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O papel das ONGs na construção de políticas de saúde: a Aids, a saúde da mulher e a saúde mental.

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Academic year: 2017

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O papel das ONGs na construção

de políticas de saúde: a Aids, a saúde

da mulher e a saúde mental

The role of NGOs in designing public

health policies: the Aids epidem ic,

wom en’s health and m ental health

1 Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes.

Rua da Assembléia 10 sala 810, 20011-801, Rio de Janeiro RJ. sr am os@can didom en des. edu .br

Sílvia Ram os 1

Abstract This article evaluates a series of civil society initiatives concerning the design of Brazil-ian public health policies stem m ing from the analysis of three cases in which non-governmen-tal organizations played a significant role in the three last decades: the Aids epidem ic, wom en’s health and the psychiatric reform . It studies the birth of NGOs in the context of civil society par-ticipation in the country, it identifies its distinc-tive characteristics in relation to other form s of association and it compares their specific paths in the case of Aids, women’s health and the psychi-atric m ovem ent. It points to com m on dilem m as in the field of NGOs at the end of the 1990’s and the need for studies about the participation of civ-il society organizations in the development of so-cial public policies, speso-cially in the area of public policies concerning violence.

Key wo rds Non-governm ental organization, Public health policies, Public security policies

Resumo Este artigo analisa iniciativas da socie-dade civil na elaboração de políticas de saúde no Brasil a partir do exam e de três casos em que a atuação de organizações não-governam entais teve papel relevante nas três últim as décadas: a epidemia de Aids, a saúde da mulher e a reforma psiquiátrica. Situa o surgim ento das ON Gs no contexto dos movimentos de participação civil no Brasil, identifica suas características distintivas em relação a outras formas de associação e com-para as trajetórias específicas nos casos da Aids, da saúde da mulher e do movimento psiquiátrico. O texto indica dilem as com uns ao cam po das organizações não-governam entais no final dos anos 90 e aponta a necessidade de estudos sobre a participação de organizações da sociedade civil no desenvolvimento de políticas sociais, em espe-cial das políticas contra a violência.

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Sociedade civil e ONG: o fenômeno dos anos 80 e o crescimento dos anos 90

De acordo com formulação já clássica (Cohen & Arato, 2000), a sociedade civil é um a esfera de interação social entre a econom ia e o Estado, com posta antes de tudo pela esfera íntim a (em especial a fam ília), a esfera das associações (em especial das associações voluntárias), os m ovi-m entos sociais e as forovi-m as de coovi-m unicação pú-blica. Em todo o mundo, após a Primeira

ra Mundial e mais ainda após a Segunda Guer-ra e a GuerGuer-ra Fria, in stituições da sociedade civil e movimentos sociais passaram a ter papel central nos processos de construção ou de re-con strução da dem ocracia. San tos & Avritzer (2002) inscrevem na terceira onda de democra-tização os processos de dem ocrademocra-tização n a

América Latina a partir dos anos 70 e 80, jun-tamente com experiências em países do conti-n econti-n te africaconti-n o e conti-n os países recém -saídos do fascismo no Sul da Europa. A despeito da gran-de diversidagran-de, a chave comum gran-desses proces-sos n as últim as décadas do século 20 seria o surgimento e a proliferação de iniciativas civis voltadas para a construção de democracias par-ticipativas, em oposição ao modelo das demo-cracias liberal-representativas predom inantes nas sociedades do Norte (2002).

No caso brasileiro, a despeito das objeções ao term o, o fato é que já n a prim eira m etade dos anos 80 as organizações não-governamen-tais, ou ONGs, ou “ongues”, haviam se tornado “uma realidade sociológica” (Fernandes, 1988) e se destacavam entre as experiências organiza-tivas e participaorganiza-tivas da sociedade civil. Hoje, três décadas após seu surgim ento na Am érica Latina, suas atividades cobrem os mais diversos cam pos da experiên cia social: do desenvolvi-m en to rural ao con trole cidadão de políticas públicas e convenções internacionais (Haddad, 2002).

No con texto dos m ovim en tos sociais, há características claram en te distin tivas que se relacionam ao surgimento e ao desenvolvimen-to das ONGs, delimitando um campo específi-co de específi-construção de identidades que as diferen-cia de outras formas assodiferen-ciativas, como os sin-dicatos, as associações de bairro ou os grupos de base religiosa ou política. Alguns desses as-pectos m erecem ser destacados, pois serão im por tan tes para com preen der os percursos que analisarei na área da saúde.

Seja nos primeiros textos analíticos sobre o fenôm eno do surgim ento das organizações

não-governam entais no Brasil e na Am érica Latina (Landim, 1988; Fernandes, 1988), seja na identificação dos seus dilemas no final dos anos 90 (Landim , 2002; Oliveira, 2002; Dagnino, 2002; Facchini, 2002; Alvarez, 2000; Arantes, 2000; Bebbington, 2002), a questão sobre o que define precisamente a identidade das organiza-ções não-governam entais e o que as distingue de outras formas de organização e participação social e política tem sido uma constante na lite-ratura.

Fernandes (1988) verifica que a trajetória típica das organizações não-governamentais na América Latina foi da igreja católica à seculari-zação; do trabalho assistencial à política social. Landim (1998) situa a constituição do fenôme-no das ONGs como tributário da existência, fenôme-no início dos anos 70, dos Centros de Educação Popular, Assessoria e Apoio ou Promoção Soci-al. Estes Centros já apresentavam um a forte noção de “agentes especializados” que se dedi-cavam a práticas comuns. Segundo esses auto-res, as ONGs têm como marca distintiva o fato de serem alternativas às práticas institucionais características das universidades, igrejas e parti-dos de esquerda (Fernandes, 1988) e, ao mesmo

tem po, terem nas universidades, nas igrejas e nos partidos seu triângulo referencial. De fato, as ONGs não são filantrópicas, por romperem com a noção de caridade, mas estão a serviço do movimento popular (Landim, 1988). Por outro

lado, não são acadêmicas, mas as pesquisas e as atividades de formação são seus instrumentos essenciais de intervenção. No triângulo ao qual se opõem e com o qual dialogam, as primeiras organizações a assumirem o nome “não-gover-namental”, no Brasil e na América Latina, foram formadas por uma geração de intelectuais ori-undos dos estratos médios das sociedades, que invariavelmente tinham vivido a experiência do exílio ou da luta contra a ditadura.

As ten sões advin das do fato de n ão terem fins lucrativos, sem serem filantrópicas; serem políticas, sem serem par tidárias; serem n ão-governam entais, m as, eventualm ente, m ante-rem relações de cooperação com govern os, constituem parte da dinâmica original de cons-tituição das ONGs e são, exatam ente por isto, pontos de definição de identidades e pertenci-m en tos que se reeditapertenci-m a cada con jun tura e em cada cam po específico. Tais características evidenciam alguns desdobram entos citados a seguir.

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com petência técnica. Em outras palavras, elas criam uma categoria de “ativistas profissionais”, distantes da m ilitância religiosa, universitária ou partidária, m as guardando conexões com elas. Com o indicarei, as exigências de com pe-tência específica e de profissionalização da mili-tância irão se acentuando ao longo do tempo.

O fato de as ONGs não se apresentarem co-m o “represen tativas” (coco-m o os sin dicatos, as associações e os par tidos) associa-se a outras m arcas im portantes dos anos 70 e 80, com o a valorização do pequeno e do local, por um la-do, e da auton om ia, por outro. Isso explica a tendência à m ultiplicação de grupos atuando na mesma área e a recusa sistemática à unifica-ção, à centralização ou à criação de instâncias que am eacem a in depen dên cia das pequen as entidades. Em alguns casos, como em assuntos do m eio am biente ou aqueles voltados para a preven ção e o m on itoram en to das políticas contra a Aids, a tendência prolífica foi absolu-tamente evidente.

Outro aspecto ligado à origem das ONGs e associado a seu desenvolvimento no Brasil e na Am érica Latina é seu diálogo com entidades e organism os internacionais, com o a ONU e – em particular com os processos estimulados pe-lo Cicpe-lo de Conferências Sociais da ONU nos anos 90 (Vieira, 2001) – e as fundações e agên-cias privadas de cooperação internacional. Além de uma discussão sobre autonomia diante dos financiadores internacionais, o fato de essas relações se manterem muitas vezes sob debates reservados (Landim, 1988) suscitou uma preo-cupação perm anente a respeito da influência das agendas internacionais na construção dos problem as brasileiros. Isso porque, concreta-mente, as pautas e os financiamentos estrangei-ros introduziram , no universo de conceitos e práticas das ONGs brasileiras, formatos de atu-ação (por exemplo, sob a forma de “projetos”) e prioridades que necessariam ente não corres-ponderam às necessidades e à autonomia local.

A despeito dos problem as advindos dessas relações, segundo Oliveira (2002), as ONGs e suas relações internacionais foramum im por-tante elemento para colocar a sociedade brasilei-ra em com passo com as novas com plexidades e seus paradigm as, gerados prim ariam ente alhu-res, lembrando que para este campo (nem

esta-tal, nem empresarial) a importação é a contem-poraneidade defasada.

De fato, com o in dicarei n as trajetórias de construção de atuação específica no setor saú-de, a presen ça de organ izações n ão-govern

a-m entais e suas perspectivas internacionais fo-ram decisivas para inserir pautas contemporâ-neas ao interior das políticas públicas. Isto se expressa, por exem plo, na “gram ática da soli-dariedade”, n o caso da Aids; n os “direitos re-produtivos e sexuais”, no caso da saúde da mu-lher; e na “desospitalização”, no caso da refor-ma psiquiátrica.

Em resumo, para analisarmos os casos refe-rentes ao setor saúde é preciso ter em mente as características fundadoras das ONGs brasilei-ras e latino-americanas, que são: 1) a valoriza-ção da competência técnica, a profissionalização da m ilitân cia e a especializaprofissionalização; 2) a ten -dência à m ultiplicação e à diversificação; 3) a perspectiva internacional; 4) a autonom ia em relação ao Estado.

As respostas brasileiras à epidemia de HIV/Aids e as ONGs

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pela divulgação de que hemoderivados estavam contaminados com o HIV foi decisivo para que uma política de controle do sangue finalmente se im plantasse, com o apoio de associações de hem ofílicos, m ilitantes do m ovim ento social, pesquisadores e médicos ligados à reforma sani-tária. Em outras palavras, “o m al de folhetim” expressa uma primeira e muito importante ca-racterística tipicamente contemporânea do en-frentamento da Aids, e central no caso brasilei-ro: os meios de comunicação passaram a exer-cer um im portante papel com o “m ediadores” de forças situadas na sociedade civil, nos setores privados e nos poderes públicos.

Um m om ento posterior, segundo periodi-zação de Galvão (2000), ocorreu entre 1985 e 1991, quando foram criadas as primeiras orga-nizações dedicadas exclusivamente à Aids. Esta fase consolidou um padrão de inter venção da sociedade civil, que foi responsável, em boa medida, pela história da doença no Brasil. Entre 1985 e 1989, foram criadas três organizações paradigm áticas das ações que se multiplicam nos anos seguintes: Gapa, Abia e Pela Vidda.

O Grupo de Apoio e Prevenção à Aids (Ga-pa) foi criado em 1985, em São Paulo, por ini-ciativa de vários atores: militantes de esquerda, pessoas ligadas ao m ovim en to hom ossexual, advogados, intelectuais e médicos que atuavam no program a estadual de atenção à Aids. Esse m ovim en to celebrizou um n ovo tipo de dis-curso com a cam pan ha “Tran se num a boa”. Tam bém fundou o prim eiro ser viço de asses-soria jurídica para pessoas com HIV/Aids, que serviu de modelo para outras entidades, cons-tituindo um campo de atuação que posterior-mente foi consolidado como advocacy.

A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) foi fundada em 1986, influencian-do muito fortemente as ações anti-Aids: 1) pe-lo seu pertencimento decisivo ao universo das “ONGs”; 2) por suas articulações com as polí-ticas internacionais de Aids e o acesso a finan-ciam entos de agências internacionais de coo-peração; 3) por sua perspectiva política no tra-balho de pressão, cobrança e m onitoram ento das ações govern am en tais de preven ção e de tratamento; 4) pela decisão de atuar no campo da mídia; 5) pela preocupação com a produção de con hecim en tos sobre a epidem ia e com o desenvolvimento de projetos piloto de preven-ção em segmentos específicos.

Alguns dos elementos marcantes do desen-volvimento das ONGs tornam-se mais acentu-ados com o surgimento, em 1989, da primeira

organização de pessoas com HIV/Aids. O Gru-po Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doen te de Aids (Pela Vidda) foi criado por Herber t Dan iel, en tão diretor da Abia, que se descobriu por tador do vírus. Seu fun dador tecia um discurso n a prim eira pessoa:Estou enviando a esses burocratas, que nunca viram um doente de Aids, notícias daqui. Da vida. Eles es-tão moribundos, no lamaçal do governo Sarney. Eu estou vivo. E, como milhares de brasileiros com Aids, exijo uma mudança de rumo na política so-bre Aids. Que seja fundada na com preensão do problema epidêmico e guiada pela solidariedade (Daniel, 1988). Estimulados por slogans como

o da organ ização n or te-am erican a Act Up, adotado mundialmente pelo ativismo contra a Aids (silence = death), grupos de pessoas

viven-do com HIV/Aids passaram a representar uma importante novidade, alterando, em boa medi-da, o paradigm a de “assessoria” e de “apoio” que tinha predom inado na tradição dos Cen-tros nos anos 70 e nas ONGs sociais dos anos 80 no Brasil.

A m ultiplicação de organizações baseadas nesses três grandes tipos (de apoio e de advo-cacy; de pressão política e de pesquisa aplicada;

e de pessoas vivendo com Aids), ocorreu, nos anos seguintes, em escala extraordinária. Cons-tituiu-se um campo político e institucional que passou a ser nomeado de ONG/Aids. Teórica e

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No plan o político, é im por tan te ter em m en te que o desen ho in icial dos padrões de m obilização da sociedade civil de respostas à Aids foram determ in ados pela con jun tura de intensa mobilização do contexto da democrati-zação. Os em bates entre ONG e o governo fe-deral predominaram durante o período Sarney (1986–1990) até o final do governo Collor, em 1992. Analisando o papel político das organi-zações n ão-govern am en tais de preven ção da Aids e sua relação com o Estado, Teixeira (2002) conclui que haveria um certo “uso estratégico” da pressão exercida pelas ONGs por parte dos setores govern am en tais:no caso da ABIA e de outras ON G-Aids, que m antêm um a relação de pressão sobre o governo, o acompanhamento que elas fazem é essencial para a aplicação dos pro-gramas de Aids.

É necessário, ainda, assinalar dois aspectos relacionados à construção de respostas à Aids n o Brasil n os quais a presen ça das ONGs foi afetada ou teve im portante papel: o financia-mento do Banco Mundial dispensado ao gover-no brasileiro, em 1992/1993, e a concessão de acesso gratuito e universal, na rede pública da saúde, aos m edicam entos anti-retrovirais, em 1996.

O financiamento do Banco Mundial conce-dido ao Brasil para o con trole da epidem ia representou, segundo documentos do próprio Ban co, situar o Brasil com o um test case de

políticas da instituição para a área de saúde e especificam en te para a Aids. O m on tan te dos recursos e o fato de que o projeto foi a princi-pal fonte de investimentos do país para contro-lar a epidem ia torn aram o em préstim o um pon to de in flexão n a trajetória das políticas para a Aids. Analistas observam que a partir do processo de n egociação do em préstim o, o governo brasileiro elaborou o Projeto de Con-trole de AIDS e DST (ou AIDS I), que repre-sentou um “divisor de águas” nas políticas tan-to govern am en tais quan tan-to com un itárias de saúde relacionadas à gestão da epidemia (Gal-vão, 2000). Isto porque um item importante da negociação do empréstimo, vital para a centra-lidade das ONGs n o con texto político das ações de prevenção e tratamento, foi a exigên-cia do envolvimento dessas entidades, espeexigên-cial- especial-m en te por sereespecial-m vistas coespecial-m o especial-m ais eficien tes para atingir os mais pobres e os mais resisten-tes, com o hom ossexuais, usuários de drogas e profission ais do sexo (Galvão, 2000). Algun s autores, a propósito do papel que as agên cias m ultilaterais atribuem às ONGs, cham am a

aten ção para o fato de que elas têm sido con -ceituadas como atores de desenvolvimento e não tanto com o fenôm enos sociais que devem ser entendidos em relação a um conjunto de outras relações sociais (Bebbington, 2002). O fato

rele-vante é que ONG/Aids passaram a contar com recursos do programa nacional para desenvol-ver programas de prevenção e apoio, sendo es-ta a fonte essencial de sobrevivência de várias en tidades, colocan do em jogo a auton om ia dessas iniciativas, como indicarei adiante.

Em relação ao tratam en to dos por tadores sin tom áticos do H IV, con trarian do as reco-m endações não só do Banco Mundial, reco-m as da OMS e da OPS de que os países pobres devem investir os recursos na prevenção de novos ca-sos, e não no tratam ento dos doentes, a partir de 1996 o Brasil passou a dar acesso, de forma gratuita e universal, na rede pública de saúde, aos m edicam en tos an ti-retrovirais, n isso que Galvão chama de uma das ações mais espetacu-lares do programa nacional de Aids (2000).

A im plem en tação da lei 9.313, de n ovem -bro de 1996, que tornou obrigatório o forneci-mento de medicaforneci-mentos para Aids, fortaleceu os órgãos públicos perante a sociedade, a mídia e alguns fóruns internacionais, de forma que o país assum iu um a batalha in tern acion al para garantir a continuidade da produção de medi-cam entos para Aids. Galvão (2002b) cham a a atenção, contudo, para o fato de que esse capí-tulo, longe de estar encerrado, mantém abertas questões cruciais: em 2002, m ais de 100 m il pessoas recebiam m edicam en tos para a Aids, sendo que isso representava aproximadamente 10% das pessoas que globalm en te recebem m edicam en tos. Acresce-se a isso que m ais da metade dessas pessoas, no Estado de São Paulo, estavam desem pregadas, em 2001. A articula-ção desses elem en tos levan ta dúvidas sobre o futuro dessa conquista.

Seja com o for, parece não haver dúvida de que, n o caso da epidem ia de Aids, as ONGs desem penharam papel im portante para o de-senvolvim ento de políticas de prevenção e as-sistência. Assim, a presença acentuada da socie-dade civil no contexto das respostas à epidemia contribuiu decisivamente para a construção do que alguns analistas cham am a especificidade da história da Aids brasileira (Galvão, 2000;

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nalização da militância, tendência à prolifera-ção de iniciativas e de articulações internacio-nais.

Em relação à autonomia diante do Estado, a trajetória das ONGs é marcada por dois mo-mentos distintos. Nos anos 80, de franca oposi-ção. Nos an os 90, predom in aram relações de cooperação, inclusive com um trânsito intenso de m ilitan tes de ONG passan do a gestores de programas governamentais. Como indicarei na últim a par te deste ar tigo, as críticas de que “cooperação” e “parceria” tornaram -se “coop-tação”, “prestação de ser viços” e “substituição do Estado” serão constantes não só em relação à forma de atuação no enfrentamento da Aids, mas em geral, no campo das ONGs. Essa dinâ-mica de certa “promiscuidade” passa a consti-tuir-se num dilem a central nas relações entre ONG, Estado e mercado na década atual.

Saúde da mulher, direitos reprodutivos e direitos sexuais

O cham ado fem inism o brasileiro da “segunda onda” (Schum aher & Brazil, 2000) surgiu em meados da década de 1970 e a expressão serviu para diferenciá-lo da tradição de luta pelo direi-to ao vodirei-to do final do século 19. O fem inism o contem porâneo nacional sofreu os im pactos das idéias de Simone de Beauvoir e Betty Frie-dan, e de palavras de ordem internacionais, co-m o “nosso corpo nos pertence” e “diferentes, mas não desiguais”. A nova onda se desenvolveu em pleno regim e m ilitar, contra a ditadura, afrontando a supremacia masculina, a violência sexual e afirmando o direito ao prazer.

O ano de 1975 foi um marco da construção deste cam po. Nesse período acon teceram : a reun ião anual da SBPC, que realizou um en -contro considerado histórico sobre o tema mu-lher; a criação da prim eira organização fem i-nista do Centro da Mulher Brasileira, no Rio de Janeiro; o Encontro para o Diagnóstico da Mu-lher Paulista e a organ ização do Movim en to Feminino pela Anistia. Nos anos seguintes seri-am criados diversos grupos em São Paulo, no Rio, n o Distrito Federal e n o Nordeste, abri-gando não só múltiplas formas de organização, mas novas especificidades, como grupos de tra-balhadoras rurais e sin dicais, de produtoras culturais, de educadoras populares, de mulhe-res lésbicas, de prostitutas e de empmulhe-resárias.

Nos anos 80 houve vários Encontros nais Feministas, a criação do Conselho

Nacio-nal de Direitos da Mulher (CNMD), em 85, e a m ultiplicação de con selhos e coorden ações m un icipais e estaduais. Na Con stituin te de 1988, o chamado lobby do batom aprovou mais

de 80% das reivindicações na área dos direitos da m ulher. Para o m ovim en to fem in ista, os an os 90 foram dedicados à par ticipação n as Conferências da ONU e à consolidação de re-des, sen do um a das m ais im por tan tes a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Repro-dutivos (RedeSaúde).

Estima-se que nessas três décadas de femi-n ism o cofemi-n tem porâfemi-n eo m ais de 1.000 grupos foram organizados no País, atuando em dife-rentes setores: em partidos políticos, em estru-turas do Estado, dos sindicatos, das associações de m oradores, das un iversidades, em grupos autônomos, em instâncias de controle social e em ONG (Schum aher & Brazil, 2000). Ressal-ta-se, n esse un iverso, a m ultiplicidade e a ri-queza de naturezas associativas. Comparativa-mente ao campo das ONG/Aids, os movimen-tos de m ulheres são m ais heterogên eos e as relações com a formulação de políticas públi-cas são menos precisas. No entanto, a influên-cia e a difusão de “idéias feministas” por toda a sociedade, inclusive entre elaboradores e gesto-res de políticas, tenderam a ampliar os proces-sos de dem an da, de pressão e de diálogo com os poderes públicos.

Ao longo das décadas da nova onda, algu-m as questões passaraalgu-m a aglutinar as diversas organizações às quais mulheres se filiavam, en-tre elas a luta pela saúde, os direitos reproduti-vos e a descriminalização do aborto. Esses três pon tos passaram a com por um a agen da de interseção com o que chamarei de políticas de “saúde da mulher”.

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evento. Porém, a plataforma de direitos sexuais tornou-se alvo de conflitos entre fem inistas e um bloco de países conservadores.

No Brasil, muito antes que a term inologia “direitos reprodutivos e sexuais” se consagras-se, a participação dos m ovim entos fem inistas em in stân cias do Estado já havia se torn ado im portante por m eio da criação do Program a de Assistên cia In tegral à Saúde da Mulher (PAISM), cujo início se deu em 1983. No con-texto das disputas pelas políticas de controle de natalidade, de um lado, atores pró-controle de-mográfico contavam com a simpatia de setores militares, empresariais e tinham forte influên-cia no Parlamento. No outro lado, num ambente ainda tím ido de transição política, fem i-nistas e sanitaristas se reapropriavam do tema, introduzindo interpretações e novas propostas a par tir de um a filosofia de em an cipação da mulher. Nesse cenário, o PAISM foi com em o-rado como uma derrota das forças controlistas. Na formulação do program a, o Estado (tradi-cionalmente omisso nas relações entre entida-des privadas de planejamento familiar e popu-lação) assum ia respon sabilidades n a área da regulação da fecundidade e as delegava ao setor da saúde, onde a presença de médicos envolvi-dos com a reforma sanitária era notória.

Um dos efeitos do processo de elaboração do PAISM foi o estreitam ento de laços entre os movimentos feministas e o movimento sanita-rista. Além de os m ovim entos de mulheres terem assumido bandeiras da reforma sanitária e terem se envolvido na luta pela construção do SUS, a aproximação entre ambos os movimen-tos aproximou as feministas dos setores médicos ligados às cátedras de ginecologia e obstetrícia de universidades públicas. Esse saudável encon-tro colocou as questões de gênero na pauta das instituições públicas de saúde (Bonan, 2002).

Bonan aponta outros três processos políti-cos significativos para os movimentos feminis-tas n a área de saúde da m ulher, além do PAISM, n a década de 1980. O prim eiro pode ser caracterizado pelo em bate em torn o dos “direitos de reprodução hum ana”, em especial pelas den ún cias que envolveram a pesquisa com o anticoncepcional Norplant e sua cassa-ção, em 1986, pela Comissão Nacional de Estu-dos da Reprodução Hum an a. O segun do está relacionado às campanhas pelo direito ao abor-to. E o últim o à luta con tra a esterilização cirúrgica indiscriminada de mulheres.

A polêm ica do Norplan t ajudou a trazer para o centro dos debates, através da mídia, as

preocupações, os princípios e o discurso femi-nista, permitindo aprofundar o diálogo entre o movimento de mulheres, autoridades de saúde e médicos. A discussão sobre o aborto, por sua vez, reconfigurou as relações entre as feminis-tas e outros setores sociais que haviam sido ali-ados nas lutas contra a ditadura, como setores da esquerda e o próprio campo mais amplo dos m ovim entos de mulheres. No âm bito de lutas contra as esterilizações cirúrgicas indiscrim i-nadas, os movimentos de mulheres obtiveram vitórias simbólicas, pois o interesse de organi-zações privadas de con trole da n atalidade se reduziram na medida em que caíam as taxas de fecundidade. Não obstante não terem sido con-firmadas as denúncias de esterilização em mas-sa de m ulheres n egras, a CPI da Esterilização Cirúrgica, in stalada em 1991, teria ajudado a am pliar o debate político sobre sexualidade e reprodução, iniciado com o processo de cons-trução do PAISM.

Nos an os 90 foram criadas ONGs im por-tan tes, com o a Cidadan ia Estudo, Pesquisa, In form ação e Ação (Cepia), o grupo Geledés de Mulheres Negras e a Rede Nacion al Fem i-nista de Saúde e Direitos Reprodutivos (Rede-Saúde). No mesmo período, os movimentos se aprofundaram e se politizaram: fincaram pre-sen ça n a esfera parlam en tar aum en tan do as bancadas femininas. Ao mesmo tempo eviden-cia-se o crescim ento, a especialização e a pro-fissionalização de ONGs dedicadas exclusiva-mente ao acompanhamento legislativo, como é o caso do Centro Feminista de Estudos e Asses-soria (Cfemea). Simultaneamente à atuação em políticas-fim relacionadas a direitos reproduti-vos e sexuais, a década de 1990 também consa-grou a participação de representantes feminis-tas nos conselhos de saúde e em outras instân-cias mediadoras de políticas públicas de saúde. Os novos formatos institucionais, as discussões internacionais, a presença crescente na esfera parlamentar e em outras instâncias de formu-lação de políticas movem os movimentos femi-nistas dos anos 90 para o terreno da especiali-zação, da com petência técnica, da internacio-nalização e das redes de ONGs.

Essas n ovas características presen tes n os anos 90 são tão acentuadas que Alvarez (2000) vai nom eá-las ON Gguização dos fem inism os,

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que se combinam para revelar novos formatos políticos das inter venções fem inistas: 1) a ex-traordinária proliferação ou multiplicação dos espaços e lugares em que as m ulheres que se consideram feministas atuam e por onde circu-lam discursos feministas; 2) a rápida absorção dos discursos e agendas feministas pelas insti-tuições culturais da sociedade, dos Estados e do

establishment internacional do

desenvolvimen-to; 3) a articulação das feministas em redes in-tern acion ais (de m ilitan tes in dividuais, de ONGs ou de especialistas) filiando os feminis-m os latino-afeminis-m ericanos à “sociedade civil glo-bal”; 4) a transnacionalização dos discursos e das práticas que haviam sido forjadas local-mente nos anos 70 e 80.

As sugestões de Alvarez reforçam a tese de que a participação dos movimentos feministas na construção de políticas de saúde da mulher foi decisiva, havendo duas grandes tendências: na década de 1980, a participação de form ato mais espontâneo, heterogêneo e multifacetado (influenciado pelos padrões do movimento de reforma sanitária, especialmente em sua carac-terística de valorizar a ocupação das “brechas” abertas mesmo durante o regime militar); nos anos 90, num formato próximo ao da atuação das ONG/Aids: passam a predom inar ON Gs fem inistas transnacionalizadas, altam ente pro-fissionalizadas e tem aticam ente especializadas

(Alvarez, 2000).

A experiência m ostra que se essas caracte-rísticas ten dem a aum en tar extraordin aria-mente a eficiência das ações, trazem vários ris-cos. Um deles é a perda de referência das aspi-rações de m ulheres que estão fora do cam po das ONGs. Não se deve perder de vista que en-tre as várias agendas feministas, muitos grupos populares de m ulheres, desde os an os 70, ti-n ham eti-n tre suas prioridades as tem áticas da saúde por viverem diretam en te o dram a das condições precárias de atendimento, e que “saú-de” foi o mote através do qual se aproximaram fem in istas de classe m édia, m ulheres pobres, m édicos e ativistas da reform a san itária (Bo-nan, 2002).

Por últim o, se é verdade que no cam po de saúde da mulher, nos anos 90, a participação da sociedade civil desen hou processos sim ilares aos da Aids, não se deve esquecer que no caso desta últim a, o fato de par te dessa m ilitân cia ser constituída por portadores do HIV/Aids e, por tan to, de usuários dos sistem as de saúde, assegura m aior proxim idade entre ONG e de-m an das sociais difusas da coletividade. Essa

característica n ão é tão eviden te n o caso da saúde da mulher.

O movimento por uma sociedade sem manicômios e a reforma psiquiátrica

Com o nos casos anteriores, as políticas para a saúde mental foram objeto de vivo interesse de atores sociais que a influenciaram através de atuações externas à gestão sanitária nas últimas três décadas, determinando, em grande medida, sua trajetória. Também em comum com os dois outros casos, verifica-se na área da saúde men-tal a influência de movimentos internacionais, tanto teóricos como pelas experiências práticas de novos modelos de atendimento que se desen-volviam nos Estados Unidos e na Europa.

Am arante define reform a psiquiátrica co-mo um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem com o objetivos e estratégias o questionam ento e elaboração de propostas de transform ação do m odelo clássico e do paradig-m a da psiquiatria (1995). No caso brasileiro

esse processo é tributário dos debates teóricos e das experiências que constituem o ideário da “nova psiquiatria” (Venancio, 1990), ou seja, é oriundo da tradição da psiquiatria crítica bra-sileira, que teve como expoentes Luiz Cerquei-ra, Oswaldo Santos e Hélio Pellegrino, e de cor-rentes reformadoras de repercussão internacio-nal, como a comunidade terapêutica de Maxwell Jones, a psiquiatria institucional de Tosquelles, a psiquiatria de setor de Bonnafé, a psiquiatria preventiva de Caplan, a antipsiquiatria de Laing e Cooper e, m ais tarde, a psiquiatria na tradi-ção de Basaglia e das experiências de Gorizia e Trieste (Amarante, 1995).

No Brasil, o processo se iniciou no final da década de 1970, n o con texto político de luta pela democratização. O principal marco de sua fundação é a cham ada “crise da Dinsam” (Di-visão Nacion al de Saúde Men tal), que eclode em 1978. Os profission ais da área denun cia-vam as péssim as con dições da m aioria dos hospitais psiquiátricos do Ministério da Saúde n o Rio de Jan eiro e vár ios foram dem itidos. No m esm o ano, no V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, um a caravana de profissionais da saúde dem itidos no processo de lutas da Din-sam divulgou o Manifesto de Camboriú e

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Movimento dos Trabalhadores em Saúde Men-tal (MTSM).

É crucial para nossa análise assinalar carac-terísticas do nascimento e da constituição desse novo personagem, o MSTM. O movimento sur-ge apoiado tanto no Centro Brasileiro de Estu-dos da Saúde (Cebes), que havia sido fundado em 1976 e que reunia o pensamento crítico que em grande m edida lideraria a reform a sanitá-ria, como no Movimento de Renovação Médica (Reme) ligado ao Sindicato dos Médicos. O fato de o m ovim ento de reform a psiquiátrica cu-nhar a expressão “trabalhadores em saúde men-tal” indicava a tentativa de escapar do sentido mais corporativo de “categoria”, sinalizando que não se tratava apenas da reunião de médicos. O segundo sentido de “trabalhadores” (e não “ser-vidores”) era demarcar uma categoria “supra-profissioanal” ( Venancio, 1990). A expressão trabalhadores tam bém assinalava um sentido ideológico de filiação à esquerda, que predomi-nava no Cebes e no Sindicato dos Médicos. De fato, esses dois grandes grupos articulados em torno do Cebes e do Reme configuraram a uni-ão da sociedade civil em torno da problemática da reforma do setor saúde.

O tema que atravessou a formação e a histó-ria do MTSM diz respeito a seu form ato e seu grau de institucionalidade. Segundo Amarante (1995), desde sua criação, o debate sobre insti-tucionalizar ou não o movimento surge em inú-m eras reuniões, asseinú-m bléias e encontros. Às vantagens da institucionalização (a possibilida-de possibilida-de ter uma sepossibilida-de, secretaria, fundos e agilida-de adm inistrativa) sistem aticam ente eram opostos os riscos como a burocratização, o enri-jecimento, a perda de flexibilidade e a cronifica-ção das lideranças. Além disso, o MTSM se autocaracterizava por ser “múltiplo e plural”, is-to é, por articular não só profissionais de is-todas as categorias, mas simpatizantes não-técnicos. Talvez por inspiração das bandeiras de “desins-titucionalização” do saber e das práticas psiqui-átricas, o MTSM foi o prim eiro m ovim ento em saúde com participação popular, não sendo iden-tificado com um movimento ou entidade de saú-de, m as pela luta popular no cam po da saúde mental (...) (Amarante, 1995). Nesse sentido, o

MTSM prefigura, de certa form a, o form ato organizacional que predominou no movimento de reform a sanitária e se distingue tanto das ONG/Aids como das várias formas de interven-ção dos movimentos de mulheres na elaborainterven-ção de políticas de sexualidade e direitos reproduti-vos, especialmente as verificadas nos anos 90.

Um outro debate permanente acompanhou a longa trajetória do MTSM: participar ou não das in stituições psiquiátricas que se desejava modificar; participar ou não da gestão política de saúde mental, nos cargos de chefia e coorde-nação. Houve no movimento um intenso deba-te en tre estratégia de ocupação de cargos nos órgãos estatais como tática de mudança por dentro versus “cooptação” (Am arante, 1995). Em

-bora tenha sido predom inante a tendência de aproximação, ingresso e ocupação de postos no Estado, nessa ocasião o movimento dividiu-se em duas lin has: um a cham ada institucional,

outra chamada sindical.

No in ten so processo que se seguiu a esta fase, é im por tan te sublin har algun s even tos, como o I Encontro de Coordenadores de Saú-de Mental da Região SuSaú-deste e o I Congresso Saú-de Trabalhadores em Saúde Men tal, em 1985, já numa conjuntura francamente democratizante e com parte significativa dos postos de chefia de programas estaduais e municipais de saúde mental sob a condução de fundadores e ativis-tas do MTSM. A 8aCon ferên cia Nacion al de Saúde, com 176 delegados eleitos nas conferên-cias estaduais, usuários e outros segm en tos represen tativos é vista com o um m arco e um pon to de in flexão do processo, pois a par tir dela o m ovim en to assum iu o lem a “por um a sociedade sem m an icôm ios” e criou o Dia de Luta An tim an icom ial ( Ven an cio, 1990). Em particular, nessa trajetória, é im portante assi-n alar a viassi-n da ao Brasil, em 1986, de Fraassi-n co Rotelli, então secretário geral da Rede Interna-cional de Alternativas à Psiquiatria, e diretor do Serviço de Saúde Mental de Trieste, desde a saí-da de Franco Basaglia.

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Con ferên cia Nacion al de Saúde Men tal, com 1.500 participantes. Os desafios da desospitali-zação continuaram ao longo da década, inclu-sive a par tir de um a im por tan te fren te parla-m entar e do desenvolviparla-m ento de experiências alternativas de atendimento como hospital-dia.

O que há de peculiar na trajetória de parti-cipação n a reform a psiquiátrica é o percurso inverso ao das duas outras áreas analisadas: o m ovim en to de reform a psiquiátrica in icial-m en te surge da sociedade e se dirige rapida-mente às instituições e à gestão interna da saú-de para, apenas numa segunda etapa –, já num momento avançado da democratização – reto-mar o diálogo com outros atores sociais e com novas experiências.

Desafios e perspectivas

As perguntas sobre o futuro das ONGs não são novas, sendo praticamente simultâneas à cons-tituição deste cam po (Fernandes, 1988). Mas, no final dos anos 90, pelo menos quatro aspec-tos tinham alterado profundam ente o cenário nacional e internacional no qual a participação da sociedade civil havia se desenvolvido: a glo-balização econ ôm ica e cultural; a reform a do Estado; a hegemonia de políticas neoliberais; o aprofun dam en to da degradação social daí decorrente (Haddad, 2002). Para Evelina Dag-n iDag-n o (2002), o efeito dos ajustes estruturais constitutivos das políticas neoliberais determi-n ou dificuldades sigdetermi-n ificativas determi-n o ritm o da democratização. Mas, se o agravamento das di-ficuldades sociais e econ ôm icas é um efeito am plam en te recon hecido n a im plem en tação dessas políticas, m enos notórias são as conse-qüências sobre a capacidade de organização e mobilização políticas da sociedade civil, espe-cialm en te dos setores populares e das classes médias, duramente afetados pelo desemprego e pela recessão econômica.

Um dos dilemas das organizações da socie-dade civil, em particular do campo das ONGs, é m an ter a defesa do for talecim en to de suas form as associativas e organ izativas sem con -fundi-las com a lógica privatista e de minima-lismo estatal de cunho liberal, tão presentes no cam po da saúde (im plícitas, por exem plo, nas recom en dações de apoio às ONGs por serem m enos onerosas, m ais ágeis e m ais eficazes do que o Estado para a realização de certas tarefas públicas). Pereira & Grau (1999) caracterizam essa ten são defin in do duas gran des áreas de

concentração de esforços das organizações pú-blicas n ão-estatais: por um lado, o con trole social das políticas públicas e, por outro, o compromisso com a produção de bens e servi-ços. Para os autores, algumas organizações (co-mo as ONGs) têm missões combinadas de par-ticipar do controle social e produzir ser viços. As organizações de ajuda ou caridade não assu-m eassu-m o coassu-m proassu-m isso do con trole social. E as organizações de serviços públicos não-estatais (Ospn es), geralm en te estruturadas em form a de fundações de direito privado e associadas ao m ovim ento de reform a da adm inistração pú-blica, são essencialmente produtoras de servi-ços sociais de educação e saúde, com escassa experiência de cooperação voluntária.

Um outro dilem a no cam po das organiza-ções não-governamentais é a ênfase na especia-lização, na profissionalização e na hipereficiên-cia. Essas características das ONGs, acentuadas ao longo da década de 1990, podem afastar não só as organizações da sociedade civil das aspi-rações populares, como levar a um questiona-m ento de sua própria natureza. Segundo Oli-veira,a condição principal para as ONGs da de-m ocratização de-m anterede-m -se code-m o integralde-m ente dem iúrgicas, vozes do novo, é a radicalidade da denúncia, menos que a modernidade da compe-tência (2002).

Sociedade civil e segurança pública

Não obstante suas marchas e contramarchas, a reforma sanitária e a consagração de seus prin-cípios n a Con stituição de 1988 con figuram o que Faveret e Oliveira assinalaram como a pri-m eira experiência brasileira de upri-m a política social universalizante, configurando uma ruptu-ra pioneiruptu-ra no padrão de intervenção estatal no campo social moldado na década de 30 e até en-tão intocado em seus traços essenciais (1990).

Considerando seu caráter exemplar e para-digmático para outras políticas sociais, sugiro que o exame das dinâmicas de participação da so-ciedade civil na construção de políticas de saúde, em especial das trajetórias de ONG, na forma de “estudos de caso”, pode vir a ser mais explorado do que tem sido até o momento. Tais casos são um campo fértil de análise e de inspiração para iniciativas de indução e atração da sociedade ci-vil onde essa presença é historicamente menos densa, como é o caso da segurança pública.

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sez de experiências de participação social na ela-boração de políticas de segurança pública e, por sua vez, de investigações analíticas sobre esses processos, tem sido um dos obstáculos estrutu-rais à democratização e à modernização da polí-cia e dos órgãos de segurança (Soares, 2001). A exceção a esta regra é a reivindicação e a con-quista, no início da década de 1980, de serviços especializados em atendimento a mulheres víti-mas de violência na esfera da polícia. As Delega-cias Especializadas de Atendim ento à Mulher (DEAMs) criadas em diversos Estados foram resultantes de esforços e iniciativas dos m ovi-m entos feovi-m inistas e de ovi-mulheres. Sob o leovi-m a “Quem am a não m ata” foram realizadas cam -panhas, lançados seriados na televisão e reque-rida uma CPI. Em contraste com os resultados obtidos no início dos anos 80, as ONGs e redes ligadas às articulações de mulheres reduziram drasticam ente a im portância da tem ática da violência nas agendas do m ovim ento no final dos anos 80 e durante os anos 90, ficando este campo reduzido a entidades dedicadas exclusi-vamente a atender vítimas de violência domés-tica. O movimento de mulheres tornou-se vir-tualmente ausente do atual debate sobre demo-cratização da polícia e reform a da segurança. Sugiro que com preender a história e as razões da suspensão dos interesses fem inistas nesse campo e compará-las aos percursos na área da saúde pode ser especialmente importante para a compreensão das dinâmicas das experiências de

participação de organizações não-governamen-tais na elaboração de políticas sociais.

Em 1999, a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro criou projetos para estimular partici-pação de organizações não-governamentais no acom panham ento de políticas de segurança, dentro de programas de proteção de minorias. Entre eles estavam o Centro de Referência de Proteção das Minorias Sexuais, o Centro de Referência de Luta contra o Racismo, o Centro de Referência da Criança e do Adolescente e o Centro de Referência de Proteção Am biental (Ramos, 2002). Cada Centro de Referência de-senvolveu diferentes estratégias de ação e ativi-dades. Via de regra, os Centros “inauguraram” relações entre m ovim entos sociais e a área de segurança pública no Rio de Janeiro. Organiza-ções não-governamentais ligadas ao movimento homossexual, ao movimento negro e ao movi-m ento amovi-m biental estabeleceramovi-m conexões não experim entadas anteriorm ente, ao m enos na modalidade de participação direta no planeja-mento e monitoraplaneja-mento de programas de segu-rança. Em especial, os tem as do racism o e da homofobia, além da violência contra a mulher, mobilizaram atores que tiveram intensas experi-ências de participação em políticas de saúde. A análise das experiências de entidades do movi-mento de mulheres, do movimovi-mento negro e do movimento homossexual no campo da seguran-ça pública podem ser extremamente enriqueci-das, quando sublinhadas as diferenças desses grupos com suas experiências na área da saúde.

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Artigo apresentado em 8/8/2004 Aprovado em 5/9/2004

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