja, a abertura que torna possível considerar algo como isto ou aquilo e, assim, dar sentido ao que se mostra (Sheehan, 2014) ou, nas palavras de Dreyfus (1991): “dar sentido a nossa capacidade de dar sentido às coisas” (p. 11) . O estudo de Heidegger sobre o ser é justificado à luz da leitura que ele faz do percurso histórico da metafísica ocidental: o esquecimento do ser, em função do privilegiamento do ente. Ente é tudo aquilo que se afirma que “é”, o ser está no “é”, logo não deve ser confundido com o ente:

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elaboração do questionamento do ser é manifestação do modo de ser de um ente específico (nós mesmos) que, sendo, já tem uma compreensão do ser, ainda que vaga. Já tendo em vista a investigação desse ente em seu ser, a fim de estabelecer uma discussão com a tradição metafísica a respeito do ser em geral, Heidegger chama o ente que nós somos de Dasein. Denominações como homem, pessoa, humano são produto do pensamento metafísico que privilegia o ente. Com os próprios termos empregados, Heidegger pretende rever a tradição metafísica, cuja linguagem carrega consigo as consolidações que o filósofo pretende evitar.

Na diferenciação entre ser e ente tem-se dois níveis: o ontológico (ser), no qual se dá atenção às condições de possibilidade para que um ente se manifeste como tal e o ôntico (ente), no qual a atenção se dirige para as características de um ente qualquer. No nível ôntico, estuda-se o modo de ser dos entes; no ontológico, as condições para que os entes possam ser. Heidegger desenvolve a Analítica do Dasein no nível ontológico, ou seja não visa o “homem”, porém as condições ontológicas que possibilitam ao ente que nós mesmos somos compreender-se como homem, pessoa, animal racional, sujeito, etc. A investigação do ser e a descrição do modo de ser do ente que nós mesmos somos são, de início, uma empreitada única: “Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – que questiona – em seu ser” (Heidegger, 1927/2006, p. 42).

Referências

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