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A dois passos do paraíso?: análise sobre a construção da favela Paraisópolis (São Paulo-SP) como destino turístico Rio de

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Academic year: 2017

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Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil- CPDOC

Mestrado Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais

Andréa Maria Abreu Borges

A dois passos do paraíso? Análise sobre a construção da favela Paraisópolis (São Paulo-SP) como destino turístico

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Andréa Maria Abreu Borges

A dois passos do paraíso? Análise sobre a construção da favela Paraisópolis (São Paulo-SP) como destino turístico

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre ao Mestrado Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais da Fundação Getúlio Vargas, FGV-RIO.

ORIENTADORA: Professora Doutora Bianca Freire-Medeiros

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A Deus, por ter criado tudo.

A minha orientadora e amiga, Bianca Freire-Medeiros, pela acolhida, puxões de orelha, discussões, empurrões e por me ajudar a descobrir minha afinidade e paixão pelo estudo antropológico do Turismo, mais precisamente o turismo na favela.

Agradeço especialmente a cada membro da banca: a Mariana Cavalcanti por seus valiosos ensinamentos acerca dos métodos e técnicas da pesquisa qualitativa. A Lia Rocha, pelas imprescindíveis contribuições dadas na qualificação, essenciais para a conclusão desse trabalho. E a Celso Castro, pelas indicações fornecidas em sala de aula sobre pontos a serem analisados, nessa pesquisa. E aos três, pela disposição em fazer parte da minha banca.

Aos amigos conquistados em Paraisópolis: Estevão, Edilene, Antenor, Rui. E em especial Berbela, pela alegria de sempre e pelo cuidado dispensado a mim quando estava em campo.

À equipe do CPDOC/FGV, pelo apoio e trocas de ideias.

Às professoras Dulce Pandolfi, Christiane Jalles e Lucia Lippi, pela participação essencial na minha formação ao longo do mestrado.

A minha “pãe”, mulher, batalhadora, militante. Que me legou a vida, a garra e a sensibilidade.

Aos meus irmãos, Alexandre, Mônica e Denise por me apoiarem em tudo. Ao meu sobrinho Pedro Vitor, que, com sua presença doce e inocente me encanta e me acalma.

A meus primos, tios, vizinhos, parentes e amigos, que ficaram “do lado de lá”, torcendo por mim.

Aos novos amigos que o Rio de Janeiro me deu de presente, em especial: Thaís, Isabela (s), Roberta, Maria Angélica, Stephane, Helena, Mário (s), Lui, Serginho, Larissa, Êla, Chiara, Elenilda, Paulinha e Mafalda.

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Essa dissertação versa sobre a construção da favela Paraisópolis (São Paulo-SP) como destino turístico. Estevão, Berbela e Antenor, moradores da favela, realizam “trabalhos artísticos” que compõem o elemento principal da atratividade turística de Paraisópolis. A partir do trabalho de campo, do tipo observação participante, descrevo os posicionamentos divergentes dos artistas, guias de turismo e a União de Moradores de Paraisópolis. Aponto que esses posicionamentos geram disputas simbólicas e relações de poder entre os diversos atores envolvidos no processo de transformação de Paraisópolis em um destino turístico. A intenção principal é entender como esse processo é perpassado por conflitos, tanto de ordem econômica quanto de ordem política e ideológica. A perspectiva de análise tem como enfoque central as visões em disputa sobre o turismo e as práticas que as tomam por base. Assim, procuro entender como os valores e práticas locais se articulam com ações e discursos exógenos voltados para o desenvolvimento do turismo.

Palavras-chaves: Paraisópolis, turismo, favela, relações,conflito

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This thesis deals with the construction of the Paraisópolis slum (São Paulo-SP) as a tourist destination. Estevão, Berbela and Antenor, slum dwellers, perform "artworks" which represent the main element of the tourist attractiveness of Paraisópolis. From the field work, as a participatory observation, I describe the divergent attitudes of artists, tourist guides and the Residents' Union of Paraisópolis. I point that these attitudes generate symbolic disputes and power relations among the actors involved in the process of transformation of Paraisópolis into a tourist destination. The main guideline is to understand how this process can be affected by conflicts, whether due to political, economic or ideological issues. The perspective of analysis focuses on the central disputed views on tourism and the practices in which are based on. Thus, I am trying to understand how the local values and practices are articulated with exogenous speeches and actions geared to the development of tourism.

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1. Introdução... 09

2. Paraisópolis: o paraíso em meio à selva de pedras... 14

2.1 E a violência?... 19

2.2 Como encontrar o paraíso?... 26

2.3 O paraíso pode ser na favela?... 29

3. Bem-vindos ao paraíso... 38

3.1 Estevão... 41

3.2 Berbela... 50

3.3 Antenor... 56

3.4 Flavia Liz – o psicopompo de Paraisópolis... 60

4. Turismo, a “salvação”?... 75

4.1 Afinal, de quem são as chaves do Paraíso?... 82

4.2 Novas possibilidades para o turismo em Paraisópolis... 92

5. Comentários Finais... 96

6. Referências bibliográficas... 100

 

 

 

 

 

 

 

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1. Introdução:

Fiz parte da segunda turma de Turismo da Universidade Estadual do Piauí e, desde meu ingresso no curso, tenho me interessado pelos aspectos antropológicos e sociológicos próprios da prática do turismo. O trabalho da minha orientadora Bianca Freire-Medeiros sobre o turismo na favela me despertava grande interesse, mas não via como trabalhá-lo. O período de dúvidas sobre o que desenvolver na dissertação coincidiu “divinamente” com o período em que surgiram na internet notícias relatando que o turismo começara a ser realizado na favela de Paraisópolis, localizada na cidade de São Paulo. Resolvi investigar essas informações e, depois de algumas dificuldades narradas ao longo do trabalho, decidi-me por estudar o turismo, esse novo fenômeno.

A atividade turística em Paraisópolis ainda é incipiente. Nenhum trabalho acadêmico tendo as práticas turísticas em Paraisópolis como objeto de estudo havia sido realizado; portanto, sofri as desvantagens e vantagens de se realizar um estudo que foi, em certa medida, pioneiro. A desvantagem foi ter começado praticamente do zero, ter poucas referências, porém isso representou um desafio maior que impulsionou minha curiosidade por saber mais sobre o campo. A vantagem é que pude estabelecer meus próprios pressupostos sobre o local e sobre os aspectos a serem considerados na pesquisa, sem que houvesse a preocupação de pesquisar trabalhos anteriores para saber se algo já havia sido analisado da mesma forma. Considero-me afortunada também por ter chegado a Paraisópolis no momento “inicial” do desenvolvimento da atividade turística e por acompanhar de perto os seus primeiros passos (por isso o título do trabalho: A dois passos do paraíso? Análise sobre a construção da favela Paraisópolis (São Paulo-SP) como destino turístico) que, espero, sirvam de contribuição para pesquisas futuras.

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velho de sua oficina; Estevão, o jardineiro que constrói sua exótica casa a partir de uma estrutura de concreto (que lembram os galhos de uma roseira) com vários objetos incrustados; e Antenor, o pedreiro aposentado, que adiciona garrafas PET à estrutura de sua casa. Esses são os “artistas” que moram na favela e desenvolvem os trabalhos que conferem atratividade turística a Paraisópolis.

Os turistas, porém, não chegam sozinhos aos artistas, eles são levados por mediadores que estabelecem o contato entre visitantes e visitados. Em Paraisópolis essa mediação é feita, basicamente, por guias de turismo e pela União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis – UMP. Guias, UMP, visitantes e visitados desempenham papéis diferentes e decisivos na construção de Paraisópolis como destino turístico. O contato entre esses diferentes agentes sociais produz um espaço de relações que é tão real quanto o espaço geográfico; cada agente social possui posição nos diferentes campos e cada campo social tem uma lógica e hierarquia próprias, conforme suas diferentes espécies de posse de capital, (BOURDIEU, 2007). Observando o desenrolar de relações no espaço de Paraisópolis – a propósito de sua construção como destino turístico –, esse estudo tem como objetivo central entender o que tem sido selecionado e o que tem sido “apagado” no processo de construção de Paraisópolis como destino turístico e quem são os atoresque reivindicam, a partir de questionamentos, práticas, disputas e representabilidades, a apropriação do lugar.

A metodologia aplicada para o desenvolvimento desse trabalho consistiu-se de períodos de trabalho de campo sob uma perspectiva antropológica, fundamentada em métodos qualitativos, abrangendo observação participante, entrevistas, análise de artigos publicados na internet e leituras de textos e publicações acerca do objeto em questão.

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A segunda – e mais importante – foi marcada pelo aprofundamento das relações entre mim e os artistas. Realizei entrevistas, observei aspectos do cotidiano e tive um sem-fim de conversas informais que me fizeram perceber suas opiniões sobre os mais variados assuntos, relacionadas ou não ao campo. Nessa fase também pude observar as expectativas que a UMP deposita nos artistas, através de uma suposta representabilidade política conferida a eles. Além de perceber, com a entrada de uma nova agência fazendo o passeio, o surgimento de novas possibilidades para o turismo em Paraisópolis.

Preferia ir a campo por volta do meio-dia, passava na oficina de Berbela, minha primeira parada (nesse horário o movimento era mais fraco); cumprimentava-o rapidamente e saía para almoçar ali perto. Um dia Berbela me perguntou por que nunca o convidava para almoçar; a partir de então almoçamos juntos repetidas vezes. Os almoços eram sempre muito divertidos, mas em meio às bobagens, Berbela fazia comentários interessantes relativos ao campo. Certa vez, em um desses comentários, aproveitei que ele estava distraído e saquei discretamente meu caderno de campo da bolsa e comecei a fazer anotações. Berbela percebeu e tomou-me rapidamente: “agora eu vou descobrir os teus segredos! O que tu tanto escreve aqui?” Não fiz nenhum esforço para reaver o caderno, Berbela continuou:

“Deixa isso aqui comigo, agora a gente tá comendo, não é hora de estudar, aposto que tem várias coisas do que eu digo aí nesse teu caderno, mas não tem problema não, sei que só tem coisas boas, por que a gente é amigo, e amigo não fala mal do outro”.

As palavras de Berbela me impressionaram por demonstrar um sentimento de confiança que não esperava, considero essa amizade um presente proporcionado pela pesquisa de campo.

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envolvidas não eram da favela e que esse tiroteio estava “mal explicado”. Percebi um clima diferente na localidade, talvez influenciada pelos rumores e pela tensão estabelecida por conta do tiroteio e pela realização das eleições; confesso que ao terminar fiquei aliviada e com a certeza de que a pesquisa tinha terminado no momento certo.

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Para apresentar a discussão proposta nesse trabalho apresento esta dissertação dividida em três capítulos:

No capítulo 1 recupero em linhas gerais o histórico de formação da favela de Paraisópolis e apresento a ordem social existente na favela atualmente. Faço breve explanação sobre a associação (que se faz através do imaginário coletivo) entre a busca de um “paraíso perdido” e a prática de atividades turísticas. O fio condutor da explanação será o livro da turismóloga Sabáh Aoun, A procura do paraíso no Universo do Turismo (2003). Com base nas características necessárias para que uma determinada modalidade de turismo se assemelhe a uma experiência de “paraíso”, sugeridas por Sabáh, apresento algumas interseções que, surpreendentemente (ou não), assemelham-se ao turismo realizado em áreas de pobreza, mais especificamente no turismo de favelas. Para tecer essa trama utilizo como principal fonte de pesquisa o livro produzido por Bianca Freire-Medeiros, Gringo na laje (2009).

No capítulo 2 apresento Berbela, Estevão e Antenor, os “artistas” que moram na favela e desenvolvem os trabalhos que conferem atratividade turística a Paraisópolis e os seus posicionamentos em relação ao desenvolvimento do turismo em seu lugar de moradia. Apresento, também, Flavia Liz, o “psicopompo”, habilitado a levar os turistas à cidade do paraíso e que tenta “organizar” o paraíso a fim de “melhor” receber os visitantes.

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2. Paraisópolis: o paraíso em meio à selva de pedras

Localizada em área nobre do bairro Morumbi, em São Paulo-SP, entre as avenidas Giovanni Gronchi e Morumbi, está Paraisópolis, considerada a segunda maior favela da cidade, com aproximadamente 800.000 metros quadrados e uma população ente 80.000 e 100.00 habitantes 1. Divide-se em cinco regiões: Grotão, Grotinho, Centro, Antonico e Brejo.

Fonte: Levantamento da Secretaria de Habitação – HAGAPLAN – 2005. Disponível em Levantamento da Secretaria de Habitação - 2005. Disponível em http://paraisopolis.org/arquivos/2008/05/Paraisopolis_Final.pdf

A quantidade de moradores, dita anteriormente, baseia-se nas estimativas das diferentes entidades políticas locais juntamente com o levantamento da Secretaria de Habitação de São Paulo – HAGAPLAN, realizado em 2005. O último Censo realizado em 2010 traz em seu resultado um número inferior de moradores (apenas 42.826 habitantes), fato visto com preocupação por representantes políticos de Paraisópolis, segundo Joildo Santos – Vice-presidente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis – “A divulgação de informação populacional incorreta pode acarretar vários problemas para as comunidades, a começar pela elaboração de políticas públicas, que leva em conta as estatísticas oficiais”.

1 Fonte: Levantamento da Secretaria de Habitação - 2005. Disponível em:

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Algumas das maiores favelas do Brasil também tiveram seus números mal contabilizados, apontando a favela da Rocinha, por exemplo, com apenas 70.000 habitantes, quando na realidade somam aproximadamente 125.000. O próprio IBGE afirma que há a possibilidade de que algumas comunidades sejam maiores do que os números indicam, já que os critérios utilizados tiveram como base cadastros da prefeitura, como divisão legal, e em várias áreas das cidades estes dados podem estar defasados 2.

Segundo o site da União de Moradores de Paraisópolis – UMP, Grotão, Grotinho, Brejo e algumas áreas do entorno do campo Palmeirinha (representadas no mapa acima por Grotão, Grotinho, Brejo e uma parte do Centro), foram desconsideradas pela pesquisa. Segundo a UMP, essas regiões juntas somam quase metade dos domicílios da favela 3.

Fonte IBGE:http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/aglomeradossubnormais /tabelas_pdf/tab1.pdf

O Censo do IBGE de 2010 enquadrou Paraisópolis na categoria denominada “aglomerados subnormais”, termo formal utilizado pelo instituto para designar as áreas que concentram no mínimo 51 domicílios carentes de

2 Fonte: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/rocinha-e-a-maior-favela-do-brasil-afirma-ibge-20111221.html . Acesso em 07/10/2011

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serviços públicos essenciais – como saneamento básico e energia elétrica – que tenham ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia – pública ou particular – e que estejam dispostos de forma “desordenada e densa”, incluindo-se invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros assentamentos irregulares para o conjunto do País, Grandes Regiões, Unidades da Federação e municípios 4.

A região do Morumbi, onde está localizada Paraisópolis, no século XIX e talvez até mesmo antes, fazia parte de uma grandiosa fazenda produtora de café, a fazenda Morumbi 5. Durante muito tempo a fazenda foi herdada por várias gerações, e em um dado momento, já no início do século XX, os herdeiros, por algum motivo, não mais reivindicaram a posse das terras, resultando no seu loteamento pelo governo. Os proprietários dos lotes não os ocuparam e no início da década de trinta começaram a ser invadidos por japoneses que fundaram ali pequenos sítios para criação de suínos. A apropriação em massa acontecera em dois momentos, primeiro na década de 1950 e depois entre os anos de 1970 e 1975, em sua maioria por migrantes advindos do Norte-Nordeste do Brasil. Os períodos de intensa apropriação coincidem com o desenvolvimento urbano-imobiliário do bairro Morumbi, merecendo destaque a construção do Estádio do Morumbi e do Hospital Albert Einstein em 1953 e 1971, respectivamente (SARMENTO, 2003).

Paraisópolis, hoje, conta com cerca de 60 instituições (governamentais e não governamentais), número contabilizado em 2010 através de um trabalho conjunto realizado através da Prefeitura de São Paulo, UMP e Rádio Nova Paraisópolis. O trabalho agrupou as instituições nos seguintes setores: equipamentos educacionais, cooperativas de trabalho, associações de moradores e equipamentos de saúde.

4 Fonte:http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/

aglomerados_subnormais/default_aglomerados_subnormais.shtm . Acesso em 22/01/2012

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Fonte: http://paraisopolis.org/forum-multientidades-de-paraisopolis/quem-somos/

Em “O nascimento de uma comunidade” 6, a história de Paraisópolis é contada através do relato de sete moradores, dos quais o mais antigo chegara no ano de 1957. As histórias são variadas, mas com muitos traços confluentes, por isso as apresentarei de forma breve, pontual e sem identificação dos relatantes:

A presença inicial dos japoneses:

“Havia uma chácara de um japonês, foi bem no período em que eu cheguei, os policiais estavam desmanchando uma divisão que tinha entre a minha casa e a casa dele, o policial perguntou se eu queria

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ajudar, eu fui porque ai melhorou meu terreno eu tinha vacas e ficou tudo aberto, assim elas podiam pastar”.

O trabalho nas obras do vizinho Morumbi:

“A gente trabalhava nas obras aqui perto, e como não tinha lugar para colocar o entulho, eu trazia tudo pra cá, eu até aterrei um lago que havia ali na frente”.

A condição precária das ruas e a falta de saneamento:

“Aqui quando chovia tudo virava lama, o lixo a gente enterrava porque diziam que era bom para as plantas e o banheiro era uma fossa que cavávamos de qualquer jeito, em qualquer lugar”.

Ausência de energia elétrica:

“Usávamos luz de lampião, geladeira a gás, isso por vezes ocasionava pequenos incêndios aqui, quem tinha dinheiro comprava postes, que só podiam ser instalados em terrenos particulares a energia era bem fraquinha por isso a imagem da televisão ficava um quadradinho pequeno no meio da tela, só melhorava tarde da noite, quando a maioria das pessoas desligava pra dormir”.

Miséria e segregação social:

“Parece piada, mas não é, na escola cozinhavam aquele panelão de sopa com lentilha e um talhinho de couve, faziam uma lata de lavagem bem grande, mas a gente comia com uma vontade, ou era aquilo ou era nada... O problema era que a escola municipal, além de ser longe não tinha vaga pra todo mundo, ai tinha uma escola particular mais longe ainda, na Giovanni Gronchi que cedia um espaço pra estudarmos no mesmo lugar dos ricos, mas estávamos longe de ser com eles... Só depois construíram uma escolinha e mesmo para ir pra lá, era tudo muito mato”.

Tempos bons que não voltam mais:

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2.1 E a violência?

Falar em favela, aglomerados subnormais, territórios marginais ou muitos outros adjetivos utilizados para qualificá-la, traz em seu bojo visões estereotipadas ou nos termos de Valladares, (1999): dogmáticos. No artigo Que

favelas são essas, a socióloga aponta os três dogmas que inspiram os

pensamentos dos que olham de fora a favela: especificidade – a favela é o diferente por excelência. “Os geógrafos chamam atenção para o diferencial da ocupação irregular do território, os arquitetos ressaltam as construções e o urbanismo que foge à racionalidade arquitetônica [...]”. (p.65). Lócus da pobreza – praticamente o habitat dos pobres, “como território da pobreza, a favela passa a símbolo do território dos problemas sociais”. Por fim a unicidade – à favela é dado um tratamento único, o termo favela é pouco relativizado, analisa-se a favela e não as favelas.

Os dogmas apresentados por Valladares parecem ser os “ingredientes” para a formação do elemento que, arrisco em dizer, vem a ser o maior foco da visão estereotipada e tema “obrigatório” quando se estuda favelas: a violência. Como explica Machado da Silva (2008), na introdução do livro Vida Sob Cerco - coletânea organizada por Luiz Antônio Machado da Silva que traz artigos relativos à violência e rotinas nas favelas do Rio de Janeiro.7

[...] O antigo fantasma das classes perigosas agora reencarna na ameaça representada pela violência criminal, que é rotineira e, portanto, “próxima”, personalizada. O medo correspondente não é mais, como antes, de uma revolta popular capaz de abalar a dominação burguesa, nem do contágio da (i) moralidade derivada de uma suposta desorganização familiar tipicamente atribuída aos mais pobres. O medo se reifica e se especializa nos perigos imputados aos territórios de pobreza, cujo caso exemplar na representação popular são as favelas, vistas como lugares prenhes de violência descontroladas. [...] Toda a população moradora de favelas passou a ser vista como composta por bandidos, em razão da contigüidade territorial inescapável com a minoria que integra os bandos armados. Emparedada, vive uma vida sob cerco. (p.14)

7 Ao longo da minha explanação sobre Paraisópolis, utilizarei análises e referências contidas em Vida Sob Cerco. Optei por usar Vida Sob Cerco, mesmo trazendo como objeto de estudo o Rio de Janeiro, primeiro porque em algumas passagens existem referências às favelas

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Infelizmente, Paraisópolis não fugiu à “regra” de ser uma favela dominada, em certa medida, por algumas “modalidades” de violência. Em todos os depoimentos contidos nos relatos “O nascimento de uma comunidade”, os moradores fazem um apanhado do passado e descrevem um pouco do presente. Nas narrativas do presente estão contidas, basicamente, comparações relativas ao melhoramento de toda a infraestrutura de Paraisópolis, mesmo com a nostalgia dos bons momentos vividos no passado:

“Mas pensando hoje Paraisópolis pelo que era há 30 anos, aqui é o paraíso, falando sério, aqui ninguém mexe com ninguém, quem trabalha, trabalha, quem não trabalha vive do jeito que quiser. Ninguém mexe com ninguém”.

Notei que nesses depoimentos, nenhuma referência ou relato foram feitos em relação à violência – passada ou presente, explico: durante a pesquisa fiz pessoalmente entrevistas com alguns moradores antigos de Paraisópolis, seus relatos sempre eram introduzidos por uma rápida comparação com o passado: “Aqui à vista do que era antes é bom demais...” e continuavam descrevendo os problemas estruturais, mas sempre trazendo a violência como pano de fundo das suas narrativas:

“O grupo de cima vivia em confronto com o de baixo, havia muita morte, quase todo dia tinha um dois cadáveres, era uma matança danada, hoje aqui não é perigoso, pra quem não mexe com ninguém que não se mistura com as coisas erradas, aqui eles não matam ninguém, mas “eles” (referindo-se aos traficantes) têm um poder sim, outro dia mesmo aqui na frente eu vi, um deles pegou um moleque e falou: – “Tô sabendo que tu tá bagunçando na escola, se eu souber de mais uma reclamação tua, eu te encho de porrada e mato teu pai” (D, morador a 27 anos).

Enquanto entrevistava D, sua esposa, dona R, o repreendia para que não falasse sobre os casos da “violência do presente”. Pude observar em outros momentos a mesma repreensão vinda das “esposas” – talvez por estas serem mais cautelosas em relação a isso, conto um caso: estava entrevistando Estevão 8, minhas perguntas eram relativas ao seu trabalho “artístico”, perguntei como era morar em Paraisópolis e ele se adianta em dizer que é

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muito bom, fora os últimos acontecimentos; nesse momento, Edilene, sua esposa, o repreende:

“Não fala disso Estevão, ela está gravando”.

Estevão continua:

“Eu sei que ela está gravando, mas não estou falando nada demais, nenhuma mentira, tá acontecendo mesmo e eu não tenho nada a ver com isso, então posso falar.”

Estevão se referia a uma onda de assaltos e confrontos com policiais que estavam ocorrendo nas proximidades de Paraisópolis, e que segundo ele, era a causa da redução no número de visitas à sua casa. Depois, já em conversa informal com o gravador desligado, Edilene continuou falando sobre esses incidentes, afirmando que as pessoas envolvidas não eram de Paraisópolis e que a polícia culpava os moradores apenas por morarem próximo ao acontecido. Investiguei com outros moradores e através de uma busca na internet 9 e ao que tudo indica os envolvidos eram mesmo de lá.

Michael Pollak, em seu ensaio intitulado Memória, Esquecimento e Silêncio, expõe, através de exemplos, várias formas em que a história individual ou de um determinado grupo pode ser contada por eles mesmos ou por terceiros e, dessa forma, extrai algumas pistas que podem nos sugerir o(s) porquê(s) da ausência dos relatos sobre a violência nas narrativas contidas em

O nascimento de uma comunidade”. O livro expõe em sua apresentação a

seguinte justifica para elaboração:

E quando escolhemos o estágio em psicologia comunitária na Universidade Presbiteriana Mackenzie, escolhemos o estágio na comunidade de Paraisópolis tivemos em mente o seguinte aspecto, poder ter liberdade de propor um projeto em que visasse os anseios de comunidade, tendo assim o privilégio de ter acesso as ruas, casas e moradores da mesma, ou seja, não a partir de uma instituição específica, mas sim a partir do contato com os moradores (...) um dia ouvimos a conversa de dois moradores da comunidade, um morava ali a 3 meses e o outro a 30 anos, o mais antigo contou algumas histórias para os moradores mais jovens essa, história, através de um impresso que seria distribuída a todas as instituições da região. [sic] (p. 5-6)

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O objetivo da publicação se resume, portanto, em deixar um legado histórico para os mais jovens através de um estágio de Psicologia comunitária, parecendo ter como “modelo” o que Pollak chama de “memória enquadrada”, em seus termos:

Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a memória nacional, implica preliminarmente a análise de sua função. A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas, mas ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis. Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum em que se inclui (como o território...). Eis as duas funções essenciais da memória comum. Isso significa fornecer um quadro de referências e de pontos de referência. (p.9)

A herança de um passado coletivo com “boas recordações”, pelas razões elencadas acima, pode ter sido determinante na organização da memória coletiva dos entrevistados no relato. Pollak, (1989), explica que ao serem contadas histórias, historiadores ou outros profissionais se valem de algumas ferramentas. Quando há intenção por parte desses em alcançar objetivos pessoais ou de um determinado grupo, a ferramenta utilizada é o enquadramento de memória. Por outro lado, há que se considerar também os entrevistados como “agentes” na construção dessa memória, como continua Pollak:

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No caso específico da violência, a indissociação da organização social da vida parece exercer papel fundamental no silenciamento ou no medo que os relatantes têm em falar sobre esse aspecto de sua memória, sobretudo porque a “violência do presente” exerce forte influência nas relações sociais dos indivíduos que habitam locais regidos por uma certa ordem “oculta”. É o que Machado da Silva, (2008), caracteriza como “violência urbana” – um complexo de práticas sociais que ganham sentido para os atores (e não para um observador independente) que incorpora todos os tipos de atitudes e condutas capazes de romper a “normalidade” do cotidiano (superficial, pontual ou continuamente), agindo em seus aspectos cognitivo, instrumental e moral. A “violência urbana” é mais do que uma simples descrição neutra; no mesmo movimento em que identifica relações de fato, aponta aos agentes modelos com níveis mais ou menos obrigatórios de conduta, contendo, portanto, uma dimensão prática normativa institucionalizada, ainda que informalmente. A “violência urbana” é uma categoria coletivamente construída para identificar um complexo de práticas do qual a força é o principal meio de obtenção de interesses; além das condutas ela identifica um ator, ou seja, reconhece a presença de uma ordem social 10. Essa conjuntura constrói uma massa de vítimas atuais ou potenciais, que se reconhecem como participantes de duas ordens sociais coexistentes, expressando de maneira clara a fragmentação da vida cotidiana nas grandes cidades brasileiras. Como exemplo disso, cito dois episódios ocorridos em uma das minhas visitas a campo:

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Estava andando por uma das ruas principais de Paraisópolis quando uma moto passou em alta velocidade. Berbela 11, que estava comigo no momento comentou: “isso não vai dar certo”! Minutos depois os motoqueiros atropelaram uma criança que estava saindo da escola. Berbela foi até o local onde o acidente aconteceu e na volta comentou comigo: “olha, você não queria saber quem eram os “caras”, então, são aqueles ali”, me apontando uns rapazes que carregavam a moto do acidente. E continuou: “eles apreenderam a moto do “atropelador” e os proibiram terminantemente de andar de moto aqui dentro, isso tá mais do que certo”. Questionei Berbela sobre seu posicionamento, ele explica: “tá certo sim, em um lugar desses com esse tanto de gente morando, tem que ter alguém para colocar ordem na coisa, pra ser uma referência”.

Em uma conversa informal na mercearia de seu Antônio, seu João, morador de Paraisópolis há 20 anos, relata:

“Aqui hoje em dia é bom, pra quem é honesto, que não se envolve com coisa que não presta. Aqui o problema é que a gente mora numa região muito boa, muito visada, já me disseram várias vezes que se chegarem com um papel pra eu não assinar de jeito nenhum porque pode ser algo pra eu sair da minha casa, aqui é muito valorizado. Eu não me envolvo com nada de ruim, mas tem muita gente desonesta principalmente esses policiais que vêm aqui pra receber dinheiro dos “caras”, isso é um absurdo, eu não confio em policial nenhum porque eu vejo isso acontecendo aqui sempre. Pra ficar cem por cento, só faltam duas coisas: um hospital e uma delegacia, com a delegacia aqui ia ter polícia direto, e aí melhorava.”

As passagens relatadas acima trazem dois aspectos interessantes: o primeiro a necessidade de haver algo que regule e imponha “ordem” na localidade; como nesses espaços os mecanismos legais institucionalizados não funcionam “corretamente”, deposita-se a alternativa na ordem imposta pelos traficantes, nos termos de Machado da Silva, (2008):

Os moradores não podem confiar em uma política de segurança que não os contempla, em agentes do Estado que neles não reconhecem a dignidade indissociável da cidadania, não consideram nem protegem sua vida e seus direitos (...). Essa aversão aos procedimentos típicos da ação institucional da polícia e à conduta dos seus agentes tem sido entendida como “conivência” com o crime violento (...) p. 62

O segundo aspecto é o fato que ao mesmo tempo em que condenam as atitudes “desonestas” dos policiais, expressam certa confiança ou esperança

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relativa à sua presença na localidade, através da instalação de uma delegacia que contribuiria para o melhoramento da vida em Paraisópolis.

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2.2 Como encontrar o paraíso?

Por ser graduada em turismo, sempre ouvi, em diversos contextos, a palavra paraíso, em vários discursos “técnicos” na área: “Quero passar férias no paraíso”; “Planeje determinado local para ser um paraíso”, ou ainda, “Tal cidade é o paraíso na Terra”, dentre outros. Os motivos pelas quais essa denominação é com frequência utilizada não eram para mim motivo de estranheza, pelo contrário, apresentavam-se totalmente tácitos. Decidi, então, ir à biblioteca e reunir todas as publicações que encontrasse trazendo em seu título a palavra “paraíso”, já que, a meu ver, se os autores utilizaram este termo, deveriam de alguma maneira atribuir uma definição ao que de várias formas eles estavam considerando o “paraíso”.

Dentre as 11 obras que encontrei, as mais variadas significações eram dadas ao termo paraíso, ora se fazia referência à Amazônia, ora ao Brasil, ora ao Rio de Janeiro, às Índias, enfim, o fato é que de todas essas obras apenas uma se deu ao trabalho de explicar o que efetivamente é o paraíso. Trata-se da obra de Sérgio Buarque de Hollanda (1994), Visão do Paraíso.

O seu conteúdo é composto por uma vasta explanação sobre as origens dessa busca paradisíaca em várias religiões e crenças, dando destaque ao mito da criação de Gênesis: Deus criou o homem e a mulher e os presenteou com um lugar farto, belo e harmonioso, que necessitava apenas de zelo e obediência à ordem divina para não comer o fruto proibido; porém o homem desobedeceu a Deus e, por isso, foi expulso do paraíso. O anseio por reencontrar esse paraíso permaneceu, e foi perpetuado entre outras crenças, religiões e ambições, daí a busca incessante dos europeus por encontrar e conquistar a todo custo o Novo Mundo, que em vários aspectos se assemelha ao paraíso divino. Nas suas palavras:

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Passadas as explorações marítimas, conquistas, descobrimentos, onde e como podemos, afinal, encontrar o paraíso? Como dito no início, o turismo parece, de alguma forma, atender a essa busca. 12 É o que nos sugere Sabáh Aoun (2003), no seu livro: A procura do paraíso no universo do turismo:

O turismo, hoje, transforma a idéia de paraíso perdido numa forma terrena e atraente ao alcance de todos. Ele a vende no presente, por meio de novas e atualizadas formas de discurso. Ressurge, assim, o turismo como mago que, com poderes especiais, consegue promover o encontro do homem com o paraíso [...]

Mas a autora aponta o diferencial entre o paraíso do Gênesis e aquele comercializado pelo turismo:

[...] O paraíso aqui oferecido não é o do estado perfeito e harmonioso, mas sim o jardim das delícias, feitos na medida e ao gosto de qualquer pessoa disposta a aventurar-se, a romper com seu cotidiano, dando vazão aos desejos e às mais extravagantes fantasias, pois de lá não é expulso, ao contrario, permanece-se e desfruta-se de tudo o que ele pode oferecer. Nele o pecado e a serpente não existem para interromper a permanência desse estado [...] p.116-117

O conteúdo da discussão, trazido pela autora, é pautado em três pontos principais: o turismo, o marketing e a propaganda turística; a formação histórica e conceitual do “paraíso” no imaginário ocidental e, finalmente, a análise do paraíso em três revistas turísticas.

Para fins dessa exploração, tomarei apenas o último ponto. Este nos exemplificará os requisitos necessários (dentro dos elementos utilizados pelo

marketing turístico), para que um determinado local seja considerado um

paraíso turístico; o perfil dos que o procuram e podem desfrutá-lo e por fim, a forma de entrada.

Acesso limitado – o paraíso não é para todos, o paraíso encontra-se afastado, fora das rotas turísticas tradicionais; o paraíso é exclusivo. “O

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sucesso desse lugar está justamente na ausência de pessoas, ao contrário dos grandes centros urbanos, que precisam estar lotados para a comemoração da indústria turística” (URRY, 1996). Ou seja, um lugar caro, único e excludente. A palavra acesso não está apenas relacionada com deslocamento, mas ao “valor”. Outro aspecto é o “natural”: a natureza é mostrada como o lugar por excelência, capaz de “recarregar as baterias” do ser humano. As pessoas que vão ao paraíso devem ter na mochila “certa atitude, um comportamento característico, ser despojado e principalmente ter um claro propósito de respeito para com o natural, uma identidade com valores preservacionistas, para fazer parte desse grupo seleto de turista” (AUON, 2003). Por fim, o guia: afinal, não se pode ir ao paraíso sem um psicopompo 13

, pois “ele é quem dá garantia da manutenção dos privilégios, das comodidades, enfim de um atendimento vip” (Auon, apud Freire, 2003). Você pode até ir ao paraíso, mas precisa estar sobre a companhia de quem realmente entende sobre o mesmo.

13 Psicopompo é a palavra que tem origem no grego psychopompós, junção de psyché (alma) e pompós (guia), designa um ente cuja função é guiar ou conduzir a percepção de um ser

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2.3 O paraíso pode ser na favela?

A ideia do paraíso remete, como dito anteriormente, a um lugar “perdido”, dotado de uma vocação natural para ser turístico. Como estudante de turismo essa ideia “vocacional”, sempre nos foi apresentada por discursos acadêmicos e por estudos que qualificam certos lugares como atrativos turísticos. Num primeiro momento a denominação “atrativo” pode soar simples, mas na verdade ela traz consigo um sem-fim de valores atribuídos. Gayer (2008), por exemplo, destaca o atrativo turístico como um conceito central, orientador das práticas de produção e desenvolvimento do turismo, que tem inclusive a capacidade de remodelar os espaços onde se projeta o fenômeno. No campo acadêmico do turismo, o conceito é usado como se a atratividade fosse um fator inerente ao objeto. Discorrem-se listas infindáveis de locais e “manifestações” de interesse para serem explorados pelo turismo, especialmente nos estudos que têm como objetivo descobrir ou revelar as potencialidades turísticas de um determinado lugar. Através dessa perspectiva – de atrativos naturalmente dados – é que pesquisas no campo acadêmico do turismo, muitas vezes furtam-se apenas a “levantar dados” (relativos aos recursos naturais e culturais, atrativos turísticos e infraestrutura urbana e de apoio turístico, acesso, estrutura social, etc.), a fim de planejar da “melhor maneira” 14

a atividade turística de uma determinada região. (BRAGA, 2003, p.192).

Há então, que se problematizar a ideia de que o turismo é uma vocação natural. A perspectiva de levantamento de dados, muito comum no campo acadêmico do turismo, contrasta com aquela normalmente adotada na Antropologia e nas Ciências Sociais em geral, que é a de que o fato é construído, não dado: “o real nunca toma a iniciativa, já que só dá “resposta” quando é questionado ou quando é analisado” (BOURDIEU et al., 2004. p. 48). É o que analisa Castro (2006), falando sobre turismo: Nenhum lugar é “naturalmente turístico” e a ideia de que um lugar possui ou não uma “natureza turística” é socialmente construída através de um processo que envolve a

14

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criação de um sistema integrado de significados e narrativas a respeito da cidade como atrativo turístico. Para compreender o turismo e como ele acontece, é necessário que se compreenda elementos não-turísticos que lhe servem como base e que certamente influenciam na percepção de um determinado local como um destino turístico, através da construção de uma imagem favorável (ou não) à prática do turismo (URRY, 1996).

A interpretação que determina o que é e o que não é turístico fica ligada, então, a uma lógica orientada por tendências externas. É assim com o olhar do turista e é assim com o olhar dos produtores do turismo: empresários da iniciativa privada, gestores públicos do turismo e população local, que procuram adaptar seu produto aos interesses dos consumidores – os turistas. Trata-se de um processo inter-retroativo: o olhar é construído através de signos e o turismo abrange uma coleção dos mesmos, constantemente reiterados pelos produtores do turismo, o que reforça ainda mais o olhar do turista sobre aqueles e assim por diante, ou seja, é o turista que escolhe o seu destino de férias, mas ele faz isso baseado em um imaginário criado, mantido e difundido através de narrativas sobre o local como destino turístico (CASTRO, 2006; URRY, 1996), que não é exclusivamente construído pelo turista.

“Os lugares são escolhidos para ser contemplados porque existe uma expectativa, sobretudo através dos devaneios e da fantasia, em relação a prazeres intensos, seja em escala diferente, seja envolvendo sentidos diferentes daqueles com que habitualmente nos deparamos. (URRY, 1996. p.18)

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Não pretendo aqui fazer uma retrospectiva histórica acerca das práticas de turismo em áreas de pobreza (mais especificamente turismo na favela), muitos estudos já têm sido realizados nesse sentido. Furtarei-me apenas a apresentar as equivalências entre as motivações, características e perfil das pessoas que buscam o “paraíso no universo do turismo” e aqueles que visitam ou visitaram a favela com fins turísticos.

Freire-Medeiros, (2009) sugere que:

O consumo da pobreza pela via do turismo transmuta-se, por mais paradoxal que possa parecer, em elementos de distinção social que cria novas e complexas hierarquias [...]

Cresce o número dos chamados pós-turistas que, política e ecologicamente corretos, evitam a todo custo “o lazer de ir ver o que se tornou banal” [...]

Homens e mulheres passam a procurar, cada vez mais, experiências inusitadas, interativas, aventureiras e autênticas em destino cujo apelo reside na antítese daquilo que se costumava classificar como “turístico”. No processo, localidades “marginais” ao mercado convencional são reinventadas em suas premissas históricas e estéticas. p. 33

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conhece o lugar – a certeza de um passeio bem feito, autêntico e exclusivo. A exemplo disso temos o caso do que acontece na favela da Rocinha: “cada turista acha que a agência por ele (a) escolhida, bem como o tipo de transporte utilizado, garantiram-lhe a interação adequada, porém especulam sobre a experiência de outros turistas que não teria sido supostamente tão proveitosa quanto a sua”. (p.84).

A prática da atividade turística de maneira geral pressupõe, antes de tudo, um princípio básico: o deslocamento. O deslocamento é a chave utilizada em todas as definições de turismo, como exemplo:

“Existe um movimento físico dos turistas que, por definição, são os que se deslocam fora de seu lugar de residência;

“O turismo compreende tanto a viagem até o destino como as atividades realizadas durante a estada.” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO TURISMO, 2001, p.39)

E para Barretto (2009):

“O turismo consiste no deslocamento de pessoas que, por diversas motivações, deixam temporariamente seu lugar de residência e visitam outros lugares, utilizando uma série de equipamentos e serviços – geralmente prestados por pessoas – especialmente implementados para esse tipo de visitação, cuja operação é um negócio” (p. 55)

Kaplan (1998) nos lembra, contudo, que o deslocamento não é uma prerrogativa ou desejo universalmente disponível para grande parte dos indivíduos, não chegando nem mesmo a ser experimentado em muitos casos. Durante minhas entrevistas realizadas com alguns moradores de Paraisópolis pude observar um dado intrigante, vindo de vários dos entrevistados, como compartilho.

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favela 15. Todas minhas tentativas em descobrir a origem do nome foram frustradas, apesar das inúmeras pesquisas nos raros documentos escritos e nas entrevistas, em uma tentativa quase “desesperada” procurava sempre o morador mais antigo a fim de conseguir uma pista sequer e mesmo assim não obtive sucesso. O máximo que consegui saber é que antes a favela era chamada Jardim Paraisópolis depois (também por motivo desconhecido) o “Jardim” foi suprimido passando a ser chamada apenas por Paraisópolis. Minhas perguntas eram feita basicamente assim:

– Seu fulano, o senhor sabe por que chamam aqui de Paraisópolis? De onde vem esse nome? A resposta era sempre desapontadora:

“Não, não sei, nunca ouvi falar, quando eu cheguei aqui já era assim”.

Mas o senhor sabia que Paraisópolis significa cidade do paraíso?

Todos respondiam que não, então continuava: Mas, para o senhor, Paraisópolis é o paraíso?

“Sim, minha filha, aqui é o paraíso sim porque foi aqui que eu consegui criar meus cinco filhos, sai do norte sem nada, aqui construí essa casa depois esse comércio, tiro meu sustento daqui, meu lugar é aqui, meu paraíso é aqui.” (D, morador há 27 anos)

“Ah, é aqui sim! Foi esse lugar aqui que me abrigou quando eu cheguei da Bahia, aqui encontrei minha mulher, vi crescer meus filhos e agora meus netos, estou feliz de mais aqui no meu Paraisópi” 16. (J, morador há 32 anos)

“Eu gosto muito daqui, se eu tivesse lá no norte eu não teria nada do que eu tenho hoje, nem a oficina, nem minha casa, nem meus amigos e muito menos seria famoso, tá bom de mais aqui, é meu paraíso.” (Berbela, morador há 13 anos)

“Aqui tá minha casa, minha arte, eu vou trabalhar e volto encontro meus filhos, meu paraíso é ter esse lugar aqui pra eu voltar, se me dessem outra casa em outro lugar eu não iria.” (Estevão, morador há 20 anos)

15 Como não utilizei os turistas como objeto de pesquisa, os perfis foram extraídos do livro Gringo na Laje de Freire-Medeiros (2009) que trata sobre o turismo na favela da Rocinha no Rio de Janeiro-RJ; mesmo não tendo entrevistado turistas em Paraisópolis, arrisco dizer, através das minhas observações em campo, que o perfil é praticamente o mesmo.

16

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Ao longo das entrevistas, perguntava se algum deles tinha vontade de voltar a morar no nordeste, a resposta era unânime, ninguém queria. Falavam dos inúmeros problemas estruturais e da “ordem social” existentes em Paraisópolis (os quais já citei em parte no tópico anterior), mas no final todos reforçavam a ligação forte com o lugar “meu lugar é aqui”.

O interessante dessas entrevistas foi notar o contraponto surgido, ao tempo em que os turistas necessitam viajar, se deslocar para chegar ao paraíso, os moradores de Paraisópolis já estão nele, o seu lugar, a sua “terra”

17. Essa ligação com o lugar, com a terra, é chamada de topofilia, que é o laço

afetivo que um grupo estabelece com um lugar específico, que considera seus, é um conceito estático, descritivo e passivo, não integra um componente ativo na (re) afirmação da identidade territorial numa perspectiva pró-desenvolvimentista, apenas reconhece-se como do lugar (ROCA, 2002). Birman (2008), em seu artigo: “Favela é comunidade?, diz ainda que os lugares de moradia exercem sobre os moradores uma densidade afetiva própria, diretamente ligada às suas experiências de vida. Os espaços participam da construção de pessoas, das relações interpessoais, das formas de sociabilidade e dos acontecimentos que as envolvem, por isso a relação com o espaço/paisagem merece atenção especial e talvez por isso seja tão presente nos relatos dos moradores entrevistados (MAFRA, 2007 apud BIRMAN, 2008):

(...) a definição de paisagem utilizada aqui (...) refere-se ao entorno como testemunhos de vidas e trabalhos executados por gerações passadas que se chocaram uns com os outros, constituindo camadas de um mesmo lugar. A paisagem, nesse sentido, se parece menos com um cenário de fundo e mais com um sítio arqueológico, pois diz respeito a camadas de processos e de materiais que tanto ocultam como revelam significados (p.111)

Ao mesmo tempo em que os moradores falam dos aspectos positivos elucidados através da satisfação em ter seu lugar/espaço (de estarem no paraíso), eles não escondem o descontentamento com a falta de alguns

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serviços ou mesmo com a presença da já referida “ordem violenta”, existente em Paraisópolis, formando um arranjo, explicado ainda por Birman, (2008):

Mostra-se, assim, possível conjugar de forma não contraditória identificações negativas e positivas: lugar de tradição e também lugar de violência. Lugar de relações harmônicas entre vizinhos, mas também lugar de incivilidade, da barbárie e da morte associada ao tráfico de drogas e às balas perdidas. Lugar da família, mas também lugar de uma juventude desregrada, das igrejas petencostais, dos bailes funk e das metralhadoras [...] (p.113)

A despeito disso, os moradores entrevistados não falam com tristeza, ou menosprezando-se, pelo contrário, falam de maneira jocosa e descontraída. D, morador há 27 anos enquanto me contava sobre o dia em que sua mulher R se sentiu mal e eles passaram um sufoco para levá-la ao médico (por não terem meio de transporte apropriado muito menos um hospital na favela), ria-se, imitando os gemidos de R e me oferecia uma dose de cachaça, feita por ele mesmo:“Tome minha filha, isso é pra relaxar e vê a vida mais leve”. O rir-se da “própria desgraça" é interpretado por (GOLSTEIN, 2003 apud BIRMAN, 2008), como a prática da depreciação irônica, usando sempre o riso e a brincadeira como forma de crítica permanente a certas identificações negativas e a situações difíceis que os moradores enfrentam no dia-a-dia – como exemplo, tem-se o “slogan” estampado num dos carros de Berbela:

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Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

“Tá ruim mais tá bom”. Quando perguntei a Berbela o que significava essa frase, ele foi categórico em explicar: “Isso aí significa como a gente vive hoje aqui em Paraisópolis, tem muita coisa pra melhorar, muita coisa a ser feita, mas tem muita coisa boa também”.

Aos poucos, Paraisópolis começa a figurar como um destino turístico. 18 Considero aqui a transformação de um lugar como destino turístico pautado no desdobramento de várias relações sociais, de antagonismos, convergências, conflitos dentre outros. Parto do pressuposto de que os deslocamentos humanos classificados sob o conceito de turismo são parte de todo um aparato moderno de pensamento e de estruturação das relações sociais (adiante tentarei analisar essas relações) 19.

18

No capítulo seguinte falarei sobre como a atividade turística está se desenvolvendo em Paraisópolis. O que chamo aqui de destino turístico remete apenas à “destinação”, um lugar para onde se vai quando se realiza uma viagem, desconsidero definições técnicas dos estudos em turismo que conceituam destino turístico como o “lugar para onde tem de se deslocar a demanda, a fim de consumir um produto turístico. O deslocamento é um dos elementos determinantes da experiência turística. Justamente o lugar para o que se dirige pode ter a de um núcleo, zona, município ou região, mas o importante é que esse destino constitui o objetivo do turista” (SANCHO,2001).

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Diante do sucinto panorama que apresentei acerca do histórico, entrevistas e impressões de alguns moradores de Paraisópolis sobre suas “histórias de vidas”, penso haver uma correlação com o proposto por Kaplan (1998) em seu livro Questions of Travel: Postmodern discourses of

displacement. Buscando focar na produção de discursos pós-modernos sobre

deslocamento, o livro ressalta as continuidades e descontinuidades entre termos e práticas relativos a viagem, lugares, identidades, exílio, turismo e nomadismo. Kaplan afirma que os deslocamentos não são uniformes, e que imigrantes, refugiados, exilados e sem-teto, contrariamente a escritores, poetas, etnógrafos e turistas, não são historicamente reconhecidos como autores de conhecimento ou de discursos críticos. A autora trata ainda sobre mobilidade e retoma a questão da oposição entre “exílio” e “turismo”. O exílio implica a coerção enquanto o turismo celebra a possibilidade de fazer escolhas. Uma situação de exílio narraria o distanciamento individual de uma comunidade de origem, enquanto o turismo trataria de comunidades em escala global, resultado de uma cultura de consumo, diversão e inovação tecnológica fundamentalmente pós-moderna.

Se pudermos considerar os moradores de Paraisópolis como “exilados”, ao passo que se encontram longe de sua terra natal em busca de melhores condições econômicas, 20 a presença de turistas na favela de Paraisópolis, coloca então, frente a frente, turistas e exilados, ou melhor, turistas visitam exilados. E enquanto o turista tem o privilégio de poder ir em busca de experiências fragmentadas ao redor do mundo, para o “exilado”, Paraisópolis – com todas as suas peculiaridades – é o paraíso que lhes cabe.

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3. Bem-vindos ao paraíso

O turismo se desenvolve de maneiras diferentes em lugares diferentes: o processo de transformação de um lugar em destino turístico depende dos seus aspectos internos e das forças externas envolvidas. Os atrativos são construídos socialmente, sejam “naturais” ou “artificiais”. A diferença reside, portanto, na orientação do desenvolvimento do turismo e nas peculiaridades locais, nas diferentes respostas locais a um processo mais geral de desenvolvimento do turismo.

Urry (1996) argumenta que o caráter do olhar é fundamental para o turismo. Olhar, no sentido usado pelo autor, não significa apenas ver, mas sim uma maneira específica de entender o mundo, socialmente organizada e sistematizada. O autor discorre sobre como o olhar do turista é construído, desenvolvido e reforçado, inclusive através de formas não-turísticas de experiência e consciência social. Fazendo uma referência a MacCannel (1976 apud URRY, 1996), o autor sugere a complexidade do processo de produção de centros de atração, através do qual, além de tudo, o olhar do turista é gerado e mantido: “as pessoas têm de aprender como, quando e para onde ‘olhar’. Marcos claros precisam ser providenciados e, em alguns casos, o objeto do olhar é apenas um marco que indica algum acontecimento ou experiência, que aconteceram previamente naquele lugar” (p. 26).

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violência, a pobreza e a vista para o mar (FREIRE-MEDEIROS, 2009), o turismo na favela de Paraisópolis é “justificado” pela presença da arte.

Estevão, Berbela e Antenor, os artistas da favela, com trabalhos totalmente distintos, compõem os pontos visitados em Paraisópolis. Os três ficaram conhecidos primeiramente através de jornais e revistas (como discorro adiante). Primeiro a visita era realizada pelos mais variados profissionais que divulgavam a arte que vinha da favela, não tardou para que curiosos – pessoas da cidade e também de fora – começassem a procurar os artistas, que geralmente chegavam até eles diretamente ou em sua maioria por intermédio da UMP.

Distintos também foram os períodos em que a visitação a cada um dos artistas começou a ser realizada, coincidindo com o período em que, individualmente, começaram a criar suas obras. O primeiro artista a chegar à favela foi Estevão, no ano de 1985, que logo começara a construir sua exótica casa – comparada mais tarde com a obra de Antonio Gaudí. Depois, Berbela, que há onze anos mora em Paraisópolis e há dez começou a produzir bicicletas e outros objetos com sobras de materiais de sua oficina. Por último, Antenor, que chegou a Paraisópolis em 1988, e em 2008 começou a construir sua casa com garrafas PET incorporada à estrutura.

Quando as pessoas chegavam à UMP desejando conhecer os artistas, alguém era destacado para acompanhar a pessoa até a casa de cada um deles, de maneira gradual – à medida que cada um se tornou conhecido dentro da favela por sua arte – e então as visitas passaram a compor um único “circuito” 21. Até hoje, a despeito das operadoras de turismo profissionais, a UMP segue levando visitantes para conhecer os três.

Tem-se notícia de uma agência, a Check-Point, ter tentado organizar, sem sucesso, visitas guiadas à favela. Durante cerca de seis anos a empresa

Unique Turismo Cultural Personalizado detinha exclusividade na realização de

passeios à favela, mas recentemente, no ano de 2011, uma nova agência também passou a realizar visitas, a Around SP. A seguir apresento os artistas e

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Flavia Liz, guia da agência Unique Turismo Cultural Personalizado. Essas quatro pessoas merecem uma primeira atenção, por serem os principais atores no desenvolvimento de Paraisópolis como destino turístico 22.

22 No próximo capítulo trarei para a discussão a UMP e a agência

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3.1 Estevão

Natural de Santo Estevão na Bahia, Estevão, 44 anos, mora há 16 anos em São Paulo. Na infância trabalhou como lavrador junto com seus pais; com 18 anos mudou-se para a capital, Salvador, onde permaneceu por seis meses como ajudante de pedreiro e logo depois decidiu ir junto com um amigo “tentar a sorte” em São Paulo. Estevão começou a trabalhar em uma construção em Guarulhos e morava com colegas de profissão em um alojamento. “Assim que eu cheguei aqui pra essas bandas tinha muito emprego, mas era coisa rápida, acabava em no máximo seis meses, aí eu tinha que ir atrás de outro, nisso eu mudei de cidade mais ou menos umas seis vezes para cidades aqui mesmo no interior de São Paulo, mas cheguei até o Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro. Até que um dia um amigo meu, aqui de São Paulo capital, disse que tinha uma vaga pra jardineiro e como eu sempre gostei de plantas resolvi pegar esse emprego. Eu gostava, mas não sabia como trabalhar com elas, lá mesmo eu fui aprendendo e estou no mesmo emprego até hoje”.

Estevão sempre morou em alojamentos, mas em 1985, com um dinheirinho que ele tinha conseguido juntar, comprou uma casa em Paraisópolis, a mesma em que vive até hoje. Pouco a pouco, foi adquirindo terrenos ao redor e aumentando o espaço da casa.

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ideia de colar pedrinhas sobre os “galhos” da estrutura, deixando o ambiente mais fresco. Durante muito tempo, a estrutura tinha apenas as pedrinhas, por isso a casa de Estevão ficou conhecida em Paraisópolis como a “casa de pedra”. Certo dia quebrou-se um prato da casa de Estevão (de que ele gostava muito), ao que ele decidiu fixá-lo em um dos galhos de concreto; Estevão gostou do resultado e a partir daí passou a adicionar os mais variados objetos à estrutura da casa.

Primeiro prato afixado na casa de Estevão. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

O primeiro andar da casa abriga os quartos do casal, Estevão e a esposa Edilene, e dos filhos, Stefânia e Enrique. A decoração dos quartos é feita com objetos recortados em tábuas finas de madeira, que foram lixadas e pintadas por Edilene e que ficam grudados nas paredes. Estevão disse que fez essa decoração, em que predominam os recortes de estrelas, porque tinha “saudades de vê-las no céu como as via na Bahia”.

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A casa de Estevão chamou a atenção dos vizinhos – afinal a construção é bem diferente das outras casas de Paraisópolis – e logo os membros da UMP também tomaram conhecimento da casa. Sempre procurada por jornalistas, ONG’s e documentaristas para a realização de projetos e reportagens, a UMP, em um desses contatos, falou sobre a existência da casa de Estevão à jornalista, arquiteta e artista plástica, Carla Caffé, que na época, há cerca de 20 anos, escrevia a uma coluna da Revista da Folha de São Paulo intitulada “Cidade Nua” 23. A coluna tinha o objetivo de retratar, através de um pequeno

relato e uma pintura realizada por ela, algum aspecto interessante da cidade de São Paulo – geralmente relacionado à arte. A casa de Estevão foi tema de uma dessas reportagens. Essa foi a primeira “aparição” pública da obra de Estevão e desde então as visitas à sua casa se tornaram frequentes – profissionais, estudantes, curiosos da favela e de fora e, por fim, de turistas.

Primeira reportagem de Estevão por Carla Caffé. Fonte: Revista da Folha. Ano IV. Ed: 83, 1992

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O trabalho de Estevão é constantemente comparado ao de Antonio Gaudí, artista nascido em 1852 em Reus, na Catalunha, Espanha, e falecido em Barcelona. De inspiração neogótica, Antonio Gaudí criou um estilo único – marcado pela verticalidade, com curvas próximas de formas da natureza (Ambrosio, 2007). No ano de 2000 uma estudante de arquitetura visitou a casa de Estevão e percebeu a semelhança entre seu trabalho e o de Gaudí. Ela levou livros com a obra do artista espanhol para que Estevão visse a semelhança. A partir daí o jardineiro começou a ser apresentado nas reportagens como “o Gaudí brasileiro”.

Em 2001, quando foram celebrados os 150 anos de nascimento do arquiteto catalão, os organizadores da comemoração ligados ao Centro de Estudos Gaudinistas, buscaram pelo mundo inteiro artistas que possuíssem trabalhos parecidos ao de Gaudí, chegando então a Estevão, que teve sua casa e seu trabalho filmados em todas as suas atividades. Naquele ano levaram Estevão a Barcelona para conhecer as obras de Antonio Gaudí. Em 2007, Oscar D’Ambrosio, jornalista e mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), escreveu um pequeno livro, “Contando a Arte de

Estevão”. O livro faz parte de uma coleção que tem por objetivo contar a

história de artistas autodidatas brasileiros. No ensaio, Ambrosio (2007) recupera um pouco da história de vida de Estevão, chegando a como Estevão começou a desenvolver seu trabalho “artístico”, comparado minuciosamente – numa linguagem artística e técnica – com o trabalho de Gaudí. No livro, o autor conta ainda um pouco da impressão de Estevão sobre sua ida à Espanha:

“Ele comenta que adorou tudo e reconhece que sua obra é de pequenas dimensões perante as grandes construções do arquiteto, que incluem prédios inteiros, casas, igrejas e parques. O trabalho que mais o impressionou e no qual viu mais proximidade com o que fez é o parque Guëll. Ali estão, também, troncos falsos que parecem ser de madeira, mas que são de fato de pedra. O traçado repleto de curvaturas é parecido, além do próprio processo de montagem, em que pedras são coladas na estrutura para que o resultado final pareça natural. Antes de ser convidado pelos espanhóis, Estevão tinha em Gaudí uma referência apenas distante”. p. 23

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cachaça que reuniu alguns brasileiros que tivessem tido uma “boa ideia” – relacionando com o slogan da cachaça – para fazer uma peça promocional que contasse em dois minutos como a pessoa tinha desenvolvido essa “boa ideia”. No final da peça Estevão declara:

“Todos os gringos e madames que vêm aqui, falam que parece com as coisas daquele artista espanhol, Antonio Gaudí, mas não sei quem é ele não [...]. Eu fiz mais assim porque eu queria criar a roseira, mas eu não sabia que ia virar isso e ter essa repercussão toda. Vim lá da Bahia com a moringa debaixo do braço, chegar aqui e fazer essa obra de arte e depois dá toda essa reviravolta.”

Embora um pouco confuso, no depoimento Estevão afirma que não conhece Gaudí, mesmo depois de ter ido à Espanha exclusivamente para conhecer o seu trabalho e com isso perceber que o que ele próprio faz é arte, algo que nunca pensou poder realizar. Essa negação, ao mesmo tempo em que parece mostrar certa recusa pela semelhança a Gaudí, aciona também um referencial para que seu trabalho seja reconhecido como arte. Edilene contou-me que Estevão não gosta contou-mesmo da comparação, que ele sempre diz: “aqui não é nada de Gaudí brasileiro, aqui tudo é obra do Estevão” 24

. Quando perguntei a Estevão se ele é um artista, a resposta vem prontamente, deixando claro que seu papel de artista é legitimado por ser comparado com a obra do “maior arquiteto do mundo”, Antonio Gaudí:

“No começo eu não me considerava artista não, mas agora eu acho que sou sim, pela divulgação meu trabalho já é conhecido no mundo inteiro, já fui comparado com o maior arquiteto do mundo, o Antonio Gaudí, lá da Espanha, o que não é pra qualquer um, então eu sou sim um artista. Cada artista tem um dom de fazer uma arte, eu faço quadro, vaso, além de todo esse trabalho aqui na minha casa. Tem muita gente que coloca nos jornais que eu sou pedreiro, eu nunca trabalhei de pedreiro, eu até sei fazer serviço de pedreiro, sei rebocar, arrumar uma laje, mas nunca foi meu trabalho. Eu sou jardineiro e artista plástico”.

Estevão continua falando que seu trabalho artístico tem uma importância para Paraisópolis:

“Minha arte é muito importante aqui para a favela porque junto com os outros, o Berbela e o Antenor, conseguimos divulgar o que há de bom

Imagem

Foto Gilson e Berbela na parede do minimuseu de Berbela (material de divulgação da chapa eleitoral)

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