RE
VISÃO RE
VIE
W
1 Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa, Hospital Sírio-Libanês. R. Professor Daher Cutait 69, Bela Vista. 01308-060 São Paulo SP Brasil.
romeugo@gmail.com 2 Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
3 Fundação Dom Cabral. 4 Departamento de Enfermagem, UFSCar.
A Polissemia da Governança Clínica: uma revisão da literatura
The Polisemy of Clinical Governance: a review of literature
Resumo O artigo objetiva explorar a
conceitu-ação da gestão da clínica visando à compreensão dos diversos sentidos que poderão ser atribuídos a essa expressão. Essa discussão tanto pode con-tribuir para o planejamento e a organização dos serviços de saúde voltados para a gestão da clíni-ca, quanto no estabelecimento de princípios para a elaboração de ações nessa área. Metodologi-camente, o estudo consiste numa revisão biblio-gráfica de cunho qualitativo, com descritores da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Em termos de resultados, destacam-se sete temas que sinte-tizam a análise das fontes: gestão, promoção da qualidade, monitoramento ou auditoria clínica, educação, responsabilidade, segurança no cuidado e dimensão sistêmica. Conclui-se que a variação de sentidos relaciona-se à forma como os autores dos estudos revisados expressam ou desdobram os componentes conceituais estruturantes ampla-mente aceitos como governança clínica. Observa-se que falta um maior foco em discussões sobre o planejamento e as políticas relacionadas à gover-nança clínica.
Palavras-chave Governança clínica, Gestão, Clí-nica
Abstract The article aims to explore the concept
of clinical management, with a view towards un-derstanding the diverse meanings that could be attributed to that expression. This discussion can contribute to the planning and organization of health services geared to the management of clin-ical practices, as well as to set forth principles to draft actions in that field. Methodologically, the study consists of a qualitative literature review, using keywords of the Virtual Health Library (VHL). In terms of results, seven topics stand out that synthesize the analysis of sources: manage-ment, quality promotion, clinical monitoring or auditing, education, responsibility or account-ability, safety in care and a systemic dimension. The conclusion is that the variation of meanings relates to the way in which the authors of the stud-ies reviewed express or unfold the structuring con-ceptual components broadly accepted as clinical governance. What we observe is a lack of a greater focus on discussions regarding planning and poli-cies relating to clinical governance.
Key words Clinical governance, Management, Clinical practice
Romeu Gomes 1 Valéria Vernaschi Lima 2 José Maurício de Oliveira 1 Laura Maria Cesar Schiesari 1 Everton Soeiro 1
Luciana Faluba Damázio 3 Helena Lemos Petta 1
Go
Introdução
No cenário mundial contemporâneo, tanto siste-mas de saúde públicos como sistesiste-mas privados enfrentam desafios tais como a insuficiente res-posta às necessidades de saúde das pessoas ou populações e o custo crescente, com baixa produ-tividade e qualidade inconstante. Sendo os siste-mas de atenção à saúde organizações construídas pela sociedade para dar respostas às necessidades de saúde das pessoas e populações, sua gestão e a organização do cuidado refletem os princípios e a lógica por meio dos quais as sociedades
ex-plicam e interveem no processo saúde-doença1,2.
Nesse sentido, Foucault destaca o componen-te biopolítico da gestão e faz uma contraposição à “cientificidade” da normalização da saúde das pessoas e sociedades, ao considerar que o biológi-co se reflete no polítibiológi-co3.
A lógica da normalização associada à redução de custos e aos resultados financeiros originou, nos anos 1980, a atenção gerenciada ou managed care nos Estados Unidos. Ao visar os resultados econômico-financeiros na gestão da saúde, esse modelo passou a regulamentar a atuação dos profissionais, especialmente médicos, pratica-mente anulando sua autonomia, por meio da
re-gulamentação da tomada de decisão1.
Paralelamente à natureza prescritiva das nor-mas que visam ajustar e, muitas vezes, submeter os indivíduos a determinados padrões, uma das dimensões da normalização, aplicada aos proces-sos no cuidado à saúde, deu ênfase à garantia da qualidade e da segurança dos pacientes e profis-sionais na prestação de serviços.
Segundo Christensen et al.4, com o
flores-cimento da saúde baseada em evidências e das tecnologias de informação, a padronização vem permitindo transformar problemas, cuja solu-ção requereria o aporte de profissionais de alto custo, em intervenções orientadas por protocolos e diretrizes clínicas. Essas tecnologias de gestão vêm reduzindo custos e aumentando a qualida-de das ações qualida-de saúqualida-de. Nesse sentido, seguindo as melhores práticas para o alcance de melhores resultados, “A força transformacional [capaz de trazer] disponibilidade e acessibilidade para outros segmentos [assim como para a saúde] é a inovação
por ruptura [incluindo o modelo de gestão]”4.
A partir do final da década de 1990, o con-ceito de governança clínica ou gestão da clínica trouxe novos elementos para a discussão da ges-tão em saúde, com foco na responsabilidade do sistema pela melhoria da qualidade da atenção à
saúde. Os autores de língua inglesa utilizam mais
frequentemente o termo governança clínica5 e
exploram a organização do sistema de saúde em torno da articulação e regulação de ações e servi-ços, visando a efetividade, eficiência e o desenvol-vimento de padrões nacionais de qualidade para
ações e serviços de saúde e a qualidade6.
No Brasil, a utilização do termo gestão da clínica é ainda mais recente. A maior parte dos artigos e produções destinadas à discussão de sis-temas de saúde, modelos de gestão e de atenção à saúde não utilizam esse descritor, embora proble-matizem esses e outros elementos como os con-ceitos de cogestão e de clínica ampliada. Nesses enfoques, a valorização da relação singular cons-truída entre usuários e profissionais de saúde e a construção de protagonismo desses sujeitos no processo de reforma e reorganização da atenção à saúde tem sido colocada como um modelo de gestão e de cuidado alternativos à excessiva
valo-rização da gerência na atenção à saúde7.
Com base numa primeira aproximação con-ceitual, destaca-se como premissa a ser estudada que a gestão em saúde e, mais especificamente, a gestão da clínica, tem traduzido as tensões pro-duzidas no diálogo entre: controle-autonomia e normalização-singularização na atenção à saúde. Nesse contexto, o desafio de ampliar o acesso e a disponibilização de ações e serviços de saúde mais qualificados permanece atual e continua de-mandando a produção de inovações nas práticas de gestão e de cuidado.
Para que essa demanda seja atendida, faz-se necessário explorar conceitualmente a expressão gestão da clínica. A problematização desse con-ceito poderá nortear tanto a elaboração de dire-trizes políticas relacionadas ao modelo de aten-ção à saúde no Brasil, quanto subsidiar o desen-volvimento de estratégias para o uso do mesmo no quotidiano dos cuidados de saúde.
A partir dessa perspectiva, o presente estudo parte da seguinte questão: Quais são os sentidos atribuídos à gestão da clínica e quais são as ca-tegorias conceituais que envolvem tal expressão?
Assim, considerando a riqueza que envolve o tema, objetiva-se explorar a conceituação da gestão da clínica visando a melhor compreensão dos diversos sentidos que poderão ser atribuídos a essa expressão.
e C
ole
tiv
a,
20(8):2431-2439,
2015
Metodologia
Este estudo caracteriza-se como uma revisão da literatura, aqui entendida como um estudo ex-ploratório da produção do conhecimento acerca de um assunto ou tema. Privilegiou-se o artigo científico como fonte de análise.
Inicialmente, foram identificados na Biblio-teca Virtual em Saúde (BVS) os descritores de assunto que correspondiam à gestão da clínica. Feito isso, centrou-se a pesquisa na base de dados Medline. Nessa base, em 25 de outubro de 2013, a busca foi feita com a seguinte estratégia: (gestão clínica) or “gestao clinica” [Descritor de assunto] and (governança clínica) or “governanca clinica” [Descritor de assunto] and “Artigo de Revista” [Tipo de publicação]’. Com essa estratégia foram encontrados 224 títulos de artigos. Em seguida, foram excluídos os títulos que não possuíam re-sumos na base, restando 164 artigos.
Para a leitura dos resumos, por se considerar que os estudos empíricos qualitativos ou os teó-rico-conceituais seriam mais apropriados para a resposta da questão da pesquisa, adotou-se os se-guintes critérios de inclusão: artigos com método qualitativo, ensaio teórico, artigos de opinião ou conceituais e artigos de revisão da literatura qua-litativa. Por outro lado, utilizaram-se os seguintes critérios de exclusão: artigo com método epide-miológico, revisões sistemáticas quantitativas (metanálises) e artigos quantitativos em geral.
Aplicados os critérios de inclusão e exclusão na leitura dos resumos dos artigos, foram iden-tificados 92 títulos. Na busca dos artigos, resol-veu-se retirar um estudo por estar publicado na língua tcheca. Assim, foram lidos na íntegra 91 textos. Nessa leitura, foram retirados os estudos que não traziam conceitos, definições ou consi-derações específicas sobre o assunto. Com isso, constitui-se o corpus analítico da revisão com 19 artigos.
Após a leitura de todo o acervo, cada artigo foi submetido a duas fichas de análise. A primei-ra – elaboprimei-rada com o objetivo de caprimei-racterizar a produção – integrava as seguintes variáveis: ano de publicação, país de realização do estudo, área de conhecimento do estudo, desenho metodoló-gico e tipo de fonte utilizado. No que se refere a desenho metodológico, por se tratar de estudos qualitativos ou teórico-conceituais, adotou-se a seguinte classificação: empírico qualitativo, teó-rico/conceitual, editorial/opinião e revisão qua-litativa. Em termos de fonte, a classificação foi a seguinte: primárias, exclusivamente secundárias e opinião.
Na segunda ficha analítica, foram transcritos trechos conceituais ou considerações específicas sobre gestão clínica ou governança clínica do ar-tigo.
As informações registradas na primeira ficha de cada artigo tiveram inicialmente um trata-mento descritivo com a utilização de frequências. No conjunto das variáveis dessa ficha, priorizou-se o tipo de fonte por considerar importante identificar se os conceitos e os modelos de gestão clínica ou governança clínica foram elaborados a partir de pesquisas de campo ou da literatura em geral.
Os conceitos e as considerações específicas sobre o assunto, registrados na segunda ficha de cada artigo, foram analisados a partir de uma adaptação da técnica de análise de conteúdo,
mo-dalidade temática, descrita por Bardin8. Para essa
autora, o tema é uma unidade de significação que se liberta do texto analisado e pode ser traduzi-do por um resumo, por uma frase ou por uma palavra. Com essa técnica, é possível identificar
o que está por trás dos conteúdos manifestos9.
Nesta revisão bibliográfica, o tema está sendo entendido como uma categoria mais ampla que pode abranger mais de um núcleo de sentido. Em síntese, basicamente, foram percorridos os seguintes passos analíticos: (a) identificação das ideias centrais dos trechos transcritos de todos os artigos; (b) classificação dos sentidos subjacen-tes às ideias em temas que resumem a produção do conhecimento acerca do assunto estudado; e (c) elaboração de sínteses interpretativas de cada tema.
Resultados
Caracterização dos artigos analisados
Em relação ao ano de publicação, predomi-nam artigos publicados em 2010 (42%), seguidos dos publicados nos anos de 2012 (32%), 2009 (5%) e 2013 (5%). Nesse sentido, pode-se consi-derar que a produção analisada acerca do assun-to em geral é relativamente recente, abrangendo aproximadamente o período dos últimos cinco anos.
Go
isso pode indicar a predominância da expressão governança clínica em detrimento do termo ges-tão da clínica ou gesges-tão clínica.
Com relação à área de estudo, a Enfermagem destaca-se com 27% do conjunto dos artigos, se-guida pela Medicina (26%), Odontologia (26%), Saúde Pública (16%) e Educação (5%). O predo-mínio das três primeiras áreas pode indicar que a discussão acerca do assunto fica mais no nível micro (práticas clínicas), do que nos níveis meso (organização e planejamento) e macro (políti-cas). O pouco envolvimento da área da educação também pode indicar a necessidade de se apro-fundar a discussão sobre a formação profissional voltada para a governança clínica.
No que tange ao tipo de fontes utilizado, em geral, os artigos baseiam-se naquelas que são ex-clusivas secundárias, com 42%, seguidos pelos que utilizam as primárias (32%) e os baseados em opinião (26%). O predomínio de fontes se-cundárias pode indicar que o conceito de go-vernança clínica é utilizado com base em outros estudos acerca do assunto, havendo menos inves-timento na construção do conceito a partir de situações empíricas. Ou talvez isso possa ser atri-buído ao fato do tema ser relativamente recente e as experiências concretas de emprego do mesmo encontrarem-se em estágio de desenvolvimento e/ou consolidação.
A Tematização da governança clínica
Os autores dos artigos analisados empregam a expressão governança clínica e, por essa razão, tanto a apresentação dos resultados deste estudo quanto a sua discussão será desenvolvida em tor-no dessa expressão.
O conceito de governança clínica, em geral, é usado nos artigos para outros focos de discussão, que vão desde considerações sobre intervenções sobre agravos específicos até o planejamento e a organização dos serviços de saúde. Comumente, os autores estudados recorrem a aspectos con-ceituais formulados por outros autores. Scally e
Donaldson5 são autores frequentemente citados
pelos artigos. Cerca de 37% baseiam-se nesses autores para definirem governança clínica.
A análise dos conteúdos dos estudos revisa-dos pode ser ilustrada por um mapa conceitual com áreas relacionadas a três círculos concêntri-cos, sendo que a área central refere-se ao concei-to estudado; a intermediária – dividida em sete subáreas – abrange as temáticas e a externa in-tegra os sentidos associados às temáticas com as referências dos autores dos estudos analisados.
O percurso analítico iniciou com a identificação dos conteúdos da área externa, passando para a classificação dos da área intermediária para in-dicar o conceito-síntese governança clínica, que compõe a área interna (Figura 1).
A gestão aparece como temática constituinte da governança clínica. A expressão gerenciamen-to também foi utilizada pelos augerenciamen-tores, sendo os dois termos tratados sem diferenças.
Entre aqueles em que houve algum tipo de menção foram encontrados os seguintes núcleos de sentido: gestão de pessoas, gestão de processos e gestão com ação que visam correções. Dentre os autores que apontam a gestão de pessoas
apare-ce o termo desempenho profissional10,11. Os que
apontam como objeto a gestão de processos
fo-cam em benchmarking12,13. Outro núcleo de
senti-do é a conotação da gestão com a ação, assim: im-plantação de prescrição14 e intervenção10,15. Neste
núcleo, os autores usam termos com conotações de ação para sanar baixo desempenho, mau de-sempenho e precariedades.
O propósito da gestão como elemento da go-vernança clínica para esses autores é direciona-do para a ação de transformação e atingimento de resultados (eficácia) através da correção de desempenhos profissionais insuficientes. Além disso, sinaliza-se que a governança clínica é um conjunto de práticas a serem aplicadas a todo o sistema de saúde.
Ainda que no conjunto das temáticas apare-ce – implícita ou explicitamente – a melhoria da qualidade, pode-se identificar uma temática
es-pecífica sobre a promoção da qualidade. O foco
central desta temática é constituído por sentidos que apontam para resultados que revelem a qua-lidade das práticas clínicas.
Em termos de estratégias para se chegar a qualidade da clínica, há estudos que se centram
no desenvolvimento de protocolos13,14. Um
des-ses estudos destaca a implantação de protocolos para orientar a prescrição de profissionais não
médicos14. Já em relação aos estudos que
foca-lizam a promoção da qualidade em resultados, destacam-se os que se voltam para a qualidade
da prática clínica em si15-17, a melhoria da
quali-dade assistencial18, serviços eficazes19 e a eficácia
do cuidado13,19-23.
Monitoramento ou auditoria clínica também emerge dos textos como temática. Essa expressão é utilizada pelos autores como um dos compo-nentes da governança clínica. Em um estudo, a auditoria é considerada como um ponto chave
da governança clínica24, enquanto outros
e C ole tiv a, 20(8):2431-2439, 2015
defini-lo13,20. Entre os autores que explicitam o
significado dessa expressão, encontram-se os seguintes núcleos de sentido: abordagem
siste-mática para revisar a clínica10; avaliação regular
dos procedimentos operacionais28 e regulação da
prática médica16.
Utilizando termos como monitoramento, auditoria ou supervisão clínica, essa temática
é apresentada com foco em serviços e equipes13
e na atuação clínica de profissionais médicos16,
dentistas13 e enfermeiros27. Os propósitos da
au-ditoria são direcionados à melhoria de desempe-nho, a partir da consciência da extensão e natu-reza do erro, assim como, da necessidade de me-lhorar padrões de prática e processos de trabalho. Quando esse propósito é abordado, no sentido de promover mudanças nas práticas dos
profissio-nais, a auditoria tangencia a temática educação. Educação, como temática, é outro compo-nente da governança clínica. Para um dos au-tores, ela é considerada um elo crucial, íntimo
e central da governança clínica11. Ainda nesse
sentido, aponta como sendo uma alavanca para a melhoria da qualidade e correção do mau
de-sempenho11. Como núcleos de sentido
destacam-se: compartilhamento de práticas15; mudanças de
práticas e de comportamento dos profissionais13;
fertilização cruzada de ideias25; desenvolvimento
profissional contínuo11. Alguns autores apontam
esse componente sem o qualificar20,24. Outros
ex-plicitam ferramentas ou dispositivos a serem uti-lizados para a aprendizagem e o desenvolvimento
profissional, tais como: telecomunicação26,
inci-dente crítico13 e pesquisa-ação13.
Figura 1. Mapa conceitual.
Gestão de pessoas
10,11
Gestão de processos
12,13
Gestão com ação
10,11,14 Aco mpanhame nto 13,20,24,27 Audit oria 28
Avaliação d
os p
roce
dime
ntos
28
Regulação da p
rática médica
16
Rev
isão da c línica
10
Su
porte27
Sust entab
ilida
de27
Rede d
e ap
oio à distância
25 Ge renciame nt o d e risc o12,16,18,20,21,24-26 A mb ie nt e se gur o14 Resp onsab ilida de so cial 16 Resp onsab ilida de c línica 10 Resp onsab ilida de p elas p esso as19 Resp onsab ilida de
pela me
lhoria 16 Compar tilhame nt o25 Co rreção d e d ese mp enho 11 Dese nvol vime nt o11,20,24 Disp osit ivos e duca cio nais 13,26
Fertilização d
e id eias 25 M udanças 13
Desenvolvimento de protocolos13,14 Eficácia do cuidado16,19-23
Melhores práticas15-17 Melhoria da assistência18
Serviços eficazes19
Go
A responsabilidade pode ser apontada como
outra temática que emerge dos textos. Tal ex-pressão é empregada nos seguintes sentidos: ser
responsável no exercício da clínica10, ser
respon-sável pelas pessoas que são atendidas19, aumentar
a responsabilidade social da governança clínica16
e ainda a responsabilidade das organizações na melhoria contínua da qualidade dos seus
servi-ços12. Isto é feito por meio do estabelecimento e
garantia da aplicação de elevados padrões que criam um ambiente que estimule a excelência do
cuidado12. Assim sendo, a responsabilidade
re-fere-se ao indivíduo, e ao próprio serviço (“ser responsável e ter compromisso”) frente à popula-ção alvo daquela atividade. Esta responsabilidade inicia-se a partir da definição da missão e visão, estendendo-se até a prestação de serviços de ex-celência. O foco da responsabilidade seria, aqui,
o usuário dos serviços, além dos profissionais17.
A temática segurança no cuidado integra dois sentidos: gerenciamento de risco12,16,18,20,21,24-26 e
ambiente seguro14. A preocupação com
seguran-ça do paciente surge a partir da constatação da magnitude e natureza dos erros relacionados à prática médica e da necessidade de melhorar os padrões relacionados à prática e planejamento
em saúde12,16,25. A segurança do paciente ajudaria
os profissionais a gerir o risco, reduzindo assim
as “ameaças” associadas ao cuidado24. A gestão do
risco, por sua vez, é considerada um dos pilares
da governança clínica21. Em relação ao segundo
sentido, há um estudo14 que considera a
perspec-tiva organizacional para assegurar um ambiente seguro para os profissionais.
Por último, destaca-se a dimensão sistêmica como temática da governança clínica. Três nú-cleos de sentido integram esta temática: supor-te27, sustentabilidade27 e rede de apoio à
distân-cia25. Nos dois primeiros sentidos, a dimensão
sistêmica configura-se quando se advoga uma supervisão clínica de apoio aos profissionais de enfermagem para que haja uma sustentabilidade
da clínica28. Já o terceiro sentido advém da
expe-riência de um programa que estrutura a gover-nança clínica de forma a manter os serviços em locais remotos através de uma rede de apoio à distância25.
Discussão dos resultados
Os sentidos atribuídos à governança clínica pre-sentes nos artigos analisados não se distanciam do conceito acerca do assunto sistematizado por
Scally e Donaldson5. Segundo esses autores, a
go-vernança clínica se associa à promoção contínua da melhoria da qualidade, assegurando elevados padrões de cuidado e criando ambiente voltado à excelência clínica. Para eles, a promoção da qualidade na governança clínica se relaciona ao conceito de qualidade da clínica da Organização
Mundial da Saúde (OMS)29, que se traduz em
quatro aspectos: qualidade técnica do desempe-nho profissional; eficiência no uso dos recursos; gestão de risco e satisfação dos pacientes com o serviço prestado. Para além desses aspectos, des-taca-se a responsabilidade das organizações do sistema de saúde, na garantia de elevados padrões de atendimento clínico. Nesse sentido, os resulta-dos positivos para o paciente orientam para uma dimensão sistêmica e uma organização da aten-ção à saúde em rede integrada de serviços e de profissionais.
Os elementos conceituais dos mencionados autores e os aspectos da OMS sobre o que se con-sidera qualidade da clínica são estruturantes no quadro conceitual advindo do corpus analítico deste estudo. Isso se observa mesmo naqueles
ar-tigos que não citam Scally e Donaldson5, nem a
OMS29 para estruturarem suas definições acerca
do assunto.
As temáticas do quadro conceitual apresen-tado integram núcleos de sentidos relacionados praticamente às dimensões da discussão seminal
dos mencionados autores5. No conjunto dos
ar-tigos, apenas a satisfação dos pacientes com os serviços que lhes são prestados não foi explicita-mente focalizada no conceito de governança clí-nica. Apesar disso, a noção de responsabilidade apresentada está intimamente relacionada aos usuários. Aliás, a própria definição de governan-ça reforgovernan-ça esta visão (um conjunto de atividades que assegura o funcionamento adequado dos serviços, o que permite honrar o compromisso
assumido frente à população alvo)19. A satisfação
dos pacientes entraria aqui como a constatação do quanto este compromisso foi adequadamente assumido e concretizado (ou não).
Nos artigos analisados, os sentidos atribuídos à governança clínica, em geral, relacionam-se às ações operacionais ou aos procedimentos que aproximam a lógica de gestão à lógica da clínica. Mesmo tendo o foco na instância operacional, os dispositivos abordados visam a melhoria da qua-lidade. Essa dimensão, com base em Campos e
Amaral7, pode ser associada a um modelo de
ges-tão, denominado teórico-operacional, vinculado a uma linha mais tecnocrática e gerencial.
e C
ole
tiv
a,
20(8):2431-2439,
2015
modo orientado à melhoria da atuação de pro-fissionais, equipes e serviços, particularmente aqueles organizados de forma integrada. Apesar da coerência de propósitos no uso dessa ferra-menta, não foi possível identificar plenamente a relação entre o grau de autonomia e controle no âmbito da auditoria.
No conjunto dos artigos revisados, há um destaque aos mecanismos de detecção das não conformidades das condutas profissionais e ao controle e padronização do trabalho profissio-nal. Isso, de certa forma, reforça o predomínio na saúde do controle por meio de processos discipli-nares e normativos, em detrimento de pouco ou nenhum investimento em mudanças de valores e
posicionamentos profissionais7.
Para Cecílio30, a categoria “poder” deveria ser
utilizada para analisar as relações e os modelos de gestão, no sentido de se verificar qual a possi-bilidade de negociação existente entre múltiplas racionalidades, interesses, disputas e saberes. Essa categoria, aplicada à análise dos processos de au-ditoria, poderia evidenciar em que grau o con-trole foi utilizado de modo a anular a autonomia profissional e em que medida os protocolos ou diretrizes clínicas são referências que permitem ou não sua contextualização e singularização.
Ainda em relação aos dispositivos, um dos artigos abordou os protocolos como ferramenta para apoiar a prescrição de não médicos, garan-tindo qualidade com menor custo. Cabe destacar que, quando os estudos revisados mencionam custos – implícita ou explicitamente – o fazem de modo coerente com as premissas de
Christen-sen et al.4. Nesse sentido, a redução de custos foi
combinada ao aumento da qualidade das ações de saúde, particularmente por meio do uso de protocolos clínicos.
Na temática educação, a explicitação das abordagens utilizadas foi distinta nos trabalhos estudados. Enquanto alguns autores indicaram processos educacionais voltados à construção de uma rede de apoio entre profissionais, com
fer-tilização cruzada de ideias25 e práticas
comparti-lhadas15, outros não qualificaram os processos de
treinamento20,24 ou os de investigação e correção
de comportamento10,15,16,28.
O grau em que os treinamentos ou correções de desempenhos relatados consideraram as ca-racterísticas e especificidades de cada contexto e caso, e a perspectiva dos diversos atores envolvi-dos não foi apontado. Essa indicação seria essen-cial para permitir uma análise mais aprofundada sobre o papel da educação na governança clínica, considerando a utilização de abordagens diretiva
ou construtivista da educação. Formas de seleção e organização de conteúdos educacionais ou es-colhas de técnicas de ensino e avaliação refletem o entendimento sobre como as pessoas apren-dem e se o conhecimento é utilizado como forma
de libertar ou dominar o outro31-33. Para Becker34
uma abordagem educacional construtivista se fundamenta na valorização e reflexão sobre a ex-periência do outro, como ponto de partida para a produção de novos saberes. De modo oposto, a abordagem educacional diretiva se orienta à transmissão de conhecimentos, com vistas à re-petição dos conteúdos transmitidos.
Subjacente aos sentidos atribuídos à gover-nança, observa-se o predomínio da dimensão biológica que institui um determinado modo de fazer a clínica e orienta a construção de protoco-los e diretrizes clínicas, a partir dessa perspecti-va. Desse modo, mesmo sendo constituintes do processo saúde-doença, as dimensões sociais, in-cluindo a biopolítica3 e a subjetiva7 não são
men-cionadas nos artigos estudados.
Talvez a opção pelo biológico tenha suas raízes nas origens da governança clínica, isto é, como uma resposta à falta de segurança e de qualidade do cuidado evidenciadas por meio de escândalos que abalaram a confiança do público no sistema de saúde, a exemplo do que ocorreu no Reino Unido, e a necessidade de dar resposta rápida ao questionamento que tais eventos
sus-citaram18. Hoje, anos depois, as limitações
des-ta opção ficam claras diante da necessidade de valorização dos sujeitos e das outras dimensões que fazem parte do processo saúde-doença, para além da perspectiva biológica.
Considerações finais
Os sentidos atribuídos à governança clínica com-põem um quadro polissêmico que se relaciona muito mais ao polo expressivo do termo do que à lógica comumente presente nesse conceito. Em outras palavras, em geral, a variação de sentidos relaciona-se à forma como os autores dos estu-dos revisaestu-dos expressam ou desdobram os com-ponentes conceituais estruturantes amplamente aceitos como governança clínica.
Go
nos conceitos dos artigos, constatam-se aborda-gens diferenciadas.
Nesse corpus observam-se as tensões entre
controle-autonomia e normalização-singulariza-ção na atennormalização-singulariza-ção à saúde. Confrontar dialeticamen-te os primeiros componendialeticamen-tes das dialeticamen-tensões (contro-le e normalização) com os segundos (autonomia e singularização) é de fundamental importância para que sejam pensados o quê, o como e o para quê das mudanças da governança clínica.
Com base nos conceitos estudados, obser-vam-se lacunas no conhecimento acerca do as-sunto investigado. Ainda que alguns autores te-nham abordado questões da organização e do planejamento relacionadas à governança clínica, o predomínio da discussão se insere na instância operacional. Não foi observado um maior inves-timento em estudos sobre as esferas meso e ma-cro relacionadas ao assunto. Em outras palavras, falta um maior foco em discussões sobre o plane-jamento e as políticas relacionados à governança clínica.
Em termos conceituais, ainda são necessárias reflexões acerca do emprego das expressões ges-tão e governança. Esses empregos revelariam uma sinonímia, distintas traduções entre idiomas ou perspectivas em relação à clínica?
Por último, observa-se um limite do presente estudo. Pela opção metodológica de se trabalhar com os descritores integrados da BVS e por se ter escolhido previamente análise de aborda-gens qualitativas, estudos importantes para o aprofundamento do assunto podem não ter sido revisados. Esse é um dos motivos para o fato de publicações nacionais sobre gestão da clínica – utilizadas como ponto de partida deste estudo – não terem aparecido na busca.
Conscientes dos limites, entende-se este es-tudo como um ponto de partida ou disparador para futuras análises sobre dois eixos de discus-são acerca da governança clínica: relações entre esferas (políticas, planejamento e operacionali-zação) e maior investimento na autonomia e na singularização.
Colaboradores
e C
ole
tiv
a,
20(8):2431-2439,
2015
Clak G and team. An offsite activity policy for asthma camp. Pediatric Nurs 2010; 22(2):22-26.
Heyrani A, Maleki M, Marnani AB, Ravaghi H, Sed-aghat M, Jabbari M, Farsi D, Khajavi A, Abdi Z. Clin-ical governance implementation in a selected teaching emergency department: a systems approach. Imple-ment Sci 2012; 7:84.
Hoare KJ, Mills J, Francis K. The role of Government policy in supporting nurse-led care in general practice in the United Kingdom, New Zealand and Australia: an adapted realist review. J Adv Nurs 2012; 68(5):963-980. Virgílio M. Clinical governance for elderly patients with renal insufficiency. Community care programs. J Nephrol 2010; 23(S15):S23-S28.
Patel S. Identifying best practice principles of audit in health care. Nursing Standard 2010; 24(32):40-48. Kruger E, Jacobs A, Tennant M. Sustaining oral health services in remote and Indigenous communities: a re-view of 10 years experience in Western Australia. Int Dental J 2010; 60(2):129-134.
Wade VA, Eliott JA, Hiller JE. A qualitative study of eth-ical, medico-legal and clinical governance matters in Australian telehealth services. J Telemed Telecare 2012; 18(2):109-114.
Wasket C. Clinical supervision using the 4S model 1: considering the structure and setting it up. Nursing Times 2010; 106(16):12-14.
Lamb D. The documentation of pain management during aeromedical evacuation missions. Nurs Clin North Am 2010; 45(2):249-260.
World Health Organisation (WHO). The principles of quality assurance. Copenhagen: WHO; 1983. (Report on a WHO meeting)
Cecílio LCO. As necessidades de saúde como concei-to estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, or-ganizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ; 2001. p. 113-126.
Libâneo J. Democratização da escola pública: a pedago-gia crítico-social dos conteúdos. São Paulo: Loyola; 1992. Freire P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2005. Bransford JD, Brown AL, Cocking RR, organizadores.
Como as Pessoas Aprendem: cérebro, mente, experiência e escola. São Paulo: Editora Senac; 2007.
Becker F. Educação e construção do conhecimento. Porto Legre: Penso; 2012.
Artigo apresentado em 04/06/2014 Aprovado em 03/09/2014
Versão final apresentada em 05/09/2014 20.
21.
22.
23.
24. 25.
26.
27.
28.
29.
30.
31. 32. 33.
34. Referências
Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002.
Feuerweker LM. Modelos tecnoassistenciais, gestão e organização do trabalho em saúde: nada é indiferente no processo de luta para a consolidação do SUS. Inter-face (Botucatu) 2005; 9(18):489-506.
Foucault M. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978 – 1979). São Paulo: Martins Fontes; 2008.
Christensen CM, Grossman JH, Hwang J. Inovação na gestão da saúde: a receita para reduzir custos e aumentar qualidade. Porto Alegre: Bookman; 2009.
Scally G, Donaldson LJ. Clinical governance and the drive for quality improvement in the new NHS in En-gland. BMJ 1998; 317(7150):61-65.
Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estra-tégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-A-mericana da Saúde; 2012.
Campos GWS, Amaral MA. A clínica ampliada e com-partilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Cien Saude Colet 2007; 12(4):849-859. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979. Gomes R. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes; 2002. p. 67-80.
Bender K. Organisational obsessive-compulsive disor-der: has clinical governance become pathological? Aus-tralas Psychiatry 2012; 20(4):274-277.
Coward R. Educational governance in the NHS: a literature review. Int J Health Care Qual Assur 2010; 23(8):708-717.
Batchelor P, Brooks J. Addressing underperformance in the United Kingdom NHS dental system and its pos-sible implications for other care systems. Int Dental J
2009; 59(4):225-228.
Cannel PJ. Evaluation of the end user (dentist) ex-rience of undertaking clinical audit in the post April 2001 general dental services (GDS) scheme. Br Dent J
2012; 213:E7.
Courtenay M, Carey N, Stenner K. Non medical pre-scribing leads views on their role and the implementa-tion of non medical prescribing from a multi-organiza-tional perspective. BMC Health Serv Res 2011; 11:142. Bassett S, Westmore K. How nurse leaders can fos-ter a climate of good governance. Nurs Manag 2012; 19(5):22-24.
Kelly BD. Changing governance, governing change: medical regulation in Ireland. Ir J Med Sci 2010; 179(1):3-7.
Toy A. Making clinical governance a fixture of your dental implant practice. Prim Dent J. 2013; 2(2):44-48. Mills I, Batchelor P. Quality indicators: the rationale behind their use in NHS dentistry. Br Dent J 2011; 211(1):11-15.
Fifield L, Blake S. The early intervention safeguarding nurse pilot: an integrated model of working. Commu-nity Practit 2011; 84(11):27-31.
1. 2.
3.
4.
5.
6.
7.
8. 9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17. 18.