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A experiência surrealista da linguagem: Breton e a psicanálise.

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Academic year: 2017

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RES UMO: Este artigo apresenta alguns aspectos da experiência sur-realista da linguagem nos anos 1920, m ostrando que o autom atis-m o surrealista se inspira no funcionaatis-m ento do inconsciente pro-posto por Freud. Considerando a linguagem com o fundam ento da realidade hum ana, Breton antecipa as form ulações de Lacan sobre o eu e a realidade. No entanto, a prim eira concepção lacaniana da linguagem , circunscrita exclusivam ente ao sim bólico, separa Lacan do surrealism o. Apenas nos anos 1970, a teoria da linguagem em Lacan perm itirá pensar a prática surrealista da linguagem .

Palavras - chave: Surrealism o, psicanálise, autom atism o, linguagem .

ABSTRACT: The surrealist experience of language: Breton and the psychoanalysis. This article presents som e aspects of the surrealist experience of language in the tw enties, show ing that the surreal-ist autom atism is inspired by the functioning of the unconscious as described by Freud. Considering language as the foundation of hum an reality, Breton anticipates Lacan’s form ulation of the self and reality. Nevertheless, the first Lacanian conception of language, exclusively circum scribed to the sym bolic register, separates Lacan from surrealism . Only in the seventies, w ill Lacan’s theory of lan-guage allow the interpretation of the surrealist practice of lanlan-guage. Ke yw o rds: Surrealism , psychoanalysis, autom atism , language.

O

surrealism o foi considerado com o a via literária de

en-trada do freudism o na França, m as a história dos m al-entendidos entre Freud e Breton adquiriu um a im portância talvez desm esurada, levando os com entadores a estabelece-rem , sobretudo, as diferenças entre os dois. Nossa perspectiva é, ao contrário, a de buscar as contribuições e as questões com uns ao cam po da psicanálise e do surrealism o. Mas va-m o s in icialva-m en te ten tar d efin ir o q u e fo i o va-m o viva-m en to surrealista. Tom em os a definição de Maurice Nadeau: Professora do Curso

de Psicologia da Faculdade de Ciências Hum anas do Centro Universitário/ Fum ec, de Belo Horizonte, e doutora pelo Laboratório de Psicopatologia Fundam ental e Psicanálise da Universidade de Paris VII. Psicanalista.

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“O surrealism o é concebido por seus fundadores não com o um a nova escola artís-tica, m as com o um m eio de conhecim ento, em particular de continentes que até então não tinham sido sistem aticam ente explorados: o inconsciente, o m aravilho-so, o sonho, a loucura, os estados alucinatórios, em resum o, o avesso do que se apresenta com o cenário lógico.” ( NADEAU, 1958, p. 46)

É assim , com o m eio de conhecim ento, que o surrealism o se m anteve ao longo dos anos. O autom atism o será o prim eiro m ecanism o eleito para explo-rar estes continentes evocados por Nadeau.

A história do m ovim ento surrealista é bastante agitada e estará sem pre liga-da a acontecim entos políticos. Partirem os de um a distinção feita por Breton em 1934, por ocasião de um a conferência realizada na Bélgica, cujo título é “O que é o surrealism o?”, entre um a prim eira fase dita intuitiva ( de 1919 a 1925) e um a segunda fase dita “raciocinante”, na qual se coloca a questão do engaja-m ento político ( BRETON, 1934/ 1988) . A toengaja-m ada de posição dos surrealistas, em 1925, frente à guerra da França com o Marrocos ( colocando-se a favor deste últim o) , m arca a m udança de fase. Assim , terem os um prim eiro m anifesto em 1924, que declara form alm ente a existência do m ovim ento no ato de nom eá-lo e define um certo program a. O segundo m anifesto, de 1930, m arca o m om ento de um a grave cisão interna no grupo surrealista, ligada à questão da filiação ao partido com unista, que se m anterá até a eclosão da Segunda Guerra Mundial.

Há então um a particularidade desta prim eira fase intuitiva, que é o fato de

ela ser reconhecida a posteriori, pois recobre um período ( de 1919 a 1924) em

que, a rigor, o surrealism o ainda não existia. Nessa prim eira fase, o m ovim ento se definirá enquanto tal, distinto do dadaísm o, lançando-se em experiências de escrita autom ática, de narrações de sonhos e dos sonos hipnóticos. É justam ente nesta fase que o autom atism o se im põe com o m ecanism o essencial ao projeto surrealista de ultrapassar a oposição entre um m undo desejado e o m undo real, propondo um a nova relação do sujeito com a realidade: a de transform a-ção. A surrealidade supõe um m undo no qual “sonham os de olhos abertos”.

Na sua retrospectiva histórica do surrealism o, Sarane Alexandrian afirm a

que o m ovim ento com eça com a fundação, em 1919, da revista Littérature. Ele

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de 1920 nos núm eros de Littérature. Em m aio de 1920, publica-se Os campos mag-néticos, livro que reúne todos os textos desta prim eira experiência de escrita

auto-m ática. Este livro auto-m arca uauto-m a espécie de origeauto-m do auto-m oviauto-m ento surrealista auto-m

es-m o que ele só seja noes-m eado coes-m o tal no Manifesto do Surrealismo, de 1924. Entre os

dois títulos, houve o período de adesão às m anifestações dadaístas em Paris.

No prim eiro m anifesto, após fazer um a genealogia da palavra surrealism o,

atribuindo-a tanto a Apollinaire quanto a Nerval ( este teria falado de um “esta-do de sonho supernaturalista”) , Breton a define categoricam ente:

“SURREALISMO, s.m . Autom atism o psíquico em estado puro m ediante o qual se propõe exprim ir, verbalm ente, por escrito, ou por qualquer outro m eio, o funcio-nam ento do pensam ento. Ditado do pensam ento, suspenso qualquer controle exer-cido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou m oral.” ( BRETON, 1924a/ 2001, p. 40)

Constatam os que a definição se pretende definitiva ( “Defino-a de um a vez por todas”, escreve Breton) e é por isto que ela tom a a form a das definições do dicionário. Tal definição é seguida por outra, dirigida a um a Enciclopédia de Filosofia. Notam os que não é m ais o sentido da palavra que im porta, m as o que ela caracteriza em term os de pensam ento:

“ENCICL. FILOS. O Surrealism o repousa sobre a crença na realidade superior de certas form as de associação desprezadas antes dela, na onipotência do sonho, no d esem p en h o d esin teressad o d o p en sam en to. Ten d e a d em o lir d efin itivam en te todos os outros m ecanism os psíquicos e a se substituir a eles na resolução dos principais problem as da vida. Deram testem unho de SURREALISMO ABSOLUTO os srs. Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Delteil, Desnos, Éluard, Gerard, Lim bour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.” ( BRETON, 1924a/ 2001, p. 40)

Se o term o autom atism o não aparece na segunda definição, tem os, no en-tanto um a insistência no term o m ecanism o psíquico. Na definição para a Enci-clopédia, o surrealism o é, ao m esm o tem po, a realidade superior alm ejada e o m ecanism o necessário à sua instalação.

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livros de Régis: Précis de Psychiatrie e La Psychanalyse, este últim o escrito com a colaboração de Hesnard. Encontram os traços deste entusiasm o num a carta de Breton a Fraenkel: “Dem ência precoce, paranóia, estados crepusculares, / Ó poe-sia alem ã, Freud e Kraeplin!”. ( BONNET, 1988, p. 99)

Não se trata aqui de um sim ples fascínio pelo discurso científico, m as antes de um deslocam ento desse discurso que passa a ser percebido com o poético, provocando a ruptura de lim ites entre arte e ciência, antes evocada.

Voltando às m otivações que levaram Breton a se internar no hospital ( com o m édico) , diríam os que se trata aí de um desejo de saber que encontra im passes quando endereçado ao registro literário: a obsessão poética evoca um a im pos-sibilidade de avançar além dos lim ites dos seus m estres em poesia ( Mallarm é, Rim baud, Apollinaire) . Breton parece buscar um a outra via e o hospital psiquiá-trico surge com o o espaço de um encontro essencial com a loucura. A escolha pela psiquiatria, que inicialm ente resultou de um m ovim ento de fuga ou renún-cia à poesia, torna-se um a fonte de conhecim ento. Breton encontra aí algo de fundam ental para pensar a relação do hom em à realidade.

O hospital lhe m ostra o traum a da guerra, sob a form a em blem ática de um louco cujo conteúdo do delírio era a sim ulação da guerra. Esta m odalidade de delírio, que coloca em tensão a realidade m esm a da guerra e o desejo de negá-la, m arca-o profundam ente. A experiência com o m édico da alm a com porta um duplo m ovim ento de autoconhecim ento e conhecim ento do m undo. Podem os dizer que em Breton, com o em Freud, é o patológico que lança luz sobre o funcionam ento “norm al” do psiquism o. Freud parte do sintom a neurótico e chega ao sonho e à descrição do aparelho psíquico. Breton parte dessa aproxi-m ação paranóica da realidade para pensar que a relação do hoaproxi-m eaproxi-m coaproxi-m a realidade se funda na enunciação. Neste percurso, que reúne loucura e poesia, um a noção se im põe ao pensam ento de Breton: a de autom atism o.

Alexandrian tenta fazer a gênese das teorias do autom atism o psíquico, cujo início pode ser situado no século XVII com Puységur, discípulo de Mesm er, distinguindo duas correntes opostas: a corrente das práticas e doutrinas ocultistas do autom atism o — das quais fazem parte o m agnetism o, o espiritism o e os rosa-cruz; e um a outra, científica, representada por autores com o Baillargar, Azam e Janet. Alexandr ian defende a hipótese de que o surrealism o seria a resolução dialética da tese ocultista e da antítese científica no que concerne às idéias sobre o autom atism o. Esta resolução dialética dem onstra para ele a voca-ção libertária do surrealism o, que se exprim e pelo com portam ento livre dos constrangim entos religiosos e científicos. ( ALEXANDRIAN, 1974, p. 71-102)

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Esta experim entação, condição fundam ental de toda ciência do século XIX, foi aberta pelo espiritism o para as novas ciências do psiquism o.

“O surgim ento do espiritism o desem penhou um papel capital na história da psi-quiatria dinâm ica, no sentido em que ela forneceu indiretam ente aos psicólogos e psiquiatras, novos m étodos para estudar o espírito hum ano. A escrita autom ática, u m dos procedim en tos in trodu zidos pelos espíritas, foi retom ada pelos sábios com o m eio de exploração do inconsciente.” ( ELLENBERGER, 1994, p. 118)

Assim , um fenôm eno com o o hipnotism o cham ou a atenção do m eio cientí-fico, e seu estudo terá com o conseqüência o aparecim ento, na França, de duas escolas fundam entais para a constituição da psiquiatria dinâm ica m oderna: a escola de Nancy e a da Salpêtrière, onde Freud estudou.

O autom atism o está m uito presente no saber psiquiátrico francês, sobretudo no final do século XIX, quando Pierre Janet defende sua tese sobre “O autom a-tism o psicológico”. É certam ente com a noção janetiana de autom aa-tism o que Breton se defronta enquanto estudante de psiquiatria. Seu contato com toda esta

literatura ocultista à qual se refere Alexandrian é posterior à escrita de Os cam pos

m agnéticos.

Retom em os esta noção em Janet. Para ele, os fenôm enos de autom atism o respondem a um a dissociação m ental, a um a atividade psíquica autônom a que não obedece ao controle da consciência. O autom atism o é signo de fraqueza psíquica, podendo atingir vários níveis. A catalepsia, por exem plo, seria a form a m ais elem entar de autom atism o total. A escrita autom ática se encontra entre as atividades que podem se desenvolver no quadro de um autom atism o parcial num doente m ental.

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uni-cação hum ana”. Breton e seus am igos utilizam técnicas já conhecidas m as eles conferem um a outra qualidade ao que é produzido. “O que era percebido com o produto da alienação ( a loucura que se deve aprisionar) torna-se objeto valori-zado de um a invenção m aravilhosa”. ( CHÉNIEUX-GENDRON, 1984, p. 68)

O autom atism o praticado pelos surrealistas não é um a solução dialética, pois a via artística não poderia ser considerada com o a síntese da contradição entre a religião e a ciência. Mais um a vez, a originalidade do surrealism o está em questionar o lim ite entre estes cam pos, já fixados, de expressão do espírito. A necessidade que teve Breton de teorizar sobre a noção de autom atism o conduziu-o à leitura de autores com o Myers e Flournoy. De certo m odo, Breton refaz a cadeia histórica passando do científico ao religioso. Tam bém a prática espiritista esteve presente no que se tornou conhecido com o as sessões de sono hipnótico, quando alguns surrealistas se com portavam com o verdadeiros m é-diuns. A vida em grupo dos surrealistas funcionava com o um verdadeiro labora-tório de experiências sobre o desconhecido. Os poetas e artistas plásticos se davam ao luxo da loucura e do desregram ento, tendo com o único lim ite e garantia o produto da experiência que deveria ser exposto à sociedade.

Segundo Jean Starobinski, o pensam ento de Breton se acom oda m uito m ais ao de Myers que ao de Freud no que diz respeito ao autom atism o. Mesm o recusando o dogm atism o transcendental e espírita, Breton estaria m ais próxi-m o da noção de eu sublipróxi-m inar de Myers do que do inconsciente freudiano. Starobinski m ostra um a incom patibilidade fundam ental entre Breton e Freud na m edida que o prim eiro confunde “o m ovim ento do desejo com o m ovim ento do saber” e “a liberação do desejo com a interpretação” ( STAROBINSKI, 1970, p. 154) . Apesar da pertinência das afirm ações de Starobinski sobre a distinção entre freudism o e surrealism o, acreditam os que a posição de Breton pode ser ainda esclarecida. Podem os dizer que em Breton há um a busca do saber sobre o desejo, m esm o que as form as de acesso a esse saber sejam com pletam ente inabituais. Marcado pelo pensam ento de Hegel, o ideal bretoniano é o de um saber absoluto. Sua posição pode ser criticável, m as não confundida com um a adesão ingênua a um pensam ento do tipo parapsicológico.

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a partir da escrita autom ática, onde a poesia aparece não com o um gênero literá-rio entre outros, m as com o instrum ento de investigação do espírito e da vida. De certa form a, Breton se alinha a um a tradição literária ( Nerval, Baudelaire, Mallarm é e Rim baud) na qual reencontram os o m esm o caráter sagrado da poesia da Anti-guidade clássica. No entanto, é preciso distingui-lo de seus predecessores, pois não encontram os em Breton um a posição privilegiada do poeta nem a m istifica-ção da atividade poética. Ao contrário, a poesia está em cada indivíduo m ascarada pela sua atividade racional. É preciso apenas encontrar o m ecanism o capaz de liberar a atividade poética. Com o autom atism o, acessível a qualquer indivíduo, a poesia se dem ocratiza, sofrendo um a espécie de desm istificação.

AUTOMATIS MO E AS S OCIAÇÃO LIVRE

O m étodo da associação livre proposto por Freud com o m eio de driblar a censura interessa enorm em ente a Breton. A escrita autom ática se inspira na associação livre na m edida que ela visa recuperar o que foi afastado ( recalca-do) do discurso consciente pela censura. No entanto, a escrita enquanto ato não

é inconsciente. Vejam os o que diz Breton no prim eiro Manifesto a propósito desse

projeto de escrita:

“Com o, naquela época, eu ainda andava m uito interessado em Freud e fam iliariza-do com os seu s m étoiliariza-dos de exam e, qu e tivera oportu n idade de em pregar em alguns pacientes durante a guerra, decidi obter de m im m esm o o que se tenta obter deles, vale dizer, um m onólogo enunciado o m ais depressa possível, sobre o qual o espírito crítico de quem o faz se abstém de em itir qualquer juízo, que não se atrapalha com nenhum a inibição e corresponde, tanto quanto possível, ao

pensam ento falado.” ( BRETON, 1924a/ 2001, p. 37)

Nessa reconstituição histórica das condições de surgim ento da escrita auto-m ática, é à teoria freudiana que ele se refere. Mas percebeauto-m os por esta passa-gem que a “ fam iliarização” era um tanto im precisa. A associação livre não é propriam ente um m étodo de exam e, m as um instrum ento da terapêutica e po-dem os m esm o nos perguntar se é possível, para a psicanálise, separar exam e e terapêutica. Efetivam ente, Breton não havia praticado a psicanálise. Breton usava com o podia o que ele conhecia do pensam ento de Freud pelo interm édio do livro de Régis. Freud ainda não era traduzido para o francês. Exam inem os um a passagem da correspondência para Fraenkel ( carta de setem bro de 1916) , onde

Breton copia um trecho do Précis de Psychiatrie:

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últim a não era aplicável a todos os casos, ele com eçou, com Jung, a utilizar aquele da auto-análise e das associações m entais. No prim eiro, o sujeito deve anotar ele m esm o, com a neutralidade absoluta de um testem unho estrangeiro, indiferente ou, se se quer, de um sim ples aparelho de registro, todos os pensam entos, quais sejam eles, que atravessam seu espírito. Em seguida o observador deve distinguir, na sucessão das m anifestações ideativas, quais delas podem colocálo na via do com -plexo patogênico inicial. No m étodo das associações m entais, o com -plexo se revela pelas respostas associativas ou palavras-reações do doente às questões variadas que lhe são postas e pelo atraso de algum as dentre elas, m edidas cronologicam ente.” ( BONNET, 1988, p. 126)

Esta passagem ilustra bem a extensão da deform ação, tanto histórica quanto conceitual, do m étodo freudiano. Prim eiram ente, a interpretação dos sonhos aparece quando a associação livre se im põe, ou seja, quando o m étodo da hip-nose é abandonado. Em segundo lugar, o m étodo da associação utilizado por

Jung em Zurique a partir de 1904, “inspirado” na leitura de A interpretação dos

sonhos, baseava-se em testes de associação verbal que procuravam dem onstrar

experim entalm ente a presença de m aterial reprim ido. A associação livre utili-zada por Freud deixava ao paciente a responsabilidade das associações. Mas parece que o que reteve Breton foi a possibilidade de, através da associação, colocar o pensam ento em relação ao acidental, ou seja, ao que vem ao espírito sem preocupação de ordem m oral ou racional. Lem brem os que no m om ento da

escrita do Manifesto de 1924, no qual essa idéia fica m ais clara para Breton, a

Psicopatologia da vida cotidiana já estava traduzida para o francês. Este é um livro que

acentua o determ inism o inconsciente naquilo que aparece com o acidental na ação do sujeito.

A FRASE DE SEMI- SONO

A prim eira vez que Breton expõe as condições da escolha pela experiência de

escr ita autom ática é no texto “Entrée des m édium s” ( Entrada dos m édiuns) , de

1922. Constatam os que, depois do contato com a psiquiatria e pouco tem po antes da prática da escrita autom ática, entra em cena a experiência da frase do sem i-sono. Ali, Breton a representa da seguinte m aneira:

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Aragon lem bra que esta relação entre a frase de sem i-sono e a escrita autom á-tica só será feita por Breton em 1922, três anos depois de vivida a experiência:

“( ...) é preciso saber que nos prim eiros tem pos das experiências de escrita autom á-tica, isto é, em 1919, e m esm o durante três anos, três anos e m eio, esta fonte não tinha sido evocada, é apenas depois que ele estava habituado ao m ecanism o de abolição da censura pela velocidade da escrita que André Breton com eçou a dizer que o ditado para ele partia de um a frase escutada.” ( ARAGON, 1969, p. 69)

Mais tarde, em 1924, Breton conta o que se passou antes que ele tom asse a decisão de praticar a escrita autom ática e, neste m om ento, ele evoca a frase de sem i-sono acom panhada de representação visual, que cham a sua atenção com o m aterial de construção poética. Esta frase “que se chocava contra a vidraça” era: “Há um hom em cortado em dois pela janela”. A insistência inicial da frase dá lugar a um a sucessão de frases, todas bastante surpreendentes. Observem os que o estado de sem i-sono é anterior ao adorm ecim ento, num “quase abandono” da consciência. Breton estabelece um a relação entre esta experiência e aquela da associação livre psicanalítica. Ele reconhece assim , um certo contexto, um

pos-sível efeito de sugestão que condiciona sua experiência. É no après- coup que

Breton vislum bra a relação de causalidade entre a frase escutada e a escrita autom ática. A frase de sem i-sono corresponde a um a abertura do sujeito ao pensam ento inconsciente do tipo involuntária, enquanto a escrita autom ática é um exercício voluntário.

A experiência com a frase de sem i-sono é a segunda, na cadeia de experiên-cias do desconhecido. A prim eira, lem brem os, foi a escuta do discurso deliran-te, quando Breton estava na posição de observador. Ele se desloca assim , para um a outra posição, aquela do sujeito que experim enta em si m esm o a força “ autom ática” da linguagem . A escrita autom ática vem se juntar a esta série, trazendo um elem ento de controle do lado do sujeito da experiência, na m edi-da que ele a provoca e recolhe o produto. A frase de sem i-sono tem esse aspecto de representação em im agem que a aproxim a do sonho, m as o que conta para o escritor é sua qualidade verbo-auditiva, isto é, o poder que tem a im agem de produzir um equívoco no nível da significação. Lem brem os o com entário que

segue a apresentação da frase de sem i-sono no prim eiro Manifesto:

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ho-m eho-m , vi que estava lidando coho-m uho-m a iho-m ageho-m de tipo bastante raro e logo pensei em in co r p o rá-la ao m eu m ater ial d e co n str u ção p o ética.” ( BRETON, 1 9 2 4 a/ 2001, p. 36-7)

Este com entário não é outra coisa senão um a interpretação a partir da qual se tenta encontrar um a resposta ao enigm a produzido pela conjunção da im a-gem com a frase: “há um hom em cortado em dois pela janela”. Seguindo o reerguim ento corporal do hom em , a janela não é m ais o que faz apenas o enquadram ento do m undo exterior. Ela se incorpora ao hom em , produzindo o duplo efeito: ser incorporada pelo sujeito e m arcar ao m esm o tem po sua divi-são. O elem ento-chave da frase é a janela, ou m ais precisam ente a subversão da função ordinária de um a janela, aquela de fazer lim ite entre interior e exterior. A janela é o espaço da ação de um corte que se realiza no corpo do hom em .

É verd ad e q u e esta frase tem u m a estru tu ra m u ito p ró xim a d a frase fantasm ática desenvolvida por Freud no texto “Bate-se em um a criança”, escrito em 1919. E ela se acom oda de form a surpreendente à definição lacaniana do sujeito dividido pelo significante. É o que sublinha Fabienne Hulak: “As ativida-des de escrita autom ática serão constantem ente a prática ativida-deste ‘ser cortado em dois’”. ( HULAK, 1992, p. 85)

Não possuindo um “ olhar psicanalítico” , Breton se interessa a princípio pela qualidade poética da frase, seu aspecto absurdo. Em seguida, ele se im pres-siona com a percepção de que a frase lhe vinha de fora ( “que se chocava contra a vidraça”) . Este aspecto de exterioridade não é estranho ao procedim ento téc-nico da psicanálise. Da associação livre é esperado o aparecim ento de um

pen-sam ento que incide sem m otivo. Freud utiliza o term o Einfall para nom ear esta

idéia incidente que cai, com o nos sugere o verbo alem ão einfallen. Segundo a

regra da associação livre, o sujeito deveria estar pronto a falar destes pensa-m entos, pensa-m espensa-m o se eles estiverepensa-m totalpensa-m ente fora do contexto. As idéias inci-den tes se distin gu em das associações com u n s ju stam en te pelo seu caráter desconectado. A m ais característica dessas idéias é exam inada no texto sobre a

Verneinung em que o signo negativo perm ite a entrada no discurso de um conteú-do recalcaconteú-do. ( FREUD, 1925/ 1976)

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A PROCURA DOS ESTADOS ALTERADOS

A aproxim ação feita por Breton entre a experiência da frase de sem i-sono e a decisão de praticar a escrita autom ática é certam ente provocada pela questão dos estados alterados. Tendo experim entado o que pode produzir este estado na

experiência da frase, ele queria poder provocá-lo. No texto de 1922, “Entrée des

médiums” ele afirm a que a sim ples abstração do m undo exterior era suficiente

para produzi-lo. Nas Entrevistas de 1952, ele volta a falar sobre estas condições e

acrescenta que além do desligam ento do m undo exterior é necessário um ou-tro, o desligam ento das preocupações individuais de ordem sentim ental e utili-tária que estaria m ais próxim o do pensam ento oriental.

Hulak reconhece um papel im portante nas condições físicas nas quais Os

cam pos m agnéticos foram produzidos, dizendo que Breton era um grande insone e

que, na época da escrita dos textos, ele não com ia o suficiente ( HULAK, 1992) . Depois de abandonar a m edicina, ele perde a ajuda financeira dos pais para se m anter em Paris. A estas con dições físicas se acrescen ta o can saço cau sado pela própr ia escrita. Breton e Soupault passavam dias inteiros escrevendo e aceleravam a velocidade da escritura até que o intervalo entre a palavra oral e a escrita desaparecesse. A idéia de u m ditado m ágico su põe a an u lação do

tem po de transform ação — e, portanto de reflexãodo pensam ento à escrita.

Neste sentido, a escrita se aproxim a da espontaneidade da oralidade. A escr ita de Os cam pos m agnéticos corresponderia a um “falar livrem ente”.

Em 1952, nas Entrevistas, Breton com enta a razão desta busca dos estados

alterados que m arca toda a fase de experim entação deste período dito intuitivo:

“ O que nos interessou apaixonadam ente nestes estados era a possibilidade que eles nos davam de escapar dos constrangim entos que pesam sobre o pensam ento de vigília. Um desses con stran gim en tos, e o m ais grave, é o assu jeitam en to às percepções sen soriais im ediatas qu e, n u m a gran de m edida, faz do espírito u m joguete do m undo externo ( quero dizer que em condições norm ais de ideação, nós só podem os abstrair parcialm ente do que cai sob nossos olhos, que chega aos ouvidos, etc.) e que as im pressões que resultam disso, pelo seu caráter parasita, não deixam de falsear o curso da ideação.” ( BRETON, 1952/ 1969, p. 85)

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Não é sem cautela que ele se prepara para a nova experiência de escrita. As

condições de produção de Os cam pos m agnéticos — “o livro por onde tudo com

e-ça”, com o dirá Aragon ( ARAGON, 1924) — perm item vislum brar a estratégia

em pregada por Breton. A prim eira condição era que a experiência fosse realizada com um outro e não sozinho. Tam bém a escolha deste outro foi cuidadosam ente pensada: Soupault foi escolhido por ser m ais novo no exercício da literatura e m enos crítico, ele estava num a posição de alteridade m ais assegurada aos olhos de Breton; Aragon, por exem plo, era m uito m ais próxim o de Breton, nesta época. A necessidade de um a colaboração corresponde a um a tentativa de objetivação de um m om ento de subjetivação intensa que é o da associação livre na escrita. Há aí um a espécie de “forçação” do lim ite do com unicável. O parceiro é ao m esm o tem po testem u n h a e su jeito da experiên cia: n ão h á propriam en te assim etria das posições, m as ele guarda um a alteridade m ínim a. Não se trata da confusão dos delírios, porém de um a pesquisa das possibilidades do trabalho da escrita. Esta experiência tem um alvo: encontrar a fonte da im agem poética e controlá-la. É preciso ainda saber com o isto funciona e aí a psicanálise tem o seu papel esclarecedor. Apesar deste desejo de controlar a experiência se prepa-rando para ela, é bom lem brar que o resultado desse exercício era com pleta-m ente ipleta-m previsível pois supõe “( ...) upleta-m a tensão difícil a pleta-m anter entre os pólos opostos do abandono e da vigilância”. ( BONNET, 1988, p. 163)

Vejam os alguns exem plos de frases de escrita autom ática de Os cam pos m

ag-néticos:

“O círculo de heroísm o e dinheiro plana ainda, avião do m ais velho m odelo, sobre a província.”

“ A vontade de grandeza de Deus Pai não ultrapassa os 4.810 m etros na França, altitude m edida acim a do nível do m ar.” ( BRETON & SOUPAULT, 1920/ 1988, p. 86)

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OS SONOS HIPNÓTICOS

De 1919 a 1924 tem os um período de experim entação e conquistas, cujo

pri-m eiro Manifesto do Surrealismo é a tentativa de teorização. O autom atism o é

experi-m entado não apenas na escrita, experi-m as taexperi-m béexperi-m na experiência do sono hipnótico. Breton descreveu o m om ento onde surgiram as sessões de sonos provocados na história do m ovim ento surrealista, com o um m om ento de renovação da

espe-rança de reencontrar a fonte do m aravilhoso. O texto “Entrée des médiums

refere-se exatam ente a esta experiência que teve lugar em 1922. Breton conta que o entusiasm o pela descoberta da escrita autom ática havia passado. A dificuldade era cada vez m aior: a consciência se insinuava o tem po todo e a vontade de fazer literatura era difícil de abolir. A atenção de Breton se voltou para a

narra-ção de sonhos que eram publicados nos núm eros de Littérature. Mas aí tam bém

havia um problem a, pois era preciso contar com a m em ória. A m em ória, sujeita a falhas e à censura, não poderia garantir a qualidade original do m aterial inconsciente. É assim que Breton se exprim e sobre a descoberta desse novo procedim ento que é o sono hipnótico, neste m om ento de decepção:

“Por isso eu não esperava m ais grande coisa deste lado ( da narração de sonhos) no m om ento em que se ofereceu um a terceira solução ao problem a ( eu creio que só falta decifrá-la) , solução onde intervém um núm ero infinitam ente m enos consi-derável de causas de erro, solução que se m ostrou das m ais palpitantes.” ( BRETON, 1922a/ 1988, p. 276)

O sono hipnótico entrava assim no program a de pesquisa das form as de liberação dos constrangim entos. A experim entação durou alguns m eses ( de setem bro a dezem bro de 1922) e utilizou o m esm o dispositivo das sessões espíritas. Crevel foi iniciado nesta prática e a propôs ao grupo. Ele é o prim eiro a revelar suas capacidades m ediúnicas. Porém , o m ais brilhante dos m édiuns será Robert Desnos, que m ostra um a extraordinária capacidade de identificação histérica quando ele encarna na sua escrita Rrose Sélavy, personagem inventada por Marcel Ducham p.

Tom em os alguns exem plos dos aforism os ou jogos de palavras produzidos por Desnos durante o estado de sono provocado:

“Les enfants des hom m es sont une som m e de fantôm es et de sang un peu.” ( Os filhos dos hom ens são um a som a de fantasm as e de sangue um pouco.)

(14)

No prim eiro exem plo, a palavra fantômes é a som a (somme) de enfants e hommes,

ou m ais exatam ente é fant + ommes. O fonem a en que resta de enfants é recuperado

na hom ofonia com sang. No segundo exem plo, tem os o m esm o procedim ento, a

palavra pensums ( que se pronuncia pã- çóme) que significa a tarefa suplem entar

dada ao aluno com o castigo, condensa pensées e hommes, som ando a prim eira

sílaba da prim eira com a últim a da segunda.

Breton, no célebre texto “Les mots sans rides” ( As palavras sem rugas) , pergunta:

“Quem dita a Desnos dorm indo as frases que podem os ler em Littérature e das quais Rrose Sélavy é a heroína; o cérebro de Desnos está unido com o ele pretende ao de Ducham p, ao ponto que Rrose Sélavy lhe fala apenas se Ducham p tem os olhos abertos? É isso que, no estado atual da questão não m e com pete elucidar.” ( BRETON, 1922b/ 1988, p. 286)

O que im porta é o que Desnos é capaz de produzir neste estado, que é um estado de abandono da consciência, no qual as palavras têm autonom ia. Desnos cum pre assim as regras que, segundo Breton, podem “...devolver à linguagem sua destinação plena: 1 considerar a palavra em si; 2 estudar a reação das pala-vras um as sobre as outras”. ( BRETON, 1922b/ 1988, p. 284)

As sessões de sono hipnótico colocam em evidência as diferenças de estraté-gia psíquica dos m em bros do grupo que se dividia entre os que entravam em transe hipnótico ( Crevel, Desnos, Péret) e os que não entravam ( Aragon, Breton, Éluard, Max Ernst entre outros) , m as que participavam fazendo perguntas. Breton se distinguia m esm o entre os que apenas perguntavam , ocupando o lugar do m édico m agnetizador. Ele acolhia as m anifestações que lhe eram dirigidas e intervinha para acordar os m édiuns quando a coisa com eçava a ficar perigosa. As sessões eram claram ente m arcadas por efeitos de sedução e disputa pela afeição do m estre. Tinham tam bém a virtude de reunir os participantes do gru-po em torno de um a m esm a prática, funcionando com o um a “onda de sonhos” que arrastava todo m undo com ela.

Alexandrian reconhece nestas sessões um efeito catártico para o grupo, di-zen d o q u e o s su rrealistas fo ram p recu rso res d o p sico d ram a d e Mo ren o

( ALEXANDRIAN, 1974) . Esse inevitável lado psicodram ático da experiência dos

sonos hipnóticos com prom eteu a busca de um estado de abertura para o funciona-m ento prifunciona-m ário da linguagefunciona-m e, por isto, ela foi abandonada.

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pensa-m ento. Copensa-m o observa Walter Benjapensa-m in, referindo-se às experiências de altera-ção do pensam ento pelo uso de drogas, os surrealistas estavam m ais interessa-dos no pensam ento sobre a em briaguez do haxixe que na própria em briaguez do haxixe. ( BENJAMIN, 1929/ 1971)

Nesta valorização da linguagem , os surrealistas estarão m ais próxim os de Lacan que de Freud. No entanto, enquanto o surrealism o vê na relação do sujei-to com a linguagem a possibilidade de liberação dos constrangim ensujei-tos da rea-lidade, Lacan via nesta m esm a relação a causa da divisão do sujeito.

O discurso delirante, a frase de sem i-sono, a escrita autom ática, a narração de sonhos e o sono hipnótico com põem um a série de experiências às quais Breton tenta significar por m eio de um a tentativa de form alização teórica. Con-com itantem ente à afirm ação do funcionam ento autônom o da linguagem , te-m os o questionate-m ento do eu e da realidade.

O POUCO DE REALIDADE

A surrealidade foi definida no prim eiro Manifesto com o a resolução dialética da

antinom ia entre o m undo do sonho e o da vigília. Dorm indo ou acordado, a realidade se produz para o sujeito, no uso da linguagem . No texto de Breton “Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade”, de 1924, identificam os um a form a bastante original de abordar a questão do eu e da realidade com o se fosse a narração de um a fábula. É ao m esm o tem po a introdução de um estilo narrativo que se desenvolve no sentido de um a auto-análise, e a introdução a um processo de desvelam ento da relação do eu com a realidade. Um a am pla interrogação sobre a realidade exige um processo de desm ascaram ento do eu até o seu apagam ento, cuja conseqüência é o aparecim ento do sujeito da enun-ciação e da descoberta da linguagem com o única garantia da realidade.

A prim eira realidade colocada em questão pelo texto é a do eu. A m ultipli-cidade do eu é apresentada no seu caráter teatral. No entanto, a possibilidade

de m utação im aginária do eu esbarra num a espécie de traço de identidade

qu e n ão se deixa apagar. Ora, este resto in elim in ável n a redu ção do eu só pode aparecer no discurso, no eu que fala, com o efeito prim ário do fato de que existe linguagem .

(16)

Breton trabalha m agnificam ente este m ovim ento de redução im aginária do eu, m ostrando que toda m áscara fracassa no papel de representar o eu. Mas é preciso escolher um a para assegurar este “ pouco de realidade” necessário à presença no m undo. Na sua fábula sem m oralidade, Breton se veste com um a arm adura do século XIV. Coincidentem ente, a im agem da arm adura é perfeita para ilustrar a estrutura defensiva do eu tal com o Freud a concebe. Ela é tam -bém m uito sugestiva pelo fato de que as arm aduras dos velhos castelos foram sem pre associadas aos fantasm as dos m ortos que se utilizam das arm aduras para se tornarem visíveis. Com o se, inversam ente, Breton tom asse de em présti-m o a arprésti-m adura para se tornar invisível.

A arm adura tem a função am bígua de m ascarar o eu, desm ascarando, pois ela é um a m áscara sem qualidades, ela não seduz: esconde a im agem sem produzir um a outra. Ela esconde os signos distintivos da face num a espécie de elim ina-ção da aparência hum ana. Sua funina-ção é, por fim , ser o suporte de um a voz.

O “ Colóquio das arm aduras” , à m aneira de um a fábula, abre a cena para a voz do pensam ento. A realidade sensível das coisas não garante nada e apenas o pensam ento “ ( ...) tem sua m aneira própria de andar” . No desenvolvim ento

do texto há a busca de um cogito que ser ia próprio ao surrealism o. Blanchot

sublinha este m ovim ento de afirm ação do pensam ento enquanto fundam ento

do sujeito, lem brando as palavras de Breton no segundo Manifesto: “ Por

defini-ção, o pensam ento é forte e incapaz de se deixar enganar” . Ora, o pensam en-to, ele m esm o, encontra seu fundam ento na linguagem . É o que dizia Aragon:

“ ( ...) não há pensam ento fora das palavras” ( ARAGON, 1924) . A linguagem

torna-se, em últim a análise, o princípio do cogito surrealista. Se o sujeito não

pode ser fiel ao seu pensam ento e se existe um intervalo entre o eu e o eu falante, é porque o m undo externo intervém no pensam ento para distraí-lo ou para desviá-lo, m as isto “ não põe em causa nem o fato nem a natureza da

linguagem ” ( BLANCHOT, 1980, p. 92) . Um a vez operada a separação entre o

eu ( sem pre disfarçado, preso nas distrações do m undo) e o pensam ento ( ca-paz de denunciar estes disfarces) , a questão que ganha a cena é aquela do sujeito do discurso: “ Que m e im porta o que se diz de m im se eu não sei quem fala, a quem eu falo e no interesse de quem nós falam os?” . ( BRETON, 1924b/ 1992, p. 270) .

Este “ quem fala?” é o centro da busca deste texto, ele encarna a função

subversiva do cogito surrealista. Quem fala para além do eu circunstancial? Ele

afirm a a existência do pensam ento, m as não assegura o lugar da res cogitans.

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Ao m ovim ento de contestação da realidade através do apagam ento progres-sivo do eu e dos objetos, corresponde um outro m ovim ento contrário em que a linguagem torna-se m ais e m ais real. A transform ação da realidade passa forço-sam ente por um a m udança de discurso.

“O que m e im pede de em baralhar a ordem das palavras, de atentar desta m aneira à existên cia aparen te das coisas? A lin gu agem pode e deve ser arran cada de su a escravidão. Não m ais descrições da natureza, não m ais estudos dos costum es. Silên-cio, afim que onde ninguém jam ais passou, eu passe, silêncio! Depois de você, m inha bela linguagem .” ( BRETON, 1924b/ 1992, p. 276)

“Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade” é um texto que, de form a poética, apresenta a essência do pensam ento surrealista: a linguagem é a fonte. Desta essência podem os deduzir certas conseqüências que concernem à realidade e ao eu. De início, pode-se afirm ar que a realidade é construída na enunciação. A elevação da linguagem à dignidade de ser é paralela à distinção entre o eu do teatro do m undo e o eu da enunciação que só pode passar pelo cam inho aberto pela linguagem . Esta distinção nos parece m uito próxim a da

que faz Lacan entre o eu (moi) im aginário e o eu (je) sim bólico. Este prim eiro

eu se confronta à sua condição de ser falante. Radu Turcanu observa que o pouco de realidade é um a m aneira particular de Breton denunciar a inadequação

do sujeito ao m undo sob a form a de um a “falta-a-ser” (manque- à- être de Lacan) .

Contrariam ente, o que foi subtraído ao sujeito se encontra na linguagem sob a form a de “m ais de realidade”. ( TURCANU, 1996)

No en tan to, o su rrealism o crê n u m a n ova relação do ser falan te à lin -gu agem o n d e a u n id ad e se realiza, p ela revelação d a realid ad e su p er io r, aqu ela qu e está de acordo com o desejo in con scien te. Esta proposição se afasta rad icalm en te da perspectiva do Lacan dos an os 1 9 5 0 , para qu em a relação do sujeito com a linguagem é de alienação tanto quanto a relação do eu com sua im agem . É com o se Breton tivesse an tecipado, em 1 9 2 4 , a

sepa-ração en tre o je e o m oi proposta por Lacan , m as n ão tirasse daí as m esm as

con seqü ên cias qu e ele.

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Lacan se debateu com a noção de inconsciente freudiano até conseguir incorporá-lo à lingüística estrutural nos anos 1950. O Lacan dos anos 1930 e 40 tem um a teoria do eu e de sua relação com a realidade m ediada pela im ago e os com plexos, m as não tem um a teoria do inconsciente. Sabem os que Lacan, ao definir o cam po da linguagem com o o cam po sim bólico, do código, afasta dela toda a dim ensão de gozo que estaria para ele ( desde as elaborações do estágio do espelho) ligada à ordem im aginária.

Ora, para o surrealism o, o abandono do eu à força autom ática da lingua-gem é fonte de gozo. Digam os então que o surrealism o enquanto prática de linguagem só é devidam ente apreciado pela psicanálise a partir das elaborações dos anos 1970, quando Lacan vai propor que a linguagem é um aparelho de

gozo ( LACAN, 1985) . Lacan precisará passar por um a reelaboração do sim

bóli-co, apontando nele um a incom pletude. Só então, a linguagem poderá se “liber-tar” dessa dim ensão reguladora do código e recuperar algo que Freud aponta no livro sobre os chistes: que a linguagem serve para gozar.

O m odo surrealista de tratar as palavras exposto no texto “Les m ots sans rides

antecipa as elaborações lacanianas dos anos 1970. As palavras do poeta não têm com prom isso com a etim ologia ou com o sentido do dicionário. As palavras sem rugas, fora do código, são fonte de gozo; com o a experiência que a criança tem da língua, antes que a dim ensão do código venha se im por à língua m aterna.

Recebido em 21/ 8/ 2002. Aprovado em 4/ 10/ 2002.

REFERÊNCIAS

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(19)

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Lúcia Grossi dos Santos Rua Venezuela 586. Bairro Sion 30315-250 Belo Horizonte MG

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