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Dissolução e aleatoriedade: a estética do romance na obra Almoço nu de William S. Burroughs. -

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Academic year: 2017

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FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Dissolução e aleatoriedade: a estética do romance na obra

“Almoço Nu” de William S. Burroughs

Luis Fernando Catelan Encinas

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UNESP

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

Campus Marília

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP

DISSOLUÇÃO E ALEATORIEDADE:

A ESTÉTICA DO ROMANCE NA OB

RA “ALMOÇO NU” DE WILLIAM

S. BURROUGHS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: História da Filosofia, Estética.

Discente: Luis Fernando Catelan Encinas.

Orientadora: Dra. Arlenice Almeida da Silva.

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DISSOLUÇÃO E ALEATORIEDADE:

A ESTÉTICA DO ROMANCE NA OBRA “ALMOÇO NU” DE WILLIAM S. BURROUGHS.

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________ Prof.ª Dra. Arlenice Almeida da Silva (UNESP/Marília)

(Presidente e Orientadora)

__________________________________________ Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto (USP/São Paulo)

(1º Examinador)

__________________________________________ Prof. Dr. Peter Pál Pelbart (PUC/São Paulo)

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AGRADECIMENTOS

Assim como meu destino está ligado a outras pessoas, ao encontro com outras pessoas, este trabalho só foi possível com a ajuda e a participação de algumas pessoas. Neste sentido, portanto, eu gostaria de agradecer...

À minha família, Mãe, Pai (R.I.P.), Lê, Lauren, etc., pelo suporte. À Ane Carolina, por tudo o que a gente já viveu junto, e pelo amor.

Aos meus amigos, Paulão Marafão, Fabinho, Mateus, Caled, Paulão Cotia, Xampu, Gustavo, Rodrigo, Herbert, Thien, etc., pela máxima inspiração.

Aos colegas de Pós-graduação, Tércio Bugano, Raphael Guazzelli, Fernando Aun, Débora Barbam, Tomás Menk, Márcio Girotti, Cláudia Galassi, Flávia Quintanilha, pela amizade.

Em especial, à professora Dra. Arlenice A. da Silva, pela paciente e enriquecedora orientação.

Aos professores Drs. Celso F. Favaretto e Peter P. Pelbart, pela honrosa oportunidade de tê-los em minha banca.

Ao professor Dr. Ubirajara Rancan de A. Marques, pela sempre “pr onto-generosa” disponibilidade.

À Aline, ao Paulo e à Edna, a todos os secretários da Graduação e da Pós-graduação em Filosofia, pela gentileza e atenção dispensadas.

Ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNESP-Marília, por proporcionar as condições “objetivas” para a realização deste trabalho.

À CAPES, pelo apoio e financiamento de minha pesquisa.

EU AMO VOCÊS TODOS! SEM VOCÊS ESTE TRABALHO TERIA SIDO IMPOSSÍVEL!

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RESUMO:

Como consequência da experiência histórica, as formas de dominação ganharam cada vez mais espaço na produção literária, até se constituírem num dos principais temas do romance ao longo de todo o século XX. Vários escritores configuraram esteticamente o problema do poder, desenvolvendo uma narrativa cujo tema central é a dominação; dominação essa perpetrada pelos totalitarismos de direita e esquerda. Mas é na obra do escritor norte-americano William S. Burroughs (1914-1997) que os mecanismos de dominação ganharão um novo estatuto, em especial na obra Almoço Nu (1959), na qual aparecem configurados os novos modos de dominação que emergiram a partir da Segunda Grande Guerra: monopólios, burocracias, estruturas de controle, etc. Outras características formais, não menos relevantes, acompanham a emergência das novas temáticas, principalmente os signos de dissolução e aleatoriedade que percorrem o livro de Burroughs, abolindo em definitivo qualquer exigência de unidade configuradora ao instaurar uma nova combinação entre forma de expressão e forma de conteúdo. De qualquer modo, um estudo do romance de Burroughs que leve em consideração todas essas particularidades exige um aparato conceitual apropriado. Neste sentido, a obra de Gilles Deleuze (1925-1995) fornece alguns elementos teóricos para a análise de Almoço Nu, a exemplo da noção de sociedades de controle, retirada da obra de Burroughs. Assim, o presente estudo busca apreender de que forma o romance Almoço Nu nos aponta as transformações temáticas e composicionais no romance da segunda metade do século XX correspondentes à experiência histórica na qual o problema da dominação veio a ocupar lugar de destaque nas produções literárias.

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ABSTRACT:

As a consequence of historical experience, forms of domination have gained more space in the literary production, even if they constitute one of the main themes of the novel throughout the twentieth century. Several writers have shaped the aesthetic problem of power, developing a narrative whose central theme is domination, domination perpetrated by the totalitarian regimes of right and left. But it is the work of American writer William S. Burroughs (1914-1997) that the mechanisms of domination will gain a new status, especially in the work Naked Lunch (1959), in which they appear set new modes of domination that emerged from the Second World War: monopolies, bureaucratic structures, control, etc. Other formal features, not less relevant, accompanying the emergence of new themes, especially the signs of dissolution and randomness that run through the book of Burroughs, ultimately abolishing any requirement to establish a unit set up by combining new form of expression and form of content. In any case, a study of the Burroughs novel that takes into account all these specific requires a conceptual apparatus appropriate. In this sense, the work of Gilles Deleuze (1925-1995) provides some theoretical elements for the analysis of Naked Lunch, like the notion of societies of control, withdrawal from work of Burroughs. Thus, this study seeks to learn how the novel Naked Lunch points out the thematic and compositional changes in the novel of the second half of the twentieth century, corresponding to the historical experience in which the problem of domination came to occupy a prominent place in literary productions.

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Sumário:

Introdução...8

Capítulo 1. Elementos para uma análise de Almoço Nu...21

Capítulo 2. Texto e contexto: um estudo histórico-literário...37

Capítulo 3. O Almoço está servido...59

3. 1. Contrapontos e deslocamentos...66

Capítulo 4. As sociedades de controle...84

CONSIDERAÇÕES FINAIS...93

ANEXO: DADOS BIOGRÁFICOS DE WILLIAM SEWARD BURROUGHS, DO NASCIMENTO ATÉ O ANO DA PUBLICAÇÃO DE “ALMOÇO NU” (1959)...96

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Introdução

Pode uma obra como Almoço Nu, completamente apartada das estruturas narrativas tradicionais, ser chamada de romance? Como bem salientou o escritor Norman Mailer, o livro de Burroughs “não é um romance em qualquer sentido convencional, com o que, então, surge a questão de se saber se é romance mesmo, em relação a qualquer sistema de referência (...)”.1 Essa afirmação é correta se também levarmos em conta o fato de que Burroughs foi um dos principais escritores de uma longa linhagem literária considerada “sem enredo”. Não parece exagerado, portanto, afirmar que a atitude de Burroughs, ao desferir um golpe de misericórdia na narrativa tradicional, signifique muito mais do que o simples desejo de criar um “estilo” único; representa, antes, um gesto de verdadeira honestidade intelectual em consonância com seu próprio tempo. Ora, assim como a maioria dos escritores modernos, Burroughs abole o ordenamento cronológico linear, ao mesmo tempo em que se abstém de empregar um narrador onisciente, supostamente confiável; no seu lugar, são empregados inúmeros pontos de vista ou múltiplas perspectivas, todas mais ou menos limitadas (um escritor, por conseguinte, dedicado a “desrealizar”, a desfazer a narrativa tradicional).2 Consciente desses aspectos, o teórico Laurent Jenny destaca a singularidade do livro de Burroughs ao considerar os resultados advindos do emprego da técnica do cut-up:

A narrativa esvai-se, a sintaxe explode, o próprio significante abre brechas, a partir do momento em que a montagem dos textos deixa de se reger por um desejo de salvaguardar, a todo preço, um sentido monológico e uma unidade estética.3

Estas considerações introdutórias são muito importantes, principalmente no que tange à possibilidade de pensarmos no significado do gênero “romance”. Neste sentido, consideramos essencial a afirmação da escritora canadense Margaret Atwood relativamente à forma romanesca:

Quando se fala em ficção, as pessoas cometem o erro de achar que toda ficção é ou deveria ser chamada “romance”. E por “romance” entendem realismo, é isso que querem dizer - ou algo que se pareça com realismo -, querem dizer Jane Austen ou George Elliot. Mas de fato há muita ficção em prosa que não é romance naquele sentido. Mas, sobre misturar gêneros, bem, por que não? Existem regras para

1 MAILER, 1966, p. 28.

2 Como veremos, mesmo as personagens do romance, ao perderem sua “densidade” pessoal, elas mesmas se tornam ricas em múltiplas interpretações possíveis.

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isso? As regras estão na cabeça de certos críticos, mas escritores não dão atenção para isso.4

Burroughs parece ter solapado os fundamentos do romance tradicional, tais como enredo, linearidade e, sobretudo, a unidade formal; esta foi definitivamente abolida por ele, bem como pela maioria dos escritores modernos (a exemplo de Joyce, Gide e, posteriormente, com os surrealistas). A unidade formal foi dissolvida em favor de vários registros narrativos. Mais do que isso: como veremos adiante, ao se utilizar do método cut-up, Burroughs acaba por abolir toda e qualquer forma de subordinação entre os diversos registros narrativos (tais registros, independentes entre si, não se subordinam a uma unidade formal). Desse modo, evidencia-se a essência do cut-up, enquanto técnica narrativa desenvolvida por Burroughs, como uma organização textual que rompe com o discurso horizontal, com a narrativa linear, em favor de uma verticalidade consistente na reunião de um imenso domínio de diferenças entre diversos registros, proporcionando assim uma leitura não-linear independente da sequência numérica dos capítulos.5

É talvez apoiado nesta ideia que Burroughs faz a seguinte afirmação: “Pode -se abordar Almoço Nu a partir de qualquer ponto de intersecção...”.6 Neste trecho, o autor adverte sobre a possibilidade de se “abordar” a obra a partir de qualquer ponto, sem nenhuma preocupação com o princípio de causalidade, ou seja, enquanto agente promotor de uma ação. Apenas aparentemente e em relação às leis de conjunto é que esta fórmula é negativa, mas em termos de potência, ela deve ser entendida positivamente: a ausência de ligação, e de sentido, é algo positivo, se constituindo na força específica desse tipo de formação.

No nosso entender, a ausência de uma continuidade lógica ou narrativa é uma das principais características da obra de Burroughs. Com a técnica do cut-up, as

4Folha de São Paulo, São Paulo, 26 de outubro de 2003. Caderno Mais!, p. 03.

5 Como tentaremos evidenciar ao longo deste trabalho, em termos de método, o problema de fundo que se

coloca aqui é o de como pensar duas ou mais séries, dois ou mais registros, num espaço de diferença, e não mais dialeticamente, ou seja, como contrários (opostos). É todo um domínio das multiplicidades que está em questão com o método cut-up... “É preciso que cada termo de uma série, sendo já diferença, seja

colocado numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries desprovidas de centro e de convergência. É preciso afirmar a divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser deve ver sua própria identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só uma diferença entre as diferenças. É preciso mostrar a diferença diferindo. Sabe-se que a obra de arte moderna tende a realizar estas condições: neste sentido, ela se torna um verdadeiro teatro feito de metamorfoses e de permutações. Teatro sem nada fixo ou labirinto sem fio (Ariadne se enforcou). A obra de arte abandona o domínio da

representação para se tornar ‘experiência’, empirismo transcendental ou ciência do sensível” (DELEUZE,

1988, p. 94).

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relações narrativas foram inteiramente modificadas, desaparece o âmbito da comunicação dotada de sentido, uma vez que aqui, em última instância, já não transcorre ação alguma. Completamente esvaziado de sentido ou direção, o livro de Burroughs converte-se numa espécie de reflexão sobre o problema do vício em si enquanto um modelo de controle; a narrativa, portanto, não chega ao fim, mas se dissipa, esvaindo-se pouco a pouco: é a falência, no plano narrativo, das chamadas narrativas históricas ou tradicionais.7 Isto, contudo, não significa dizer que nos romances contemporâneos não acontece mais nada: como afirma Robbe-Grillet, “não se deve assimilar a pesquisa de novas estruturas da narrativa a uma tentativa de supressão pura e simples de todo acontecimento, de toda paixão, de toda aventura”.8 O resultado portanto é uma escrita aparentemente aleatória, contrária à ordem discursiva linear, em que cada registro narrativo é independente, isto é, regido por suas próprias leis e representações. E mais: em que pesem a aparente desordem narrativa, o amálgama de registros e a disposição aleatória dos capítulos, não se pode negar ao livro de Burroughs a existência de uma estrutura mais ou menos premeditada – ainda que ela só se deixe apreender ao final da leitura. Dessa forma, poderemos constatar que, apesar da aparência mais ou menos caótica (ou seja, fragmentária e algo desordenada) do encadeamento textual, o livro de Burroughs apresenta uma conexão de ideias bastante consequente.

Em todo o caso, a imagem que melhor traduz esse enorme sistema de afinidades morfológicas, esse composto de vários registros, é a ideia de rede, em oposição à noção de teia, com seus centros de distribuição e convergência, correspondendo a uma espécie de topologia indiferente a qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora, sem posição de saída, um sistema em última análise aberto:

Nem sequer um quebra-cabeça, cujas peças ao se adaptarem reconstituiriam um todo, mas antes como um muro de pedras, não cimentadas, onde cada elemento vale por si mesmo e no entanto tem relação com os demais: isolados e relações flutuantes, ilhas e entre-ilhas, pontos móveis e linhas sinuosas, pois a Verdade tem sempre “bordas retalhadas”. Não um crânio, mas um cordão de vértebras, uma

7 O problema de fundo que se coloca aqui é a falência das chamadas narrativas históricas ou tradicionais,

isto é, a perda de sentido se transforma no problema central do romance contemporâneo, convertido, segundo algumas interpretações, em reflexão sobre o Nada (a exemplo de Burroughs, Pynchon e Bolaño). Na verdade, este tipo de problemática pode ser remetido à obra de Flaubert, especialmente ao seu

romance “Educação Sentimental” (1869). Mas a perda de sentido aqui está associada à ideia de desilusão

(descrença), e muito longe de aboli-las, a narrativa flaubertiana conserva ainda a unidade estética e o sentido monológico do texto. Em todo o caso, todos estes romances são extremamente pobres em enredo e em ação...

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medula espinhal; não uma vestimenta uniforme, mas uma capa de Arlequim, mesmo branco sobre branco, uma colcha de retalhos de continuação infinita, de juntura múltipla (...) a invenção americana por excelência, pois os americanos inventaram a colcha de retalhos, no mesmo sentido em que se diz que os suíços inventaram o cuco.9

Neste sentido, somente a categoria de multiplicidade, a própria ideia de multiplicidade erigida em forma, é capaz de explicar esse grande composto formado por vários registros. O livro de Burroughs é multiplicidade pura, ou seja, afirmação irredutível a qualquer unidade configuradora. Diferentemente da totalidade hegeliana, a totalidade produzida aqui é produzida por adjacência ou contiguidade, como uma parte ao lado das partes, que ela não unifica nem totaliza – uma unidade entre registros narrativos que conserva toda a sua diferença nas suas próprias dimensões, enquanto conjunto de partes heterogêneas. “O Verbo divide-se em partes que formam uma unidade e assim deve ser encarado, mas tais partes podem ser abordadas em qualquer ordem, jogadas de um lado para o outro e exploradas de frente e de costas (...)”.10

Temos muito ainda que dizer sobre o livro de Burroughs. Adiante nos ocuparemos dele em filigranas. No entanto, tudo não passará de um recorte. A quase infinita sucessão de cenas que há em Almoço Nu torna quase impossível uma verdadeira apresentação, uma apresentação que esgote integralmente o seu conteúdo. Isto porque nenhum elemento do texto é suscetível de uma só interpretação e todas as figuras podem ser cambiadas. Na verdade, a tradição crítica “intelectualista” quase sempre procura estabelecer um significado unívoco, mas, com isso, perde o essencial, pois a única coisa que é possível constatar e que corresponde à sua natureza [o livro de Burroughs] é a multiplicidade de sentidos, a riqueza de referências quase ilimitadas que impossibilita toda e qualquer formulação unívoca de seus conteúdos. Assim, interessa-nos muito mais conhecer sua estrutura, seu funcionamento (as relações contrapontísticas, os deslocamentos espaciais, etc.), do que encontrar seu “significado”. Pois enquanto a expressão ou a forma não forem consideradas em si mesmas, não será possível encontrar uma verdadeira resposta, mesmo ao nível dos conteúdos, para o problema da multiplicidade de sentidos ou de perspectivas.11 Só a expressão é que nos explica o

9 DELEUZE, 1997, p. 100.

10 BURROUGHS, 2005a, p. 235.

11 Ou, como diz Robbe-Grillet: “O mesmo acontece com uma sinfonia, uma pintura, um romance: é na

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funcionamento.12 “É absolutamente inútil recensear um tema num escritor se não se questionar a sua importância precisa na obra, isto é, sem se saber como é que funciona exatamente (e não o seu ‘sentido’)”.13

Neste sentido, partilhamos da opinião de Deleuze, para quem existe apenas duas maneiras de se ler um livro:

É que há duas maneiras de ler um livro. Podemos considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado, e aí, se formos ainda mais perversos ou corrompidos, partimos em busca do significante. E trataremos o livro seguinte como uma caixa contida na precedente, ou contendo-a por sua vez. E comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o livro do livro, ao infinito. Ou a outra maneira: consideramos um livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é: “isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro. Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar.14

Das duas modalidades de leitura estabelecidas por Deleuze, sem dúvida, a que mais se aproxima dos objetivos deste trabalho é a denominada leitura em intensidade, a qual procura estabelecer a plurivocidade do próprio texto, a ambiguidade e multiplicidade aparentemente ilimitada das figuras, em vez de destacar da cadeia significante um único elemento, um único significado, esmagando e submetendo todo o restante a esse “objeto” único, como faz a outra forma descrita por Deleuze. Neste ponto, deixemos que Burroughs novamente defina essa pluralidade, essa diversidade de elementos que compõe o texto de Almoço Nu:

Este livro derrama-se em todas as direções para fora de suas páginas, em um caleidoscópio de paisagens, miscelânea de canções e ruídos urbanos, peidos e urros de tumultos e estrondo de pantográficas de casas comerciais, gritos de dor e pathos e gritos de simples pederastia, gatos que copulam e guinchos injuriados do bagre extraído de seu habitat, resmungos proféticos do brujo em seu transe de noz-moscada, pescoços partidos e gritarias de mandrágoras, suspiros de orgasmos, heroína silenciosa como a aurora nas células sedentas, Rádio Cairo com berros dignos de um leilão de tabaco ensandecido e flautas de Ramadã abanando o junky enjoado como um delicado ladrão de bêbados na aurora macilenta do metrô, buscando o tato das verdinhas com seus dedos apurados...

12 Como veremos no 2º capítulo, o problema da expressão não é colocado inicialmente por Burroughs de

um modo abstrato ou universal, mas em conexão com as vanguardas literárias do começo do século XX, tais como o dadaísmo, o surrealismo...

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Esta é a Revelação e a Profecia do que consigo captar sem FM com meu aparelho de cristal modelo 1920 com antenas de esperma... 15

Cabe explicarmos ainda a estrutura do nosso trabalho. Em linhas gerais, os principais tópicos que formam a parte essencial desse trabalho (terceiro e quarto capítulos) são os seguintes: 1) – A técnica do cut-up enquanto procedimento linguístico geral; 2) – A dissolução da unidade formal num enorme sistema de afinidades morfológicas, um composto de vários registros (os contrapontos narrativos); 3) – Os inúmeros deslocamentos constituídos no interior do romance enquanto símbolos de desterritorialização, os quais terminam, do mesmo modo, por dissolver toda e qualquer unidade; 4) – As sociedades de controle, noção deleuziana retirada da própria obra de Burroughs (o pensamento do controle).

Com relação aos dois primeiros capítulos, que juntos formam a primeira parte do trabalho, eles levam os seguintes títulos: 1) – Elementos para a análise de

Almoço Nu; 2) – Texto e contexto: um estudo histórico-literário. No primeiro capítulo, procuramos fornecer alguns elementos que consideramos fundamentais para a análise de

Almoço Nu, tais como a noção de configuração flutuante em oposição às identidades fixas, personológicas, e o vício como protótipo para outras formas de controle, introduzindo de maneira preliminar o pensamento do controle enunciado por Burroughs. No segundo capítulo, como o próprio nome indica, realizamos um estudo histórico-literário, no qual procuramos analisar algumas filiações e influências associadas à obra de Burroughs, tais como as vanguardas artísticas européias, a tradição literária norte-americana, etc.

Neste ponto, procuremos explicitar melhor as partes componentes deste trabalho apresentadas acima, sobretudo no que tange ao significado dos cut-ups, à noção de configuração flutuante em oposição às identidades fixas, à dissolução da unidade formal e ao problema do controle. Em primeiro lugar, o traço de expressão informe que se opõe à forma expressiva, fugindo à forma linguística tradicional (a questão da técnica do cut-up enquanto procedimento geral). Em segundo lugar, já não existe um sujeito que alcance qualquer forma de densidade pessoal. Diríamos de preferência que se estabelece aqui uma zona de indeterminação, de indiscernibilidade, como se eles tivessem atingido o ponto que precede qualquer diferenciação personológica. Em terceiro lugar, a estrutura do texto está assentada sobre uma multiplicidade de elementos que já não depende de nenhuma unidade configuradora, expressa na ideia de dissolução

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da unidade formal, segundo uma linha de composição autônoma de vizinhança e contiguidade (contrapontos narrativos). E por último, as formas de controle ao ar livre que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. São as quatro características do livro de Burroughs, que compõem a novo estatuto da literatura americana produzida no pós-guerra: o traço de expressão informe, a zona de indeterminação, a dissolução da unidade formal e o pensamento do controle. E neste sentido, nosso objetivo consistirá em analisar e compreender o melhor possível todas essas características.

No nosso entender, a atualidade da reflexão proposta pelo nosso trabalho sobre Burroughs talvez seja a de problematizar a tendência das nossas sociedades modernas em dissolver, em desfazer todos os códigos, convertendo-os em puros fluxos (segundo Deleuze & Guattari, “uma predileção destrutiva e mortuária”.16). É justamente para essa tendência ou predileção que pretendemos apontar com a ideia de dissolução, em todos os seus níveis e esferas, como aparece indicado no próprio título de nosso trabalho: “Dissolução e aleatoriedade...”. Outra característica importante de nosso trabalho consiste na tentativa de interpretar todos esses signos de dissolução e aleatoriedade em termos de um esvaziamento, de um esgotamento das possibilidades de realização do homem ocidental (como está posto ao fim do terceiro capítulo de nosso trabalho). É neste registro, portanto, que devemos entender a falência das chamadas narrativas históricas ou tradicionais, ou seja, enquanto esgotamento das possibilidades formais.

Tal como foi definido anteriormente, a ideia mesma de dissolução se insinua por toda a obra de Burroughs, desfazendo não apenas as identidades discerníveis, bem como a unidade formal: desfaz-se a unidade, a sistemática, como expressão e símbolo, cedendo lugar à ideia de multiplicidade, a uma espécie de produção contínua de hipóteses e perspectivas. De qualquer maneira, a noção que melhor traduz esse enorme

16 “A civilização define-se pela descodificação e pela desterritorialização dos fluxos na produção capitalista. Todos os processos são bons para fazer essa decodificação universal: a privatização não só dos

bens, dos meios de produção, mas também dos órgãos do próprio ‘homem privado’; a abstração não só

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sistema de afinidades morfológicas é a noção de função, a função concebida aqui como relação entre partes heterogêneas, como relação contrapontística, relação entre relações. No que diz respeito à perda das identidades discerníveis, elas parecem ter sido substituídas por novas subjetividades, sem identidade, sem uma base substancial unitária ou forma de interioridade, ou seja, a subjetividade se converte em função mesma, a função como singularidade, como elemento, como relação variável, irredutível a limites personológicos.Do mesmo modo, a ideia de dissolução parece ter afetado também à própria forma do poder: como uma função contínua e livre, os mecanismos disciplinares se difundem em todas as direções, tornando-se independentes dos meios de confinamento. Neste sentido, com o advento das chamadas sociedade de controle, torna-se quase impossível acertar a localização pontual dos mecanismos disciplinares, dissolvidos em todo o campo social, como uma extensão dos mecanismos disciplinares para além dos próprios meios de confinamento, uma espécie de “sublime” desenvolvimento do poder disciplinar chegado ao ponto de prescindir dos próprios estabelecimentos de disciplina. Assim, como se pode notar pelo exposto acima, a ideia de dissolução nos conduziu a uma noção que incide diretamente sobre todo o conjunto de nossas reflexões: a noção de função. E neste sentido, o que de fato tentamos em nossa pesquisa foi problematizar estes três aspectos da noção de função, a função concebida aqui em termo de relações: a função enquanto relação variável (as configurações flutuantes), a função enquanto relação entre relações (os contrapontos narrativos), e a função enquanto relação contínua e livre (as sociedades de controle). Neste sentido, portanto, nosso trabalho possui três eixos principais, sendo todos os três entendidos segundo a forma da função: 1) – Forma ou configuração; 2) – Subjetividade; 3) – Controle.

Entretanto, vale ressaltar, a noção de função utilizada aqui se refere apenas em parte à função descrita por Deleuze & Guattari, isto é, a função como proposição científica, como função de conhecimento.17 Pois o que pretendemos com esta noção é

17 A ciência não tem por objeto conceitos, mas funções que se apresentam como proposições nos

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justamente aquilo que determina um certo tipo de relação que constitui a própria essência da função matemática: relação entre relações. Neste sentido, a função deve ser entendida aqui como processo, como operação e, portanto, não como estado ou grandeza, mas como comportamento, como atividade.18 Evidentemente, como dissemos, a noção assim compreendida tem origem matemática, em especial nas investigações da teoria das funções, as quais buscam como resultado não uma grandeza – pois a relação entre grandezas se chama proporção19 –, senão a discussão de possibilidades gerais, formais. Em outras palavras: este tipo de investigação estuda classes inteiras de possibilidades formais, grupos de funções, operações, equações e curvas, e não as estuda em vista de qualquer resultado, mas com respeito a sua realização e comportamento, o que em última análise, como veremos, se aproxima muitíssimo do que Burroughs fez em seu Almoço Nu. Todavia, não se trata de dizer que o livro de Burroughs faz o que a teoria das funções fez. Mas se tomarmos unicamente esta determinação da função: que existem funções constantes que podem ser diferenciadas apenas em parte ou não podem ser de modo algum, então é isto uma função de Burroughs (como, por exemplo, as configurações flutuantes, irredutíveis a limites personológicos, a qualquer forma de determinação). É claro que Burroughs não é um Weierstrass, mas ele faz na literatura a mesma coisa que se produziu na teoria das funções, ou seja, existe como que um eco, uma espécie de intersecção entre ambos.20 Portanto, não parece exagerado afirmar que Burroughs está próximo da teoria das funções. Não se trata de dizer que Burroughs imita determinado tipo de investigação matemática, mas de constatar que entre ambos existem semelhanças, relações de ressonância, etc.

Mas, com isso, não pretendemos “interferir” de maneira alguma em outros domínios. Naturalmente, temos o dever de justificar a utilização feita, aqui, da noção de função. Pois se utilizamos, aqui, de conhecimentos matemáticos no domínio estético-filosófico, eles naturalmente aparecem sob uma nova luz e levam a outras conclusões que não àquelas limitadas pelo domínio de sua especialidade, onde servem a outros fins. Mas o fato de uma noção matemática estar no horizonte deste estudo implica que a ideia

18“A função, concebida corretamente, é a existência pensada em atividade” (Goethe apud SPENGLER, 1923, p. 118).

19“A relação entre grandezas se chama proporção; a relação entre relações constitui a essência da função” (SPENGLER, 1923, p. 115). Ademais, toda proporção supõe a constância dos elementos; toda transformação (que na teoria das funções tem uma importância decisiva), no entanto, a sua variabilidade. 20 Karl Wilhelm Theodor Weierstrass (1815-1897), matemático alemão que forneceu as bases para a

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de função, em sentido mais amplo, penetra no campo da discussão estético-filosófica, com todas as suas consequências. Estes conhecimentos, então, perdem o caráter independente que possuem em seu domínio especializado, e isto porque são necessariamente interrogados sob um ângulo novo, diferente (neste caso, a disciplina “interferente” procede com seus próprios meios, com seus elementos próprios). Portanto, eles não são mais considerados sob o ângulo da verdade matemática, mas examinados num outro sentido, isto é, extrinsecamente, no sentido de apurar o que comportam de significação e de fundamento estético-filosófico. Deste modo, gostaríamos de propor como um “índice” para nossas análises, ainda que de maneira parcial e incompleta, o conceito de função, conceito este que, como já dissemos, incide diretamente sobre todo o conjunto de nossas reflexões: a noção de função, concebida aqui em termos de relações: a função enquanto relação entre relações (os contrapontos narrativos), a função enquanto relação variável (as configurações flutuantes) e a função enquanto relação contínua e livre (as sociedades de controle).

Mas, para tal, cabe fazermos ainda uma outra distinção relativamente à diferença entre o conceito filosófico e a função científica enquanto dois tipos de multiplicidades ou variedades que diferem em natureza. Pois, segundo Deleuze & Guattari, existem algumas instâncias de oposição principais entre filosofia e ciência, que agrupam as séries de functivos de um lado, e as pertenças de conceitos de outro, podendo ser expressas da seguinte forma: a ciência, por um lado, tem como qualidade distintiva os functivos, variáveis independentes construídas sobre um plano de referência que determinam estados de coisas ou misturas de corpos; a filosofia, por outro lado, tem como qualidade distintiva os conceitos, variações inseparáveis erigidas sobre um plano de imanência que exprimem acontecimentos. É neste sentido, portanto, que Deleuze & Guattari dizem que os conceitos e as funções se apresentam como dois tipos de multiplicidades que diferem em natureza...

A função, na ciência, determina um estado de coisas, uma coisa ou um corpo que atualizam o virtual sobre um plano de referência e num sistema de coordenadas; o conceito, na filosofia, exprime um acontecimento que dá ao virtual uma consistência sobre um plano de imanência e numa forma ordenada. 21

Na opinião de Deleuze & Guattari, estas distinções não são coisas de somenos importância, pois uma confusão entre conceitos de um lado e funções de outro pode ser ruinosa em vários aspectos. Assim, segundo eles, só se descobre a

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irredutibilidade dos conceitos às funções se se compara o que constitui a referência de umas e o que faz a consistência dos outros, ou seja, que os estados de coisas ou misturas dos corpos formam as referências da função, ao passo que os acontecimentos são a consistência do conceito. Estes são, portanto, os termos que é preciso considerar em vista de qualquer redução ou síntese possível. Contudo, a questão de fato que se coloca aqui é que a noção de função parece (ou poderia) se estender a outros domínios, para além dos limites de seu próprio domínio de especialidade. Segundo o próprio Deleuze (a propósito de Bernard Cache), as qualidades da função, a função enquanto manifestação das relações variáveis, concernem à própria situação contemporânea, em que a ideia de flutuação, por exemplo, substitui a permanência de uma lei, ou quando um objeto ocupa lugar em um contínuo por variação. Assim, diz Deleuze:

Pelo seu novo estatuto, o objeto é reportado não mais a um molde espacial, isto é, a uma relação forma-matéria, mas a uma modulação temporal que implica tanto a inserção da matéria em uma variação contínua como um desenvolvimento contínuo da forma. (...) É uma concepção não só temporal mas qualitativa do objeto, visto que os sons, as cores, são flexíveis e tomados na modulação. É um objeto maneirista e não mais essencialista: torna-se acontecimento.22

Mas – voltemos a afirmar – para se chegar a esta concepção de função foi necessário que a função não se definisse mais pela sua forma matemática ou científica, mas caracterizasse uma nova ordem de relações enquanto conjunto das relações variáveis. Foi preciso, pois, inventar um novo tipo de função, de natureza propriamente filosófica: “(...) é na medida em que a filosofia está apto a criá-lo, que temos o conceito de uma função”.23 E é neste sentido, portanto, que entendemos que o livro de Burroughs demarca claramente um conjunto de relações variáveis que não pertence à função como tal (a função científica, por exemplo), como sendo composto a partir de vários elementos ordenados, cujas partes são independentes entre si mas que, apesar disso, funcionam conjuntamente, ou seja, comportando-se ao mesmo tempo como unidade e como multiplicidade. Como teremos ocasião de demonstrar no terceiro capítulo (em 3.1. “Contrapontos e deslocamentos”), seus elementos enquanto variáveis independentes são relativos uns em relação aos outros, mas cada um deles é absoluto em si mesmo, ou seja, é dotado de um sentido suficiente (disso decorre, como veremos, o próprio estatuto das ordenadas intensivas, já que, segundo Deleuze, o próprio da intensidade é ser ela

22 DELEUZE, 1991, p. 38-39.

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constituída por uma diferença que remete, ela própria, a outras diferenças, isto é, enquanto absoluta e relativa...)

Como se poderá perceber ao longo da leitura, nosso trabalho possui um determinado sentido de composição, no qual alguns dos tópicos ou temas principais reaparecem ou são retomados em outra parte, numa espécie de processo contínuo de intensificação dos seus conteúdos. Assim, o pensamento do controle, esboçado inicialmente no primeiro capítulo, é retomado no quarto (e último) capítulo através da noção deleuziana de sociedades de controle. Na verdade, essa tendência se manifesta em vários momentos do nosso trabalho, com a ideia de dissolução expressa na noção de entropia, com os inúmeros deslocamentos espaciais constituídos no interior do romance, entre outros.

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que denominamos a perda das identidades discerníveis: para Deleuze, tal perda ou esgotamento representara sempre uma potência positiva, diferentemente de Burroughs, que parece enxergar nesse mesmo acontecimento um elemento de negatividade, como algo destrutivo e mortal, que denominamos de vazio de indeterminação. Assim, nossa leitura de Deleuze possui um caráter eminentemente experimental, porquanto que o objeto central desse trabalho é o texto de Burroughs (ainda que uma leitura fortemente inspirada no pensamento de Deleuze).

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Capítulo 1. Elementos para a análise de Almoço Nu.

Apresentação

O objetivo central deste capítulo é apresentar alguns aspectos importantes para uma análise de Almoço Nu. Para tanto, desenvolvemos o capítulo em torno de alguns temas principais, tais como dados gerais sobre a obra e o autor, o tipo de experiência relatado no livro, o pensamento do controle como problema central da obra de Burroughs, a técnica do cut-up enquanto método de criação literária desenvolvido por Burroughs e, finalmente, a caracterização das personagens do romance, irredutíveis a qualquer forma de determinação, a qualquer diferenciação personológica.

Almoço Nu não é literatura de entretenimento, nem se enquadra no que comumente chamamos de realismo ficcional.24 A obra, originalmente lançada em 1959, foi construída sobre os fundamentos da subversão estilística e do desconforto existencial. Os experimentos realizados com a linguagem em Almoço Nu, com a maneira de se contar uma história, inspirariam uma geração inteira de escritores norte-americanos.25 No entanto, Almoço Nu resiste a qualquer forma de determinação conceitual definitiva; nesse romance, “conceitos abstratos, simples como álgebra, reduzem-se a um monte de bosta ou a um par de cojonesvelhos”.26 O livro também não possui apenas um único “enredo”, muito menos início ou fim; cada um de seus capítulos obedece a uma lógica própria: “Este livro derrama-se em todas as direções para fora de suas páginas”.27

24 O realismo é um movimento artístico-literário que se manifesta na segunda metade do século XIX no Ocidente, que se caracteriza pela pretensão de uma abordagem objetiva da realidade e pelo interesse por temas sociais. O engajamento ideológico e o traço panfletário fazem com que muitas vezes a forma e as situações descritas sejam exageradas para reforçar a denúncia social, a exemplo de Zola. Nesse sentido, o romance de Burroughs não guarda nenhuma semelhança com o chamado realismo. É evidente que

Almoço Nu está repleto de cenas de extremo realismo, ao explorar imagens de forte impacto, mas essas cenas não possuem nenhuma qualidade social redentora. São, ao contrário, o relato direto de determinados grupos de acontecimentos.

25 O principal deles é, sem dúvida, Thomas Pynchon, autor de O arco-íris da gravidade (1973), considerado sua obra-prima. Em O arco-íris da gravidade, facilmente se percebe ecos de William Burroughs no que se refere, por exemplo, aos diálogos cegos, às situações absurdas e, principalmente, no pensamento do controle. Nesse sentido, Pynchon é o grande continuador da obra de Burroughs.

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Escrito de forma fragmentária, Almoço Nu não possui linearidade; é antes um fluxo, uma torrente que arrasta consigo todo tipo de coisas.28 “O sujeito, cujo eu desertou do centro, estende-se por todo o contorno do círculo. No centro está a máquina do desejo...”.29 Qualquer parte do livro, portanto, pode servir de ponto de partida: “Pode-se abordar Almoço Nu a partir de qualquer ponto de intersecção...”.30 Por isso, pela própria natureza de Almoço Nu, não poderemos proceder a uma “leitura” de tipo linear, seguindo a ordem mais ou menos lógica dos capítulos. O livro de Burroughs rompe com esses esquemas demasiadamente simples. Devemos, portanto, abandonar quaisquer expectativas desde a primeira página, deixando-nos levar pelo redemoinho de imagens, acontecimentos e intensidades que percorrem toda a obra, que formam um misto de aleatório e de dependente...

Nenhuma cadeia é homogênea, mas antes um desfile de letras de alfabetos diferentes, onde subitamente aparecesse um ideograma, um pictograma, a minúscula imagem de um elefante a passar ou de um sol nascente. Repentinamente, na cadeia que engloba (sem os compor) fonemas, morfemas, etc., aparecem os bigodes do pai, o braço ameaçador da mãe, uma fita, uma rapariga, um polícia, um sapato. (...) É todo um sistema de agulhagens e sorteio, que formam fenômenos aleatórios parcialmente dependentes, parecidos com uma cadeia de Markoff. (...) Se aqui existe uma escrita, é uma escrita com a forma do Real, estranhamente plurívoca, nunca bi-univocizada, linearizada, uma escrita transcursiva e nunca discursiva: é todo o domínio da ‘inorganização real’ das sínteses passivas, onde em vão procuraríamos algo a que se pudesse chamar o Significante, e que compõe e decompõe ininterruptamente as cadeias em signos que nunca virão a ser significantes.31

Ou ainda, segundo Deleuze:

Não que qualquer um se encadeie com qualquer um. Trata-se antes de lances sucessivos, cada um dos quais opera ao acaso, mas em condições extrínsecas, determinadas pelo lance precedente (...) é sempre um misto de aleatório e de dependente, como numa cadeia de Markov. “A mão de ferro da necessidade que agita os dados do acaso”, diz Nietzsche, invocado por Foucault. Não há pois encadeamento por continuidade nem por interiorização, mas reencadeamento por sobre os cortes e as descontinuidades (mutações).32

28 Discutiremos mais adiante, no 2º capítulo deste trabalho, a noção de fluxo enquanto “afluxo libidinoso” a partir de um referencial psicanalítico.

29 DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 26. 30 BURROUGHS, 2005a, p. 230.

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(...) O acaso só vale para o primeiro lance; talvez o segundo lance se dê em condições parcialmente determinadas pelo primeiro, como numa cadeia de Markov, uma sucessão de reencadeamentos parciais.33

Publicado no ano de 1959, Almoço Nu teve inúmeras versões, a maioria delas organizadas em Tânger, no Marrocos. O livro, segundo James Grauerholz & Barry Miles, estudiosos da obra de Burroughs, “evoluiu de forma lenta e imprevisível ao longo de nove anos tumultuados na vida de seu autor”.34 Eles também dizem que o livro “não foi criado de acordo com um plano ou esquema predeterminado, mas foi crescendo no decorrer de uma década de viagens e de atribulações por quatro continentes (...)”.35 O romance cobre todo o período da vida de Burroughs em que esteve envolvido com drogas, e contra as quais lutava desde a metade dos anos 1940, em Nova York, e que na primavera de 1956 o arrastaria até o fundo mais lamentável de sua dependência, quando vivia num quarto no Bairro Nativo de Tânger.

Neste sentido, Almoço Nu é um livro violento, pornográfico e subversivo, acima de tudo, um livro antiamericano, contrário ao puritanismo e conservadorismo americanos. O livro chegou até mesmo a ser proibido nos EUA por ser considerado um livro obsceno; mais tarde, acabou sendo reconhecido em todo o mundo como uma das obras mais importantes do pós-guerra. De certo modo, o livro coloca em xeque os valores da “próspera” classe média norte-americana, mostrando a ânsia de poderosos e privilegiados, o submundo dos viciados, alcoólatras e homossexuais, marginais de todo tipo. Somente em 07 de julho de 1966, oito anos depois de sua primeira publicação pela Olympia Press de Paris, uma alta instância americana proclamou que o romance possuía “qualidade redentora social” e, portanto, não era obsceno, liberando assim sua publicação em território norte-americano.36 Segundo Miles & Grauerholz, essa data teria marcado definitivamente o final da censura aberta a obras literárias nos Estados Unidos. “Com mais de um milhão de exemplares vendidos em todo o mundo, Almoço Nu conquistou um lugar permanente na literatura norte-americana do pós-guerra”.37 Por exemplo, um fragmento de “Hospital” é bastante revelador da natureza subversiva, antiamericana, do romance de Burroughs, cujas temáticas desmascaram o estilo de vida

33 DELEUZE, 2006a, p.125. 34 BURROUGHS, 2005a, p. 279. 35 BURROUGHS, 2005a, p. 279.

36 Com certeza, as inúmeras proibições e polêmicas em torno de Almoço Nu ajudaram a despertar o interesse pelo livro em todo o mundo; mas isso não significa dizer que o mérito da obra se deva exclusivamente a fatores extraliterários. É nas qualidades formais e temáticas que se deve procurar uma explicação para seu enorme sucesso, passado mais de cinquenta anos.

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americano (o american way of life), o ethos nacionalista, a mentira do sonho americano. A cena em questão transcorre num quarto de hospital, de onde o Agente Lee fora removido:

Passo pelo quarto 10, de onde fui removido ontem... Imagino que tenha sido um caso de maternidade... Comadres cheias de sangue e absorventes e substâncias femininas desprovidas de nome, em volume suficiente para poluir um continente inteiro... Se alguém aparecer em meu antigo quarto para visitar-me pensará que pari um monstro e que o Departamento de Estado está tentando ocultar o caso...38

O episódio produz uma sequência anedótica, na qual um diplomata americano aparece sobre uma plataforma, envolto na bandeira americana, cantando o hino nacional dos Estados Unidos, “The Star-Spangled Banner”, acompanhado por uma orquestra: “O DIPLOMATA (lendo um rolo imenso de fita telegráfica que nunca pára de crescer e emaranhar-se ao redor dos seus pés): – E negamos categoricamente que algum cidadão dos Estados Unidos da América pertencente ao sexo masculino...”.39 Depois de um breve corte na narrativa, o Diplomata continua: “– Que um cidadão dos Estados Unidos da América pertencente ao sexo masculino tenha parido, na Interzona ou em qualquer outro lugar...”.40 Enxugando o suor do rosto, o Diplomata continua: “– Qualquer tipo de criatura de qualquer espécie ou descrição...”.41 A fala do Diplomata é entremeada por trechos do hino norte-americano. Segundo a narrativa, ele perde a cor e cambaleia, tropeça no rolo e desaba sobre uma balaustrada. Sangrando, de forma quase inaudível, o Diplomata, antes de morrer, ainda consegue dizer: “– O Departamento nega... Antiamericano... Foi destruído... Quero dizer, isso nunca... Categor... – E morre”.42 O fragmento termina com um verso de “The Star-Spangled Banner”, o hino nacional norte-americano, o qual diz: “A noite deu prova de que a nossa bandeira ainda estava lá...”.43 Enfim, como bem observou Temperley e Bradbury (1981, p. 330), o livro de Burroughs, em determinados momentos, se assemelha a uma sátira à moda de Uma Proposta Modesta de Jonathan Swift sobre as forças tecnológicas e repressivas que

38 BURROUGHS, 2005a, p. 71. 39 BURROUGHS, 2005a, p. 71. 40 BURROUGHS, 2005a, p. 72. 41 BURROUGHS, 2005a, p. 73. 42 BURROUGHS, 2005a, p. 73.

43 BURROUGHS, 2005a, p. 73. No que tange aos trechosdo livro considerados pornográficos, eles foram

escritos, segundo o próprio Burroughs, como uma espécie de manifesto contra a Pena Capital, imposta ao

mesmo tempo sobre viciados e homossexuais: “Tais trechos têm a intenção de desnudar a pena capital

como o anacronismo obsceno, bárbaro e repugnante que é. Como sempre o almoço está nu. Se os países civilizados desejam um retorno aos Rituais de Enforcamento dos Druidas nos Bosques Sagrados, ou beber sangue com os astecas alimentando seus Deuses com sangue de sacrifícios humanos, que tenham plena consciência do que realmente estão comendo e bebendo. Que vejam de perto o conteúdo das colheres

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atacam a mente e a sexualidade, “(...) um poderoso ato de invenção e uma voz da nova arte de espontaneidade surrealista e caráter provisório que estava entrando na cultura americana numa época de invenção animada, livre”.44

Com relação ao título da obra, segundo Burroughs, ele teria sido uma sugestão do escritor e amigo Jack Kerouac. “O título foi uma sugestão de Jack Kerouac”, disse Burroughs. E acrescenta: “Só fui entender o significado do título depois de minha recente recuperação. O título significa exatamente o que dizem suas palavras: Almoço NU – um momento paralisado no qual todos são capazes de enxergar o que está cravado na ponta de cada garfo”.45 Entretanto, existem alguns relatos conflitantes a respeito da origem desse título. Numa carta de junho de 1960, por exemplo, Kerouac lembra o poeta Allen Ginsberg da origem do título: “Não tenho falado com Burroughs [ultimamente], mas fiquei feliz quando ele mencionou que fui eu quem batizou Almoço Nu (mas foi você, lembra? estava lendo o manuscrito e confundiu ‘naked lust’ com ‘naked lunch’, eu só chamei a atenção para o erro) (...)”.46 Um ato falho cometido por Ginsberg, ao substituir lust (literalmente, “luxúria”) por lunch, estaria na base do título do livro, atribuído posteriormente a Kerouac. Mas, para Grauerholz & Miles, “a carta de 1960 parece definir a invenção do título ‘Almoço Nu’ como uma parceria de Kerouac e Ginsberg”.47 Para além dessa curiosidade de história literária, o título transmite um profundo sentido fenomenológico, uma “objetividade” que pretende chamar cada coisa pelo seu nome correto, no momento de sua aparição, como o momento paralisado do qual fala Burroughs. E, por esse motivo, o real fragmentado se opõe aqui à abstração ideal.

Neste sentido, livro de Burroughs não é acessível sem o concurso da experiência; essa parece ser a única condição imposta ao leitor, ou seja, de que tenha com ele certa afinidade interna. Pois em se tratando da experiência de um estado subjetivo, cuja existência não pode ser legitimada por nenhum critério exterior, nenhuma tentativa posterior de descrição e explicação racional será bem sucedida, visto que só quem fez tal experiência poderá compreender e testemunhar tal realidade. A explicação dada por Burroughs quanto ao sentido da palavra hip (descolado) fornece uma indicação neste sentido, quando afirma que “esta expressão não está sujeita a definições, pois se você não ‘saca’ o que ela significa, ninguém será capaz de lhe

44 BRADBURY e TEMPERLEY, 1981, p. 330. 45 BURROUGHS, 2005a, p. 245.

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explicar”.48 Neste sentido, não existe aqui qualquer possibilidade de um conhecimento indireto, apriorístico, sem o risco da experiência: “Não sei como descrever ao leitor branco. Pode-se escrever ou gritar ou cantar sobre isso... pintar sobre isso... representar sobre isso... cagá-lo sob a forma de mobiles... Desde que você não vá e faça...”.49 Entendido dessa maneira, Almoço Nu não possui um problema, nem representa nada; ele é um experimento, um processo de experimentação que só significa o que ele é: uma experimentação.50 Experimentação – isto não é um conceito, mas um nome que designa algo do qual temos certeza imediata, sem poder definir jamais. Na verdade, apenas o sistemático é analisável, somente conceitos são definíveis por outros conceitos. (Em última análise, princípios abstratos são apenas generalizações, sob cujo emprego habitual a vida flui.) A experimentação-vida segue sendo o que sempre foi: o que não pode nem pensar-se nem representar-se, o mistério, o eterno devir, a pura experiência íntima.51

Mas, afinal, que tipo de experiência é relatado em Almoço Nu? Drogas, todos os tipos de drogas, maconha, cocaína, benzedrina, nembutal, peiote, yagê, anti-histamínicos, etc. E principalmente heroína. O livro é um relato pormenorizado da doença da junk, ao longo de quase quinze anos da vida de Burroughs.52 É claro que as drogas têm um papel importante na obra de Burroughs. Porém, Almoço Nu não é todo sobre drogas. O romance trata também de alguns dos temas centrais do pós-guerra, na última fase do modernismo ou início do “pós-modernismo” norte-americano, tais como paranóia, cultura pop, estruturas de controle, tecnologia, aniquilação, etc. O estilo do livro se caracteriza também pelo uso das mais variadas formas de registro associados à cultura de massa – o desenho animado, o filme B, a estória em quadrinhos, o livro

48 BURROUGHS, 2005b, p. 26. 49 BURROUGHS, 2005a, p. 229.

50 Deleuze entende a literatura anglo-saxônica como um processo de experimentação. Num trecho de

Diálogos, ele afirma: “A literatura inglesa ou americana é um processo de experimentação” (DELEUZE,

2004, p. 64). Neste fragmento, Deleuze salienta na literatura inglesa e americana o predomínio da experimentação sobre processos puramente abstratos.

51“A vida... mais misteriosa – desde o dia em que o grande libertador se abateu sobre mim, o pensamento de que a vida poderia ser um experimento do conhecimento – (...). A vida como um meio do conhecimento –” (Nietzsche, em A gaia ciência – Livro IV, § 324, 2001). Este pensamento de Nietzsche expressa bem essa postura na qual a vida, a experiência, antecede toda abstração, onde a vida mesma se torna palco do conhecimento, lugar de experimentação.

52 Junk: literalmente, “porcaria”, “refugo”. Junk é um termo genérico para diversos medicamentos e substâncias relacionadas ao ópio, o extrato da papoula. Têm em comum propriedades narcóticas, analgésicas e hipnóticas. Seus derivados mais puros, extraídos diretamente da papoula, são conhecidos como opiáceos (por exemplo, a morfina). Quando resultam de modificações parciais, são chamados de opiáceos semi-sintéticos (por exemplo, a heroína), enquanto os compostos sintéticos de ação semelhante à do ópio são conhecidos como opiáceos sintéticos ou opióides (por exemplo, a metadona). A propósito, cf.

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pornográfico, mas também o jargão científico e tecnológico. Almoço Nu abrange, portanto, diversos campos e temáticas, como física, matemática, química, filosofia, história, antropologia, música, quadrinhos, drogas, medicina, psicologia, unindo-os de maneira humorística, absurda, poética e sombria – uma encruzilhada de gêneros e estilos por vezes inconciliáveis, mas, que, ao mesmo tempo, revela uma inequívoca organicidade. É nesse sentido que William Burroughs não é um mero junky writer. As drogas devem ser entendidas apenas como ponto de partida de toda a sua produção, ao percorrê-la de uma ponta à outra.

Na verdade, Burroughs chegou a expandir o sentido de dependência para além da doença da junk, estendendo o termo para outros âmbitos da vida humana. “As drogas têm um papel importante em minha obra”, dissera Burroughs, “porém estou mais interessado no vício em si mesmo, um modelo de controle que torna possível a decadência dos potenciais biológicos humanos”.53 De certo modo, o grande mérito de Burroughs foi o de ter determinado a essência ou a natureza do vício não a partir de seu objeto – drogas, sexo, dinheiro, poder, etc. –, mas como essência subjetiva abstrata (o vício abstrato, o vício qualquer, que não é mais tomado sob esta ou aquela forma) enquanto um modelo de controle. Uma espécie de “estetismo” superior que elevou o vício à categoria de questão, à questão propriamente transcendental do vício: como o vício é possível enquanto problema? O problema do vício é colocado de maneira filosófica, como problema transcendental das relações entre o vício e o pensamento do controle. Portanto, é neste sentido que as drogas serviriam, segundo Burroughs, de modelo para outras formas de controle. Por exemplo: em Junk (1956), primeiro romance de Burroughs, o vício em drogas aparece como metáfora para os males da sociedade de consumo; e numa época em que as novas formas de servidão humana passam necessariamente pela simplificação e degradação do homem, como uma mercadoria, Burroughs parece correto na sua apreciação. Quando Burroughs se refere ao mundo da

junk como “moldado em posse e monopólio”, isso se ajusta perfeitamente à sociedade de consumo, já que qualquer droga entendida como mercadoria, como monopólio, é possível apenas numa sociedade capitalista; e assim como, segundo Marx, o operário é alienado em relação ao produto de seu trabalho, da mesma forma o dependente é alienado em relação à droga:

Junk é o produto ideal... a mercadoria perfeita. O vendedor não precisa de lábia. O cliente se arrastará pelo meio do esgoto implorando uma

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chance de comprar... O vendedor de junk não vende seu produto ao consumidor; vende o consumidor ao seu produto. Não melhora nem otimiza sua mercadoria. Piora a qualidade da mercadoria e otimiza o cliente. Paga seus funcionários em junk.54

Esse é um bom exemplo da aplicação do vício em drogas para outros âmbitos da vida humana, segundo a fórmula de Burroughs: “Pois existem diversas formas de dependência, e creio que todas elas obedecem leis básicas”.55 Mas, se em

Junky Burroughs ainda não concebe o vício como modelo para as chamadas formas de controle, em Almoço Nu essa ideia aparece claramente. Nesse ponto, emerge na obra de Burroughs o pensamento do controle (que analisaremos mais detidamente no quarto capítulo) – o problema, por assim dizer, que obseda toda a obra de Burroughs. O Doutor Benway, por exemplo, emprega drogas em interrogatórios como meio para a obtenção de controle total sobre os interrogados: “Na falta de conhecimentos mais precisos sobre a eletrônica cerebral, as drogas continuam sendo uma ferramenta essencial do interrogador em seus ataques à identidade pessoal do espécime”.56

Contudo, é num trecho de “Corporação Islã e Partidos de Interzona” que uma operação de mudança de sentido se realiza integralmente, quando Burroughs procura definir a noção de controle tomando a junk como um protótipo do controle, concebendo o vício como um modelo para o controle. O texto em questão é uma longa reflexão sobre as chamadas técnicas de emissão onde, ao final do trecho, é realizada a operação de mudança de sentido. Segundo o narrador, os encarregados por essas emissões, chamados de Emissores, fariam uso exclusivo de transmissões telepáticas para controlar o espécime. Como ilustração, o narrador utiliza o exemplo dos Códices Maias que, segundo ele, teriam feito uso de transmissões telepáticas para a obtenção de controle sobre a população.57

Conhecem os códices Maias? É assim que os compreendo: os sacerdotes – por volta de um por cento da população – fizeram uso de emissões telepáticas de sentido único para informar os trabalhadores a respeito do quê e quando sentir... Um emissor telepático precisa estar emitindo a todo momento. Nunca pode receber, porque assim estaria indicando ter sua continuidade parasitada por alguém com emoções próprias. O Emissor precisa emitir o tempo todo, mas não pode recarregar-se através de contato. Mais cedo ou mais tarde, fica sem

54 BURROUGHS, 2005a, p. 247. 55 BURROUGHS, 2005a, p. 252. 56 BURROUGHS, 2005a, p. 34.

57 Burroughs entende pontualmente o sistema maia como um calendário de controle: “Tenho me interessado pelo sistema maia, que era um calendário de controle. Veja, o calendário deles postulava realmente como todo mundo deveria se sentir num certo tempo, com dias de sorte, dias de azar, etc.”

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emoções a transmitir. Não é possível ter emoções sozinho. Não quando se é sozinho como um emissor – e, como é notório, só pode haver um único Emissor em dado ponto do espaço-tempo... Por fim, a tela se apaga... O Emissor transformou-se numa enorme centopéia... Os trabalhadores então se aproximam, ateiam fogo à centopéia e elegem um novo Emissor por meio de consenso geral... Os Maias eram limitados por seu isolamento... Hoje um único Emissor controlaria todo o planeta... Entendam, o controle não pode de modo algum ser um meio para qualquer fim prático... Não pode de modo algum ser um meio para qualquer coisa além de mais controle... É como a junk.58

Evidentemente, existe toda uma tradição literária no Ocidente sobre drogas. Grande parte dela remonta ao início do Romantismo. Em 1820, o inglês Thomas de Quincey publica “Confissões de um comedor de ópio”. O poeta francês Baudelaire escreve “Paraísos artificiais” no ano de 1858. No século XX, Aldous Huxley publica o ensaio “As portas da percepção: céu e inferno” (1950), relatando suas experiências com a mescalina. Em 1958, o surrealista Jean Cocteau publica “Opium: o diário de uma cura”. Recentemente (1993), o escocês Irvine Welsh publicou “Trainspotting”, posteriormente adaptado para o cinema, sobre um grupo de amigos viciados em heroína. Todavia, nenhum deles se iguala a Almoço Nu no que tange à experimentação formal, composto a partir de uma técnica inspirada em procedimentos artísticos de vanguarda: a técnica do cut-up. Neste método de criação literária desenvolvido por Burroughs e Brian Gysin (pintor inglês, amigo e colaborador de Burroughs em Tânger), frases e palavras eram recortadas de livros e jornais e reorganizadas ao acaso, dando origem ao um novo texto baseado em princípios de colagem e edição não-linear. Assim, no experimento formal do cut-up se manifestaria a experiência de uma percepção fragmentada, determinada pelo entrecruzamento de inúmeras probabilidades, os chamados “pontos de intersecção” burroughsianos.59 Contudo, o livro de Burroughs não se utiliza apenas da técnica do cut-up para inverter a rota usual da sintaxe; na verdade, Burroughs realiza uma verdadeira demolição da linguagem se utilizando de diversos sinais linguísticos. “É como se a sintaxe que compõe a frase, e que dela faz uma totalidade capaz de desdizer-se, tendesse a desaparecer liberando uma frase assintática infinita que se estira e lança travessões como intervalos espaço-temporais”.60 O texto está repleto de

58 BURROUGHS, 2005a, p. 172.

59 Reservamos uma seção à parte para tratar pormenorizadamente da técnica do cut-up, bem como de sua

“utilização”. Por ora, basta assinalarmos que foi o próprio Burroughs quem levou a técnica do cut-up para o romance, e quem posteriormente elaborou vários romances a partir dessa técnica, entre os quais se encontra Almoço Nu.

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travessões e parênteses, conjunções e reticências, o que acaba por recriar não apenas a sintaxe, mas também a própria língua, convertendo-a numa espécie de língua estrangeira, expandindo ou fragmentando o discurso, desviando-o de seu curso usual (sem falar do uso frequente de conjunções básicas, em especial a conjunção “e”): “É uma frase quase louca, com suas mudanças de direção, rupturas e saltos, seus estiramentos, germinações, parênteses”.61 De qualquer modo, a escrita de Burroughs é uma escrita indiferente a todo e qualquer tipo de suporte ou unidade configuradora, funcionando como puro processo de experimentação – no dizer de Deleuze & Guattari, “entranhas de misericórdia sem sentido e sem fim (a experiência Artaud, a experiência Burroughs)”.62 E continua:

É aqui que a arte atinge a sua modernidade autêntica, que consiste unicamente em libertar o que já estava presente na arte de todos os tempos, mas encontrava-se oculto pelos fins e objetos ainda que estéticos, pelas recodificações e axiomáticas: o puro processo que se realiza e que não deixa de se realizar enquanto se vai processando, a arte como “experimentação”.63

Também reaparece frequentemente a mesma coisa dita num outro ponto com as mesmas palavras, com pequenas variações. Não devemos, por isso, nos espantar com eventuais repetições quando o próprio Burroughs nos dá uma explicação para esse fato; segundo ele mesmo: “Isso não é um descuido nem um aceno para o Departamento dos Apaixonados pelo Som das Próprias Palavras... São indicações de uma justaposição no espaço-tempo... uma dobra interna que se fecha (dizem por aí que o universo é côncavo)... um ponto de intersecção entre níveis de experiência no encontro de linhas paralelas...”.64 Essas relações acabam por criar uma espécie de circularidade, com múltiplas entradas no interior do romance.65 Mais ainda: talvez essas repetições tenham por finalidade a obtenção de uma pequena diferença, uma minúscula diferença entre duas frases, a torção ou a reduplicação de uma frase à outra, dando origem a uma segunda frase, diversa da primeira. Como diz Deleuze: “Não é um desdobramento do

61 DELEUZE, 1997, p. 69. Em outro lugar Deleuze dirá: “Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas” (DELEUZE, 1997, p. 12). Isto se ajusta perfeitamente aquilo que talvez Burroughs pretendesse comunicar com a técnica do cut-up, quando busca, entre outras coisas, alterar a rota usual da sintaxe.

62 DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 389. 63 DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 389. 64 BURROUGHS, 2005a, p. 341.

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Um, mas uma reduplicação do Outro. Não é uma reprodução do Mesmo, mas uma repetição do Diferente”. E continua:

Esse tema constante de Foucault já havia sido objeto de uma análise completa, que inspirava Raymond Roussel. Pois o que Raymond descobriu foi: a frase do lado de fora; a sua repetição numa segunda frase; a minúscula diferença entre as duas (o “rasgão”); a torção, o forro ou a reduplicação de uma à outra.66

Outro elemento importante do livro de Burroughs que merece ser destacado é a caracterização das personagens: elas não possuem uma identidade discernível, parecem irredutíveis a qualquer forma de determinação; em outras palavras: as identidades fixas cedem lugar a zonas de indeterminação. O Justiceiro, o Bronco, o Agente Lee, o Marujo, o Doutor Benway, “Dedos” Schafer – personagens de Almoço Nu –: elas não são pessoas, com uma identidade ou um contorno definível. Os seus nomes não parecem designar pessoas, mas antes variações intensivas, como “estados necessariamente gemeais e bissexuados por que um sujeito passa sobre um ovo cósmico. É preciso interpretar tudo em intensidade”.67 Mais ou menos como faz Burroughs no “Prefácio Atrofiado”. Todo o restante, policiais, médicos, viciados, traficantes, etc., devem ser entendidos genericamente apenas como tipos, ou seja, como aquilo que reúne em si os caracteres distintivos de uma atividade ou grupo (sobretudo, os tipos instáveis, que sobrevivem nos enclaves ou nas margens de uma sociedade: o drogado, o homossexual, o estrangeiro...)

Mais cedo ou mais tarde o Justiceiro, o Bronco, o Agente Lee, A.J., Clem e Jody os irmãos Ergotina, Hassan O’Leary o Magnata do Pós -Parto, o Marujo, o Exterminador, Andrew Keif, ‘Gordo’ Terminal, Doutor Benway e ‘Dedos’ Schafer acabarão dizendo a mesma coisa com as mesmas palavras, ocupando a mesma posição no espaço-tempo naquele ponto de intersecção...68

Num trecho de Diálogos, Deleuze alude ao escritor inglês Thomas Hardy, cujas personagens são exatamente como as personagens de Burroughs, ou seja, eles “não são pessoas ou sujeitos, são coleções de sensações intensivas, cada uma é uma coleção dessas, um pacote, um bloco de sensações variáveis”.69 Segundo Deleuze, existiria nestes personagens um modo de individuação sem sujeito, de individuação impessoal, um tipo de singularidade individual definida antes por afetos, potências e

66 DELEUZE, 2006a, p.105.

67 DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 163. 68 BURROUGHS, 2005a, p. 228-229.

69 DELEUZE, 2004, p. 55. Segundo Deleuze & Guattari, é possível encontrar um equivalente deste

Referências

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