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EXPERIÊNCIAS DE VERTICALlZAÇÃO DE FAVELAS NA CIDADE DE SÃOPAULO NA DÉCADA DE 1990:
Análise de impacto na Cultura Política
Banca examinadora
Prot<'.Orientadora: Marina C. Heck
Prot<'.: Regina Prosperi Meyer
Prof.: Clovis Bueno de Azevedo
. 1199901095
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO
CASSIO LUIZ DE FRANÇA
EXPERIÊNCIAS DEVERT/CALlZAÇÃO DE FA VELAS NA CIDADE DE SÃO PAULO NA DÉCADA DE 1990:
Análise de impacto na Cultura Política
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Administração Pública e
Governo da FGV1EAESP. Área de
Concentração: Política de Governo, como requisito para obtenção de título de mestre em Administração Pública.
Orientadora: Profl. Marina C. Heck
Fundação Getulio Vargas . Escola de Adminislf'açào . de EmpreSAS de São Paulo
Biblioteca
São Paulo
I
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FRANÇA,Cassio Luiz de. Experiências de verticalizacão de favelas na cidade de São Paulo na década de 1990: análise de impacto na cultura política. São Paulo: EAESP/FGV, 1999. (Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação da EAESP/FGV, Área de Concentração: Política de Governo).
Resumo: Faz a análise de impacto de duas políticas públicas de habitação social na cidade de São Paulo. Busca captar as diferenças presentes nas avaliações feitas pelos moradores dos conjuntos habitacionais Zaki Narchi (Projeto Cingapura) e Minas Gás (construído durante a gestão Luiza Erundina) segundo o seu grau de satisfação com a nova moradia. Relaciona esses dados com o processo de construção dos edifício, fazendo uma análise crítica das propostas de verticalização de favelas, principalmente, no que se refere à possibilidade de promover mudanças na cultura política dos ex-favelados.
·
.
D'TRODUÇAO... 1
A pesquisa 5
Ressalvas 12
Ci~píTULO1- Para além das instituições 14
Cultura Cívica 17
Cultura hegemônica 20
Revolução silenciosa 26
Macro-, meso-, micro-cultura política 28
C,APÍTULO2 - OsProgramas de Habitação Popular e os seus respectivos Projetos Sociai.s ...•... 34
Prover e o Programa de Habitação de Interesse Social 35
Custos X Tempo de execução 37
Participação Popular 38
Projeto Cingapura 41
Conjunto Minas Gás 43
Delimitação do objeto 46
CAPÍTULO3 - Grau de satisfação, aspectos positivos e negativos - Os
resultados dapesquisa ' - 48
Grau de Satisfação 51
Aspectos Positivos 55
Aspectos Negativos 62
Resultante fmal dos objetivos traçados pelas políticas públícas 70
CAPÍTULO4 - Limites e conclusões das análises desenvolvidas 74
Transformações culturais (ainda) na superficie 74
Erro ou Fracasso? 78
CONSIDERAÇOESFINAIS 83
~íêlll)lc:lC••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••;•••••••••••••IIE;
o
uso político-partidário do Projeto Cingapura e da Política deUrbanização de Favelas 86
INTRODUÇÃO
Com a redefinição do pacto federativo no Brasil, promovida pela
Constituição de 1988, os municípios passaram a desempenhar novas funções,
que antes eram atribuídas aos Estados e à União.
O resultado dessa maior valorização dos governos locais foi um poder
mais amplo de intervenção por parte das prefeituras na vida social dos
habitantes do munícípío. Nesse mesmo sentido, algumas administrações
municipais já haviam passado por mudanças, fruto de movimentos sociais,
antes de 1988. Entretanto, foi sobretudo a partir desta data que o governo
local deixou de ter uma postura predominantemente atrelada à cosmética da
vida urbana e passou a intervir de forma contundente em questões que afetam
o andamento e o bem-estar da vida dos cidadãos.
Por outro lado, um dos traços da Constituição de 1988, também
chamada por alguns de "Constituição Cidadã", foi o empenho e a tentativa de
assegurar a redemocratização da vida social e política do país, que saíra de
vinte anos de ditadura militar. O artigo 5° da Constituição - Título Il, "Direitos
e Garantias Fundamentais", Capítulo I, "Dos Direitos e Deveres Individuais e
Coletivos" - reflete a proteção recebida pelos cidadãos frente ao poder do
Estado. Com o artigo 5°, o cidadão brasileiro passa a ter algumas garantias
fundamentais, já que se institui, por exemplo, a qualificação da tortura como
crime inafiançável, o mandado de segurança coletivo e o Habeas Data, frente
às arbitrariedades do Estado. Autonomia da sociedade civil frente ao Estado,
ênfase no pluralismo político e novos direitos políticos do cidadão - como por
exemplo, iniciativa popular para sustar atos lesivos ao patrimõnio público e à
moral administrativa, plebiscito, referendo etc. - também foram temas
colocados de maneira pioneira, visando à proliferação de uma relação não mais
de conflito mas sim de controle do Estado pela sociedade civil.
Atrelados à redefmição do pacto federativo, outros acontecimentos que
já estavam em curso em nível nacional também contribuíram para a
redefinição da relação Estado / sociedade civil, no que concerne ao regime
democrático. Entre esses acontecimentos, temos o acelerado processo de
urbanização - nos últimos 25 anos houve um crescimento de 50010 da
partir de 1985, com os quais foi possível usufruir novamente de uma série de
direitos sociais e políticos, que foram suspensos no regime militar.
Dada a aglutinação desses fatores, as pressões populares frente ao
Estado, demandando políticas públícas na área de saúde, educação, lazer etc.,
conquistaram definitivamente o seu espaço no cenário político. O grande
diferencial em relação a outras décadas está na junção de dois elementos
fundamentais para estabilização de um regime democrático constitucional. O
primeiro pode ser descrito como sendo a disposição e a percepção que as
pessoas tiveram para influenciar na vida da cidade por meio do contato direto
com as prefeituras locais. Questões relacionadas à saúde, habitação, educação
e até ao orçamento passaram a ser apreendidas como sendo de fato um direito
dos cidadãos. O segundo elemento é o fato de os mecanismos de intervenção
social serem mais numerosos e estarem sendo mais utilizados pelos próprios
governantes.
Da mesma maneira, práticas político-administrativas que incorporaram
a população às decisões das administrações locais, que puderam ser
observadas em alguns municípios de maneira isolada na década de setenta,
proliferaram significativamente nos últimos dez anos. Prefeituras mais
sensíveis às novas questões colocadas pelos moradores da cidade tiveram
ações propositivas nesse campo. Muitas dessas ações solucionaram não só o
problema visado, como também suscitaram mudanças no modo de agir e
pensar dos cidadãos. Isto é, além de solucionarem os problemas presentes,
deixaram marcas para que a cultura política do município fosse redirecionada.
Para um adequado entendimento deste último aspecto mencionado,
deve-se considerar que os canais de participação popular se caracterizam por
ser arenas de questionamentos e exposições de interesses coletivos e que
subsistem como espaços de interação do poder público com a sociedade. "A
criação [desses] espaços de relações mais solidárias, de consciéncia menos
dirigida pelo mercado, de manifestações culturais menos alienadas ou de
valores e crenças básicas diferentes" (EVERS: 1984) questiona de certa forma
os valores hegemônicos do capitalismo periférico e abre espaços para novas
formas de sociabilidade pautadas em princípios de caráter mais democrático.
autoritária da nossa prática social e política - representada muitas vezes por
frases como "Você sabe com que você está falando?"-, tem sido vista como
condição sine qua non para a consolídação de uma sociedade democrática.
Práticas tradicionais de coronelísmo, clientelismo e assistencialismo têm sido
induzida a dar lugar a uma relação de transparência e cooperação entre
Estado e sociedade civil. Nesse sentido, pode-se concluir que a construção da
democracia passa pela construção de uma cultura democrática. Esta é
entendida aqui, entre outros aspectos, como a incorporação pelos indivíduos
de princípios de cooperação, tomada de decisão de forma coletiva, saber
conviver com a diferença, a luta por direitos, a noção do direito a ter direitos
etc.
A participação popular nas práticas político-administrativas também
pode ser entendido como uma forma de reagir e, no limite, ultrapassar os
obstáculos que a própria sociedade civil, historicamente, colocou para a
democracia. Com o passar das décadas, a sociedade se tornou cada vez mais
complexa, necessitando de técnicas mais específicas para a solução de
entraves da máquina pública. A tecnocracia invadiu o mundo moderno, por
um lado, demonstrando a necessidade de especialização para dar conta de
novos problemas e, por outro, limitando a participação somente àqueles que
detém esses conhecimentos específicos. Este segundo aspecto signíficou a
impossibilidade da aproximação dos cidadãos das decisões políticas.
A ênfase na dimensão cultural da democracia é propícia nesse momento
de crise internacional vivido pelo pensamento de esquerda. As reformas
políticas e econômicas iniciadas em 1985 na Ex-União Soviética, a queda do
muro de Berlim e as dificuldades enfrentadas pelo regime cubano demandaram
de diversos teóricos do campo progressista alternativas estratégicas de atuação
que fossem notoriamente reconhecidas como válidas pela população, pela
mídia e pelo setor mais favorecido da sociedade brasileira. Parte desses
teóricos enfatizou as análises da microestrutura social, isto é, da cultura
política do cidadão, passível de ser observada na vida cotidiana. Nesse sentido,
aproveitando o espaço deixado pela falta de modelos acabados de
desenvolvimento, surge a possibilidade de afirmar um outro aspecto da
democracia que rotineiramente se encontra velado pelo nível institucional
formal. Esse movimento surge como bandeira para parte dos pensadores que
se opõe ao modelode gestão pública baseado na abertura comercial irrestrita,
o que não significa dizer, nem se espera, o abandono das lutas por reformas
nas instituições.
Este estudo já incorpora a noção de que a organização da sociedade
civil, quando foi canalizada para a ampliação da dimensão social e igualitária
da cidadania, trouxe resultados inestimáveis para a consolidação da
democracia - pensada aqui como meio e fim - na sociedade brasileira. Todavia,
interessa-nos saber como o Estado se tornou socialmente sensível e aberto às
demandas sociais relacionadas à pressão popular, a ponto de ser possível
observar mudanças na cultura política incentivadas por práticas
político-administrativas desse Estado.
Deve-se,portanto, frisar novamente que a discussão a ser desenvolvida
neste estudo não se dá no nível dos novos espaços públicos conquistados pela
sociedade civil organizada. O nosso objetivo não será o de mostrar a
importância que a sociedade civil tem para a ampliação da democracia via
mudança das práticas do Estado em consonância com uma mudança na
cultura política. Também não será o de mostrar a importância que os novos
atores tém para o fortalecimento da democracia. Essas questões, que já têm
sido desenvolvidasem um bom número de oportunas reflexões,serão sempre
lembradas, pois são elas que nos dão a base de sustentação para a análise que estamos propondo; porém, não serão elas o focoprincipal desta dissertação.
Este estudo pretende falar não só da importância dos novos atores
sociais, mas sobretudo falar da sociedade civil que não está organizada'. do
cidadão comum que em muitos casos não tem sequer projeto para a sociedade
na qual vive. Nesse sentido, vamos analisar a postura do Estado, via
administrações municipais, que têm práticas políticas propositivas neste
aspecto, isto é, práticas que procuram dialogar com a população que está
na
base da pirâmide socíaí.s
Tais ações do Estado voltadas a esse campo se traduzem em políticas
públicas direcionadas a suprir parte das necessidades básicas dessa
população que está, em regra, marginalizada pela sociedade. Entretanto, como
já foi mencionado anteriormente, as políticas públicas que interessam a este
estudo não se esgotam na propensão de atender às mínimas condições de
sobrevivênciacom dignidade dessa população. Concomitante a este aspecto, a
análise que será feita se centra em políticas públicas que tambêm buscam
despertar no cidadão comum o fato de que a lógica de ser governo deveser
incorporada por eles. Tendoem vista essas preocupações acima mencionadas,
a pergunta que se faz versa sobre o seguinte tema: atê que ponto ê possível
insistir no fato de que a abertura de canais de participação popular deve ser
implementada por administrações públicas, como forma de dignificara vida da
população extremamente carente de grandes cidades?
Essa pesquisa selecionou, portanto, as políticas públicas que foram
concebidas preferencialmente para atender à população carente e buscar uma
transformação do papel social que vem sendo por ela desempenhada. No caso
de não ter atendido a algumas dessas características, foi dada prioridade
àquela que tenha sido formulada visando ao menos atender à população não
previamente organizada que ocupa a base da pirâmide social na superação de
suas necessidades básicas.
A pesquisa
A conexão entre práticas político-administrativas voltadas para a
população socialmente mais carente e a possível mudança na cultura política
dessa população será feita por meio da análise de duas políticas públicas de
habitação social desenvolvidas pela Prefeitura Municipal de São Paulo em
êpocas distintas. A intenção desta pesquisa foi a de manter contato com a
população atendida por esses dois programas sociais e por meio de entrevistas
com esses grupos observar os possíveis avanços no campo do exercicio da
2Vale explicitar neste momento que o que estamos chamando de uma postura mais sensível do Estado deve também ser considerada como fruto de uma maior conscientizaçã%rganização da sociedade civil. Práticas administrativas voltadas para a promoçáo de uma cultura democrática da cidade se referem somente a uma parte do processo, uma vez que a postura do governante também deve ser considerada como reflexo do grau de conscientização de seus eleitores. Assim, no tocante a uma maior democratização da relação Estado - sociedade, há uma complexa relação de causa e efeito que não pode deixar de ser mencionada.
cidadania, da noção de direitos e da noção de igualdade. Ambos os programas
sociais versam sobre urbanização de favelas na cidade de São Paulo, sendo que
essas urbanizações efetivaram a verticalização das favelas selecionadas. A
diferença primordial entre as duas politicas públicas está no fato de que,
enquanto uma delas viabilizou o envolvimento da população durante o
processo de elaboração e implementação do projeto social, a outra o fez na fase
de pós-ocupação das habitações. Essas duas políticas sociais se referem
respectivamente ao "Programa de Urbanização de Favelas" desenvolvido na
gestão Luiza Erundina de Sousa, à época pertencente ao Partido dos
Trabalhadores, entre os anos de 1989 e 1992, e ao "Projeto Cingapura",
iniciado na gestão Paulo Salim Maluf, entre os anos de 1993 e 1996, à época
membro do Partido Democrático Socíal-.
Os programas que serviram de base para este estudo foram, por um
lado, o "Programa de Urbanização de Favelas", mediante o qual a prefeitura
pretendeu viabilizar a participação dos moradores de favelas em todas as
etapas do processo, por meio de reuniões semanais entre favelados e técnicos
da prefeitura, e, por outro, o "Projeto Cingapura", programa de urbanização de
favelas desenvolvido pelo governo municipal de São Paulo gestão Paulo Maluf,
do qual não se têm noticias de que tenha havido participação dos favelados
para as delimitações dessa política pública.
Por meio do contato direto com os participantes desses programas
-populações que podem ser incluídas no que anteriormente chamamos de
sociedade civil não organizada - pode-se observar as mudanças ocorridas na
vida dessas pessoas, julgadas por elas mesmas como sendo relevantes. Este
último fato deve ser ressaltado, pois não se trata de observar quais foram as
mudanças ocorridas na vida da população carente atendida pela Prefeitura
Municipal, mas de captar o que essas pessoas entendem por ser o evento mais
importante ocorrido. Nesse sentido, faremos uma avaliação em cima de
mudanças "objetivas", uma vez que serão os próprios envolvidos pelas políticas
públicas que indicarão o que, por ventura, há de novo em suas vidas. Não
caberá a essa pesquisa fazer um estudo antropológico do comportamento
dessas pessoas, buscando perceber elementos que confirmam ou não
mudanças na cultura política dos entrevistados. Comojá foi dito, as mudanças
de hábitos ou comportamentos serão indicadas pelos próprios ex-favelados.
Dessa forma, procurou-se apreender em que sentido a criação de canais
de participação popular foi de fato um mecanismo que possibilitou uma
mudança na cultura política da população que participou desses programas, a
ponto de avançar no entendimento e usufruto de seus direitos como cidadãos
e, como corolário dessa situação, em que sentido pode-se afirmar que a
multiplicação dessas práticas pelos mais diversos governos locais significariaa
democratização da sociedade brasileira.
Dificuldades em observar o que de fato proporcionou mudança na
cultura política dos cidadãos - tendo em vista que a razão para a ampliação da
cidadania dos moradores de uma determinada região pode estar dissimulada
em dezenas de experiências vivenciadas por essas pessoas, em diferentes
situações - nos levaram a tentar partir de um mesmo patamar de observação,
isto é, de um patamar no qual as experiências sociais coletivas vividas pelos
moradores de tais favelas fossem semelhantes. Dessa maneira, as duas favelas
envolvidas pelos respectivos programas de verticalização atendem ao
pré-requisito de não terem sido foco de movimentos sociais combativos
organizados de forma consistente - o que comportaria assim, cidadãos que
estamos chamando de sociedade civil não organizada - até o início do
programa de urbanização+,
A princípio, o resultado [mal deste trabalho estava condicionado a uma
rigorosa pesquisa qualitativa de campo. Esta seria feita de tal forma que fosse
possível a observação de preocupações voltadas à coletividade, presentes nos
moradores dos conjuntos habitacionais entrevistados. Dessa maneira,
poder-se-ia constatar sutilezas que indicassem a criação em potencial de uma nova
4 Embora a organização popular fosse um requisito indispensável para a incorporação de uma
favela no programa de urbanização da gestão Luiza Erundina, o caso que estudaremos não possui um histórico de reivindicação popular. Mesmo porque a seleção da favela Minas Gãs vem a reboque de uma pendência que administração anterior tinha com essa área, pois o processo de urbanização já houvera começado. Outra prova da baixa organização dessa população pode ser comprovada pela contratação de empreiteira para a realização das obras, uma vez que a prefeitura municipal não acreditou que com aquele grau de organização seria possível gerenciar um processo de construção de moradias.
visão de mundo por parte de indivíduos que lutam por se constituírem como
cidadãos.
Todavia, a partir dos primeíros contatos com os entrevistados,
percebemos que seria necessário adequar as expectativas iniciais dessa
pesquisa com o que parecia ser possível concluír das informações que estavam
sendo retíradas. Os pré-testes realizados com a população que serviu de
universo para a pesquisa trouxeram mudanças definitivas para a metodologia
que vinha sendo empregada. Baixa disposição dos entrevistados em se expor,
desconfiança e sobretudo desinteresse em refletír sobre as suas próprias
condições de vida fizeram com que o caminho traçado neste estudo fosse mais
complexo do que o previamente esperado, uma vez que o interesse último desta
pesquisa foi o de obter dados que nos abrissem a possibilidade de mensurar o
quão diferentes foram os impactos da política pública na vida daquelas
pessoas. Insistír em explorar a avaliação que os ex-favelados fazem do sistema
político, da relação entre os poderes ou mesmo do seu papel na sociedade,
estava levando à obtenção de respostas que pouco acrescentavam aos objetivos
da pesquisa.
Assim, uma vez afastada a idéia inicial de fazer longas entrevistas com
diferentes ex-favelados, foi adotado um questionário curto, contemplando
respostas abertas, que tinham como meta verificar o grau de satisfação do
morador em relação à sua atual habitação. A pergunta aplicada aos moradores
dos apartamentos do Projeto Cingapura e do conjunto Minas Gás se resumia a:
"em relação à residéncia anterior, cite os aspectos positivos e negativos da atual moradia." 5
Na observação das primeiras respostas a esse interrogação, notamos
que, por meio dessa questão sem complexidade maior, foi possível extrair tanto
dados referentes à atual moradia como dados referentes aos barracos
ocupados anteriormente por essa população. Na maioria dos casos, a resposta
sempre se referia à habitação anterior como forma de parâmetro de
comparação. Este fato acabou por contemplar uma das principais
preocupações dessa pesquisa, qual seja, a de fazer uma comparação entre a
situação atual e a época em que essa população era parte integrante de uma
favela, buscando sempre observar que tipo de aspecto foi considerado por eles
como relevante e qual a natureza desse aspecto. Desta avaliação, foi possível
ter conhecimento do tipo de aspecto que ocupa a primeira posição em matéria
de relevãncia na concepção dos habitantes do Projeto Cingapura e do conjunto
urbanizado durante a gestão Luiza Erundina. Tendo constituído esse ranking,
foi possível responder à seguinte questão: dado o fato da população
entrevistada ter sido envolvida em etapas diferentes das políticas públícas
habitacionais, há alguma diferença fundamental na avaliação feita por cada
um desses grupos no tocante à natureza dos aspectos positivos e negativos
dessa habitação? Dito de outra maneira: as diferentes bagagens culturais
adquiridas por esses dois grupos durante os processos de elaboração e/ou implementação dessas políticas públícas serão determinantes no momento de
avaliar a sua atual habitação e, no limite, a sua auto-estima?
A relação existente entre mudança na cultura política e aumento da
auto-estima do cidadão é vista por esse estudo como sendo de ordem direta.
Não há como motivar o cidadão para se engajar no desenvolvimento da sua
cidade se ele não se sentir digno de atuar na arena pública. Despertar o interesse, imaginação e comprometimento do cidadão para participar das
decisões que envolvama cidade está intrinsecamente relacionado às condições
mínimas de dignidade e de direitos humanos as quais esses mesmos cidadãos
se encontram.
A influência da cultura política, e de suas derivações, na vida da cidade
será explorada com mais detalhes no primeiro capítulo dessa dissertação.
Nesse momento, será feito o levantamento das principais teorias que têm
influenciado os estudos que versam sobre esse tema, buscando apreender, em
cada uma delas, elementos que sirvam de referências para a análise que aqui
será desenvolvida. Sempre fazendo algum tipo de adaptação à essas teorias,
teremos conhecimento dos tipos "puros" de cultura política existentes em uma
cidade (Almond e Verba); de como, potencialmente, ocorre o processo de
transformação das relações sociais, políticas e econõmicas de uma cidade, via
mudança na cultura política (Gramsci);e como se dá o início desse processo de
transformação, isto é, a passagem do seu nível mais micro até o nível mais
macro da sociedade.
Deve ser dito ainda de passagem que, segundo alguns autores, a
observação de mudanças na cultura política somente pode ser apreendida de
fato no caso de serem produzidos estudos longitudinais, o que significa dizer
que somente por meio de uma análise ao longo do tempo é que se torna
possível notar mudanças culturais. De fato, não há dúvida de que este
caminho proposto tende a ser o mais eficiente. No entanto, dada a escassez de
tempo disponível para a observação empírica de um estudo deste porte,
optou-se por utilizar um artificio que optou-sem dúvida também possibilita visualizar
mudanças culturais em determinados grupos. O artificio utilizado, como vinha
sendo exposto, consiste em selecionar grupos que tiveram experiências de
vidas semelhantes e, num segundo momento, fazer uma análise do impacto
que as diferentes políticas públicas causaram nestes grupos. Assim, por meio
de uma análise comparativa, toma-se possível isolar minimamente o alcance
que determinada política pública teve para aquele grupo.
Umas vez tido o conhecimento de como o processo de transformação da
cultura política pode influenciar a vida da cidade, iníciamos, no capítulo 2, o
entendimento de como as políticas públicas, que serão analisadas, buscaram
promover esse tipo de transformação. Faremos nessa fase a descrição dos
objetivos e dos métodos de implementação empregados por cada um dos
empreendimentos, dando ênfase à participação popular, aos custos das
unidades habitacionais e ao tempo de duração das obras.
No capítulo 3 desse estudo, os dados proveníentes da nossa pesquisa de
campo são agregados de tal forma a possibilitar a avaliação do grau de
satisfação dos moradores do conjunto habitacional, assim como os aspectos
positivos e negativos desses empreendimentos.
A formatação de tal capítulo só foi possível pois as entrevistas realizadas
utilizaram como base perguntas que permitiam aos entrevistados discursarem
a respeito dos aspectos positivos e negativos das suas atuais moradias, tendo
como contraponto a experiência vivida anteriormente nas favelas. Dito de uma
outra maneira, a intenção foi a de ter conhecimento do que os moradores
condições de habitação. Concluída essa etapa, agrupamos essas observações
segundo diferentes categorias: salubridade, limpeza, política/auto-estima,
segurança, estrutura fisica; entre outras, podendo observar assim no que se
diferenciou a implementação do "Programa de Urbanização de Favelas" ou do
"ProjetoCingapura", em relaçãoà compreensão que os participantes têm de si
mesmos. A hipótese deste estudo será confrrmada se as manifestações que
versam sobre um avanço na projeção daquelas pessoas no sentido de serem
concebidas como cidadãos conhecedores de suas potencialidades
apresentarem uma freqüência maior na população que tenha participado
ativamente de discussões junto ao poder público, na fase de implementação do
projeto.
Devemos ainda destacar que a possibilidade de negação da hipótese
citada acima, isto é, a não comprovação da consolidação de uma população
mais conhecedora das suas potencialidades como cidadã e que avance na
valorização dos aspectos que se referem não somente à sua necessidade
material, também trará relevantes informações acerca do alcance que uma
politica de participação popular pode ter. Tratar-se-ia, então, da hipótese de
que "a incorporação da dimensão politica no conceito de eficiência
governamental conduz a uma queda na taxa de eficiência instrumental de
qualquer programa socíal'". Será, então, interessante questionar qual é de fato
a amplitude de políticas de participação popular - que muitas vezes são
adotadas por serem consideradas como sendo a compensação feita por meio de uma maior eficiência política e/ou social em detrimento de uma queda da
eficiência instrumental de uma política pública - caso tenhamos resultados
semelhantes nos dois universos de amostras.
Na análise final dos dados, trabalhamos com dois universos de
respostas. O primeiro derivado da coleta dos dados provenientes das famílias
que participaram do Programa de Urbanização de Favelas e o outro das
famílias que não tiveram participação ativa nas decisões governamentais, na
fase de implementação do projeto, istoé, no Projeto Cingapura. A partir desses
universos e de leituras de textos que possibilitaram um maior embasamento
das questões que foram trazidas pela pesquisa, pudemos observar as possíveis
6FIGUEIREDO eFIGUEIREDO:1986.
mudanças na cultura política da amostra de ex-favelados participantes, ao
mesmo tempo em que comparamos esses dados com os dados provenientes
dos moradores do conjunto habitacional implementado sem a participação
coletiva dos atuais moradores.
No capítulo conclusivo, retomamos a teoria apresentada no capítulo
primeiro para delimitarmos os limites que este tipo de abordagem tem, dada a
realidade encontrada pela pesquisa. Em seguida, fazemos uma análise critica
das políticas públícas, ponderando os resultados da pesquisa, expostos no
capítulo 3, com os seus objetivos e métodos, apresentados no capítulo 2.
Para as considerações finais, resumimos os principais aspectos
abordados, tecendo alguns comentários propositivos. Por fim, acrescentamos,
em forma de apêndice, um breve resumo da polêmica na qual as duas políticas
públicas estiveram imersas nos últimos anos.
Ressalvas
Uma análise completa envolvendo as diversas preocupações que
margeiam as diretrizes de uma política social de habitação deve percorrer os
caminhos que levam às áreas de arquitetura e urbanismo, ciências sociais,
economia e administração pública. Para tal, é necessário que se faça uma
imersão em cada uma dessas áreas, buscando entender as minúcias e os
detalhes que se encontram nas entrelinhas dessas disciplinas.
Infelizmente, não será este o estudo que dará vazão a essa abordagem
mais completa. Essa tarefa extrapola as dimensões pré-definidas para esse
modesto estudo, cujo alvo principal é o entendimento de como uma política
pública voltada para população de baixa renda pode possibilitar, além da
benfeitoria em sentido estrito (isto é, no caso de uma política habitacional, a
aquisição de moradia digna), também um salto qualitativo na condição de
cidadania dessa população atendida.
Tendo em vista que o desejo da maioria dos profissionais das diversas
áreas voltadas as habitações populares é, em última instância, o de dignifIcar a
vida de pessoas carentes, deve-se considerar, então, que ser cidadão
ultrapassa viver em uma moradia digna, apesar de este fato ser condição
Projetos públicos podem, e devem, sempre que possível, além de
contemplar o foco inicial para o qual foram criados - no caso, a construção de
moradias populares -, propiciar ganhos de cidadania em uma outra amplitude.
Dito de outra forma, projetos de habitação popular podem solucionar não só o
problema visado, como também suscitar mudanças no modo de agir e pensar
dos cidadãos. Isto é, além de solucionar os problemas mais aparentes, podem,
ou melhor, devem também deixar marcas para que a cultura política do
cidadão seja redirecionada.
Sendo assim, a construção de casas populares não esgota o tema que se
refereà construção da cidadania no tocante a uma política habitacional. Ao
lado dessa também vital preocupação, encontra-se a necessidade de
possibilitar a ampliação da noção de cidadania que cada indivíduo acumula em
seu interior.
Uma vez que se tem esse objetivo específico acima mencionado, as
análises que se seguem buscam sempre responder a essa questão. No limite,
isso fará com que certas áreas, como a sociologia,a política e a administração
pública, sejam mais privilegiadasem detrimento de outras, como a arquitetura
e urbanismo e a economia, o que significa dizer que a adequação da
profundidade desses últimos temas às necessidades de uma análise completa
somente poderá ser feita em um estudo posterior.
Em decorrência de o objetivo principal da pesquisa ter sido o
entendimento de como os administradores públicos podem proporcionar um duplo ganho para a população a ser atendida pelas políticas sociais, a análise
se debruçou sobre dois conjuntos habitacionais implementados durante
gestões governamentais que representam ideologias políticas opostas. Dessa
maneira, foi inevitável a comparação entre esses dois tipos de políticas
públicas, guiadas por pressupostos diferentes.
CAPÍTULO 1 - Para além das instituições
"Cultura política serefere não ao que estáacontecendo no mundo da política mas sim
ao que as pessoas acreditam sobre esses acontecimentos" Gabriel Almond.
Grande parte da literatura que se detém no tema relacionado às
mudanças culturais concorda em dizer que a objetivação do vetor pelo qual
essas mudanças ocorrem não pode ser feita de maneira precisa. A influência
que a cultural política sofre proveniente de mudanças institucionais (de ordem
econômica, sociopolítico ou tecnológico), se soma às mudanças que essas
mesmas instituições sociais absorvem de fatos que emergem de mudanças na
cultura política, evitando assim, teorias que apregoam somente uma forma de
determinismo que estabeleceria uma única relação de causa e efeito. A solução
para as situações que indicavam uma única via de influência se deu por meio
de concessões de pesos não desprezíveis para ambos os tipos de estudos,
refutando assim a busca de um só fator catalisador de mudanças. O impacto
da mudança econõmica, político-socialou tecnológica na cultura e o impacto
da mudança cultural no político-social, por exemplo, devem ser entendidos
atravês de um sistema que se completa. Ambos os fatores devem ser
responsabilizados por engendrar mudanças na sociedade.
Conforme a hi~te~ deste estudo, o estabelecimento de políticas..
---._-~ _..
públicas que contemplem o envolvimentoda população a ser atendida_p~opi~ia
-~_._--
-
---mudanças culturais naqueles cidadãos. Ao mesmo tempo, trabalha-se com a
-premissa de que foram os movimentos sociais que provocaram uma maior
~_
...- ,..------
~- --~._- ~- - - .conscientização do poder público acerca da importância de adotar práticas
~- -~- - - ~ - .
político-a~~inistrativas mais Voltadas para o social. Portanto, esta pesquisa
não tem a pretensão de estabelecer um fator único responsável pelo movimento
de enraizamento de uma cultura democrática na sociedade brasileira.
O estudo incide sobre o campo da cultura política por acreditar que este
seja um dos elementos decisivos para a permanência das decisões tomadas no
campo administrativo. Mudanças na cultura política, de tal forma que se possa observar a incorporação de princípios democráticos pela população, têm sido
vistas como fator determinante para a instauração e permanência de práticas
incorporação das iniciativas dos governos no campo das idéias e,
concomitantemente, sua não tradução em ações práticas, faz com que essas
iniciativas não perdurem no tempo, caindo em desuso assim que o estimulo
momentâneo do primeiro impacto diminui.
A incorporação de novos princípios no modo de pensar e agir dos
cidadãos é conseqüéncia e causa da mudança na visão de mundo dos atores
sociais. Considerando que qualquer tipo de prática social traz consigo um
conjunto de valores, a participação dos cidadãos, debatendo e procurando
soluções para os problemas da cidade, pressupõe a construção de uma
identidade própria por essa população. É a identidade pensada em oposição à alienação, no sentido de "...uma auto-percepção, realista de suas próprias
características potenciais e limitações, superando falsas identidades
outorgadas de fora" (EVERS: 1984). O resgate da identidade do indivíduo em
uma sociedade multifacetada abre espaço para constantes contradições
demostrando, por vezes, indivíduos em constante alternância de atitudes.
"Tudo isso é muito fragmentário e descontinuo, as conquistas são incertas,
processam-se em um terreno minado por práticas autoritárias e excludentes e
não atingem muitos dos que se encontram fora das arenas organizadas da vida
social e política" (TELLES:1994).
As conquistas incertas desse processo nos alertam para a necessidade
de uma ação continuada de participação. Tendo em vista que o processo
orgânico de participação popular tende a ser necessariamente lento, dada a
sua vertente de continua aprendizagem, e que as conseqüências, no nível de
toda a sociedade, só poderão ser observadas após várias décadas, o estudo a
ser aqui desenvolvido recai sobre o que consideramos ser uma das maneiras
possíveis de observar, a curto prazo e de maneira pontual, os resultados
advindos dos grandes investimentos que muitos governos locais têm feito no
campo da criação de mecanísmos de participação popular.
Ao ser iniciada a pesquisa sobre o tema cultura politica, foi possível
observar uma vasta líteratura que serve de sustentação para a elaboração de
diversas escolas de pensamentos referentes ao tema. Ao contrário do que se
esperava, o delineamento de um único e expressivo conceito de cultura política
foi inviabilizado. Isso se deve tanto à pluralidade de defmições que cobrem o assunto, como também ao fato de que grande parte dos intelectuais que tratam
do tema sequer se detêm nessa problemática, impossibilitando assim a
obtenção de um consenso sobre o tema. O uso disseminado da nomenclatura
cultura política não está necessariamente vinculado a uma delimitação das
fronteiras desse tema. Vários estudos se referem ao tema por meio de análises
qualitativas e de conteúdo, não se detendo em estabelecer uma dimensão para
o conceito. Isso se deve em parte à dificuldade que se tem em estabelecer
fronteiras precisas acerca de um enquadramento adequado do terna" e em
parte ao fato de alguns pesquisadores creditarem ao tema o estudo de todos os
tipos de manifestações culturais possíveis e imagináveis.Dado que esse campo
não é consensual de definições, este estudo procurou selecionar o conceito que
mais se aproximasse do contexto com o qual se trabalhará.8
Outra importante característica a respeito da defmição do conceito de
cultura política está na clivagemexistente entre os estudos que se realizam da
Segunda Grande Guerra à década de 1960, período responsável pela
disseminação desse tipo de abordagem, e as pesquisas mais recentes, fruto da
reaproximação de muitos estudiosos a esse tema, após um período de
dominação das abordagens voltadas ao determinismo econômico na vida
social.
Entre os paradigmas de cultura política que tiveram grande influência
nos estudos das décadas de sessenta em diante, deve-se mencionar sobretudo
dois tipos em partícular'': o conceito de cultura cívica proposto por AImond e
Verba, que busca explorar as pré-condições culturais existentes para um
7 A dificuldade em se obter uma definição precisa do tema, assim como os conflitos entre os paradigmas existentes e as dificuldades de operacionalização das pesquisas, são os três maiores problemas enfrentados pelos estudos de cultura política. (Gibbins: I989).
A busca de um conceito que se adequasse às pretensões dessa pesquisa obedeceu a dois critérios. O primeiro direcionado e.o conteúdo e o isegundo à forma como esse conceito é trabalhado. Procurava-se um conceito que desse conta dos temas que seriam tratados por essa pesquisa, isto é, um conceito que trouxesse parâmetros de comparação no que se refere às mudanças de comportamento de uma população favelada. Na ausência desse conceito, seria privilegiada a abordagem que possibilitasse não o entendimento do conteúdo da cultura política da população mas sim a forma pela qual ocorrem as mudanças nessa cultura - objeto esse também desta pesquisa. A adequação do conceito à realidade brasileira pesquisada ficou a cargo das conclusões desse estudo.
governo estável, e o conceito gramsciano de hegemonia, segundo o qual a
cultura não seria determinada pela economia, nem por qualquer classe social,
mas sim pelo resultado de conflitos de forças políticas. Diferentemente,
estudos mais recentes, que envolvemo tema de cultura política, descartam a
necessidade de se pensar em uma única cultura hegemônica; a harmonia da
ordem política seria sustentada por uma pluralidade de visões compreensivas e
abrangentes que compartilhariam de uma concepção política de justiça, fruto
de um consenso sobreposto", Tanto o conceito de cultura cívica como o de
hegemonia devem ser brevemente explorados pois, embora já tenham sido
largamente criticados pelos outros conceitos que os sucederam, continuam
prestando algum tipo de referênciaao tema, inclusiveà pesquisa que faremos.
Além dos dois paradigmas mais influentes, examinaremos, também,
duas abordagens mais recentes. Uma delas com grande expressão nos estudos
realizados nas décadas de 1980 e 1990 nos países industrializados
(desenvolvidapor Inglehart), e outra que sistematiza o estudo do tema cultura
política por meio de uma divisão analitica que aborda a sua dimensão macro,
meso e micro. Justifica-se a inserção dessas duas últimas escolas nesse
estudo devido a forte influências contemporânea da primeira e por
compartilharmos dos mesmo tipo de entrada no tema apresentado por esta
última.
Cultura Cívica
A clássica abordagem feita por GabrielAlmonde Sidney Verba, em Civie
Culture - Politieal Attitudes and Democracy in Fiue Nations, é a primeira
perspectiva a ser examinada. Grande parte dos estudos referentes à cultura
política em nossos dias ainda se baseia nesse trabalho", A obra, datada de 1963, desenvolve três tipos puros de cultura política: "paroquial", "súdita" e
"participante". Em linhas gerais, sem o aprofundamento necessário de t detalhes, pode ser dito que, para esses autores, a cultura política de uma
,"
nação é a particular distribuição de diferentes tipos de orientações para
diferentes aspectos do sistema político.As orientações foram por eles divididas
10Rawls,J.Political Liberalism. Nova York, Columbia University Press, 1993.
11 Ver Hague, Harrop e Breslin. Comparative Government and Poliiics (3° edição). Londres, MacMillan, 1992. Capo 6. pág. 138.
em: a) cognitiva. conhecimento e crença sobre o sistema político, seu papel e a
incumbência desses papéis, suas demandas e seus resultados; b) afetiva, onde
tem-se O sentimento sobre O sistema político. seu papel pessoal e performance;
e c) orientacão valorativa, julgamento e opinião sobre diferentes aepectos do
sistema político que normalmente envolve a combinação de valores e critérios
com informações e sentímentost-. Por sua vez. os autores dividem os aspectos
do sistema político em: i) estruturas específicas. como os corpos executivo.
legislativo e burocrático; íi] ocupantes desses papéis: como os executores.
Iegisladores e administradores; e, iii) no momento de execução das políticas
públicas. Para Almond e Verba, o cruzamento dessas seis variáveis - três
ligadas às orientações (cognitiva, afetiva e valorativa) e mais três ligadas aos
aspectos nolítícos [estruturas, planeiadores e processo de execução) dá origem
a uma matriz Que, ao ser considerada em todas as suas lacunas, proporciona O
que pode ser chamado como a cultura política de uma nação, Dessa maneira, é
possível observar para qual aspecto da política os entrevistados estão voltados,
possibilitando assim o conhecimento das características da vida política que
fazem mais sentido para eles e quais as suas motivações para acompanhar a
realização desses aspectos.
Almond e Verba defmem quatro áreas de aprendizado que derivam da
análise da matriz nas suas diferentes lacunas. Por meio de entrevistas Que dão
conta das questões colocadas acima, pode-se observar qual tipo de
conhecimento, opíníão e julgamento que o entrevistado tem da sua nação e do
seu sistema político em geral (história. tamanho. poder. caracteríetícas institucionais. entre outras), Apreende-se. também. qual o conhecimento que o entrevistado possui das estruturas e papéis das diferentes elites políticas e das
propostas políticas Que estão envolvidas na defíníção do curso das políticas
públicas, quais as suas opiniões a respeito dessas estruturas, lideranças e
propostas políticas. Um terceiro grupo de respostas identificaria o
conhecimento, opinião e julgamento Que entrevistados têm do curso da
execução das políticas públicas, as estruturas. indivíduos e decisões
envolvidas nesse processo, Por fim, ao considerar as variáveis definidas pelos
autores, é possível identificar como os entrevistados se vêem como membros
desse sistema político, qual o conhecimento que eles têm dos seus direitos,
poderes, obrigações e estratégias de acesso às decisões públicas e como eles se
sentem a respeito de suas capacidades e por que chegaram a essa conclusão.
Finalmente, dessas quatro áreas de aprendizado é possível gestar os três
tipos de cultura políticas mencionadas inicialmente. Sendo que para o tipo
paroquial, a população estudada se caracteriza por ser vagamente conhecedora
do governocentral, considera a sua vida tão distante das decisões tomadas no
nível nacional que poderia ser vista como uma comunidade que vive isolada do
contato com os governos nacionais. Para a cultura política súdita, cidadãos
vêem a si próprios como seres sujeitos a decisões do governo, em vez de
participantes do processo político. Esses cidadãos têm noção do sistema
político, do poder governamental, mas não se sentem capazes de interferir na
transformação desse poder. Já para a cultura política denominada
participante, cidadãos tanto acreditam que podem contribuir para o sistema
políticocomo se sentem afetados por esses.
Almond e Verba utilizaram esses tipos ideais por acreditarem que a
estabilidade de um regime democrático se dá preferencialmente em uma sociedade onde a cultura política participante seja relativizada por atitudes
súditas. Esse "mix" foi denominado como cultura cívica. Nessa cultura, os
cidadãos são politicamente ativos ao ponto de expressarem as suas
preferências para o governo. Porém, não se envolvem demasiadamente em questões particulares. Os cidadãos se sentem capazes de influenciar o governo,
mas freqüentemente não escolhem agir dessa maneira, mostrando uma
posição flexívelfrente a esse último.
Apesar do classicísmo que rodeia as colocações feitas por Almond e
Verba, decidimos não seguir na mesma ordem os passos deixados por esses autores. Este trabalho não se deterá no conceito de cultura cívica, pois o
objetivo,ao contrário dos esforços daqueles autores, édar uma maior ênfase às
mudanças na cultura política e não procurar explicações para a estabilidade
do sistema democrático. Almonde Verba desenvolveramo conceito de cultura
cívica na tentativa de estabelecer uma ponte entre a continuidade de normas,
valores tradicionais e a estabilidade social. Para esses autores, quando se tem
por trás o interesse em preservar o status quo, a ênfase maior deve ser dada
aos elementos da sociedade que reforçam a continuidade e a estabilidade, isto
é, a ênfase nas instituições seria o ponto principal para a manutenção da
estabilidade social.
Em contraste com esse objetivo, no estudo que aqui está sendo
desenvolvidoa preocupação crucial é a de detectar um caminho através do
qual poder-se-á desestabilizar a lógica perversa de exclusão social de parte da
sociedade brasileira. Dessa maneira, não serão utilizados os "tipos idéias" de
Almond e Verba, no mesmo sentido que por eles foram explorados. Nos
deteremos apenas às idéias principais que envolvem tais definições, de tal
maneira que se tome plausível aproximar as populações com as quais
trabalharemos da idéia que se tem de uma cultura política paroquial, súdita
ou participante. Tal aproximação será feita sem a necessidade de aplicar um
questionário que tenha como meta preencher todas as lacunas da matriz
sugerida por esses dois autores, o que reforça a nossa intenção de tê-los mais
como suporte analítico do que como pilares de nossos estudos.
Cultura hegemônica
António Gramsci tinha a constante preocupação de pensar a
transformação da sociedade. Como Marx, via o modelocapitalista como sendo
injusto socialmente e entendia que seria necessário criar uma nova ordem onde uma parte mais signifIcativada sociedade civil se visse representada no
aparelho de Estado.
O agente desta transformação social seria o que Gramsci denominou de
bloco social, intelectual e moral. Em oposição ao que fora pregado por Marx, o
agente da transformação social não seria constituído por apenas uma classe
mas sim por um bloco; no limite, isso daria a idéia de transcender aos
interesses corporativistas de uma única classe. Este bloco seria composto por
um conjunto de intelectuais de massa ou, em outras palavras, seria formado
por todos os indivíduos que compartilhassem uma mesma visão de mundo. A
abrangência alcançada pelo termo intelectuais de massa é a mesma que deve
ser considerada quando pensado em termos de todos os indivíduos, uma vez
apenas no grau atingido por eles, sendo que "estes graus nos momentos de
extrema oposição, dão lugar a uma verdadeira e real diferença qualitativa: no
mais alto grau, devem ser colocados os criadores das várias ciências, da
filosofia, da arte etc. Nos mais baixos, os "administradores" e divulgadores
mais modestos da riqueza intelectual já existente, tradicionalmente
acumulada" (GRAMSCI,1989B,p.11).
Defínídaa composiçãodo bloco, este somente existiria de fato se os seus
membros estivessem compartilhando uma mesma visão de mundo. Pois seria
essa uma das características necessárias para que este bloco fosse promotor e
resultante de uma unidade entre os seus membros. O fator que traria esta
unicidade seria o compartilhamento da mesma visão de mundo unitária e
coerente. Para esta última condição, subentende-se que as pessoas formadoras
do bloco histórico apresentariam uma coerência entre o que estaria sendo
pensado e as suas atitudes cotidianas, pressupunha-se uma coadunação entre
o pensar e o agir dessas pessoas, chegando ao ponto-limite de não precisar
elucidar quais seriam as suas atitudes caso estivesse cristalina qual a visão de
mundo que estava sendo compartilhada.
O agente da transformação para Gramsci será portanto esse bloco social
constituído segundo as etapas esboçadas acima. Mas como obter esse
consenso? Atravês de quais mecanismos os indivíduos passarão a ter uma
concepção de mundo unitária e coerente? Como alcançar este estágio que
viabiliza a transformação da sociedade? Para responder a estas questões, o
autor inova na tradição que havia sido cunhada por Marx e seus demais
seguidores.
A transformação da sociedade ou, segundo Gramsci, a instauração de
um projeto hegemôníco, isto é, a criação de um bloco social no qual seus
membros estejam compartilhando de uma mesma visão de mundo unitária e
coerente, tem como condição necessária uma reforma intelectual e moral dos
indivíduos dessa sociedade. A novidade para as ciências sociais está em não considerar que apenas uma aliança entre diversos setores, entre diferentes
classes, seja o suficiente para viabilizar a transformação. Não se trata de um pacto social, onde as pessoas, ou os grupos, fazem concessões mas, no
entanto, permanecem com as mesmas visões de mundo anteriores ao pacto. A
reforma intelectual e moral supõe mais do que isso: neste momento
trabalha-se com a idéia de que deve existir uma síntese maiselevada, que seria o fato de
as pessoas compartilharem até mesmo o que Gramsci denomina de vontade
coletiva. O entendimento civil deve extrapolar para o reino das vontades, não
se trata apenas de ceder para perseguir determinado objetivo, mas de acreditar
de fato que aquele é o melhor objetivo ou, ao menos, a melhor solução. A
constituição de um projeto hegemônicoperpassa por uma sintonia no nível das
aspirações.
Gramsci faz uma outra exigéncia para a concretização de uma visão de
mundo unitária e coerente. Esta se refere ao fato de que a reforma intelectual e
moral, por um lado, não deva ser feita via imposição de uma vontade alheia
aos desejos .dos membros do bloco social, e, por outro, que tenha de ser
respeitada por esses mesmos cidadãos. Nada deve ser imposto neste momento,
a unidade deve ser alcançada via consentimento ativo. Os indivíduos devem ter
uma visão de mundo critica e consciente, da mesma forma que devem
"participar ativamente na produção da histôria do mundo, ser o guia de si
mesmos e não aceitar do exterior, passiva e servilmente a marca da própria
personalidade". (GRAMSCI,1991, p.12). Podemos observar que a hegemonia é
um modo específico de exercício de poder, bem mais elaborado do que aparenta. Compartilhar uma mesma visão de mundo é um estágio posterior a
milhares de "discussões", até que cada indivíduo esteja convencido de que a
sua visão de mundo, que será a mesma dos demais, é a mais coerente e que
vale a pena lutar para que ela se torne dominante na sociedade.
Um outro ponto que deve ser levantado na elaboração de um projeto
hegemónico é o de que este se refereà sociedade como um todo. Não se trata
da dominação de uma classe, como já foi dito anteriormente, mas sim de um
projeto globalizante, que envolva e satisfaça a grande maioria dos setores da
sociedade - com exceção de um dos setores fundamentais da sociedade quando
colocado frente a interesses antagônicos aos da maioria hegemônica. O termo
"satisfaça" tem uma conotação especial pois traz a dimensão do não imposto,
daquilo que é aceito via consentimento ativo. A hegemonia não privilegia a
coerção nem tampouco a subordinação. O fato de ser um projeto de mundo
corolário a articulação dos diferentes interesses presentes na sociedade.
Entretanto, quanto aos interesses antagônicos, que de forma alguma poderão
ser conciliados, estes devem ser submetidos ao projeto hegemônicoà força.
Este é o único momento em que Gramsci admite e legitima o uso da força,
sendo que um dos motivos para que isso seja feito se refere ao fato de a
hegemonia, além de ser ético-política, ser também econômica; ou seja, o
projeto hegemônico "não pode deixar de se fundamentar na função decisiva
que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica".
(GRAMSCI, 1989A, p. 33).
Retomando à necessidade de criação de uma concepção de mundo
unitária e coerente por parte dos membros de um bloco social, que poderia ser
vista como uma condição prévia à reforma intelectual e moral sugerida pelo
autor, deve-se mencionar que o conhecimento por parte desses indivíduos de
suas próprias histórias enquanto seres humanos ocupa um papel de
fundamental importància nesse projeto. Para Gramsci, não é possível aos
indivíduos elaborar uma concepção de mundo, critica e coerente, sem a
consciência da sua historicidade. O lugar que o homem ocupa no processo
histórico e todas as etapas que foram superadas até então são informaçôes
necessárias para que cada individuo saiba formular de maneira mais
elaborada a sua própria concepção de mundo. Não só essa, mas todo e
qualquer tipo de informação influenciará positivamente na elaboração de uma
visão de mundo do tipo hegemônica. Pois, por princípio,esta será uma visão de
mundo que englobará todos os setores de uma sociedade, que supôe
necessariamente, como já fora mencíonado, uma convivência com as
diferenças. Logo, o conhecimento prévio do outro ajuda na elaboração e no entendimento de uma determinada concepção de mundo. A alteridade
possibilita a ampliação dos conhecimentos dos indivíduosde modo a combater
o etnocentrismo e o corporativismo.
Gramsci viu na reforma intelectual e moral o momento de uma elevação
intelectual das massas. Não somente no sentido de democratizar a cultura, isto
ê, de uma reforma educacional, pela qual seria possível o acesso de todos os
indivíduos aos elementos que podem enriquecer o saber destes, mas,
sobretudo, de se ter a dimensão da uníversalídade'", O processo de elevação
intelectual das massas não significa o acúmulo de cultura sem nenhum
sentido teleológico.A elaboração de uma visão de mundo mais refinada, que dê
conta das diferenças, é o sentido :finaldesse processo. Essa elaboração deve
ser feita via consentimento ativo e que a superação das diferenças somente
ocorrerá de fato no real, no concreto. O discurso representa um papel vital na
teoria gramsciana, mas somente será no nível do real/concreto que se poderá
ter a certeza de que os interesses corporativos serão superados. Gramsci
acredita que qualquer tipo de ação prática traz consigo um conjunto de
valores, uma determinada visão de mundo. Esta se manifesta tanto de forma
muito elaborada e num alto nível de abstração, como nas formas mais simples
do cotidiano. Deste tipo de afirmação, fica cristalina a associação existente
entre cultura e política em Gramsci. As posições tomadas pelos indivíduos em
todas as instâncias refletem - segundo Gramsci- uma postura política,
entendida aqui no sentido mais amplo da palavra. Pois a visão de mundo
elaborada pelos indivíduos está sendo vista de forma crítica, unitária e
coerente.
Por uma questão de ordem analítica, a exposição acima apresentada
separou as diversas categorias gramscianas. No entanto, toma-se necessário
explícitar que os conceitos estão imbricados uns nos outros. Eles se
completam e se explicam mutuamente, isto é, na prática, estes momentos
acima rapidamente apresentados não serão vistos separadamente, a relação
entre cultura e política sempre existirá. Desde a formação do bloco histórico,
passando pela reforma intelectual e moral, via consentimento ativo, até a
elevação intelectual das massas. O projeto hegemõnico formulado nos moldes
vistos acima pode ser entendido como a expressão da aglutinação da maior
parte da sociedade civilcom o Estado.
Embora o conceito desenvolvidopor Gramsci tenha como foco principal
vislumbrar um processo de mudança - em oposição ao enfoque de estabilidade
dado pela cultura cívica-, a sua operacionalizaçãotrouxe dificuldades que não
puderam ser superadas por esta pesquisa. Com exceção das pessoas que já se
envolveramativamente em movimentos coletivosde reivindicação, a maioria do
público entrevistado de ex-favelados peca por ter informações escassas a
respeito de temas que envolvema estrutura básica da sociedade, isto é, por se
encontrarem num estágio no qual não se sabe qual éa estrutura de poder
presente no sistema político e tampouco se sabe discernir de maneira geral
quais órgãos públicos se encarregam por quais funções."
Explorar as perspectivas de transformação social junto a um público
que não consegue alcançar a significaçãode uma dimensão que vá além do seu
cotidiano resultou num impasse metodológicocuja solução só foi possível por
meio de uma mudança de perspectiva em relação às formulações apresentadas
pelo público que constituiu a amostra desta pesquisa e, conseqüentemente, do
afastamento parcial da perspectiva gramscíana que priorizaa transformação
da sociedade do ponto de vista global.
Assim,a exemplo do ocorrido com a teoria que explora o conceito de
cultura cívica, o estudo aqui desenvolvidonão se baseará de maneira irrestrita
à perspectiva gramsciana, uma vez que, para nós, as proposições apresentadas
pela população de ex-faveladosnão nos traz uma perspectiva de transformação
para a sociedade como um todo. Entretanto) ao contrário do que se poderia
imaginar, esse fato não significaque tal teoria seja de pouca valia para a nossa
pesquisa. Explorar o tema da cultura política,apresentandoas contribuições
de Gramsci,se justifica exatamente por acreditarmos que o movimento
descrito por esse autor contempla o caminho a ser percorrido no longo prazo
por essa mesma população de ex-favelados, uma vez superado o estágio de
carência crônica no qual se encontravam.
Esta breve caracterização dos dois paradigmas que serviram de base
para a maioria dos estudos relacionados à cultura política de uma região
14 Como já foi mencionado anteriormente, o público que serviu de base para essa pesquisa foi selecionado, entre outros aspectos, por não poder ser caracterizado como sociedade civil organizada. As experiências de ação coletiva foram, dentro da medida do possível, evitadas por serem catalisadoras de conscientização social. Uma vez que a esse estudo coube examinar o impacto que um tipo de política pública teve no imaginário de uma determinada população, avaliou-se que quanto menos previamente politizado o individuo fosse mais fácil seria identificar o elemento dissonante na sua visão de mundo.
indica a origem do descompasso existente entre qual deva ser considerado o
escopo das pesquisas centradas neste tema. Enquanto o conceito de cultura
cívica se remete sobretudo aos temas referentes ao sistema político e suas
derivações para a vida dos cidadãos, o utilizado por Gramsci amplia esse
escopo, dando às relações cotidianas em todos os níveis
a
mesma magnitudeque as ações voltadas para o sistema político comporta. A abrangência
alcançada pelo conceito gramsciano permite, no limite, a não utilização da
nomenclatura cultura política, e sim cultura e política, uma vez que não há
uma cultura voltada para o sistema político e outra voltada para as outras
esferas da vida da pessoa, mas sim uma só que se expressa em momentos
diferentes.15
Revolução silenciosa
Remetendo-se a uma realidade. que. não condiz com o universo vivido
pela população que. serviu de base. para este estudo, uma terceira perspectiva
tem alcançado um amplo espaço no debate que.procura precisar o abrangência
do tema cultura política.
Após sucessivas tentativas frustadas de busca de um novo paradigma
para o conceito de cultura política, grande parte da literatura internacional dos
anos oitenta e noventa passou a explorar a perspectiva aberta por Ronald
Inglehart16. Transformações na cultura política e no comportamento das
sociedades industriais vêm sendo abordadas como forma de elucidar os mais diversos temas que fazem parte da agenda dos paíse.s desenvolvidos. O
imaginário dos povos europeus ocidentais e. norte-americano vêm sendo
estudado com o objetivo de entender como tem ocorrido a apreensão por parte
dessas populações de temas como o declíniodo consenso político,as alterações
nas expectativas dos eleitores, a descrença em grandes verdades entre outros.
Essa terceira perspectiva de estudo passa pelo melhor entendimento da
emergência de novos movimentos sociais, como o feminismo e ecolôgíco,queda
do muro de Berlim, surgimento da chamada nova direita, aumento de
informação polític.aaos cidadãos via nova mídia, crescimento da críminalídade
ao mesmo tempo em que se tem um declínio do interesse e da participação em
política etc..
Muitos desses. temas podem ser reunidos em uma problemática maior
que. discute. a tensão existente. entre nova e. velha geração no mundo
contemporâneo. Autores comoGíbbíns" destacam esse movimento como tendo
início nos anos oitenta, mas observado sobretudo nos anos noventa. Segundo
esse autor, ao se afastar do sentimento de solidariedade - considerado a
essência do que tem sido chamado de velha geração -, a nova geração tem
desenvolvido um. sentimento de pouco comprometimento em relação à coisa
pública que põe em cheque o modelo do Estado de Bem-Estar Social, Atenções
têm sido voltadas para esse tema, uma vez.que o modelo de desenvolvimento
baseado no Estado provedor pressupõe a cobrança de encargos pelo governo
como forma de sustentar o bem-estar de uma parcela da população que. por
determinado motivo, não esteja gerando renda de acordo com as suas
necessidades. isto é, ser solidárioé. condiçãosine. qua noti para que.o sistema
seja bem sucedido. Na ausência de tal sentimento, observa-se, então, o
surgimento de uma nova relação entre governo (Estado) e sociedade, que se
baseia em. um patamar no qual os valores de pertencímento dos cidadãos
divergem do sentimento de solidariedade então presente nos países
desenvolvidos a partir do período pós II Grande Guerra, A gravidade desse
tema atraiu a produção intelectual dos. autores que pensam as mudanças de valores da geração que, ao ter assegurado os principais serviços sociais.(saúde,
educação, previdência e.no limite seguro-desemprego),iniciou um processo de
afastamento e descomprometimento em relação ao provedor desses serviços e.
passou a priorizar o.seu próprio bem-estar, independente da sua relação com
os outros cidadãos.
Apesar da atualidade desse tema, esta pesquisa optou por se afastar
totalmente das linhas de pensamento que têm abordado essa problemática,
por considerar que as. ambições da população a ser estudada os favelados
-não se aproximam das questões levantadas acima. Não se. trata de analisar
16Ver sobretudo, INGLEHART, 1977.
17 GIBBINS, J. R. Contemporary Political Culture. Politics: in a Postmodern Age. Londres, Sage Publicatiens, (Sage modem polites series; 23), 1990.
questões do tipo afastamento do Estado tendo com universo uma população
que jamais seapr:o~imon deste.
Macro-,.meso-, micro-cultura política
Uma vez que as teorias mais disseminadas que trabalham com o tema
"cultura política" apresentam abordagens que serão utilizadas somente de
forma parcial, dado o enfoque proposto neste estudo - seja por tratar de
condições para a estabilidade do sistema quando se está pensando em
transformação, seja por tratar de formação de grandes grupos que
comPflrtiJhªJn de uma me~mª vi.são de mundo Qugndo se está pensando em indivíduos atomízados na sociedade -, e que a teoria que tem ak.ançado major
expressão nos estudos desenvolvidos nos países centrais trata de questões que
náo fazem parte do mundo do público com 9 qual se está trabalhando, então
buscamos um conceito qJle possibilitasse a operacíonalízacão desta pesquisa.
isto é; que tratasse a sociedade no seu aspecto micro. ao mesmo tempo que
contemplasse a vertente não somente da estabilidade. mas sobretudo da
mudança cultural.
Este estudo se detém nas possíveis mudanças nos valores políticos dos
cidadãos que participaram do programa de verticalização de favelas da
Prefeitura Municipal de São Paulo entre os anos de 1989 e 1992, gestão Luiza
Erundína, e do programa de habítacão social denominado "Projeto Cíngapura",
iniciado em 1993 na gestão Paulo Maluf. Para tal. foi privilegiada a teoria que
dá conta das mudanças no chamado nível micro da sociedade, isto é. a teoria
que tem como foco o indivíduo, suas atitudes políticas e motivações. quer como
ênfase na vida cotidiana do cidadão foi dada por Brian Girvin no seu estudo
"Change and Contínuitv in Libera1Democratíc Política1Culture", o que por sua
vez acabou por fornecer as bases que sustentaram esta pesquisa.
sem que a estabilidade do sistema político seja afetada. A longo prazo, a estabilidade será assegurada, se a sociedade se adaptar às mudanças ao