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A individualização no trabalho automatizado.

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Academic year: 2017

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RESUMO: Procura-se situar a divisão do sujeito, resultante das con-dições técn icas da produ ção in du strial con tem porân ea. Por u m lado, investigam -se os traços distin tivos das m on tagen s técn icas m odernas, para apreender sua suposição de sujeito. Por outro, abor-dam -se as m anifestações entrópicas do funcionam ento técnico que atin gem os trabalh adores com o solu ções en con tradas n o m ovi-m ento de individualização. O texto procura deovi-m ostrar que as con-dições técnicas m odernas vêm exigindo dos sujeitos a m arca no corpo com o recurso ativo de individualização.

Palavras - c h ave: Sujeito da técnica, indivíduo e sujeito, trabalho e saúde.

ABSTRACT: The individualization in autom ated work. This article aim s to place the division of the subject w ho em erged from the technical conditions of the contem porary industrial production. On th e on e h an d, it investigates th e distin ctive featu res of th e m odern technical assem blies in order to apprehend its supposi-tion of the subject. On the other hand, it approaches the entropy m anifestations of technical w orking w hich reaches the w orkers as solutions found in the m ovem ent of individualization. It dem on-strates that the m odern technical conditions are dem anding from the subjects the m ark in the body as an active resource of indi-vid u alizatio n .

Ke yw o rds: Subject of the technique, individual and subject, w ork and health.

Professora adjunta do Departam ento de Medicina Preventiva e Social, da Faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em Sociologia pela Fafich, UFMG, e doutora em Psicanálise pela Universidade de Paris VIII.

Ma ria Be rn a d e te d e Ca rva lh o

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D

e que form a nosso m undo técnico, com seus artifícios ( os objetos e siste-m as técnicos) , incide sobre nós e transforsiste-m a nossa posição no siste-m undo? Nossas técnicas produzem um novo hom em ? Com o isso aconteceria? Que ho-m eho-m é esse? Eho-m atenção a essas questões urgentes, gostaríaho-m os de propor al-guns resultados de pesquisa.

Sustentarem os aqui que a atividade através das nossas técnicas da era da ciência e a m aneira com o som os a elas agregados, ou seja, segundo as regras capitalistas de produção, engendram efeitos identificáveis nas pessoas e inédi-tos em sua form a. Mais que isso, nossa pesquisa indica que um a m utação en-contra-se em curso, vinculada a certas características de nossas técnicas, e que ela concerne ao m odo pelo qual as pessoas se individualizam . Encontram o-nos, assim , diante de um a verdadeira revolução antropológica: um a m utação na lógica das relações pelas quais um núm ero crescente de pessoas encontra um a solução para a atividade básica do ser social que é de constituir-se face aos outros, pela m ediação da linguagem .

Além disso, adm itindo que o indivíduo só se constitui num a relação, esta-m os ao esta-m esesta-m o teesta-m po afiresta-m ando que essa nova foresta-m a de individualização é correlativa de um novo tipo de sociabilidade ou laço social.

Com o estratégia de investigação, centram os nosso interesse sobre as condi-ções contem porâneas da produção autom atizada, com o objetivo de constituir o cam po da interseção entre sujeito e atividade técnica e explicitar os m ecanis-m os pelos quais ela induz uecanis-m sujeito e ele dela se separa. Procuraecanis-m os apreen-der o tipo de individualização que se tece hoje através do engajam ento dos sujeitos em suas atividades, organizadas por nossas técnicas, sejam elas m áqui-nas ou outros instrum entos, com o os de gestão do trabalho.1

Para entender a individualização favorecida pelas atividades técnicas, traba-lharem os com os conceitos de sujeito e indivíduo, tais com o propostos por J. Lacan, que nos perm item situar a dim ensão cultural da constituição do indi-víduo, m as sem esquecer de m arcar o suporte libidinal dessa operação. O pro-cesso de individualização im plica para Lacan em um a incorporação particular da linguagem que, por sua vez, é social e histórica. Para ele, tal com o para Freud, o coletivo está no indivíduo ( ou no “eu”) , que é inseparável da tram a das relações sociais nas quais se form ou ( LACAN, 1966, p. 213) . Mas Lacan assinala igualm ente que a linguagem só viabiliza o estabelecim ento de um a com unidade hum ana quando seu arranjo histórico possibilita a cada um a loca-lização de um resto de gozo.

A form a pela qual a linguagem , sem pre já organizada com o um saber,

inci-1 Cf. ARENDT ( 1983) e CASTEL ( 1998) que situam , através de percursos diferentes, a

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de sobre as individualidades em píricas, circunscreve um retorno do gozo. É isso que Lacan frisa, dizendo em seu Sem inário XVII, O avesso da psicanálise, que o saber é m eio de gozo ( LACAN, 1991, p. 54-57) .2 Esse gozo recuperado pelas vias do significante é um resto de gozo, nom eado por Lacan com o “m ais-de-gozar” (“plus- de- jouir”) , em referência ao conceito de “m ais-valia” proposto por Marx para designar o excedente produzido no sistem a capitalista e que, no entanto, é aquilo m esm o que o m otiva ou o causa e que o renova a cada ciclo ( Idem , p. 13) . Nessa definição do objeto ( a) , Lacan situa o gozo com o um excedente do trabalho significante no sujeito, cujas em ergências, no sintom a ou no sem -sentido, evidenciam sua divisão.

A am bigüidade da expressão proposta por Lacan (“plus- de- jouir”) é a m esm a do conceito, que com porta ao m esm o tem po um sentido negativo, dado pela perda radical de gozo devido à entrada na linguagem , e um sentido positivo, enquanto única dim ensão pela qual o gozo é recuperado e pode ser detectado no ser falante. Esse gozo se anuncia na repetição de um a perda que tem o m esm o estatuto da entropia, ou seja, trata-se de um resultado não desejado do trabalho do saber que se revela sob a form a do desperdício ou, com o Lacan dirá m ais tarde, no Seminário XX, sob a form a do que não serve para nada. Os m om en-tos de recuperação de gozo são o cam po do êxtase m as tam bém do m al-estar. Am bos os fenôm enos se situam “para além do princípio do prazer”, tal com o Freud os apreendeu.

A individualização assim com preendida com porta sem pre um a solução para o gozo através da linguagem , viabilizando o laço social. O sujeito, diz Lacan, se aparelha na linguagem enquanto a organização desta pode ser condutora de um retorno localizado de gozo.

Utilizarem os esta teoria para analisar a incidência das técnicas m odernas ( concebidas com o organizações de linguagem ) sobre os sujeitos, com o obje-tivo de apreender a dinâm ica pela qual essa interseção lhes possibilita a recupe-ração localizada de um resto de gozo. Bastante concretam ente, reconhecem os esse gozo nas form as do m al-estar aí encontradas, gozo sem pre colado ao que

2 Lacan apresenta no Sem inário XVII sua teoria dos discursos, na qual condensa um a série de

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vem interrom per o funcionam ento para um sujeito e m anifestando-se cada vez m ais em nosso m undo através de fenôm enos com o as doenças psicossom áticas, as ditas síndrom es pós-traum áticas, as depressões, o alcoolism o, outras toxico-m anias, etc.

É certo que essas m anifestações do m al-estar não são, em definitivo, exclu-sivas das pessoas trabalhando com as m áquinas da nossa era industrial, m as elas são m uito freqüentes entre essas pessoas, tanto quanto é freqüente a presença de objetos técnicos no cotidiano de nossas sociedades industrializadas.

Em bora essas form as de adoecim ento não sejam um a novidade, sua ocor-rência3 nos interessa aqui pelas características de que se revestem , e, em função das quais, nos perm itim os agrupar fenôm enos tão diversos com o as doenças psicossom áticas, as toxicom anias e ainda outros, sem dúvida. Dentre essas ca-racterísticas destacam os, desde já, um certo uso do corpo, no qual se produzem figuras da ordem da a- natomia, com o as paralisias e dores na histeria, m as que, no entanto, revelam , em sua opacidade às tentativas de significação, tratarem -se de fenôm enos de um a outra ordem . Sob um outro ângulo, conform e acentua DRUMMOND ( 2001, p. 41) , essas form as do m al-estar tam bém m arcam sua contem poraneidade por viabilizarem um laço social de novo tipo, que se ins-creve em instituições constituídas em torno de um sintom a, tais com o os AA, as associações dos portadores de LER ou Dort, e tantas outras, todas elas, ao que parece, seguindo o m esm o m odelo.

Partim os da proposição de que certas características centrais nas condições técnicas de nossas atividades vêm exigindo dos sujeitos o recurso ao corpo com o m eio ativo de individualização. Tentarem os apreender esse processo exa-m inando as relações que os sujeitos exa-m antêexa-m hoje coexa-m o saber, isto é, a forexa-m a com o lhes é dado incorporar o saber e o tipo de uso que fazem dele nos proces-sos de individualização. Com o nos sugere Lacan, o m odo com o o saber incide

3 As inform ações epidem iológicas a respeito dos casos de LER/ Dort ( respectivam ente Lesões

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sobre os sujeitos indica o retorno do gozo que eles obterão, à condição que o sujeito faça esse saber trabalhar em nom e de um a verdade.

Essas afirmações gerais requerem dem onstração e detalham ento das vias que as perm itiram . Tentarem os fazê-lo situando, por um lado, o sujeito suposto pelas condições técnicas e, por outro, analisando aquilo que nesse sujeito escapa e excede ao cálculo técnico, m as que não deixa de ser efeito do funcionamento desse saber, e que aparece sob a forma do descontrole, do acidente, da doença, etc. Com ecem os assim pelo sujeito suposto pelas técnicas, cuja investigação im plica o exam e das características destas, em sua especificidade histórica.

O S UJEITO S UPOS TO PELAS TÉCNICAS MODERNAS

A presente incursão no cam po das técnicas se pauta pelo interesse em apreen-der a form a pela qual elas podem estar condicionando as relações que nos constituem e que nos especificam na história. Trata-se de localizar exatam ente as características das técnicas m odernas que são eficientes na produção das relações que estabelecem os e que nos constituem . Procurarem os entender com o esses arranjos, que são os objetos técnicos e os sistem as técnicos dos quais eles participam , incidem sobre nós e nos transform am , não só pelo que podem os fazer, m as igualm ente pela form a com o nos é dado fazer, através desses m esm os objetos técnicos.

Sabem os que a tecnicidade é um dos caracteres distintivos do hum ano, da m esm a form a que a existência da linguagem , e que am bas — tecnicidade e linguagem — com põem o que cham am os de capacidade sim bólica. O surgi-m ento dos instrusurgi-m entos, afirsurgi-m asurgi-m alguns paleontólogos, surgi-m arca, tal cosurgi-m o a existência da linguagem , a fronteira particular da hum anidade. Eles são a prova de que a evolução da espécie tom ou um sentido extra-orgânico, cuidando da p reser vação d e su a m em ó r ia através d a o rgan ização d a m atér ia ( LEROI-GOURHAN, 1964) . De fato, os instrum entos são organizações da m atéria capa-zes de instruir nossas ações, com o o próprio term o sugere. Eles são m em ória exteriorizada que, a partir do m om ento em que se encontra organizada na m atéria, pode conduzir ou conform ar as relações do hom em com seu m eio orgânico e inorgânico.

Os instrum entos podem ser com preendidos com o um saber organizado que traz em si m esm o um a suposição do operador, que o instrum ento renova a cada vez que ele é utilizado. Neste sentido, os instrum entos inventam o hom em , tal com o um dia foram inventados por ele.4

4 STIEGLER ( 1994) aborda no livro indicado a determ inação exercida pelos sistem as técnicos

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Se os instrum entos podem , de um m odo geral, ser assim qualificados, com o caracterizar a novidade dessa form a de organização da m atéria que constitui o sistem a técnico m oderno?

A idéia de que as técnicas m odernas com põem um sistem a particular na história das técnicas se confirm a através de toda um a série de características da dinâm ica interna desse sistem a, tais com o o ritm o acelerado das inova-ções, a rapidez de evolução e obsolescência dos objetos técnicos e a capaci-dade do conjunto de se reequilibrar quando se trata de incorporar as novida-des. Este sistem a se especifica igualm ente pelo m odo de funcionam ento de seu s com pon en tes, qu e respon dem de form a program ada e au tom ática ao acionam ento, e que tendem a substituir os hom ens na m anipulação direta dos utensílios e da m atéria.

Para caracterizar a técnica m oderna com o sistem a particular na história é igualm ente relevante a investigação das relações que esse dom ínio m antém com outros dom ínios, com o o do saber, o da econom ia e da política. Mas, deixando essa discussão para outra ocasião, o que, para os nossos objetivos, se m ostrou central nessa exploração foi poder situar no dom ínio das técnicas um a ruptura que, tal com o na ciência, m arca o predom ínio do sim bólico sobre o im aginário na concepção de seus artifícios.

Enquanto os objetos técnicos existentes no século XVI e XVII eram , com raras exceções, objetos que se caracterizavam pela aderência de sua concepção às form as da natureza sensível e do corpo que trabalha( SIMON, 1982-3) , a partir do século XVII, concom itantem ente ao surgim ento da ciência m oderna, constroem -se as condições para que os objetos técnicos encarnem a atividade sim bólica do hom em , que se destaca, neles, da atividade dos sujeitos. Trata-se do m om ento da exteriorização da própria capacidade sim bólica em objetos que tendem a se purificar ao m áxim o dos traços im aginários que até então haviam prevalecido. Da m esm a form a que os eixos não im itam m ais os m ovi-m entos dos braços, a organização do trabalho se distanciou do ovi-m odelo subjeti-vo do hom em que trabalha e os relógios deixaram de seguir o tem po cósm ico e a variação das estações. A m atem atização do em pírico perm itiu esse descola-m ento da idescola-m agedescola-m nos fornecendo eledescola-m entos para construções cuja eficiência não se deve aos poderes da percepção, senão pelo fato de que é ainda com ela que podem os contar. A partir do m om ento em que com eçam os a enum erar os eventos, com nossos sentidos e a procurar estabelecer relações constantes, o jogo dos núm eros posto a trabalho nos transportou para um a outra realidade, habitada por ondas hertzianas e com putadores, a que nenhum a im agem nos teria conduzido ( Cf. LACAN, 1991, p. 185) .

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hum ana. Quando os cientistas japoneses se ocupam em construir o robô sem e-lhante ao hum ano, eles convocam forças que não têm nada a ver com o que poderia sugerir a im agem do corpo e de seus m ovim entos.

A adesão à im agem foi identificada por Bachelard com o um dos obstáculos epistem ológicos à descoberta na ciência e, no entanto, um dos exem plos que ele utiliza nos rem ete igualm ente ao cam po das técnicas: segundo ele, foi pre-ciso que o hom em esquecesse a im agem da costureira em sua atividade para conceber a m áquina de costura. Operou-se, desde então, um a transform ação no saber, no m odo com o apreendem os o m undo, e isso nos perm ite trabalhar a partir de um sistem a descolado das form as sensíveis. O instrum ento na ciência é um m eio para a redução m áxim a da experiência sensível usual, que deve se restringir à possibilidade de contar que nos oferecem os sentidos. A estratégia pela qual os instrum entos criam a possibilidade dessa redução consiste na ca-pacidade de determ inação estrita do observador, que se transform a, assim , nos dizeres de Can gu ilh em , em “ u m in str u m en to do in str u m en to cien tífico” ( CANGUILHEM, 1966, p. 89) .

Essa transform ação foi descrita m etodologicam ente pela prim eira vez por Galileu, através das operações im plicadas na construção do seu telescópio. Se-gundo F. REGNAULT ( 1985) , ele expõe tais procedim entos no Diálogo sobre os dois grandes sistemas do mundo, obra de 1632, pela qual foi condenado. Galileu retom ou ainda esse assunto em um livro que ficou inacabado, As operações astronôm icas, provavelm ente redigido em Arcetri, em prisão dom iciliar e com as restrições da vista enfraquecida pelo cansaço. É o próprio Galileu quem nos faz saber que já não enxergava com o olho direito e conservava pouco da vista esquerda. É nesse m om ento que ele se dedica a descrever as operações necessárias para fazer convergir “em um só ponto óptico-geom étrico” a capacidade de visão de que dispõe toda a superfície da pupila.

As etapas da construção do telescópio com põem um m ovim ento de anula-ção progressiva do “olho enquanto olho de um hom em ”:

“...elim ina-se sucessivam ente o fato de que a pupila se contraia ou se dilate, em seguida o fato de que a m inha é diferente da sua, enfim o fato de que ela tenha um a

superfície e se terá reduzido o observador a um ponto”.( REGNAULT, 1985, p. 118)

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Os instrum entos viabilizaram a tentativa de fixar, pela elim inação das parti-cularidades individuais, um a capacidade de resposta determ inada e reprodutí-vel. Não m ais as subjetividades e habilidades diversas, form as de expressão de um sujeito da representação; o que o instrum ento m oderno torna possível é o sujeito de um a representação hom ogênea, ou seja, o indivíduo cuja intervenção trata-se de calcular.5

Os objetos técnicos m odernos encarnam as operações capazes de calcular e reproduzir um a hom ogeneidade nos term os das respostas hum anas. Essa possi-bilidade os tornou atraentes prim eiro nos laboratórios científicos, depois nas fábricas, com as m áquinas produtivas, e no governo dos povos, com os equipa-m entos da cidade. Os objetos técnicos estenderaequipa-m seequipa-m pre sua aptidão a sele-cionar as respostas dos operadores e a consolidar um a certa hum anidade, pela reprodução contínua dos m esm os indivíduos. A possibilidade de controle das atividades hum anas através dos objetos técnicos não parou de se aperfeiçoar na m odernidade. Através de sua sim ples utilização, os objetos técnicos atuali-zam n os h om en s u m a resposta calcu lada e pon tu al, m as n u m a freqü ên cia cada vez m aior.

Os instrum entos m odernos, todos aqueles que são a encarnação do cálculo operacional, supõem um sujeito sem nenhum a singularidade. Nas situações técnicas precisa-se de um sujeito m as não há espaço para o desdobram ento de um traço que lhe seja próprio. Os sujeitos são alocados num sistem a no qual só há lugar para as respostas fixadas pelo funcionam ento técnico que organiza as situações. O sujeito está lá, m as ele não deve se representar na situação pois ele já se encontra fixado, solidificado num a resposta determ inada pela m ontagem técnica. Eles são sujeitos-supostos-se-m oldarem -inteiram ente. Presenciam os hoje em dia os efeitos da proliferação dessa m etodologia e de sua suposição. De fato, os sujeitos aderem aos sistem as técnicos que só pedem um a resposta padroni-zada. Mas trata-se exatam ente de um a adesão a esse saber e não de um a incor-poração. Conform e verem os, os sujeitos aderem ao saber que lhes é exterior sem poder rom per com sua exterioridade: um a inclusão da exterioridade en-quanto exterioridade.

Vale m arcar aqui o contraste entre esse tipo de relação ao saber e aquele que o antecedeu, no qual Freud e Lacan verificam não um a relação de exterioridade, m as um a relação de incorporação, que se revela nas tentativas de expressão de

5 Esse indivíduo calculado não é o sujeito da ciência que em erge nas fronteiras m óveis entre o

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um a m arca singular pela via da representação significante, ou seja, pela via da palavra, num a apropriação dos saberes. Nossas técnicas de autom ação, pela exterioridade que elas im põem à adesão do sujeito, tornam im possível a tenta-tiva da representação significante. A im possibilidade de se fazer representar através da operação técnica é justam ente o que há de real para os sujeitos nessas situ ações.6

A prova de que a adesão dos sujeitos ao funcionam ento técnico é efetiva encontra-se nas m anifestações de m al-estar que tom am com o m atéria as pró-prias disrupções desse funcionam ento. São acontecim entos com o a pane, a per-da de controle ( que ocorrem no corpo — com o taquicardia, sudorese, dores, com pulsões, etc. — ou no funcionam ento técnico) que se m ostram capazes de dividir o sujeito das técnicas, aderido ao funcionam ento.

MANIFESTAÇÕES DO S UJEITO EM S ITUAÇÕES TÉCNICAS

Verifica-se nas situações de trabalho autom atizadas que não há lugar para um a inscrição do operador com o sujeito de desejo. Os operadores devem sim ples-m ente se acoplar, aderir a uples-m a seqüência preestabelecida, nuples-m ples-m oviples-m ento que os supõe m as que busca determ iná-los o m ais estritam ente possível, sem deixar espaço para um a resposta do sujeito, pela via da representação significante.

A adesão dos sujeitos não se explica com o o sim ples resultado do cálculo do indivíduo realizado pelas técnicas. Ao contrário, o objetivo inscrito nas técnicas de fixar um indivíduo, um “eu” unívoco e hom ogêneo, im pede a expressão do sujeito através de sua atividade. A hom ogeneização das respostas torna impossível

a individualização dos sujeitos através da representação significante. Isso não im pede, e até estim ula, que os sujeitos busquem e reivindiquem constantem en-te “identidade”, em nossas sociedades. Mas os sujeitos só constroem um a iden-tidade, através da atividade técnica, contornando a im possibilidade de singula-rizar-se nela, pela via do significante. As situações técnicas só são capazes de

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capturar o sujeito ou de im plicá-lo através das irrupções de excessos, ou seja, através do que excede e escapa ao cálculo funcional.

Trata-se de um a lógica de adesão que já se anuncia através de depoim entos segundo os quais os laços se estabelecem entre os operadores no m om ento das panes. Nestes m om entos, um a equipe de trabalho se constitui, reunindo com -petências para um a reparação, que, no entanto os reenvia ao funcionam ento. Os efeitos inesperados do funcionam ento técnico, os acidentes, o m al-estar são, de início, m anifestações do insucesso das técnicas em tudo controlar. Mas é exata-m ente esse insucesso das técnicas que dará oportunidade aos sujeitos de deixa-rem a condição de objetos do controle ( condição subjetivada fantasm aticam en-te com o a de um objeto do gozo do Outro) e passarem àquela de sujeitos pessoalm ente im plicados, ainda que por vias que desconhecem o conteúdo da atividade e seus sentidos sociais, para se apoiar na prática de um autocontrole form ativo ou no aperfeiçoam ento da perform ance pessoal. Essa via de constitui-ção dos indivíduos tende a levá-los a um a adesão renovada ao funcionam ento. A descrição da Síndrom e Subjetiva Com um ou “fadiga nervosa” realizada por Le Guillant, a partir de um estudo sobre as queixas das telefonistas, consti-tui um exem plo esclarecedor do m ovim ento que buscam os apreender. Segundo Le Guillant, o quadro abaixo foi freqüentem ente encontrado nas pessoas exam i-nadas durante seu estudo:

“ ...esse nervosism o é m antido pelo próprio trabalho que, ao m esm o tem po, o exige e o cria: certas telefonistas atingem rendim entos consideráveis ( 140 a 150% em relação à m édia) , não por zelo, m as porque o trabalho, dizem elas, as torna

nervosas e que quanto m ais elas estão nervosas, m ais elas trabalham rápido.”

Ainda de acordo com ele,

“...esse nervosism o das telefonistas é ( ...) um a doença necessária ao desem penho das tarefas profissionais; as m ais nervosas são as que obtêm os m elhores rendim en-tos. O sistem a de notação da produção favorece esse estado de coisas.”

Le Guillant constata então:

“ a au tom ação cada vez m ais aperfeiçoada leva a u m a m on oton ia pen osa; as ope-radoras sofrem por trabalh ar com o robôs, por fazer u m trabalh o m ecân ico, por

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Esse quadro não som ente ilustra nossas afirm ações anteriores com o perm ite localizar o que as telefonistas im prim em delas próprias na atividade, ou seja, a aceleração, o “nervosism o”. O que o sujeito procura acelerando o trabalho é aceder a um “ eu” que desm ente a hom ogeneização exercida pelas técnicas, situando-se num para além daquilo que o cálculo técnico fixa. O sujeito procura individualizar-se na situação incorporando os excessos produzidos pelo pró-prio funcionam ento técnico. Trata-se de um a individualização que não se faz pelo recurso à representação significante. O que o sujeito incorpora não é um significante que o situa no m undo m as, ao contrário, aquilo que a organização técnica produz com o resto, ainda escapando ao seu controle.

Essa operação perm itirá, m esm o não sendo pela via do desejo, que o sujei-to m arque um a posição própria frente à organização técnica, que é com pleta-m ente indiferente a suas particularidades. O sujeito aqui se individualiza no m ovim ento de evitar a m anifestação de um sintom a, concebido com o a m arca de um gozo estranho. Em resposta a esse gozo e portanto m antendo-o com o suporte, o sujeito tece sua individualidade. A partir de então ( e enquanto essa posição do sujeito com relação ao saber se m antiver) , seja qual for a ativida-de ativida-desse sujeito, seu trabalho se centrará sobretudo nesse exercício pessoal, perform ático, em cuja dinâm ica reconhecem os um com prom isso entre con-texto técnico e gozo.

Efetivam ente, m anifestações com o as doenças psicossom áticas ou os qua-dros pós-traum áticos levam a re-arranjos na vida dos sujeitos. Elas se consti-tuem para eles com o pontos de referência a partir dos quais esses sujeitos instituem , no cotidiano de trabalho e de lazer, um ritm o e regras a respeitar, para m anter essas m anifestações dentro dos lim ites do suportável.

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Convém m arcar, m ais um a vez, que esse m ecanism o trans-individual ou social de individualização é bastante diferente daquele que se organiza em torno dos Nom es-do-Pai ( tam bém cham ados Significantes Mestres) , ou seja, em torno da-queles significantes que descobrim os a posteriori terem sido os balizadores de um a trajetória de vida. As identificações aos Nom es-do-Pai induzem um retorno de gozo ( o gozo fálico) descrito por Freud através da noção de Supereu e dos m ecanism os da culpabilidade. Tornou-se entretanto difícil a realização de um m andato significante no m undo sim bólico de nossas técnicas, que se m antém perfeitam ente ignorante a propósito das determ inações particulares a cada sujei-to e só leva em conta, nas suas deliberações, o cálculo dos cussujei-tos e benefícios. Em nossos dias o gozo fálico não encontraria m ais condições favoráveis para a sua realização: o valor do ideal se deteriorou ( MILLER, J.-A., LAURENT, E. 1996-97) e, m ais que isso, a m ontagem de nosso m undo técnico, tal com o vim os, inviabiliza progressivam ente a representação significante do sujeito: ela só quer dele um a resposta padronizada. Não há, portanto, espaço para que o sujeito se individualize através do desdobram ento na cultura, de um significan-te que ele significan-tenha incorporado de form a especial, um S1, significansignifican-te que o re-presenta para os outros significantes. O que vem , hoje, com o decorrência da m ontagem técnica do m undo, cum prir esta função de ancoragem dos sujeitos são as m anifestações de m al-estar. Elas causam o sujeito que, no m ovim ento de evitá-las, tende a ser re-enviado a um a adesão ao saber que funciona, tentando fixar um a coerência, um a identidade. Dito de outro m odo, o sujeito se divide pela incorporação dos efeitos entrópicos do funcionam ento e tenta se suturar por um a adesão renovada a esse m esm o funcionam ento que, no entanto, conti-nua a não perm itir a inscrição de um nom e próprio.

Na tentativa de se suturar, o sujeito dividido pela em ergência de um a zona heterogênea tom a a operacionalidade do saber técnico com o suporte para o exercício de um “eu”, que se m otiva na recusa da condição de objeto de um gozo, que ele não reconhece com o seu. O sujeito não reconhece esse gozo com o seu porque realm ente não lhe é possível articulá-lo a um desejo. As m a-nifestações que analisam os não são o resultado do deslocam ento significante da realização de um im pulso, elas são respostas que dão consistência a um Outro gozador, do qual elas são objeto.

É a partir da experiência de descontrole e de im potência, através da qual esse gozo se m anifesta, que o sujeito encontra m otivo para um esforço renova-do de autodisciplina em suas performances na rede do saber operacional. Mas ele só acede a algo que possa individualizá-lo, nesse exercício sobre a organização técnica, através de um excesso com relação à sua operacionalidade.

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m al-estar social. Ela se revela pelo “eu sou nervoso”, através do qual o sujeito se constitui em excesso à indiferença das seqüências técnicas. Ela se m ostra igualm ente no “eu sou responsável” ou nos exercícios de autodisciplina pelos quais os sujeitos se individualizam em oposição à falta de controle sobre os acontecim entos que, na ordem do m undo das redefinições operacionais, afetam suas vidas. Ela reaparece no “eu sou doente” que perm ite a seu sujeito organizar um ritm o em suas atividades, em função do controle ou da evitação de seu m al-estar. Ela se m ostra ainda no “eu sou alcoólico”, através do que os sujeitos se suturam , exercitando um “eu” que perm anece fixado na experiência de im po-tência vivida no vício. A fixidez dessa identidade, que se conquista através de um exercício que independe da rede de saber que o suporta, nos faz postular que se trata de um a identidade im aginária. Além disso, essas identidades estão sem pre ancoradas em um substrato orgânico, em um a particularidade que deve se escrever no corpo.

Deixando essa discussão sobre o caráter im aginário do processo de iden-tificação para um outro m om ento, podem os concluir que a m ontagem signi-ficante do nosso m undo técnico favorece um m odo particular de divisão e sutura do sujeito, que só se esclarece com o conseqüência de um a conjunção histórica, na interseção da política, da econom ia e da ciência, que pôde in-crustar em posição de com ando um saber operacional fundado sobre o cálcu-lo sim bólico do sujeito. Um a vez que esse arranjo se encontra instalado, ele tem força para constranger no sentido da reprodução da divisão do sujeito que lhe é própria. A generalização das condições im postas por esse arranjo histórico e a m aior coerência de seus m eios, que elim inam cada vez m ais os elem entos que encarnam a exceção significante na cultura, estão fortem ente vinculados às m anifestações sintom áticas do tipo estudado, que são, afinal, o resultado de um esforço de individualização.

Recebido em 14/ 3/ 2002. Aprovado em 8/ 5/ 2002.

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Maria Bernadete de Carvalho Rua Juiz de Fora 1.347, ap. 06 30180-061 Belo Horizonte MG Tel. ( 31) 3275-4259

Referências

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