GIOVANA CARMO TEMPLE
A CRÍTICA NIETZSCHEANA À DEMOCRACIA MODERNA
GIOVANA CARMO TEMPLE
A CRÍTICA NIETZSCHEANA À DEMOCRACIA MODERNA
Trabalho apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Mestre, junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP, Campus de Marília.
ORIENTADOR: Dr. José Carlos Bruni.
Giovana Carmo Temple
A CRÍTICA NIETZSCHEANA À DEMOCRACIA MODERNA
DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM FILOSOFIA
BANCA EXAMINADORA
Presidente e Orientador Dr. José Carlos Bruni: __________________________
2º Examinador Dr. Oswaldo Giacóia Júnior: ____________________________
3º Examinador Dr. Ricardo Monteagudo: _____________________________
À minha querida e amada mãe. Sinto muito a sua força e coragem comigo. Saudades...
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Bruni, a melhor coisa a dizer é que sentirei saudades de você. Foi muito bom ter sido sua “orientanda”, as nossas conversas e as suas aulas foram essenciais para a conclusão deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Júnior, meu respeito e admiração. Agradeço pelas primeiras orientações, há alguns anos atrás e, em particular, pelas valiosas contribuições no meu exame de qualificação. Também não posso esquecer dos livros e textos que o sr., sempre tão gentil, me emprestou. Agradeço muito!
Ao Prof. Dr. Ricardo Monteagudo, pelas importantes sugestões e considerações na qualificação, bem como pelo empréstimo de textos e livros.
Ao Prof. Dr. José Geraldo Poker e ao Prof. Dr. Eduardo Figueiredo, que desde o meu primeiro ano de faculdade me incentivaram à pesquisa. O incentivo de vocês foi essencial para a minha formação acadêmica.
Ao Prof. Dr. Márcio Benchimol, pelas orientações e empréstimos de textos e livros, imprescindíveis à conclusão deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Sinésio Ferraz, pelo apoio em importantes momentos que acompanharam o desenvolvimento da minha pesquisa.
Ao Prof. Dr. Trajano, pela amizade e pelo apoio.
À Profa. Dra. Cândida, que me incentivou a fazer o mestrado em filosofia nesta instituição.
Ao “Seu” Benedito, funcionário da UNESP, sempre tão simpático. Às secretárias da Pós-Graduação em Filosofia pela ajuda e paciência. À Edna, secretária do Departamento de Filosofia, que desde a época da graduação sempre me ajudou. À Ilma, funcionária da biblioteca, essencial em tantos empréstimos de livros.
À Capes, pelo incentivo à pesquisa, que exigiu de mim não apenas esforço acadêmico, mas paciência e perseverança.
Ao Jair, que me acompanhou por muitos anos.
mais de dez anos. Aos meus grandes companheiros da UNESP e com os quais eu dividi ótimos momentos de amizade: Adriana, Orion, Thaís, Cristina e Irene. Vocês todos estão no meu coração.
À Santina, por ter ficado em nossa família e por fazer muita companhia.
Agradeço muito ao Malcom, com quem eu dividi com grande intensidade as mais importantes discussões que fazem parte deste trabalho, bem como os momentos mais felizes e tristes desde meu ingresso no Programa de Pós-Graduação da UNESP. Amo você.
Não quero ser misturado e confundido com esses pregadores da igualdade. Porque, a mim, assim fala a justiça: “Os homens não são iguais”. E, tampouco, o devem tornar-se! Que seria meu amor pelo além do homem, se falasse de outro modo? Através de mil pontes e alpondras, terão de abrir caminho para o futuro, e cada vez mais guerras e desigualdades deverão ser postas entre eles: assim manda que eu fale o meu grande amor!
RESUMO
TEMPLE, Giovana Carmo. A crítica nietzscheana à democracia moderna. 2007, 142 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP, Campus de Marília, 2007.
O objetivo do presente trabalho consiste em analisar particularmente a crítica da
modernidade política, da democracia e da sociedade civil burguesa que defende o progresso
da humanidade a partir da igualdade entre os homens, a alguns dos grandes temas da
filosofia política de Nietzsche, a saber, vontade de poder, o “último homem”, o “além do
homem”, o pathos da distância e a transvaloração dos valores.
ABSTRACT
The objective of the present work consists of particulary analyzing the criticism of the
political modernity, of the democracy and of the bourgeois civil society that defends the
humanity's progress based on the equality among the men, to some of the great themes of
the political philosophy of Nietzsche, to know, the will to power, the last man, the
overman, the pathos of the distance and the revaluation of all values.
SUMÁRIO
NOTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 10
INTRODUÇÃO 11
CAPÍTULO 1- ESTADO, MEMÓRIA, PROMESSA, RESPONSABILIDADE: ÔNUS DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO. 1.1- A FORMAÇÃO DO ESTADO 25
1.2- (IR)RESPONSABILIDADE DOS “INCONSCIENTES ARTISTAS” 39
1.3- A CONSCIÊNCIA MORAL 53
CAPÍTULO 2- O PODER E AS DESIGUALDADES SOCIAIS: CONSTRUÇÃO E DISSOLUÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO MODERNO 2.1- O ESTADO GREGO 62
2.2- HOBBES E NIETZSCHE: ALGUMAS (DES) SEMELHANÇAS 71
2.3- AUTOCONSERVAÇÃO e AUTO-SUPERAÇÃO 88
CAPÍTULO 3- CRISTIANISMO E DEMOCRACIA: A DECADÊNCIA DA MODERNIDADE POLÍTICA E A SUA SUPERAÇÃO 3.1- O “ÚLTIMO HOMEM” 96
3.2- O MOVIMENTO DEMOCRÁTICO: HERANÇA DO MOVIMENTO CRISTÃO 105
3.3- A “GRANDE POLÍTICA” 110
CONSIDERAÇÕES FINAIS 127
NOTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Nas citações dos textos de Nietzsche presentes em nosso trabalho, optamos por
remeter nosso leitor aos textos originais do filósofo, conforme a edição das obras completas
de Nietzsche: COLLI, G.; MONTINARI, M (Org.). Sämtliche Werke: Kritische
Studienausgabe (KSA). Berlim; New York: Walter de Gruyter, 1988. 15 v. Contudo,
observamos que as traduções não são de nossa autoria, por isso após as citações do texto no
original reportamos o leitor ao número da página conforme a tradução utilizada. No que se
refere aos fragmentos póstumos, sobretudo no que diz respeito à “grande política”, as
traduções utilizadas são de Oswaldo Giacóia Júnior. As demais obras são, em sua maioria,
traduzidas por Paulo César de Souza, salvo cinco textos: Cinco prefácios para cinco livros
não escritos, tradução de Pedro Süssekind; Crepúsculos dos ídolos, tradução de Artur
Morão; O Viandante e sua Sombra, tradução de Heraldo Barbuy; Assim falou Zatustra,
tradução de Mário da Silva; O Anticristo, tradução de Pietro Nassetti. Todas as obras
INTRODUÇÃO
Buscamos desenvolver neste trabalho algumas considerações e reflexões
acerca do pensamento político de Nietzsche. Sabemos que Nietzsche é o filósofo da cultura
por excelência, mas como bem define Ansell-Pearson (1997, p. 18), “Nietzsche é um
pensador preocupado com o destino da política no mundo moderno”, como podemos
perceber em “suas abrangentes preocupações – desde as primeiras reflexões sobre o agon
grego até a tentativa de escrever uma genealogia da moral e o diagnóstico do niilismo para
caracterizar o mal-estar e as doenças morais dos seres humanos modernos – para se
compreender que Nietzsche é primeira e primordialmente um pensador ‘político’”.
Não nos parece, assim, que a política seja um tema secundário nos escritos
filosóficos de Nietzsche. Mas, deve-se observar que as suas reflexões político-filosóficas
estão presentes, sobretudo, na crítica aos valores morais da modernidade. Se no jovem
Nietzsche destaca-se, principalmente, a crítica à cultura; a partir de Humano, Demasiado
Humano, a reflexão dos valores morais adquire maior preponderância e a crítica da moral
passa a constituir a temática principal da filosofia de Nietzsche. No conjunto das obras do
crítica à moral adquire maior completude em duas principais obras, a saber, Para além de
bem e mal e Para a Genealogia da Moral.
Em uma reflexão de sua própria trajetória, Nietzsche afirma que seus
pensamentos sobre a origem de nossos preconceitos morais tiveram “sua expressão
primeira, modesta e provisória na coletânea de aforismos que leva o título de Humano,
demasiado Humano. Um livro para espíritos livres”1. Em um aforismo seguinte, Nietzsche
completa: “Foi então que pela primeira vez apresentei as hipóteses sobre as origens a que
são dedicadas estas três dissertações, de maneira canhestra, como seria o último a negar,
ainda sem liberdade, sem linguagem própria, e com recaídas e hesitações diversas”2. Se em
Humano, demasiado humano, Nietzsche identifica recaídas e hesitações no que se refere à
sua crítica aos valores morais; em Para a genealogia da Moral Nietzsche formula com total
liberdade e linguagem própria suas análises filosóficas a respeito da origem dos valores
morais.
Nestes dois textos em questão o discurso nietzscheano alcança coerência a
partir de um programa filosófico denominado por Nietzsche de perspectivismo3. Esse projeto nietzscheano consiste na desconstrução de toda tese filosófica que pretende ser algo
além de uma perspectiva. Ao que nos parece,o grande desafio a que se propõe este filósofo
com o perspectivismo consiste em evitar os efeitos narcóticos da moral absoluta e, assim,
desenvolver um projeto filosófico alternativo à decadência e o rebaixamento do homem em
escala globalizada da modernidade. Voltaremos a este assunto posteriormente.
1 NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a genealogia da moral], prólogo, 2. In: KSA, vol. 5, p. 248.
Tr. p. 8.
2 Ibid, prólogo, 4. In: KSA, vol. 5, p. 251. Tr. p. 10.
Na realização deste objetivo que pretende ser intrinsecamente do âmbito
moral, é que poderemos transitar pelo terreno da política em Nietzsche, uma vez que o
questionamento acerca da origem dos valores morais implica em tomar por acidental tudo o
que é concebido como certo, verdadeiro, como por exemplo, a tese contratualista
(rousseauniana) de que a formação do Estado principiou por um contrato social e tem como
propósito o “bem comum” e o “melhoramento” do homem. Dito de outra forma, ao refletir
o valor dos valores morais, tal como a genealogia nietzscheana pretende, é possível
questionar a veracidade do pensamento contemporâneo de que o Estado pós-revolução
industrial caminha para o “progresso” da humanidade.
Para tanto, Nietzsche separa-se da corrente filosófica tradicional (dogmática)
que intentou fazer “ciência da moral” e passou apenas a justificar a moral dominante,
atribuindo a ela um valor de racionalidade em si mesma: “Tão logo se ocuparam da moral
como ciência, os filósofos todos exigiram de si, com uma seriedade tensa, de fazer rir, algo
muito mais elevado, mais pretensioso, mais solene: eles desejaram a fundamentação da
moral”4. Para Nietzsche, estes filósofos “eram mal informados e pouco curiosos a respeito
de povos, tempos e eras, não chegavam a ter em vista os verdadeiros problemas da moral –
os quais emergem somente na comparação de muitas morais”5.
Percebe-se assim, que uma análise que pretenda ser efetivamente científica
frente à moral implica em uma pesquisa histórica e genealógica, com vistas a um exame, a
uma desconfiança, a dúvidas que suscite o conflito e a ambigüidade, ou seja, recuar a
qualquer estratégia de justificação. Isto porque, esta metodologia adotada pelos filósofos
dogmáticos6, que pretende ser “científica”, parece desconsiderar as questões acerca da
origem dos valores morais, pois se limita à cristalização da moral dominante, tornando
inviável qualquer manifestação contrária a essa moral. Por outro lado, o questionamento
dos fatos morais, tal como realiza Nietzsche, possibilita uma nova perspectiva que consiste
na leitura da história dos fatos passados e o surgimento dos valores morais, com a
peculiaridade de revelar as modificações significativas destes conforme a sua época
histórica. Nas palavras de Nietzsche: “reunião de material, formulação e ordenamento
conceitual de um imenso domínio de delicadas diferenças e sentimentos de valor que
vivem, crescem, procriam e morrem”7.
Essa história natural da moral inicia o capítulo quinto de Para além de bem e
mal e será aprimorada de forma exemplar na primeira Dissertação de Para a genealogia da
Moral. Trata-se aqui da conhecida distinção entre moral de senhores e a moral de escravos,
e suas múltiplas tipologias no contexto social. Nesta análise a questão central para
Nietzsche será desmistificar a moral platônico-cristã como a “moral em si”, o que implica
em solapar a verdade intuída por esta moral em seus mais diversos campos de atuação,
tanto na esfera da moral, da política, da economia, quanto da teoria do conhecimento, da
arte e da filosofia.
Este procedimento genealógico nietzscheano implica, como afirmamos, um
distanciamento frente à moral dominante, necessário para a relativização histórica dessa
moral. Ao questionar o valor dos valores morais, Nietzsche subverte a pretensão dogmática
6 Como explica Carlos Alberto Ribeiro de Moura (2005, p. 33), no prefácio de Para além de Bem e mal,
Nietzsche censura Platão por ser o responsável pela introdução do ‘dogmatismo’ na filosofia: “O seu pior erro teria sido um erro tipicamente dogmático: a invenção do espírito puro e do Bem em si. Para Nietzsche o filósofo dogmático é aquele que estabelece uma determinada relação com a verdade. O ‘dogmatismo’ é a pretensão à universalidade da verdade, e o seu oposto imediato será o ‘filósofo do futuro’”. E, como explica Giacóia (2002, p. 10) Para além de bem e mal é um “experimento rigorosamente antiplatônico”.
de que a moral dominante contém um núcleo de racionalidade e, portanto, de veracidade
absoluta, pretensão que faz com que ela afirme de maneira obstinada e inexorável: “eu sou
a moral mesma, e nada além é moral!”8. A luta da moral dominante (moral escrava) é
preservar a sua soberania; a luta de Nietzsche é mostrar que a moral de hoje, a moral de
animal de rebanho, nada mais é “do que uma espécie de moral humana, ao lado da qual,
antes da qual, depois da qual muitas outras morais, sobretudo mais elevadas, são ou
deveriam ser possíveis”9.
Ora, se Nietzsche pretende atacar a inflexibilidade da moral dominante, por
sua vez, ele passa a relativizar10 os valores morais. A hipótese histórico-genealógica
descrita em Para a genealogia da moral dá credibilidade a esse projeto nietzscheano, qual
seja, de relativizar os valores morais ao comprovar historicamente que a moral escrava é
apenas uma forma de moral humana, ao lado da qual há uma variedade existente. A moral
passa a representar assim, a partir da pesquisa genealógica de Nietzsche, um reinterpretar
constante, conforme a vontade de poder11 que por um dado momento na história consegue
se sobrepor às demais vontades de poder, imprimindo a sua forma.
Como afirmamos anteriormente, a filosofia política de Nietzsche
desenvolve-se no interior da pesquisa histórico-genealógica acerca dos valores morais. Desta forma, a
reconstrução de alguns argumentos centrais na filosofia nietzscheana a respeito da origem
dos valores morais é imprescindível para compreendermos a crítica de Nietzsche às
políticas modernas, em especial à democracia. Assim, o primeiro capítulo dessa dissertação
(seção 1.1 e 1.2) consiste no desenvolvimento da hipótese genealógica nietzscheana acerca
8 Ibid, 202. In: KSA, vol. 5, p. 124. Tr. P. 101. 9 Ibid, 202. In: KSA, vol. 5, p. 124. Tr. p. 101.
10 Esta análise inspira-se no texto Moralidade e memória: dramas do destino da alma, de Oswaldo Giacóia
Júnior.
11 A opção pela tradução do termo Der Wille zur Macht por vontadedepoder encontra a sua justificação no
do processo civilizatório, o que implica na retomada de questões fundamentais presentes no
texto Para a Genealogia da Moral, a saber, o surgimento do Estado, das formações
psíquicas como a memória, a promessa, a má consciência, multiplicando a gênese dos
valores morais conforme as contingências históricas. De modo que, ao questionarmos os
valores da democracia moderna, como igualdade entre os homens, felicidade como
sinônimo de paz, tranqüilidade, conforto, estabilidade social e econômica, estaremos,
primeiramente, tratando da identidade essencial desses valores, a saber, a moral cristã.
Nesta reconstituição da gênese da consciência moral buscamos tratar dos
temas mais próximos à nossa pesquisa, partindo do surgimento do Estado ao desenrolar do
processo civilizatório, sem esgotar este tema. Este percurso ganha sustentação na medida
em que desempenha dupla função: por um lado, reconstrói a partir da pesquisa genealógica
nietzscheana o surgimento dos valores morais com o início do processo civilizatório e, por
outro lado, apresenta de que maneira estes valores se refletem na política moderna, em
especial, na democracia. Ora, se “o movimento democrático constitui a herança do
movimento cristão”, como Nietzsche afirma no aforismo 202 de Para além de bem e mal, é
necessário que tenhamos conhecimento dos pressupostos teóricos e metodológicos de
Nietzsche, para compreender com maior clareza as suas proposições acerca da política
moderna.
Especificamente na seção 1.2, tratamos do ônus do processo civilizatório. O
surgimento do Estado implicou em uma nova configuração do homem animal. Se no estado
de natureza o homem tinha uma liberdade irrestrita, com a formação da sociedade há uma
coerção e uma coação sobre o caos pulsional do homem animal. O Estado atua como uma
“camisa-de-força” sobre os instintos, a fim do domar o homem e torná-lo mais interessante.
faculdade psíquica da memória outorga-lhe poderes como a possibilidade de fazer
promessas e comprometer-se com o outro; por outro lado, o homem passa a criar valores
morais que determinam suas ações entre o bem e o mal, não podendo mais dar livre vazão
aos seus instintos, estes passam a se dirigir contra o próprio homem: estamos falando aqui
(resumidamente) da origem da má consciência.
Para ilustrar esta transfiguração pela qual passou o homem animal, e
contradizer a tese contratualista no que se refere ao surgimento do Estado por um pacto
(racional) entre os contratantes, buscamos desenvolver a partir do texto Para a Genealogia
da Moral as reflexões de Nietzsche no que se refere à atuação dos “inconscientes artistas”,
os conquistadores e senhores, que com sua terrível tirania, imprimiram sua forma até que “a
matéria-prima humana e semi-animal ficou não só amassada e maleável, mas também
dotada de uma forma”12. Deste modo, fazem parte deste primeiro capítulo algumas
considerações (primárias) acerca do instinto, da responsabilidade e da “má consciência”, na
filosofia nietzscheana13.
Em seguida (capítulo 2), partindo do amadurecimento de nossas reflexões,
passamos à reflexão de um dos temas mais relevantes na filosofia de Nietzsche, e que
perpassa em grande medida suas obras, a saber, o poder, ou melhor, as relações de poder.
Nietzsche evidencia com a sua pesquisa histórico-genealógica que a formação social e
moral só foi possível porque há nas relações não apenas sociais, mas vitais, um constante
embate entre vontades de poder. Esta análise reforça os argumentos presentes no primeiro
12 NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324s.
Tr. p. 74. 13
capítulo, a saber: que a origem do Estado, para Nietzsche, não sobreveio nos termos de uma
vontade geral (tal como pensou Rousseau), tampouco com a vontade divina: “a inserção de
uma população sem normas e sem freios em uma forma estável”14 só foi possível pela
violência exercida por uma “raça de conquistadores”. Ainda, de acordo com as proposições
desta perspectiva histórico-genealógica, o Estado não surgiu para promover a paz, ele
representa uma “fatalidade inevitável”15, o início do processo civilizatório rompeu com o
estado natural, com a selvageria, e um enorme quantum de liberdade não foi suprimido,
mas tornado latente à força.
Mais além, esta análise nos possibilitou aproximar, na medida do possível, os
escritos de Hobbes e de Nietzsche. As interpretações de Nietzsche no que se refere à
condição natural do homem, presente no texto O Estado grego, tem dupla relevância em
nossa pesquisa. Primeiramente, apresenta um Nietzsche muito próximo de Hobbes, ao
afirmar que a condição natural do homem tende para uma guerra de todos contra todos, o
que torna similar nestes dois pensadores algumas reflexões no que se refere ao poder, como
é possível perceber na seção 2.2. Contudo, na seção 2.3 podemos observar uma distinção de
grande relevância ente Hobbes e Nietzsche: enquanto o autor de O Leviatã preocupa-se,
sobretudo, com a conservação da espécie e, por isso, a manutenção da paz no ordenamento
civil; Nietzsche, em oposição, pretende a auto-superação, procedimento compatível com a
sua filosofia pautada na vontade de poder.
14 NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324s.
Tr. p. 74.
Em segundo lugar, podemos perceber da leitura de O Estado grego de que
maneira o jovem Nietzsche já se expressava como a má consciência do seu tempo16. Isto
porque, podemos identificar neste texto algumas estratégias argumentativas nietzscheanas
em relação à sua posição assumida no embate com a modernidade que devem ser
compreendidas como um contra-discurso aos valores modernos, e estão presentes também
tanto em Para Além de Bem e Mal quanto em Para a Genealogia da Moral. Nestes termos,
ao que nos parece, o diálogo de Nietzsche com a modernidade tem a pretensão de ensaiar
um projeto filosófico alternativo à visão dogmática da modernidade17, definido como a
“Grande política” e, por isso, não compete a Nietzsche assumir a posição conservadora
atribuída aos filósofos dogmáticos de justificar a moral dominante, mas o oposto,
questioná-la.
Este argumento pretende desarticular da leitura do texto O Estado Grego uma
perspectiva moralista que impõe a Nietzsche uma característica reacionária que não nos
parece apropriada. Isso significa que a nossa análise não se prendeu a possíveis
interpretações das proposições de Nietzsche que pretendem relacioná-lo a uma estridente
defesa de uma classe escrava como condição inexorável para uma cultura superior18. A
importância do texto O Estado grego está, acima de tudo, na contraposição apresentada por
Nietzsche entre os gregos e a modernidade. É preciso superar o tom estridente de Nietzsche
para compreender que este filósofo não pretende formular uma (nova) verdade, ele está
16 Esta identificação do filósofo como a má consciência do seu tempo está presente no aforismo 212 de Para
além de bem e mal. Apresentamos aqui o aforismo para esclarecer a nossa afirmação: “Cada vez mais quer me parecer que o filósofo, sendo pornecessidade um homem do amanhã e do depois de amanhã, sempre se achou e teve de se achar em contradição com o seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje. Até agora todos esses extraordinários promovedores do homem, a que se denomina filósofos, e que raramente viram a si mesmos como amigos da sabedoria, antes como desagradáveis tolos e perigosos pontos de interrogação – encontraram sua tarefa, sua dura, indesejada, inescapável tarefa, mas afinal também a grandeza de sua tarefa, em ser a má consciência do seu tempo”. In: KSA, vol. 5, p. 145. Tr. p. 118.
17 Como há pouco mencionamos, p. 8.
distante de qualquer pretensão dogmática. Pretendemos sugerir que o caráter polêmico das
obras de Nietzsche, presente nas obras citadas acima, bem como nos fragmentos póstumos
da “Grande política”, analisados no terceiro capítulo, é construído, em grande medida,
como um contra-discurso, tanto em relação à tradição metafísica quanto à modernidade.
Tendo isso em vista, ilustrativo é o prefácio de Para além de bem e mal, no
qual Nietzsche inicia sem reservas sua guerra contra o dogmatismo filosófico. Ao refletir o
que bastou para construir os alicerces das absolutas construções dogmáticas, Nietzsche
afirma: “alguma superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma,
que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos), talvez algum jogo de
palavras, alguma sedução por parte da gramática, ou temerária generalização de fatos muito
estreitos, muito pessoais, demasiado humanos”. Neste trecho citado percebemos a ironia de
Nietzsche com os dogmáticos, sobretudo com Descartes, com a intenção de atingir de
maneira radical a pretensão metafísica.
Também a crítica à modernidade na filosofia nietzscheana apresenta-se de
forma estridente e exige do seu leitor um conhecimento do “espírito” da filosofia de
Nietzsche. O sentido desta afirmação, em nosso trabalho, traduz-se pela maneira com que
buscamos refletir alguns pensamentos “controversos” de Nietzsche, como por exemplo, o
aforismo 257 de Para Além de Bem e Mal19. Foi nossa intenção considerar, acima de tudo, a crítica à moral realizada por Nietzsche. Nestes termos, ao se perguntar pelo valor da
nossa civilização, Nietzsche distancia-se da argumentação que pretende justificar a moral, e
essa nova perspectiva crítica frente à modernidade faz com que os seus escritos adquiram,
19 Este aforismo é citado e analisado no capítulo 3, seção 3.3. Em poucas palavras, neste aforismo Nietzsche
além de um tom severo, contornos de um contra-discurso. Foi assim que buscamos
interpretar o tom provocativo de Nietzsche tanto na construção histórico-genealógica dos
valores morais quanto no seu projeto filosófico-cultural intitulado “a grande política”.
Assim, se a ironia e o sarcasmo são características singulares nos escritos
nietzscheanos, não é por puro capricho, mas sim com vistas a uma transvaloração dos
valores morais. Deste tema ocupa-se o terceiro e último capítulo deste trabalho, no qual
buscamos desenvolver as duas oposições que merecem destaque em nossa pesquisa: o
“último homem” e o “além-do-homem”.
Se o resultado da participação dos valores da moral escrava na modernidade,
representado na filosofia nietzscheana pela figura do “último homem”, é o movimento
democrático que, para o filósofo, constitui a herança do movimento cristão20; em oposição,
Nietzsche apresenta o seu projeto alternativo aos ideais decadentes da democracia,
intitulado a “Grande política”: uma política voltada para a superação do homem,
direcionada para a criação e promoção da cultura. Assim, como contra-ideal ao
igualitarismo massificador que propõe a democracia moderna, Nietzsche pensa em uma
política voltada à hierarquia dos talentos.
Nestes termos, a “grande política” consiste não no poderio político ou bélico,
mas sim em uma ética aristocrática que pretende, sob o domínio do pathos da distância, ser
“uma raça com esfera vital própria, com um excedente de força para beleza, coragem,
cultura, maneiras, até no que há de mais espiritual; uma raça afirmadora, a quem é
permitido gozar todo grande luxo...”21. A tarefa de transformar a política da modernidade e
20 Conferir no capítulo 3, seção 3.2, a análise do aforismo 202 de Para Além de Bem e Mal.
dar efetividade à “grande política” será responsabilidade do indivíduo soberano,
representado na pessoa do filósofo-legislador.
Compreendido de que maneira o projeto nietzscheano apresentado como
alternativa à decadência e ao rebaixamento das políticas modernas, especificamente a
democracia, implica em solapar o império dos valores morais (cristãos), o objetivo não é
outro senão o de criar condições para o surgimento de uma nova aristocracia do espírito,
capaz de manter “aquela exigência de sempre novos alargamentos de distância no interior
da própria alma, a configuração de estados sempre mais elevados, mais raros, mais
remotos,[...], em resumo, a ‘auto superação do homem’, para tomar uma fórmula moral em
um sentido extra moral”22.
As oposições presentes na filosofia nietzscheana, como por exemplo, na
moral aristocrática a virtude da distância (o pathos da distância), o egoísmo, o orgulho de
si, a busca pelo isolamento, contrapõem-se à “virtude” do nivelamento, do igualitarismo, o
desprezo por si e a busca pelo amor ao próximo, da compaixão, como aparecem nas mais
variadas manifestações da moral de rebanho; são caracterizações para os tipos
nietzscheanos, e tem seu fundamento a partir de uma perspectiva da história natural da
moral. Assim, se a modernidade (leia-se aqui os filósofos dogmáticos) mostra-se incapaz de
compreender o vir a ser da história natural da moral, e prefere determinar-se pela tradição
cristã que consiste na conservação da moral platônico-cristã como a única moral, é, acima
de tudo, pela falta de sentido histórico.
Assim, reiteramos que nesta perspectiva crítica frente aos valores da
modernidade, Nietzsche investiga os chamados “valores supremos” para o pensamento do
homem ocidental - como bem e mal, verdade e mentira, realidade e ilusão, dever e
obrigação, culpa e pecado (são estes alguns exemplos) – com o objetivo de mostrar que
estes conceitos não possuem um significado permanente. Por isso, não nos parece possível
encontrar em Nietzsche uma unidade pacificadora. Mas, ao posicionar-se como contra-ideal
da modernidade, este filósofo cria as condições para que o “homem do desconhecimento”,
o homem da modernidade que pretensiosamente acredita que, por exemplo, “a moral do
povo discrimina entre a força e as expressões de força, como se por trás do forte houvesse
um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força”23; a possibilidade do
autoconhecimento. E, ao que nos parece, o autoconhecimento inicia-se com a compreensão
de que todos os valores morais supremos são perspectivas que se transformam, modificam,
desdobram, e muitas vezes perecem ao longo do tempo.
Enfim24, procuramos ao longo do nosso trabalho, permanecer fiéis à
solicitação de Nietzsche presente no aforismo 282 de Humano, Demasiado Humano:
“Como falta de tempo para pensar e tranqüilidade no pensar, as pessoas não mais ponderam
as opiniões divergentes: contentam-se em odiá-las”25. Diante disso, esperamos que o nosso
leitor consiga perceber que as nossas reflexões acerca da democracia moderna não têm por
objetivo promover um simples julgamento entre bem e mal desta forma de governo,
tampouco buscamos fazer apologias a uma nova instituição política. Sabemos que
comumente a democracia é uma forma de governo incontestável, sobretudo no que diz
respeito ao preceito da igualdade entre os homens. Contudo, buscamos mostrar que o valor
23 NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a genealogia da moral], I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr.
p. 36.
24 Informamos o leitor que algumas citações dos textos de Nietzsche se repetem em diferentes seções e/ou
capítulos. Este fato justifica-se pela necessidade de explicitar por mais de uma vez o pensamento nietzscheano. Assim, apesar de cansativa a repetição (e até mesmo excessiva), esta foi a forma que encontramos para manter a integridade dos textos nietzscheanos, bem como para tornar coerente as nossas reflexões.
25 NIETZSCHE. Menschliches Allzumenschliches [Humano, demasiado humano], 282. In: KSA, vol. 2, p.
da democracia é apenas mais um artigo de “fé”, que não possui uma verdade em si, e
justamente por isso ela pode e deve ser repensada. No nosso caso, esta reflexão consiste em
uma pesquisa histórico-genealógica (nietzscheana) acerca do valor dos valores
democráticos. Uma perspectiva que pretende, antes de tudo, suscitar tensão, conflito, ou
CAPÍTULO 1
ESTADO, MEMÓRIA, PROMESSA, RESPONSABILIDADE: ÔNUS DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO.
É preciso mesmo admitir algo ainda mais grave: que, do mais alto ponto de vista biológico, os estados de direito não podem senão ser estados de exceção, enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa o poder, a cujos fins gerais se subordinam enquanto meios particulares: a saber, como meios para criar maiores unidades de poder. Uma ordem de direito concebida como geral e soberana, não como meio na luta entre complexos de poder, mas como meio contra toda luta, mais ou menos segundo o clichê comunista de Dühring, de que toda vontade deve considerar toda outra vontade como igual, seria um princípio hostil à vida, uma ordem destruidora e desagregadora do homem, um atentado ao futuro do homem, um sinal de cansaço, um caminho sinuoso para o nada.-26
1.1- A FORMAÇÃO DO ESTADO
Um trabalho filológico, filosófico e, sobretudo, psicológico, faz de Para a
Genealogia da Moral um livro revelador, pois trata-se de uma análise histórica e
psicológica da evolução do homem como homem moral. É, portanto, um trabalho
histórico-genealógico no qual Nietzsche além de mostrar a evolução histórica de diferentes tipos de
moralidade, denuncia a hegemonia dos valores morais modernos, a saber, da “moral
escrava”. Assim, a investigação acerca do valor dos valores morais faz Nietzsche constatar
que o homem moderno está “doente”, e que esta doença é proveniente dos valores da
“moral escrava”, pois são valores que, sobretudo, conduzem à “mediocrização” e ao
26 NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 11. In: KSA, vol. 5, p.
“rebaixamento” da vida. Exemplo de grande importância são os valores morais intrínsecos
à política democrática moderna que pretende igualar vontades de poder27 diametralmente opostas, reduzindo o valor da vida a valores de utilidade social, como “a felicidade da
maioria”28 e o bem estar geral. Assim, Para Genealogia da Moral, é um texto de caminhos
nebulosos, provocativo, desafiador e que, ao final, “uma nova verdade se faz visível em
meio a espessas nuvens29”. Para cada uma das três dissertações30 Nietzsche, em Ecce
Homo, apresenta “uma verdade nova”, sendo de maior relevância (neste estudo) a verdade
da segunda dissertação, na qual a crueldade é “pela primeira vez revelada como um dos
mais antigos e indeléveis substratos da cultura31”.
Entendemos a segunda dissertação de Para a Genealogia da Moral como um
procedimento genealógico que diz respeito às formações psíquicas e sociais do homem. Isto
porque, as três dissertações são pesquisas genealógicas em que Nietzsche reflete de que
maneira surgiram32 as valorações morais ao longo da história e quais as influências e
27 Uma análise pormenorizada da vontade de poder será desenvolvida na seção 1.2.
28 NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 228, In: KSA: vol.5, p. 164. Tr. p. 134. 29 NIETZSCHE, Ecce Homo, In: KSA, vol. 6, p. 352. Tr. p. 138.
30 “A verdade da primeira dissertação é a psicologia do cristianismo: o nascimento do cristianismo do espírito
do ressentimento, não, como se crê, do ‘espírito’ – um anti-movimento em sua essência, a grande revolta contra a dominação dos valores nobres. A segunda dissertação oferece a psicologia da consciência: a mesma
não é, como se crê, ‘a voz de Deus no homem’ – é o instinto de crueldade que se volta para trás, quando já não pode se descarregar para fora. A crueldade pela primeira vez revelada como um dos mais antigos e indeléveis substratos da cultura. A terceira dissertação dá resposta à questão de onde procede o tremendo poder do ideal ascético, do ideal sacerdotal, embora o mesmo seja o ideal nocivo par excellence, uma vontade de fim, um ideal de décadence. Resposta: não porque Deus atue por trás dos sacerdotes, mas sim faute de mieux [por falta de coisa melhor] – porque foi até agora o único ideal, porque não tinha concorrentes. ‘Pois o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer’...Sobretudo faltava um contra-ideal – até Zaratustra. Fui compreendido. Três decisivos trabalhos de um psicólogo, preliminares a uma transvaloração de todos os valores. – Este livro contém a primeira psicologia do sacerdote”. Nietzsche, Ecce Homo, In: KSA, vol. 6, p. 352-353. Tr. p. 138-139.
31 Nietzsche, Ecce Homo, In: KSA, vol. 6, p. 352. Tr. p. 138.
32 Importante esclarecer o significado na filosofia de Nietzsche os termos origem (Ursprung) e criação
(Erfindung). Foucault explica, no texto Verdade e as Formas Jurídicas (1996, p. 14), que “quando fala de
invenção, Nietzsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a invenção, a palavra origem. Quando diz
limites deste passado moral para o futuro do homem ocidental. Com relação à segunda
dissertação, a hipótese de Nietzsche é de que tanto a moral quanto a cultura se constituíram
a partir de atos de crueldade, sobretudo no que se refere às forças impulsivas e instintivas33
do homem que com o processo civilizatório são interiorizadas em ações de intensa
crueldade e passam a se dirigir contra o próprio homem: estamos nos referindo aqui
(resumidamente) à criação da “má consciência”.
Não obstante, apesar da crueldade exercida na domesticação do bicho homem,
foi este processo que fez dele um animal interessante. Assim, o procedimento
histórico-genealógico acerca do valor dos valores morais tem como propósito reconstruir o vir a ser
da moral. A reflexão acerca da moralidade entendida como um atributo da natureza
humana, que desconsiderava o tempo e a história, é solapada por uma nova perspectiva, de
caráter histórico e crítico: a pesquisa genealógica nietzscheana não admite a moral como
um dado inquestionável, desconstruindo teorias de caráter absoluto, tanto em um plano
epistemológico, quanto ético-político. O discurso nietzscheano permite, portanto, uma
revisão histórica dos valores morais de maneira integral, reveladora de uma multiplicidade
de valores morais, atuantes na criação de duas forças que acompanharam o
desenvolvimento do homem social: tanto da consciência moral quanto da “má
consciência”.
Situando-se, portanto, como antagonista dos ideais socrático-cristãos e dos
valores morais como unidade e inerentes à natureza humana, apresenta Nietzsche uma nova
perspectiva, a saber, dualidade e jogos de poder. Com uma escrita fulminante e muitas
vezes irônica, realiza o filósofo alemão uma nova leitura da procedência dos valores
fácil explicação, encontramos em Nietzsche dois empregos para a palavra Usprung, como explica Foucault em Nietzsche, a genealogia e a história (1996, p. 16).
morais, não por mero capricho em desacreditar outras correntes filosóficas, mas com o
objetivo de apresentar uma nova realidade possível acerca dos valores morais, qual seja, de
que a moral não se manifeste como um recurso decadente e narcótico, mas que seja um
atributo capaz de tornar possível a transvaloração dos valores, em outras palavras, reverter
a inversão platônica dos valores morais, superando, assim, a interpretação moralista
atribuída à própria vida a partir do platonismo (cristão)34.
Na pesquisa genealógica presente no texto Para a Genealogia da Moral,
Nietzsche mostra que ao longo do tempo a moral cristã consolidou uma forma de negação
da própria vida. Cumpre esclarecer, portanto, de que maneira a moral cristã nega a vida, e
para tanto, nos limitaremos a um exemplo condizente com este trabalho: a política
democrática moderna que, para Nietzsche, “constitui a herança do movimento cristão35”.
Desenvolver um estudo crítico da democracia pode muito bem suscitar
estranheza, já que a democracia é concebida (talvez não em sua totalidade, mas em seus
princípios) como uma política “amadurecida” pois tende ao exercício pleno das políticas
públicas sociais e tem como meta o bem comum36. Ao questionarmos os valores morais
intrínsecos à democracia moderna, é de grande importância que a filosofia de Nietzsche
seja entendida e interpretada como um contra-discurso, ou seja, como um discurso crítico
que não pretende instituir uma verdade incondicional, mas sim suscitar tensão, conflito e,
por isso mesmo, uma análise acerca do valor dos valores morais em questão. O objetivo
34 Como explica Giacóia no texto Platão e a transvalorização de todos os valores, In: Sonhos e Pesadelos da
Razão Esclarecida: Nietzsche e a Modernidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 31-32.
35 NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para Além de bem e mal], 202, In: KSA, vol. 5, p. 125. Tr. p.
102.
36 Maria Rita Kehl desenvolve uma pertinente análise a respeito da democracia moderna, sobretudo no que se
refere à igualdade entre os homens, como uma política pública constituída a partir do ressentimento, uma vez que: “o ressentimento social teria sua origem nos casos em que a desigualdade é sentida como injusta diante de uma ordem simbólica fundada sobre o pressuposto da igualdade”.
dos escritos de Nietzsche não é prescrever princípios, mas proporcionar a seus leitores uma
“liberdade intelectual” (se for possível assim denominar), excluindo qualquer viés
pragmático ou idealizado37. Portanto, não pretende Nietzsche construir ídolos: “A última
coisa que eu prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade. Eu não construo novos ídolos; os
velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para
‘ideais’) – isto sim é meu ofício38”.
Desta forma, não há preocupação na filosofia nietzscheana em construir uma
(nova) verdade, mas romper com a estabilidade dos valores morais, questionando,
primeiramente, a origem do valor dos valores morais. Não nos parece exagero afirmar que
o objetivo de Nietzsche consista, em especial (ou talvez primeiramente), na crítica aos
ideais e, por conseguinte, calçar “pés de barro” que nos permitam desenvolver a capacidade
de arriscar e, portanto, refletir de que maneira, por exemplo, a democracia moderna pode
ser compreendida como a conservação de alguns ideais tão antigos quanto a moral
socrático-platônico-cristã, a saber, igualdade, liberdade e fraternidade39; e que nesta
perspectiva são estes ideais formas de anestesiar, amansar e domar, são procedimentos que
não tem por fim dividir o poder, mas que almeja conquistar o controle sobre (e da) a vida,
ou melhor, das manifestações de forças. Se o “martelo” de Nietzsche tem como propósito
solapar os pilares de sustentação da democracia, este desequilíbrio é necessário para que
37 Nietzsche adverte no texto Pensamentos sobre o futuro de nossos institutos de formação: “O leitor do qual
espero alguma coisa deve ter três qualidades. Deve ser calmo e ler sem pressa. Não deve intrometer-se, nem trazer para a leitura a sua ‘formação’. Por fim, não pode esperar na conclusão, como um tipo de resultado, novos tabelamentos”. NIETZSCHE, F. In: Cinco prefácios para Cinco Livros não Escritos. Tradução e prefácio Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1996, p. 33.
38Ecce Homo, Prólogo, 2, In: KSA, vol. 6, pg. 257. Tr. p. 40.
39 Esclarece Giacóia: “O desenvolvimento do movimento democrático em direção a formas de igualitarismo
possamos compreender de que maneira, mesmo sendo aparentemente tão avessa à
violência, é esta sociedade moderna fruto da violência e permeada por ela, apesar da moral
democrática induzir ao amolecimento do homem ao proclamar pela paz, tranqüilidade,
segurança, estabilidade, felicidade, duração, equilíbrio40.
Se, afirmamos anteriormente que para Nietzsche tanto a cultura quanto a moral
são criações ao longo da história, impulsionadas por atos de crueldade, o surgimento do
Estado insere-se também neste desenrolar histórico. Contudo, anterior a este processo
histórico de criações, deve-se considerar o estado de natureza41 no qual estava o homem
inserido antes da criação da sociedade; e, a partir destas reflexões, ou melhor,
conjuntamente a essas análises, compreender com maior clareza as modificações históricas,
já que com o surgimento do Estado, bem como da moral e da cultura, há um rompimento
com a natureza.
Esta perspectiva histórica tem a prerrogativa de esclarecer, por exemplo, que a
relação que conhecemos no interior da comunidade, em termos de castigo, justiça,
responsabilidade, “culpa” e “má consciência”, são processos de moralização pelos quais
passou o homem. Isto significa que no estado de natureza não havia um contexto moral a
determinar e formar comportamentos; assim, o processo civilizatório é imprescindível para
o surgimento do homem moral, apto a prever o futuro, fazer promessas, enfim, obrigar-se
com os demais.
40 Continua Nietzsche nesta citação de Ecce Homo: “A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua
veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal... O ‘mundo verdadeiro’ e o ‘mundo aparente’ – leia-se: o mundo forjado e a realidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos – a ponto de adorar os valores inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro”. Ecce Homo, In: KSA, vol.6, pg. 257. Tr. p. 40.
41 Trataremos do tema “estado de natureza” na filosofia nietzscheana no segundo capítulo deste trabalho,
No texto Para A Genealogia da Moral Nietzsche esclarece de que maneira as
forças conseguem transmutar, associar, aumentar, diminuir, transformar e declinar. Neste
jogo de forças é estabelecida uma ambigüidade que parece recorrente ao processo
civilizatório. Neste cenário é possível perceber, por exemplo, como Nietzsche apresenta a
dualidade necessária para o surgimento da verdadeira cultura, da arte, a saber, o escravo e o
gênio42. E, se há uma relação constante de tensão entre forças há, inevitavelmente, uma
força, por menor que seja sua duração, mais forte. Há que se observar que nesta perspectiva
filosófica não há espaço para a estabilidade e equilíbrio, desejos utilitaristas de uma
democracia voltada para a igualdade de direitos. Isso nos reporta justamente ao pensamento
improcedente (para nossa análise) do homem ocidental que entende que a igualdade deve
desigualar para igualar. Portanto, o estranhamento decorrente de um estudo crítico da
democracia, e isso pretendemos desenvolver ao longo do nosso texto, não parece estar no
que Nietzsche entende como jogos de poder, mas sim na possibilidade de fazer eqüidade
entre vontades de poder diametralmente opostas.
A análise genealógica do surgimento do Estado é caracterizada, desta forma,
por jogos de poder, em contraposição tanto às teorias que professam que o Estado, como
tudo que há na terra, tem uma origem divina, quanto às teorias filosóficas que explicam a
gênese do Estado a partir de um contrato social, como entendeu Rousseau. Insistimos
novamente para a importância dos termos aqui apresentados. Como afirmamos
anteriormente, qualquer referência ao termo origem43 na filosofia nietzscheana deve ser
42 Este assunto será melhor analisado ao longo do texto, especificamente na seção 2.1.
43 Acerca desta questão, a pesquisa genealógica de Nietzsche em oposição à investigação tradicional da
atentamente observada; o termo origem (Ursprung), implica em uma constatação muitas
vezes metafísica, remonta à origem (divina) de surgimento da vida (o princípio da vida), o
que, conseqüentemente, implica em uma leitura de eternidade e imortalidade. Há que se
considerar, portanto, as forças contingentes da história, dissolvendo a unidade atribuída aos
fenômenos, afirmando, desta maneira, um sentido múltiplo, em que é possível identificar,
sobretudo, as forças heterogêneas que se deslocam a todo o momento da história, e que
constituem o próprio devir.
Assim, de acordo com a filosofia nietzscheana, não nos parece apropriado
buscar a origem para os eventos. Isto porque, a origem compreendida como unidade
(princípio do todo universal) é o extremo oposto do propósito presente na filosofia
nietzscheana, a saber, a possibilidade de crescimento, desenvolvimento, deslocamento,
transfiguração de forças que dão forma a multiplicidades e não a unidade. Também, a partir
de uma perspectiva múltipla é possível compreender e estabelecer traços de uma moral
dominante e compreendê-la a partir de suas diversas forças possíveis e, assim, relativizá-la.
Não há possibilidade, por exemplo, de determinar precisamente de que maneira o Estado
originou-se. É possível considerar uma hipótese, que Nietzsche compreende plausível, já
que é justificada a partir não da origem, mas das modificações inerentes ao devir histórico.
A partir desta perspectiva podemos compreender a história, na filosofia nietzscheana, como
criação, aumentar de forças, um desabrochar, bem como um resguardar, um diminuir,
definhar e extinguir-se, para novamente dar início a este desenvolvimento.
A respeito do surgimento e formação do Estado, reportamo-nos ao parágrafo
dezessete, da Segunda Dissertação do texto Para a Genealogia da Moral, em que
Nietzsche descreve a violência e o abuso de poder usados na gênese do Estado:
[..] que o mais antigo “Estado”, em conseqüência, apareceu como uma terrível tirania, uma maquinaria esmagadora e implacável, e assim prossegui o seu trabalho, até que tal matéria-prima humana e semi-animal ficou não só amassada e maleável, mas também adotada de uma forma. [...]. Deste modo começa a existir o “Estado” na terra: penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”. Quem pode dar ordens, quem por natureza é “senhor”, quem é violento em atos e gestos – que tem a ver com contratos! Tais seres são imprevisíveis, eles vêm como o destino, sem motivo, razão, consideração, pretexto, eles surgem como o raio, de maneira demasiado terrível, repentina, persuasiva, demasiado “outra”, para serem sequer odiados. Sua obra consiste em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles são os mais involuntários e inconscientes artistas – logo há algo novo onde eles aparecem, uma estrutura de domínio que vive, na qual as partes e as funções foram delimitadas e relacionadas entre si, na qual não encontra lugar o que não tenha antes recebido um “sentido” em relação ao todo. Eles não sabem o que é culpa, responsabilidade, consideração, esses organizadores natos; eles são regidos por aquele tremendo egoísmo de artista, que tem olhar de bronze, e já se crê eternamente justificado na “obra”, como a mãe no filho.44
São estes “organizadores e artistas da violência” que dão início a esta
“maquinaria esmagadora e implacável”45 que é a formação do Estado. A força desses
“senhores” também fez surgir “a má consciência”, “neles não nasceu a má consciência, isto
é mais do que claro – mas sem eles ela não teria nascido46”, pois foi “dos seus golpes de
martelo, da sua violência de artista” que um “quantum de liberdade” foi eliminado do
mundo. O “instinto de liberdade” foi tornado “latente à força” por esses “artistas”, “esse
instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de
desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má
44
Nietzsche. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324-325. Tr. p. 74-75.
consciência47.” Por isso afirmamos que a atuação desses “senhores” rompeu com a natureza e criou o homem social .
A compreensão histórica acerca dos instintos naturais do homem “encarcerados
no íntimo” não só explica o surgimento da “má consciência” mas também permite o
entendimento das estruturas sociais tal como conhecemos. Nietzsche explica o Estado como
uma forma de controle sobre os instintos do homem, uma força capaz de dar forma e
amansar a “matéria-prima humana e semi-animal”. Para o filósofo há uma “definição” (se
assim for possível denominar) para a “palavra Estado”:
Empreguei a palavra Estado: já se compreende a que me refiro – a uma horda qualquer de loiros animais de rapina, uma raça de conquistadores e de senhores que, organizados para a guerra e dotados de força de organizar, coloca sem escrúpulo algum suas terríveis garras sobre uma população talvez tremendamente superior em número, porém ainda informe, errante. É assim, com efeito, que se inicia na terra o Estado. Penso que desse modo fica refutado aquela fantasia que o fazia começar com um contrato48.
Para Nietzsche, portanto, o Estado se institui a partir de relações de dominação e
exploração dos mais fortes sobre os mais fracos. A despeito da violência, é esta dominação
que impulsiona o processo civilizatório, no qual necessariamente são elaboradas formas de
“ajustamento” dos instintos naturais aos novos padrões sociais, a saber, de controle,
autoridade, subserviência, servilismo. Opera-se um violento trabalho que consiste em
ajustar o instinto animal à rigidez necessária à organização social, concretizado na
consolidação das formas regulares de vida social, configuração de hábitos permanentes e,
sobretudo, o sentimento de veneração frente ao costume, indispensável para a ruptura entre
natureza e sociedade/cultura: este trabalho recebe o nome de eticidade dos costumes49.
47 Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr. p. 75. 48 Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324. Tr. p. 74-75.
49 Esclarece Giacóia que: “Por sua vez, a eticidade dos costumes está vinculada à gênese das formas
camisa-de-Se, segundo o mesmo filósofo, nada existe de maneira a priori, como marca da
providência divina, então, tudo é construção, vir a ser; a moral é a predição máxima desta
análise. A moral, ou melhor, “a criação da instância psíquica da consciência moral”50, é
uma tirania contra a natureza, contra os instintos: é ela a força que dá forma, é o cárcere
contra a natureza e para onde ficam aprisionados os instintos. Contudo, como não há na
filosofia de Nietzsche unidade, estabilidade, essa mesma força que se apresenta como
“tirania contra a natureza”, não apenas aprisiona, mas também desenvolve atividades que
parecem ser possíveis apenas pela atuação desta mesma força:
Mas o fato curioso é que tudo o que há e houve de liberdade, finura, dança, arrojo e segurança magistral sobre a terra, seja no próprio pensar, seja no governar, ou no falar e convencer, tanto nas artes como nos costumes, desenvolveu-se apenas graças à “tirania de tais leis arbitrárias”; e, com toda seriedade, não é pequena a probabilidade de que justamente isso seja “natureza” e “natural”.51
O “essencial e inestimável em toda moral52” - e por isso mesmo a sua
importância no desenvolvimento do que Nietzsche chama de “finura”, “dança”, “arrojo” –
comportamentos que ao mesmo tempo em que denotam uma certa liberdade são
indissociáveis do aprimoramento e repetição próprios de uma vida social – está no fato da
moral ser uma “demorada coerção”, “a coerção métrica, a tirania da rima e do ritmo53”, que
fez com que se obedecesse “por muito tempo e numa direção: daí surge com o tempo, e
sempre surgiu, alguma coisa pela qual vale a pena viver na terra, como virtude, arte,
força sociedade e da paz. No contexto dessa argumentação, a hipótese do contrato-social não pode dar conta da origem da sociedade: esta emerge não do acordo de vontades entre idealizados sujeitos de iguais direitos, mas da conquista, das relações de poder”.
Giacóia Júnior, Oswaldo. Para a Genealogia da Moral/ Nietzsche. Adaptação de Oswaldo Giacóia Júnior. São Paulo: Scipione, 2001- (Série Reencontro Filosofia), p. 43.
50 Termo utilizado por Oswaldo Giacóia Júnior, In: Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a
Modernidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 52.
51 Nietzsche. Jenseits von Gut und Böse [Para Além de Bem e Mal], 188. In: KSA, vol. 5, p. 108. Tr. p. 88. 52 Ibid, 188. In: KSA, vol. 5, p. 108. Tr. p. 87.
música, dança, razão, espiritualidade – alguma coisa transfiguradora, refinada, louca e
divina”54.
Cabe observar, por conseguinte, que a moral é uma disciplina sobre a força
instintiva: “tudo o que há de violento, arbitrário, duro, terrível e anti-racional nisso
revelou-se como meio através do qual o espírito europeu viu disciplinada a sua força, sua inexorável
curiosidade e sutil mobilidade55”. Portanto, a moral, bem como o surgimento do Estado,
tem sua criação na atuação de uma força que imprime sua forma sobre forças mais fracas.
A resistência que pode haver (e que faz o “combate” entre vontade de poder) não parece ser
a de uma força que visa à harmonia, mas sim uma nova força que também tem como
objetivo imprimir sua forma. Nesse processo, como em todos os eventos históricos, não há
dado natural, providência divina, tudo é vir-a-ser. Para compreender a luta entre forças
diametralmente opostas que fizeram a história da moral, é necessário apreender estes
acontecimentos, sobretudo, como uma “tirania” contra a natureza, um excesso de força
atuante na “matéria prima humana e semi-animal”, que precisou de regras e formas para
tornar possível o processo civilizatório.
O aforismo 257 de Para Além de Bem e Mal, texto antecipatório à gênese do
Estado presente em Para a Genealogia da Moral, é de grande importância ilustrativa para a
tese aqui desenvolvida, em que Nietzsche afirma que a elevação “do tipo homem” foi obra
de uma sociedade aristocrática, nas palavras do filósofo:
É certo que não devemos nos entregar a ilusões humanitárias, no tocante às origens de uma sociedade aristocrática (ou seja, do pressuposto dessa elevação do tipo “homem”): pois a verdade é dura. Digamos, sem meias palavras, de que modo começou na terra toda sociedade superior! Homens de uma natureza ainda natural, bárbaros em toda terrível acepção da palavra, homens de rapina, ainda possuidores de energias de vontade e ânsias de poder intactas, arremeteram sobre raças mais fracas, mais polidas, mais pacíficas, raças comerciantes ou pastoras,
talvez, ou sobre culturas antigas e murchas, nas quais a derradeira vitalidade ainda brilhava em reluzentes artifícios de espírito e corrupção. A casta nobre sempre foi, no início, a casta de bárbaros: sua preponderância não estava primariamente na força física, mas na psíquica – eram os homens mais inteiros (o que em qualquer nível significa também “as bestas mais inteiras”)56.
Primeiramente, esclarecemos a partir da interpretação de Giacóia57 (2005, p.
55), que a referência de Nietzsche aos “bárbaros”, “encontra explicação nos modelos de
organização primitiva gentílica, do tipo das comunidades de estirpe, ou gens”. São
organizações sociais “dos tempos pré-históricos, anteriores à instituição do Estado”, assim,
continua Giacóia, “esse argumento tem importância decisiva, porque permite desconstruir a
teoria do pacto como fundamento de inteligibilidade, historicizando formas distintas de
organização comunitária”. Portanto, Nietzsche faz um percurso histórico ao retomar
formações sociais que “são refratárias à idéia de contratos, de responsabilidade pessoal ou,
mesmo, de sujeitos singulares de direito, para atacar um entendimento do pacto social
fundante, seja em sentido empírico, seja desempenhando a função de princípio explicativo
transcendental”(GIACÓIA, 2005, p. 55).
Assim, o uso exacerbado de violência que foi empregado para a criação do
Estado, além de refutar a hipótese de um Estado erigido pela vontade dos contratantes, de
maneira pacífica (tal como pensou Rousseau), tornou possível a criação de um “tipo
homem”, resultado da força modeladora atuante sobre a forma humana semi-animal. Tal
nomeação, bem como às demais determinações dadas por Nietzsche a outras figuras, como
“bárbaro”, “nobre”, “aristocrático”, “ave de rapina”, “besta loura”, não são “invariantes
ontológicos, designando características naturais de indivíduos ou de classes sociais”
56 Ibid, 257, In: KSA, vol. 5, p. 205- 206. Tr. p. 169-170.
57 Esta explicação, bem como uma tradução do volume 14 de Kritische Studienausgabe, em que os editores
(GIACÓIA, 2005, p. 56). Esta reflexão é de suma importância, pois se tais figuras
pudessem ser compreendidas como determinações naturais colocaríamos a filosofia de
Nietzsche em contradição; não é possível um fator ontológico a determinar previamente
uma característica natural, tal fato não é compatível com uma filosofia do vir a ser, cujo
movimento caminha em direção a “auto-superação”. Por conseguinte, são estas figuras
nietzscheanas tipos presentes em seus escritos “cujas estruturas se definem, se deslocam e
se alternam a partir de posições e remanejamentos ocorridos em configurações distintas de
relações de poder”. (GIACÓIA, 2005, p. 56).
Destarte, a reconstituição da gênese do Estado, na filosofia nietzscheana, não
apenas se opõe aos estudos racionalistas e contratualistas, mas, sobretudo, aponta um novo
sentido histórico de reconstrução dos valores morais. Talvez não seja exagero afirmar como
prioridade da pesquisa genealógica o caráter revelador de uma multiplicidade de forças, na
qual se inserem perspectivas58 modeladoras da história. Para tanto, torna-se necessário um
olhar mais abrangente para as mudanças no significado da própria história, como, por
exemplo, pensar que para a civilização existir foi preciso exercer uma força “tirânica” sobre
a natureza, inclusive sobre o “animal homem”; processo pelo qual passou o homem animal,
sem memória, sem lembrança do passado e perspectiva para o futuro, até a construção do
homem que responde por si, autônomo.Esta apreciação não pretende nem ao menos ser um
possível resumo da genealogia de Nietzsche, mas apenas uma contextualização capaz de
revelar a importância na filosofia de Nietzsche da política, uma vez que, sem a figura do
animal político, capaz de obrigar-se com o outro não haveria civilização. Também, é esta
pesquisa genealógica nietzscheana que torna possível uma análise crítica do valor dos