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Discurso e cidade: uma análise discursiva do bairro

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Academic year: 2017

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MARIA TERESA MARTINS

DISCURSO E CIDADE: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO

BAIRRO

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MARIA TERESA MARTINS

DISCURSO E CIDADE: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO

BAIRRO

Tese apresentada para a obtenção do título de Doutora em Estudos Linguísticos, Área de Análise Linguística, Linha Estudos do Texto e do Discurso, junto ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Campus de São José do Rio Preto.

Orientador: Prof. Dr. José Horta Nunes

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OMISSÃO JULGADORA

Titulares

Prof. Dr. José Horta Nunes

Unicamp – Campinas

Orientador

Profª Drª Claudia Castellanos Pfeiffer

Unicamp – Campinas

Profª Drª Fabiana Cristina Komesu

Unesp – São José do Rio Preto

Profª Drª Silmara Cristina Dela Silva

UFF – Niterói

Profª Drª Suzy-Maria Lagazzi

Unicamp – Campinas

Suplentes

Profª Drª Carolina Rodríguez-Alcalá

Unicamp – Campinas

Prof. Dr. Maurizio Babini

Unesp – São José do Rio Preto

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À minha avó materna. Sem anos de escolaridade formal. Muitos anos de sabedoria. Peço licença a Adélia Prado:

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Prof. Dr. José Horta, pelas conversas orientadoras, pelas dicussões, pelo apoio durante esses dez anos, que de repente passaram. Agradeço sobretudo pelo exemplo de pesquisador.

Às Professoras Fabiana Cristina Komesu e Suzy Maria Lagazzi pelas contribuições por ocsião do Exame Geral de Qualificação.

À Professora Cristina Parreira pelas orientações referentes ao Exame de Qualificação Especial.

Aos professores: Carolina Rodríguez-Alcalá, Claudia Castellanos Pfeiffer, Fabiana Cristina Komesu, Maurizio Babini, Silmara Cristina Dela Silva, Suzy Maria Lagazzie Dantielli Assumpção Garcia que aceitaram o convite para avaliar este trabalho.

À Professora Drª Eni Orlandi, pelas partilhas durante a disciplina “Discurso e Subjetividade”, em 2008.

À Professora Drª Soila Maria Schreiber da Silva, pelas partilhas durante a disciplina “Argumentação e Enunciação”, em 2009.

À direção e coordenação da E. M. Darcy Ribeiro.

Ao setor de arquivos do Diário da Região e ao Arquivo Público Municipal de São José do Rio Preto.

À FAPESP, pela bolsa de estudos concedida.

Aos amigos: Jorge Henrique Faccipieri Junior, Livia Laís Femina Figueiredo, Magali Sanches Duran e todos os que se vão somando à minha história.

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E foste um difícil começo Afasto o que não conheço

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SUMÁRIO

Página

INTRODUÇÃO 11

1 ANÁLISE DE DISCURSO E CIDADE 17

1.1 Dispositivo teórico e dispositivo analítico 17

1.1.1 Sujeito e Sentido 21

1.1.2 Ordem e Organização 22

1.2 A cidade, o bairro e os sujeitos 23

1.3 Morar, habitar 29

1.4 Metodologia e constituição do corpus 31

1.4.1 Textos produzidos em contexto escolar 34

1.4.2 Textos jornalísticos 35

2 A CIDADE, OS SUJEITOS E OS SENTIDOS 37

2.1 Operadores argumentativos: os efeitos de sentido nas regularidades do mas e do

só que 40

2.2 Discurso indireto: o outro, o fora 46

2.3 O espaço e os sujeitos: a casa, a escola, a rua e o centro esportivo 48

2.4 O não-verbal: autoria e resistência 51

2.5 Considerações conclusivas 55

3 O SUJEITO-MORADOR E O ESPAÇO URBANO NAS PÁGINAS DO JORNAL 57 3.1 O jornal local: discurso e mídia de proximidade 58

3.1.1 Títulos 61

3.1.2 Matérias 68

3.1.2.1 Educação 68

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3.1.3 Jornal Região Norte: sujeito-morador e administração pública 80 3.2 Projeto Diário nos Bairros: do púlpito ao palco 82

3.2.1 A série Diário nos Bairros 83

3.2.2 O jornalista e o jornalismo comunitário: a posição do mediador discursivo 84 3.2.3 Bairro Eldorado: entre a notícia e a crônica 90 3.3 O controle da polêmica: o político e o consenso 98

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS 99

REFERÊNCIAS 102

ANEXOS DIGITAIS

Grupo 1 de textos: textos produzidos por alunos moradores da Zona Norte Grupo 2 de textos: edições digitalizadas da série Diário nos Bairros

Grupo 3 de textos: edições digitalizadas do jornal Região Norte Grupo 4 de textos: edições digitalizadas do jornal Região Norte Grupo 5 de textos: edições digitalizadas do jornal Região Norte

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LISTA DE FIGURAS

Página

FIGURA 1: Constituição e Formulação 20

FIGURA 2: De-superficialização linguística e de-superficialização discursiva 32

FIGURA 3: Mapa da cidade de São José do Rio Preto 38

FIGURA 4: Detalhe da Zona Norte 39

FIGURA 5: Lugares sociais e lugares de dizer na cena enunciativa 43

FIGURA 6: Ilustração produzida por aluno 52

FIGURA 7. Títulos das matérias do Jornal Região Norte 63 FIGURA 8: Matérias relacionadas a Educação no Jornal Região Norte 68 FIGURA 9: Matérias relacionadas a moradia e saneamento no Jornal Região Norte 76

FIGURA 10: O jornalista como mediador 90

FIGURA 11: Discurso do Diário nos Bairros – Primeira fase 91

FIGURA 12: Bairro Eldorado – Primeira fase 92

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RESUMO

Este trabalho dedicou-se à compreensão da constituição dos sentidos de bairro e de sujeito-morador da Zona Norte de São José do Rio Preto, mobilizando para isso o dispositivo teórico e analítico da Análise de Discurso. O corpus foi composto a partir de redações produzidas por alunos moradores da Zona Norte e por recortes de dois jornais (Jornal Região Norte e Diário da Região). Verificamos como eixo organizador a tensão entre dentro e fora, periferia e centro, ordem e organização. Nas redações, os sujeitos-moradores salientam o conflito entre

socius e hostis, contrapondo em vários momentos a imagem que os de fora têm do bairro, em geral negativa e criminalizante. Opõem-se a esses sentidos em movimentos de resistência, inclusive contra a polícia, num funcionamento que chamamos de virar do avesso as relações de sentido no espaço urbano. Já os jornais, assentam-se num desejo de controle da polêmica, com a figura do jornalista atuando na posição de mediador entre a populção e o poder público. Os sentidos negativos do espaço urbano vão sendo relativizados até que os problemas do bairro cedam espaço a particularidades. Há, pois, uma sobredeterminação da idealização da organização urbana sobre a ordem na Zona Norte.

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ABSTRACT

This work was dedicated to the understanding of the meaning constitution of neighborhood and occupant-subject of São José do Rio Preto north region, using the analytic and theoric aspects of Discourse Analysis. The corpus was composed from writings produced by students living in the north region and newspaper clippings (Jornal Região Norte e Diário da Região). It was verified as the organizer axis the tension between inside and outside, suburb and downtown, order and organization. In the writings, the occupant-subjects highlighted the conflict between socius and hostis, opposing the image that outsiders have of the neighborhood, in general negative and criminalizing. They oppose to these assumptions by means of resistance movements, even against the police, in a reaction the we called "turning inside out" the relationships meanings in the urban space. The newspapers demonstrate a desire to control the polemic, with the journalist acting in a mediator position between the population and the public power. The negative meanings of urban space are minimized until the problems of the neighborhood give space to particularities. There is thus a overdetermination of the idealization of the urban organization in the north region order.

Keywords: Discourse Analysis – Urban Space – Resident Subject – Neighborhood

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INTRODUÇÃO

O estudo dos acontecimentos cotidianos, da cidade, em especial, ganhou um significativo espaço no âmbito da Análise de Discurso. Vários trabalhos têm se debruçado sobre a compreensão do espaço urbano do ponto de vista discursivo e os resultados se observam na formação de grupos de pesquisas, em colóquios científicos, em publicações e em projetos temáticos. Observa-se que não só os grandes centros urbanos têm motivado reflexões e investimentos analíticos, mas também cidades menores, como é o caso de São José do Rio Preto, interior de São Paulo.

O Projeto Palavra, discurso e silêncio: no movimento dos sentidos urbanos

(FAPESP 15205-1, 2009-2010), por exemplo, abriu espaço para discussões acerca da relação entre os sentidos urbanos e a palavra, tomada como palavra-silêncio, isto é, como “horizonte de significação da palavra no discurso” (NUNES, 2009, 2011). No âmbito desse projeto, o urbano, de modo amplo, e a cidade de São José do Rio Preto, de modo restrito, foram tomados como objeto de compreensão por trabalhos que se detiveram na questão da favela/desfavelização (GARCIA, 2010), do bairro (MARTINS, 20101) e da mendicância (NUNES, 2011), entre outros.

De acordo com Orlandi (2004, p.11),“Para nossa época, a cidade é uma realidade que se impõe com toda sua força. Nada pode ser pensado sem a cidade como pano de fundo. Todas as determinações que definem um espaço, um sujeito, uma vida cruzam-se no espaço da cidade”.

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E quando pensamos a questão do espaço urbano, não o tomamos “como um lugar administrativo, mas como uma configuração administrativa de sentidos sociais e políticos” (LAGAZZI-RODRIGUES; BRITO,2001, p.51). Além disso, como afirma Orlandi (2010, p. 5), é preciso considerar também os sujeitos que vivem no espaço urbano, os discursos em circulação que “atravessam e significam esses sujeitos e (n)esse espaço”.

A especificidade desse ponto de vista teórico-metodológico, portanto, reside no fato de buscarmos compreender o espaço urbano remetendo-o ao político, ao simbólico, tendo como materialidade a linguagem. A esse respeito, Nunes (2011) afirma que

A questão da linguagem muitas vezes é deixada de lado nas práticas de organização da cidade, com a predominância de um urbanismo tecnicista ou empirista. A introdução das pesquisas discursivas nesse campo faz com que a linguagem seja pensada em seu funcionamento na cidade, e com isso surgem certos objetos e questões de análise, diante da natureza das materialidades discursivas com as quais o analista se depara. Ir para a cidade, nesse sentido, significa estabelecer uma relação entre as ciências da linguagem e o real dacidade, colocando a Análise de Discurso como uma das ciências do urbano.

Em nossas reflexões para este trabalho, tomamos como recorte do espaço urbano o bairro, que é por sua vez, um espaço em que o sujeito se constitui e no qual constitui sentidos, é portanto espaço discursivo. Tomamos também a escola, entendida como um dos lugares em que a “forma-sujeito-histórica que é a nossa (a capitalista, de um sujeito com direitos e deveres) se configura como forma sujeito urbana” (ORLANDI, 2004, p.152).

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Tal recorte do espaço urbano e dos objetivos deve-se ao fato de a cidade de São José do Rio Preto, assim como várias cidades brasileiras, ser dividida administrativamente, politicamente, simbolicamente em regiões, áreas ou zonas. Essa divisão acaba tendo como consequência uma separação entre as partes da cidade: o centro e a periferia, a zona sul e a norte, as áreas em que se verifica maior disponibilidade de infra-estrutura e investimento político-administrativo e as áreas em que isso falta ou falha. Assim como em outras cidades, a zona periférica “é pensada como a borda, o limite entre o fora e o dentro. Estar na periferia é estar distante, na coincidência entre a distância espacialmente considerada e a distância politicamente imposta.” (LAGAZZI-RODRIGUES; BRITO, 2001).

No caso da Zona Norte de São José do Rio Preto, percebíamos por meio da mídia uma separação, um distanciamento com relação ao centro e à Zona Sul, reservando-se à Zona Norte a posição de reduto de criminalidade, de tráfico, de discriminação social. Isso nos remeteu à relação entre socius e hostis, à tensão entre o dentro e o fora e quais os efeitos desses sentidos atravessando os sujeitos-moradores. Um exemplo desses sentidos em circulação pode ser observado na edição de 13/09/2006 do jornal Diário da Região, que apresenta a Vila União, localizada na Zona Norte:

VILA UNIÃO LUTA CONTRA O PRECONCEITO

Moradores do bairro da zona norte têm dificuldade de arrumar emprego simplesmente por morar na Vila União; saída é mentir ou lutar por reconhecimento.

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Esse discurso foi produzido em um momento em que a prefeitura buscava a

urbanização de toda a cidade, por meio de projetos que visam, em particular, a zona norte (a própria Vila União é resultado de um processo de urbanização de uma antiga favela da cidade). Ao mesmo tempo, a imprensa também tem falado bastante sobre os bairros que compõem a Zona Norte ao noticiar roubos, assassinatos, tráfico de entorpecentes, contribuindo para construir essa imagem identificada pelos próprios moradores como ruim, negativa. Quando se diz que a zona norte é violenta ou que a violência está na zona norte, se faz uma separação e uma higienização do restante da cidade: o que fica de fora da zona norte é o urbanizado, o não violento, o saneado.

Da perspectiva em que nos situamos, questionamos os sentidos de urbanizado.

Segundo Orlandi (2004, p.34), tem havido uma sobreposição do urbano sobre a cidade, de forma que “o discurso do urbano silencia o real da cidade (e o social que o acompanha)” por meio de um movimento de generalização do discurso urbanista.

Podemos perceber por meio de algumas marcas (“Deus me livre morar naquele bairro”) que o sentido do referido bairro é construído pela formação imaginária do preconceito, da negação, da rejeição do espaço. Por conseguinte, os sujeitos moradores também passam a ser constituídos no interior dessa formação imaginária e sofrem rejeição da sociedade ao tentar conseguir um emprego. Ao mesmo tempo em que os sentidos desse bairro são assim constituídos, os sujeitos também o são.

Também podemos notar os sujeitos se reinscreverem em uma outra discursividade ao dizerem que moram em outros bairros (“Já ouvi gente daqui falar que mora no Eldorado, no Solo Sagrado”), para apagar, silenciar a existência do próprio bairro (“A Vila União parece não existir aos olhos dos próprios moradores”).

Esse bairro passou por um processo de urbanização, deixando de ser favela

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bairro continuam vendo-o como favela, a partir de uma posição que a identifica como ruim, negativa, violenta. Os de dentro do bairro silenciam a existência do bairro e da favela por estarem afetados por esse imaginário.

Segundo Guimarães (2004, p.165), “Quando pensamos espaços na cidade, os nomes que os designam não só ocupam lugar neste espaço social, ou nele circulam, como lhe dão sentidos, identificam estes lugares. E nesta medida constroem de algum modo a geografia urbana. Identificam-na”. No recorte acima apresentado, vemos que o nome Vila União, embora acione toda uma memória positiva, identifica um bairro em que não há união dos moradores na luta contra a imagem negativa do bairro. A mesma contradição entre o nome do bairro e a identificação e constituição dos sujeitos e dos sentidos do bairro ocorre no Parque da Cidadania, em que há relatos de que os sujeitos também não conseguem emprego quando se apresentam como moradores desse bairro. Qual o sentido de cidadania ou de união?

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A diversidade do corpus procura abarcar a diversidade de discursos que atravessam a constituição dos sujeitos e dos sentidos para bairro, sem, contudo, vislumbrar a exaustividade. Ao final das análises, os resultados serão confrontados com o objetivo de compreender o referido processo de constituição.

Seguem, na sequência, os pressupostos teóricos que embasam nosso trabalho de pesquisa. Nessa parte, visamos à apresentação dos pontos principais da teoria divididos em dispositivo teórico e dispositivo analítico, e das condições de produção.

No capítulo II, apresentamos a análise do corpus de redações dos alunos em que destacamos o funcionamento da alteridade bem como o desejo dos sujeitos-moradores ressignificarem o espaço urbano em que habitam tendo em vista a memória que circula sobre os bairros da Zona Norte.

Os jornais Região Norte e Diário da Região, ambos de São José do Rio Preto, são analisados no capítulo III deste trabalho. Enfatizamos o funcionamento da mídia apagando o político e dissipando tensões em função do discurso administrativo sobre o espaço urbano, construindo uma imagem consensual da Zona Norte, no Jornal Região Norte.

Já no jornal Diário da Região, a imagem que se constrói do espaço urbano e dos sujeitos-moradores é afetada por uma contradição. Ora o espaço é problemático; ora ele é pitoresco. Ora os sujeitos são cidadãos que querem ser ouvidos, mas que não têm espaço simbólico para tal, até a intervenção do jornal; ora são os protagonistas de crônicas sobre o bairro.

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1 ANÁLISE DE DISCURSO E CIDADE

“Os sentidos não são sentidos fora da sociedade e da história” (ORLANDI, 2006).

Neste capítulo, apresentamos brevemente os pressupostos teóricos nos quais nos baseamos na elaboração da tese. Nossas reflexões se inserem no arcabouço teórico-metodológico da Análise de Discurso, tal como trabalhada por Pêcheux (1990, 1993, 1997) e no Brasil por Orlandi (2001, 2002a, 2004, 2005), Nunes (1994, 1999, 2001, 2008, 2010, 2011), Lagazzi (1998, 1999), Payer (2006), Rodríguez-Alcalá (2002, 2004), Mariani (2003, 2007), Pfeiffer (1997, 2004), entre outros. Sendo assim, iniciaremos pela exposição do dispositivo teórico e do analítico, em seguida, nos deteremos na especificidade que constitui nosso trabalho: a relação cidade/bairro/sujeito, ou seja, a busca pela compreensão dos processos de constituição do sujeito-morador de alguns bairros da Zona Norte e do sentido de bairro. Por fim, passaremos à apresentação da metodologia e da constituição do corpus.

1.1 Dispositivo teórico e dispositivo analítico

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Análise de Discurso no Brasil. Em detrimento do termo “escola”, portanto, a autora propõe “filiação”, “relações intelectuais”, “tradições localizadas” (idem, p.85).

O que precede nos serve de apoio para reafirmarmos o caráter específico da Análise de Discurso Brasileira em relação à Análise de Discurso praticada no contexto europeu e à praticada em contexto norte-americano. Isso para então situarmos entre as contribuições teóricas de Orlandi a de dispositivo analítico.

Em “A Análise de Discurso em suas diferentes tradições intelectuais: o Brasil” (2005), Orlandi pontua a posição da tradição brasileira de Análise de Discurso frente à americana e à européia. A autora ressalta que “aqui” (Brasil) a história da Análise de Discurso é marcada não por uma “recepção” de ideias de um autor fundador proveniente de “lá” (Europa), nem tampouco seria o caso de uma mera “influência”. O que há é uma relação entre interlocutores, pois há uma “leitura” e não uma “recepção” dos textos fundadores da disciplina. É preciso dizer que esse posicionamento é uma marca característica da autora de opor-se, reflexiva e teoricamente, a discursos que tendem ao colonialismo, colocando o Brasil à margem de qualquer produção intelectual, científica.

Pois bem, essa “leitura” relaciona-se ao fato, e mesmo ao ato, de provocar deslocamentos significativos teoricamente que fazem com que a disciplina avance de modo próprio em condições de produção próprias. E uma marca desse movimento são alguns conceitos com os quais operamos em Análise de Discurso, tais como a distinção entre dispositivo teórico e dispositivo analítico (ORLANDI, 2001, p.39; 2002a, p.61; 2005, p.86).

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questões assumido pelo analista, seja ele lingüista, historiador, cientista social, fonoaudiólogo etc”.

Com relação, especificamente ao dispositivo teórico, ressaltaremos o que se entende por discurso, por condições de produção e por constituição.

A Análise de Discurso considera que a linguagem seja a mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. “Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana” (ORLANDI, 2002a, p.15). Ainda para a autora, “na Análise de Discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (idem, p.15).

Com esse gesto, a Análise de Discurso distingue-se de teorias anteriores que postulavam uma comunicação linear que teria como objetivo a transmissão de informação. Propõe, ao contrário, que se pense não uma transmissão, mas

efeitos de sentido entre locutores. Efeitos que resultam da relação de sujeitos simbólicos que participam do discurso, dentro de circunstâncias dadas. Os efeitos se dão porque são sujeitos dentro de certas circunstâncias e afetados pelas suas memórias discursivas. (ORLANDI, 2006, p.15).

Outro deslocamento fundador da Análise de Discurso é recolocar em questão para a análise linguística a situação, que junto com o sujeito tinham sido postos de lado pelos fundamentos saussurianos. Porém, a situação é sempre pensada discursivamente, nunca como uma exterioridade que se sobrepõe ao discurso, ao sujeito, aos sentidos. Ela é pensada dentro das condições de produção.

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remetendo às condições de produção em sentido estrito. Já no seu sentido amplo, elas apontarão para o contexto sócio-histórico, ideológico.

Com relação à noção de constituição, central em nosso trabalho, é definida por Orlandi (2001, 2002a) em termos da distinção entre os eixos da constituição (vertical) e da formulação (horizontal):

Figura 1: Constituição e Formulação

Assim, temos que todo dizer (formulação) se realiza num determinado ponto em que “(se) atravessa o (do) interdiscurso (constituição)” (ORLANDI, 2001, p.11). As formulações são consideradas uma “posição privilegiada como posto de escuta, de entrada no modo de constituição do sujeito, no sentido e na história” (ORLANDI, 2001, p.15).

A constituição determina a formulação, pois só podemos dizer (formular) se nos colocamos na perspectiva do dizível (interdiscurso, memória). Todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos. (ORLANDI, 2002a, p. 33)

Sendo que o interdiscurso é “todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos”, enquanto que o intradiscurso é “aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condições dadas” (ORLANDI, 2002a, p.33).

O interdiscurso, a memória discursiva, torna possível cada tomada de palavra, “disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva

Formulação (eixo da atualidade)

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dada” (idem, p.31). Em nosso caso, os dizeres que afirmam a criminalidade, a violência e as drogas como pertencentes à Zona Norte da cidade de São José do Rio Preto significam, têm um efeito sobre os textos produzidos em contexto escolar, ou sobre as reportagens.

Dito isso, gostaríamos de ressaltar os principais conceitos que compõem nosso dispositivo analítico.

1.1.1 Sujeito e Sentido

Nas bases do que propôs Pêcheux (1997b, p.131), não consideramos o sujeito como um a priori, como um “sempre-já-dado”. Sendo que o mesmo se passa com o sentido. Eles se constituem no discurso. Dessa forma, ao trabalhar com a Análise de Discurso, nos distanciamos de posições teóricas para as quais o sujeito seria tomado como fonte, origem dos sentidos. Trabalhamos com um sujeito sendo determinado pela ideologia e pelo inconsciente.

Essa forma de tratar o sujeito implica tomá-lo como resultado da interpelação do indivíduo em sujeito, do que resulta uma forma-sujeito histórica. Segundo Orlandi (2001, p.104), a forma-sujeito histórica sofre ainda um processo de individualização pelo Estado que constitui, assim, o Indivíduo Social (em detrimento do indivíduo bio e psico). Atualmente, temos uma forma-sujeito histórica diferente da medieval (produzida sob o domínio da instituição religiosa e por um sistema econômico-político feudal). Trabalhamos com a forma-sujeito histórica capitalista.

(24)

Dito isso, ressaltamos que tomaremos os sujeitos dos bairros pesquisados da Zona Norte enquanto individualizados pelo Estado através de suas instituições como alunos, como moradores e como cidadãos.

Ainda sobre o papel do Estado, podemos notar que suas instituições (escola, família, igreja, associações, fábricas, etc.) constituem, entre outras coisas, as “comunidades de fato” (ORLANDI, 2006, p.22) dos sujeitos. Mas em alguns momentos essas comunidades de fato não são suficientes para que o sujeito tenha a sensação de pertencimento, de “corpo social sólido”, é então que se estabelecem as “comunidades segundas”: “grupos em que cada um pode desempenhar seu desejo de reconhecimento como o reconhecimento de seu desejo e de seu ser. As pessoas têm assim a impressão de fazer parte de um grupo, de um corpo compacto que possui a liturgia e seus rituais comoventes em que a morte não entra” (idem).

Em nossa pesquisa, vemos uma marca desse processo em um enunciado típico da Zona Norte da cidade, que aparece inscrito em paredes, muros, viadutos, placas, bonés, redações e até mesmo em tatuagens: “sou Zona Norte”. Note-se que a própria formulação é significativa do modo de colocar-se como parte do corpo, não apenas como pertencente ao corpo social. Esse ponto será devidamente retomado ao longo das análises.

1.1.2 Ordem e Organização

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equipamentos públicos de qualidade) e os bairros pobres (sem condições, com esgoto correndo a céu aberto etc)”.

Para a autora (idem, p.35), a organização reflete uma verticalização das relações sociais na cidade, que por sua vez hierarquiza o espaço social, “urbaniza” a cidade “separando regiões, determinando fronteiras que nem sempre são da ordem do visível concreto mas funcionam no imaginário sensível. Segregação”. Compreender esse movimento entre ordem e organização passa por

ultrapassar a organização do discurso urbano para atingir a compreensão da ordem do discurso urbano, isto é, procurar entender como o simbólico confrontando-se com o político configura sentidos para/na cidade e não ficar apenas na organização do discurso urbano que nos relega ao imaginário, às ilusões (eficazes) da urbanidade. (ORLANDI, 2004, p.35)

Se, por um lado, há a construção de muros de tijolos e concreto que separam condomínios, bolsões, etc., por outro, há também muros simbólicos que podem igualmente separar regiões. Essa barreira imaginária deixa de um lado o socius e de outro o hostis. Veremos, por exemplo, que ao significar a Zona Norte como espaço de maior concentração de criminalidade da cidade, a mídia rotula, segrega, separa.

1.2 A cidade, o bairro e os sujeitos

(26)

como mediadora necessária entre o homem e a realidade natural e social. Orlandi (2004, p.81) já lança a questão, à qual ela mesma responde:

Por que “cidade”? Porque, na modernidade, como temos afirmado, a noção de cidade é central, trazendo com ela um conjunto de reflexões que interrogam a própria noção de “humanidade” e de “sociabilidade”. Leva-os a refletir sobre o que somos enquanto seres simbólicos e histórico-sociais.

No livro Cidade dos Sentidos, Orlandi (2004) busca construir uma definição para cidade. A autora recorre a outros estudiosos que empreenderam a mesma tarefa2, e a partir de suas reflexões, a autora aponta a cidade como “lugar não vazio mas em que sujeitos vivem, em quantidade e em concentração e divergência” (idem, p.14). Mais adiante, a autora complementa: “espaço material concreto funcionando como sítio de significação que requer gestos de interpretação particulares. Um espaço simbólico trabalhado na/pela história, um espaço de sujeitos e de significantes” (idem, p.32). Veja que estão em relação espaço/história/sujeitos/significantes, elementos básicos constitutivos do recorte teórico-metodológico operado pela Análise de Discurso.

Pois bem, embora nosso recorte teórico-metodológico seja o da Análise de Discurso, não deixamos de observar as reflexões de outras áreas de saber quando elas podem trazer contribuições. É o caso, por exemplo, do trabalho de Raquel Rolnik (2004)3. A autora apresenta um estudo sobre a natureza, a origem e a transformação do fenômeno urbano. Primeiramente, ela trata de definir o que é cidade, para tanto lança mão das seguintes metáforas: cidade-ímã (“atrai, reúne e concentra os homens” (p.12)), cidade-escrita (“as formas e tipologias arquitetônicas, desde quando se definiram enquanto hábitat permanente, podem ser lidas e decifradas, como se lê e decifra um texto” (p.17)), cidade-política (em duas

2 L. Wirth, O urbanismo como forma de vida. In O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. M. Weber, Conceito e categorias de cidade. In O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

(27)

dimensões distintas: “exercício de dominação da autoridade político-administrativa sobre o conjunto dos moradores” e “luta cotidiana pela apropriação do espaço urbano” (p.24)) e

cidade-mercado (“a cidade, ao aglomerar num espaço limitado uma numerosa população, cria o mercado. E assim se estabelece não apenas a divisão de trabalho entre campo e cidade [...] mas também uma especialização do trabalho no interior da cidade” (p.26)).

Na sequência, a autora passa a discorrer sobre a cidade capitalista traçando um paralelo com a medieval a partir de suas formas político-econônicas e de organização. Em linhas gerais, ela conclui que marcam a cidade capitalista as relações de mercado e a arquitetura de isolamento4. Analisando o papel do Estado, ela afirma que sua forma de atuação dá-se através de planos e intervenções projetadas e calculadas, ou seja, planejamento urbano. Esse ideal remonta, segundo Rolnik (p.55), dos planos racionais de Thomas Morus (séc. XVI) e de pensadores utópicos, cujos temas podem ser encontrados atualmente em planejamentos urbanos: 1. leitura mecânica da cidade (circulação de fluxos); 2. ordenação matemática da cidade (regularidade e repetição); 3. uma cidade planejada é uma cidade sem males; 4. o Estado pode controlar a cidade através do esquadrinhamento dos espaços urbanos.

Podemos perceber nesses ideais a presença do desejo pela organização do espaço urbano, inclusive como garantia de segurança e higienização na construção mesma da cidade utópica. Orlandi (2004, p.14-15) menciona, no caso do Brasil, a organização que o espaço público sofreu após a República na tentativa de “civilizar o país” frente à desordem causada pela abolição e pelas migrações e imigrações, a exemplo do que já se havia operado na Europa com vistas à “aeração, circulação, lazer, monumentalidade e controle sócio-político”. Atualmente, esse movimento pode ser verificado, por exemplo, nos planos diretores das cidades, principalmente após o Estatuto da Cidade (2001), que em alguns casos objetivam

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o desfavelamento, a reurbanização, a revitalização de espaços públicos5. É o que ocorre com certos bairros da Zona Norte da cidade São José do Rio Preto, tais como a Vila União e o Parque da Cidadania.

A questão do esquadrinhamento dos espaços nos remete às observações de Lippe (2005) sobre a geometrização do homem. O autor aponta a geometrização como mais uma marca do séc. XVI na Europa. Esclarece que o termo “é empregado com referência não aos elementos, mas à organização das estruturas. No plano das estruturas, é atribuído às formas geométricas o estatuto e a função universal de um modelo organizador” (idem, p.129). Segundo ele, ela implicou mudanças nas atitudes, nos movimentos, na percepção do mundo e de si. E certamente está presente nos planos organizadores dos espaços urbanos ao se pensar, por exemplo, em grandes avenidas (Champs Elisés (Paris), Central (Rio de Janeiro) ou Paulista (São Paulo)), em cidades projetadas (Brasília), na estruturação de bairros, zonas, regiões, condomínios e de residências. O fato é que ao dividir, esquadrinhar, geometrizar o espaço atinge-se os sujeitos que passam a organizar suas práticas de acordo com a organização que se sobrepõe à ordem da cidade.

Voltando às palavras de Rolnik (2004) sobre a dominância do mercado e a arquitetura de isolamento, isso nos interessa à medida que faz eco ao que dizem Lewkowicz, I.; Cantarelli, M.; Grupo Doze (2006) e Orlandi (2004, 2007) sobre o papel do Estado e sobre os bolsões e fechamentos, ligando-os também ao acontecimento do capitalismo. Lembrando que enquanto forma-sujeito histórica trabalhamos com o sujeito capitalista, de direitos e deveres.

Lewkowicz, I.; Cantarelli, M.; Grupo Doze (2006, p. 48) refletem sobre o esgotamento do Estado enquanto pan-instituição doadora de sentido dando lugar ao Mercado. Como consequência, há o desvanecimento dos laços sociais e o Estado passa a funcionar aos

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moldes de uma máquina técnico-administrativa. Diante de um novo modelo de relação simbólica, pautado pelo imediatismo, o sujeito necessita construir espaços para se inscrever. Precisa habitar. Precisa “transformar um fragmento uma situação”. E situação é a “produção de um espaço e de um tempo em um meio sem marcas socialmente instituídas”, bem como a “criação da subjetividade capaz de habitar esse espaço e esse tempo.” Essas reflexões apontam para uma fragmentação dos sentidos, das relações, das instituições que deve ser transformada em uma subjetividade situacional.

Contudo, Orlandi (2004) argumenta que, no caso do Brasil, o Estado funciona sim, mas pela falta e afetado pelas sociedades de mercado. Em decorrência, há a produção do sem-sentido. E na falta do Estado, e consequentemente na insuficiência de poder simbolizar-se em suas instituições (escola, família, nação, etc.), o sujeito escolhe fazer parte das comunidades segundas, das quais já falamos por ocasião da alusão ao enunciado “Sou Zona Norte” e suas implicações.

Sobre os bolsões e fechamentos, que têm relação com a segregação e com a arquitetura do isolamento, Orlandi (2004, p.91) é direta:

O fechamento de espaços recortando a cidade, retraçando seus percursos, redesenhando divisões, refazendo limites entre o público e o privado, separando de forma acintosa pobres e ricos, produzindo, de um lado, nichos, e, de outro, corredores, se faz de modo irrefletido oscilando entre modismo, paranóia e especulação imobiliária. Nada com que se espantar: o capitalismo só está aí se significando como “sabe” significar. Desde que se configure a menor possibilidade, as diferenças sociais e econômicas se manifestam violentamente e a divisão social se sobrepõe ostensivamente à materialidade da divisão do espaço urbano, espaço público.

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Com relação à conceituação de bairro, discursivamente, é um espaço em que o sujeito se constitui e constitui sentidos, é espaço discursivo. Lembrando que nessa perspectiva teórica o sujeito não ocupa a posição de origem dos sentidos, mas que ele, sujeito, e sentido se constituem ao mesmo tempo. Isso vem reforçar o efeito dos sentidos de bairro para seus moradores, no sentido de que o laço social estabelecido no/com o bairro é fortemente constitutivo das identidades dos sujeitos, de modo que falar do bairro é também falar do sujeito.

Mayol6 (2000, p.40) também se interessou pelo bairro, do ponto de vista da antropologia:

A prática do bairro é desde a infância uma técnica do reconhecimento do espaço enquanto social. (...) Assinatura que atesta uma origem, o bairro se inscreve na história do sujeito como a marca de uma pertença indelével na medida em que é a configuração primeira, o arquétipo de todo processo de apropriação do espaço como lugar da vida cotidiana pública.

Além disso, segundo o mesmo autor, o bairro é “o lugar onde se manifesta um ‘engajamento’ social ou, noutros termos: uma arte de conviver com parceiros (vizinhos, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição” (idem, p.39). Embora em Análise de Discurso não trabalhemos com o “indelével” nem tampouco com os “arquétipos”, e sim com as singularidades, com os esquecimentos, o trabalho de Mayol é relevante por olhar para a história do sujeito relacionado ao espaço e aos demais sujeitos.

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1.3 Morar, habitar

A expressão “sujeito-morador” tem sido empregada ao longo deste trabalho. Mas, o que seria esse “sujeito-morador”? A construção da expressão é atravessada pelo questionamento dos sentidos de morar e de habitar, no sentido de definir esse sujeito que é individualizado pela sua condição de morador de um espaço no espaço da cidade. Discursivamente, o espaço é entendido como “lugar atravessado pela memória, atravessado por um conjunto de gestos de interpretação, é onde o sujeito se inscreve historicamente, tomando sentidos” (PFEIFFER, 2004, p.173).

Recorrendo a áreas afins, como a antropologia, temos que no tomo 2 de A invenção do cotidiano, Mayol, De Certeau e Giard concentram-se nas questões do morar. Mayol detém-se no contexto do bairro Croix-Rousse (Lyon, França). Em seu texto, o autor trata do morar tocando as questões da convivência, do consumo, da postura do corpo, da inserção no ambiente social e dos benefícios simbólicos:

Aquilo que o usuário ganha quando sabe “possuir” direito o seu bairro não é contabilizável, nem se pode jogar numa troca necessariamente de uma relação de forças: o adquirido trazido pelo costume não é senão a melhoria da “maneira de fazer”, de passear, de fazer compras, pela qual o usuário pode verificar sem cessar a intensidade da sua inserção no ambiente social (MAYOL, 2000, p. 45)

Veja que o autor emprega a forma “usuário” para referir-se aos sujeitos que “possuem” o bairro, numa interpretação do bairro como objeto de consumo simbólico, cuja prática é determinada por posturas e costumes, regrada pelos benefícios simbólicos.Ainda nas palavras de Mayol: “O bairro é, por conseguinte, no sentido forte do termo, um objeto de consumo do qual se apropria o usuário no modo da privatização do espaço público”.

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forma. Essa forma de realização da dupla constituição se dá determinada por um conjunto de memórias discursivas que atuam sobre as práticas, sobre as formulações dos sujeitos.

De uma outra perspectiva, Lewkowicz; Cantarelli; Grupo Doze (2006), em suas reflexões sobre o esgotamento do Estado como pan-instituição doadora de sentidos, propõem o habitar como uma nova estratégia de subjetivação da contemporaneidade, como dito acima. Sua tese é que esse esgotamento tem como produto a fragmentação e que ela deve ser transformada em situação: “a produção de uma demarcação.”, (idem, p. 48) através de práticas de subjetivação, entre elas, o habitar:

o habitar não consiste na ocupação de um lugar em um sistema de lugares – o que seria próprio da meta-instituição estatal. Ao contrário, consiste na determinação desse espaço e desse tempo. Nesse sentido, o ponto de partida de um habitante não são os lugares instituídos e sim os fragmentos destituídos. Justamente por isso, habitar um espaço se faz determinando-o. E para determiná-lo é preciso construí-lo. Deste modo, habitar – em condições de fluidez – é sinônimo de construir (idem, p.50).

Ser habitante, portanto, ultrapassa o nível da ocupação de um espaço entre outros. Está no nível simbólico da apropriação e construção subjetiva de um espaço entre

outros.

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1.4 Metodologia e constituição do corpus

Expostos os dispositivos teórico e analítico, passemos à explicitação da constituição do corpus discursivo e da metodologia empregada, ambas em consonância com o aparato teórico-analítico da Análise de Discurso.

Diferentemente de outras áreas de pesquisa, em Análise de Discurso a delimitação do corpus apenas se dá com a própria análise, por uma característica do próprio método, ou seja, o trabalho com o material de análise, com as condições de produção, com a teoria é que delimita o corpus. Trabalhamos com uma análise em espiral: da teoria ao corpus, dele à teoria, e assim sucessivamente.

Decorre do que precede, que o corpus, em Análise de Discurso, é entendido como “um recorte dos dados, determinado pelas condições de produção, considerando-se um certo objetivo e os princípios teóricos e metodológicos que, orientando toda a análise, possibilitarão uma leitura não-subjetiva dos dados” (LAGAZZI, 1988, p.59).

Trabalhamos, portanto, com a noção de recorte. Segundo Orlandi (2002, p. 62), “todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro. Não há discurso fechado em si mesmo, mas um processo discursivo do qual se podem recortar e analisar estados diferentes”.

Em suma, a Análise de Discurso busca colocar em evidência os traços dos processos discursivos, já que esses processos estão na origem da produção dos efeitos de sentido, constituindo-se a língua como o lugar material onde se realizam esses efeitos de sentido (PÊCHEUX; FUCHS, 1975).

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através de operações de dessuperficialização linguística e de dessuperficialização discursiva. Dessa forma, temos:

Figura 2: Dessuperficialização linguística e dessuperficialização discursiva

Lagazzi (1988, p.53) explica esses passos da seguinte maneira:

Pela desintagmatização linguística, trabalhamos com as famílias parafrásticas, explicitando relações entre o dito e o não-dito, lidando com as relações de intertextualidade, enunciação e outras, tudo ao nível do formulável. A desintagmatização discursiva permite-nos chegar à formação discursiva (F.D.), que domina o texto e à relação dessa formação discursiva dominante com outras formações discursivas que aí se entrecruzam. Através da(s) formação(ões) discursiva(s) atingimos a(s) formação(ões) ideológica(s), uma vez que esta(s) é(são) representada(s), no discurso, pela(s) formação(ões) discusiva(s) que lhe(s) corresponde(m).

Vale ressaltar que essa separação entre dessintagmatização/ dessuperficialização discursiva e linguística não são estanques e discretas. No processo analítico elas se dão conjuntamente. Quando analisamos as paráfrases “já tocamos, indiretamente, nas formações discursivas” (idem, p.54).

Ressaltamos também que, pelo quadro, observa-se que as etapas metodológicas envolvem o trabalho com os esquecimentos. Para compreendermos a noção de esquecimento, recorremos a Pêcheux (1997b). O autor define, apoiado em suas leituras de Freud, dois esquecimentos “inerentes ao discurso” (idem, p. 173). De acordo com o esquecimento n. 2,

Superfície lingüística: Sequência oral ou escrita, de dimensão variável, e em geral maior que a frase; “discurso concreto, isto é, objeto empírico afetado pelos esquecimentos 1 e 2”.

Ø

Ø

Ø

Ø

Objeto discursivo: “resultado da transformação da superfície lingüística de um discurso concreto, em um objeto teórico, isto é, em um objeto lingüisticamente de-superficializado, produzido por uma análise lingüística que visa a anular a ilusão nº 2”.

Ø

Ø

Ø

Ø

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todo sujeito falante “seleciona” no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e não um outro,que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-lo na formação discursiva considerada.

Segundo Orlandi (2002a, p. 35), esse esquecimento é da ordem da enunciação e responsável por uma “ilusão referencial” de que haveria uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo. Consideramos, dessa perspectiva discursiva, que essa relação é sempre mediada pelo discurso, atravessada pelo simbólico.

Com relação ao esquecimento n. 1, Pêcheux (1997b, p. 173) afirma que ele “dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina”. Para Orlandi (2002a, p.35), esse esquecimento é ideológico e “reflete o sonho adâmico de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem a dizer as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos”.

Segundo esses esquecimentos, sentido e sujeito se constituem ao mesmo tempo no interior de uma dada formação discursiva; nem sentido, nem sujeito existem por si. Além disso, os sentidos sempre podem ser outros, visto que estão relacionados a formações discursivas e uma vez alterada a formação discursiva altera-se também o sentido.

Assim, por trabalharmos com o funcionamento da linguagem, do discurso, e não com conteúdos, o objetivo do analista de discurso é compreender os sentidos, as interpretações, e não dizer qual é o sentido verdadeiro ou certo de um texto, como faria a hermenêutica, por exemplo.

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Por paráfrase, entendemos o retorno ao mesmo, a estabilização dos sentidos, a produção de diferentes formulações do mesmo dizer. Segundo Orlandi (2002a, p.36) “os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória”. É um conceito geralmente oposto ao de polissemia, que representa o deslocamento, a ruptura de processos de significação.

Já a metáfora “é constitutiva do processo mesmo de produção de sentido e da constituição do sujeito. Falamos da metáfora não vista como desvio mas como transferência” (idem, p.79). Transferência, deslize de sentidos, o efeito metafórico é o lugar possível da interpretação, da historicidade. Sendo que a historicidade é concebida como “aquilo que faz com que os sentidos sejam os mesmos e também que eles se transformem” (idem, p.80).

Considerando a questão central, qual seja, a da constituição, nosso percurso consiste em, a partir das formulações e das formas materiais, compreender como a atuação da memória discursiva, dos já-ditos operam na constituição, observando o funcionamento da metáfora, da paráfrase. Sendo que as formas materiais reúnem a um só tempo forma e conteúdo, permitindo compreender as propriedades discursivas, que remetem a língua à história para significar.

Sendo assim, gostaríamos de salientar que nosso trabalho assenta-se na análise discursiva de um corpus heterogêneo que busca fazer um recorte dos discursos que atravessam a constituição dos sujeitos-moradores e dos bairros. Nossos materiais são: textos produzidos em contexto escolar e textos jornalísticos.

1.4.1 Textos produzidos em contexto escolar

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Estiveram envolvidos na pesquisa uma turma de 8ª série do Ensino Fundamental e quatro turmas da 6ª série do Ensino Fundamental, totalizando cerca de 120 alunos. A cada um foram oferecidas três folhas. Na primeira, constava a proposta para a produção do texto: “Como você apresentaria, para alguém que não conhece, o lugar em que você mora em São José do Rio Preto, num texto de mais ou menos 20 linhas? Você pode escolher falar de sua rua, de seu bairro, da cidade ou da região. Procure apresentar diferentes características desse lugar: as pessoas, o que elas costumam fazer lá, como são as casas, como são as ruas, e o que mais você achar interessante sobre o lugar onde você vive”. Nas duas seguintes, havia um termo de consentimento em duas vias que deveria ser lido e assinado pelos pais ou responsáveis, já que todos eram menores de idade.

Os textos que formam o corpus são apenas aqueles acompanhados de autorização e estão organizados em função disso e das séries. Nenhum texto apresenta a identificação do aluno-autor, somente um número que utilizamos como código para remetê-lo à autorização. Ao todo, temos 30 textos de alunos da 6ª série com autorização (de um total de 68 que aceitaram fazer o texto) e 8 textos de alunos da 8ª série com autorização (de um total de 26 que aceitaram fazer o texto).

1.4.2 Textos jornalísticos

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cobrar soluções dos órgãos responsáveis”. Já se parte do imaginário de que os problemas estão localizados nos bairros e de que o jornal é a instituição que tem o poder de “cobrar soluções”. Organizamos um corpus com esses jornais e separamos aqueles que dizem respeito à Zona Norte.

Já com relação ao Jornal Região Norte, ele é uma publicação mensal que circula na cidade e tem tiragem média de 5.000 exemplares. Originalmente, o jornal chamava-se “Jornal Zona Norte”, mas a edição de junho de 2007 traz a chamava-seguinte nota: “Nova concepção – A partir da edição do mês de junho o Jornal Zona Norte passa a se chamar Jornal

Região Norte. A mudança atende a reivindicação dos setores social, cultural, produtivo e político dos habitantes de mais de 150 bairros existentes nesta região” (grifos nossos).

Os jornais de bairro são o foco do livro Os Jornais de bairro na cidade de São Paulo.(ALBUQUERQUE, 1985). Segundo a obra, eles existem em São Paulo desde o século XIX, motivados pelas publicações das colônias alemãs, espanholas e italianas. Mas seu auge deu-se no século XX. Segundo Camargo (2006),

a imprensa de bairro é capaz de mobilizar os moradores em torno de questões locais, pois a proximidade com o leitor e com o assunto permite ao jornal revelar melhor a história, o modo de vida, as necessidades e as modificações daquele núcleo urbano, fatores estes que geram uma identificação por parte dos leitores.

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2 A CIDADE, OS SUJEITOS E OS SENTIDOS

“No território urbano, o corpo dos sujeitos e o corpo da cidade formam um, estando o corpo do sujeito atado ao corpo da cidade, de tal modo que o destino de um não se separa do destino do outro. Em suas inúmeras e variadas dimensões: material, cultural, econômica, histórica etc. o corpo social e o corpo urbano formam um só.” (ORLANDI, 2004)

No capítulo anterior, expusemos as bases teórico-metodológicas do nosso trabalho, bem como nossos objetivos: i. Compreender a constituição do sujeito enquanto sujeito-morador de alguns bairros da Zona Norte da cidade de São José do Rio Preto; ii. Compreender os sentidos produzidos para bairro, tendo em vista que “sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo” (PÊCHEUX, 1997b).

Apresentamos neste capítulo uma análise do discurso de alunos de uma escola da Zona Norte, tendo em vista os objetivos supracitados. O material de análise são textos produzidos em contexto escolar a partir de uma proposta, semelhante à feita por Rodriguez-Alcalá (2004) e Fournier (2004): os alunos do7° e do9°anos do E.F. da Escola Municipal Darcy Ribeiro, localizada no bairro Jardim Santo Antonio – Zona Norte da cidade de São José do Rio Preto, foram convidados a escrever um texto a partir da seguinte instrução:

“Como você apresentaria, para alguém que não conhece, o lugar em que você mora em São José do Rio Preto, num texto de mais ou menos 20 linhas? Você pode escolher falar de sua rua, de seu bairro, da cidade ou da região. Procure apresentar diferentes características desse lugar: as pessoas, o que elas costumam fazer lá, como são as casas, como são as ruas, e o que mais você achar interessante sobre o lugar onde você vive”.

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aqueles que continham um “Termo de Consentimento” devidamente assinado pelos pais ou responsáveis, já que se trata de menores de idade.

Buscamos assim contribuir com a compreensão do bairro enquanto espaço urbano de constituição de sujeitos e de sentidos.

A cidade de São José do Rio Preto situa-se no interior do Estado de São Paulo e tem 402.770 habitantes (senso IBGE 2007). Como muitas cidades de seu porte, tem conflitos sociais, zonas de distribuição de riquezas, zonas periféricas, entre outras coisas. Verifica-se que a cidade é dividida, pelo discurso da mídia, da segurança pública e dos próprios habitantes, em zonas, sendo que a sul é conhecida como a da classe alta, onde se encontram condomínios residenciais de alto padrão, shoppings, clínicas, parques, etc.; e a zona norte é conhecida pelos bairros residenciais, desfavelamentos, altos índices de criminalidade, tráfico, etc. Um lado da cidade conta com aparelhos públicos de qualidade, enquanto o outro sofre com a falta deles. Um lado é remetido a problemas nos noticiários e o outro a altos padrões de vida e consumo.

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Orlandi (2007), citando Touraine (“Face à l’exclusion”, 1991), afirma que atualmente não se verificam mais as divisões de classes verticais (as pirâmides sociais) em que os sujeitos seriam incluídos ou excluídos. O que existiria hoje seria uma relação não de classes, mas de lugares, horizontalmente, em que os sujeitos não seriam incluídos/excluídos, mas segregados. Ainda segundo Orlandi, em seu livro Cidade dos Sentidos (2004, p. 81),

para um analista de discurso, o espaço significa, e a relação dos sujeitos com o espaço é determinante para sua forma de vida. Observe-se como se significam as pessoas segundo vivam em bairros ricos (com seus equipamentos públicos de qualidade) e os bairros pobres (sem condições (...)). Que sentidos de vida pública social estão aí funcionando?

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socius e o hostis (Orlandi, 2004). Sendo que o hostis é o que deve ficar de fora, é o inimigo a ser evitado. E nossa questão é: como vai se constituindo o sujeito-morador desses espaços da cidade, ou seja, de alguns bairros da Zona Norte, tendo em vista esses discursos.

Pelas análises dos textos dos alunos, percebemos as marcas dessa separação entre socius e hostis, de como “os de dentro” veem e são vistos pelos “de fora”. Note-se como não se trata mais apenas de classes sociais separadas verticalmente, mas de sujeitos separados também horizontalmente por zonas/ regiões espaciais e, por que não, de sentido?

Na sequência, apresentaremos as análises das redações divididas em quatro seções: 2.1. Operadores argumentativos: os efeitos de sentido nas regularidades do mas e do

só que; 2.2. Discurso indireto: o outro, o fora; 2.3. O espaço e os sujeitos: a escola, a rua e o centro esportivo; 2.4. O não-verbal: autoria e resistência. Essas seções de análise visam a compreensão do funcionamento da alteridade, da fragmentação e da resistência enquanto possibilidade da superação da fragmentação.

Em todas essas seções observaremos como se dá o jogo entre o eu/o outro, o dentro/o fora, ou seja, como a alteridade funciona na constituição da imagem que os alunos sujeitos-moradores do bairro têm de si e do bairro. Para tanto, procuramos trabalhar sempre a relação constituição/ formulação (ORLANDI, 2001; 2002a), exposta anteriormente (p.16).

2.1 Operadores argumentativos: os efeitos de sentido nas regularidades do mas e do

que

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dividido, “sendo que essa divisão tem uma direção que não é indiferente às injunções das relações de força que derivam da forma da sociedade na história” (p. 74).

A autora distingue duas posições diferentes sobre a argumentação na linguagem: uma que defende que a argumentação é constitutiva e outra que diz que ela é um ornamento do dizer. Posicionamo-nos contrários ao ponto de vista retórico clássico, segundo o qual a argumentação é ornamental, e nos colocamos ao lado de posições que veem a argumentação como um funcionamento da língua, constituída pelo interdiscurso e analisável por meio do intradiscurso, em suas marcas linguísticas. Distanciamo-nos assim também de posições teóricas que veem a argumentação como uma função da língua, a função persuasiva “produto da evolução da humanidade e das sociedades” (ZOPPI-FONTANA, 2006, p.194).

Orlandi (1998,p.80) propõe que a argumentação seja analisada como parte da materialidade do texto, como sendo trabalho sobre o domínio da organização (empírico-formal) do dizer e não da ordem (linguístico-discursiva), portanto, não afetando a posição discursiva do sujeito. Para que a posição do sujeito fosse alterada, seria necessário um deslocamento no nível da constituição, mas segundo a autora, o jogo da argumentação se dá no nível da formulação.

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Ao longo das análises dos recortes em que funciona o operador “mas”, Guimarães (1987) salienta a representação do sujeito da enunciação e o caráter polifônico da enunciação. O autor trabalha com as noções de Locutor (L) e de Enunciador (E), sendo que:

- Locutor: “é aquele que se apresenta com eu na enunciação, representando-se, internamente ao discurso, como o responsável pela enunciação em que ocorre o enunciado. O locutor é uma figura constituída internamente ao discurso e marcada no texto pelas formas do paradigma do eu.” (p.21); - Enunciador: “é a posição do sujeito que estabelece a perspectiva da enunciação.” (p.22).

A partir dessas duas categorias e baseado no conceito de polifonia de Bakhtin, Guimarães (1987, p.22-23) afirma que uma enunciação pode ser considerada como polifônica sob dois aspectos: i. quando o recorte7 representa mais de um locutor para o enunciado (p.ex.: discurso relatado); ii. quando a enunciação representa mais de um enunciador no enunciado, mais de uma perspectiva enunciativa (p.ex.: negação).

Em trabalho posterior, Guimarães (2005) extende a reflexão expondo a diferença entre os tipos de enunciadores. O autor destaca: i. o enunciador individual, como “a representação de um lugar como aquele que está acima de todos, como aquele, que retira o dizer de sua circunstancialidade” (p. 25); ii. o enunciador genérico, em que “um todos que se apresenta como diluído numa indefinição de fronteiras para o conjunto desse todos” (p. 25); iii. o enunciador universal, ou seja, ‘um lugar que significa o Locutor como submetido ao regime do verdadeiro ou falso” (p. 26).

7 Apóia-se em Orlandi (1983, 1984) para afirmar que o recorte é “uma unidade discursiva”, “um

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O quadro abaixo, organiza a relação entre os lugares sociais (locutor) e os lugares de dizer (enunciador) colocados em jogo na cena enunciativa8, baseado nas reflexões de Guimarães (2005):

Lugares sociais do L, papéis enunciativos: locutor-brasileiro, locutor-presidente, locutor-jornalista, locutor-professor, locutor-índio, etc.

Locutor

Lugares de dizer, lugares de enunciação, enunciadores: enuncidor-individual, enunciador-genérico, enunciador-universal Díspar a si mesmo

Não empírico

Figura 5: Lugares sociais e lugares de dizer na cena enunciativa

Na análise das redações que compõem o corpus, destacamos o funcionamento do “mas” e, em alguns casos, do “só que” em que esta expressão funciona de modo semelhante ao “mas”. Essas conjunções funcionam opondo discursos sobre o bairro, sendo que um é sustentado pelos alunos-moradores da Zona Norte e o outro pela antecipação do senso comum e estão em relação polêmica, em disputa pelos sentidos. De acordo com Orlandi (2002, p. 39),

segundo o mecanismo da antecipação, todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor “ouve” suas palavras. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte. Este espectro varia amplamente desde a previsão de um interlocutor que é seu cúmplice até aquele que, no outro extremo, ele prevê como adversário absoluto. Dessa maneira, esse mecanismo dirige o processo de argumentação visando seus efeitos sobre o interlocutor.

8 Guimarães (2005, p. 23) afirma que a cena enunciativa “se caracteriza por constituir modos

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Desse modo, o “mas” e o “só que” marcam a complexidade enunciativa do

corpus, como pista da alteridade que compõe o discurso do aluno-morador sobre seu bairro em relação ao discurso do outro que é antecipado e introduzido pelas referidas conjunções. Vejamos9:

1. As casas não [são] as de um condomínio de luxo, mas o importante é que

cada um tem a sua. (10)

À esquerda do “mas” temos um enunciador que fala de fora, a partir do senso comum que se construiu sobre a Zona Norte, ou seja, de acordo com o discurso do outro nenhuma casa do bairro supracitado pode ser comparada “as de um condomínio de luxo”. Percebemos, à direita do “mas”, o enunciador-morador que traz para dentro de sua discursividade a voz do outro. O enunciado mostra-se polifônico, então, pela presença de mais de um enunciador na mesma enunciação. No momento em que o morador fala do discurso de dentro, ele observa que os moradores da Zona Norte têm casas, sem especificá-las, como pode ser observado em: “o importante é que cada um tem a sua”. Com isso, o operador argumentativo “mas” tem a função de trazer para o discurso as características dadas pelo outro às casas do bairro, ou seja, a antecipação do imaginário do interlocutor que está de fora. Semelhante ao que ocorre em:

2. minha escola é um pouco pirigoso só que é muito legal (62)

3. O bairro onde eu moro é muito legal, gostoso e divertido só que as vezes

nos deixa desepisionado com o que fazem (88)

(47)

Nesses casos também há a voz do outro atravessando o dizer do sujeito-morador e os enunciados são ligados pelo “só que” que funciona aqui de modo semelhante ao “mas”. Observamos que no enunciado 2, o morador-enunciador do bairro dá à escola o sentido de “muito legal”, enquanto que, a voz do outro, que está a esquerda do operador enunciativo “só que” antecipa, por meio do locutor, o senso comum do outro que significa a escola como “um pouco pirigoso”.

Já no enunciado 3, o morador-enunciador significa o seu bairro como “muito legal, gostoso e divertido”, enquanto que o hostis, a voz do outro, que aparece do lado direito do operador argumentativo “só que”, aparece no discurso, também por meio da antecipação do locutor, como aquele que faz algo que “nos deixa decepcionado”.

Os sentidos para “bairro” nesses casos estão em disputa. O discurso dos alunos é, como mostrado acima, atravessado pelo do outro, por aquele que olha de fora, pelo sentido do senso comum. Constitui-se na relação de negação do dizer do outro, que intervém como pré-construído. Percebemos que há efeitos de sentido estabelecidos pela antecipação do senso comum em oposição aos sentidos estabelecidos pelo enunciador-morador por meio de regularidades de traços semânticos que são sustentados pelos operadores argumentativos “mas” e “só que”.

Já, nestas outras sequências abaixo, percebemos casos em que, usando o “mas”, o aluno-morador da Zona Norte vai construindo a imagem do que ele gostaria que fosse o bairro. Essa imagem condicional feita do bairro pode ser observada por meio do emprego de verbos no modo/tempo que expressam esse desejo: i. no imperfeito do indicativo (eu queria que); ii. no imperfeito do subjuntivo (parace, liberace, fosse); futuro do pretérito do indicativo (poderia ter).

4. Mas eu queria que na minha rua parace de enpenar de moto e parace de

maconha.

Mas eu queria que o prefeito liberace a vacina contra a miningite para toda

(48)

pessoa que fica reparando os outros (...) Ah, poderia ter mais delegacia e

mais comercio, mas eu acho que se tivesse esses comercio seria tudo

roubado né. Fim. (93)

Através de projeções imaginárias, o sujeito define o bairro pela falta. As faltas mostram como o bairro é e como o sujeito gostaria que fosse, de acordo com o seu imaginário de bairro, embora a sequência termine com a reflexão do sujeito sobre as consequências, como se ele confrontasse o imaginário que ele tem de bairro à imagem do outro sobre o bairro que se lhe apresenta.

Percebemos, então, que, nessa sequência, o operador “mas” traz para o discurso tudo o que não é formulado pelo morador-enunciador, ou seja, enquanto exprime o seu desejo, traz para o discurso o imaginário que, nesse caso, ele e o outro fazem do bairro em questão. Isso pode ser observado, por exemplo, em “Mas eu queria que o prefeito liberace a vacina contra miningite”. Ao usar o operador “mas” para significar um desejo, o morador-enunciador traz para o discurso o senso comum de que, nos bairros da Zona Norte, a saúde é precária e não há vacinação para a prevenção da meningite.

Na seção a seguir, outra marca de alteridade será analisada em busca da compreensão da constituição do sujeito-morador e dos sentidos para bairro: o discurso indireto.

2.2 Discurso indireto: o outro, o fora

(49)

como eles falam, quem é de fora fala que, gente de fora, muita gente que não mora na

Zona Norte fala que. Vejamos os trechos abaixo:

5. Quando meus parentes vem aqui eles acha legal acho ruim quando eles falam mau da Zona Norte porque é um lugar muito bom eu acho a Zona

Norte muito bom para si morar emfim acho tudo legal. (55)

6. Meu bairro é muito legal mas quem é de fora falaque ele é pirigoso e

cheio de pirigo mas só que as drogas tem em qualquer lugar (62)

7. Meu bairro é muito calmo, não vê ninguem fumando droga e muito difícil sair briga e tem um pasto lindo, mas só que vieram gente de fora e

queimaram tudo.

Eu moro na avenida, tenho muitas amizade etc...muita gente que não mora na Zona Norte, falaque é muito ruim que só vê gente fumando, mais meu

bairro é diferente. (63)

Percebemos, no enunciado 5, que os sentidos dados ao bairro pelo morador-enunciador vão contra os sentidos dados pelo outro, pelo que está de fora. Para o morador do bairro, o lugar Zona Norte é significado como “um lugar muito bom” onde ele acha “tudo legal”. É interessante destacarmos o uso do termo “tudo”, uma vez que, no referido discurso, os sentidos negativos para o bairro estão apenas na significação dada pelo outro, como vemos em “acho ruim quando eles falam mal”.

(50)

Já o enunciado 7, além de mostrar sentidos positivos para a Zona Norte, traz quem está de fora como aquele que faz do bairro um lugar ruim. Podemos perceber isso em “vieram gente de fora e queimaram tudo”. Para esse morador-enunciador, o seu bairro “é muito calmo, não vê ninguem fumando droga e muito difícil sair briga e tem um pasto lindo”. Na sequência, esse mesmo morador traz novamente o outro como o que faz do bairro um lugar ruim: “muita gente que não mora na Zona Norte, falaque é muito ruim que só vê gente fumando, mais meu bairro é diferente.”

As argumentações dos alunos-moradores da Zona Norte seguem no sentido de se oporem às do outro, daquele que não pertence à Zona Norte. Esse outro vai se manifestando no fio do discurso desses sujeitos através da incorporação de já-ditos sobre a Zona Norte. Vão constituindo a imagem que esses sujeitos têm da Zona Norte pela própria refutação desses já-ditos que lhe atravessam o discurso.

Na seção a seguir, continuaremos trabalhando a alteridade do corpus como ponto de observação da constituição dos sujeitos moradores e dos sentidos de bairro. O enfoque, entretanto, recairá sobre questões relativas ao espaço.

2.3 O espaço e os sujeitos: a casa, a escola, a rua e o centro esportivo

Referências

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