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O carnaval de Natal/RN: espaço dos "índios" no tempo de folia

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia – PPGe

VALDEMIRO SEVERIANO FILHO

O CARNAVAL DE NATAL/RN: ESPAÇO DOS “ÍNDIOS” NO TEMPO DA FOLIA

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VALDEMIRO SEVERIANO FILHO

O CARNAVAL DE NATAL/RN: ESPAÇO DOS “ÍNDIOS” NO TEMPO DA FOLIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia do Departamento de Geografia do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para obtenção do título de Mestre em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Alessandro Dozena.

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VALDEMIRO SEVERIANO FILHO

O CARNAVAL DE NATAL/RN: ESPAÇO DOS “ÍNDIOS” NO TEMPO DA FOLIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia do Departamento de Geografia do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para obtenção do título de Mestre em Geografia.

COMISSÃO EXAMINADORA:

_______________________________________________ Prof. Dr. Alessandro Dozena - Orientador

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

_______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Santos Maia – Examinador Externo

Universidade Federal de Juiz de Fora

_______________________________________________ Prof. Dr. Anelino Francisco da Silva – Examinador Interno

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Meus sinceros agradecimentos aos meus pais, Valdemiro Severiano e Maria Tavares de Araújo Severiano, à minha esposa, Karla Lydiana Santos da Silva e, ainda, à minha irmã Mariêta Miranda Severiano Neta, pelo auxílio no presente trabalho e pelo que representam em minha vida.

Agradeço o meu orientador Prof. Dr. Alessandro Dozena, por ter acreditado em minha competência e por haver me assistido nesta pesquisa, de modo a contribuir em grande parte para o sucesso deste trabalho.

Sou grato aos amigos e colegas do curso de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sobretudo aos discentes do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia – PPGE e alunos do Programa de Educação Tutorial de Geografia – PETGEO. Demonstro minha gratidão aos geógrafos: Janny Suênia, Pablo Raniere, Gervásio Hermínio, Daniel Nunes, Jeyson Ferreira, Eduardo Nascimento, Gomes Neto e Fábio Nunes, que me acompanharam nesta caminhada.

Presto meu reconhecimento aos professores da Pós-Graduação que facilitaram o entendimento do conhecimento geográfico, bem como aos mestres das outras áreas das Ciências Humanas e Sociais, em especial, aos membros da Banca de Qualificação e Defesa: Prof. Dr. Carlos Maia, Prof. Dr. Anelino F. da Silva e Profa. Dra. Rita de Cássia Gomes.

Impossível não incluir nesses agradecimentos a Profa. Dra. Flávia de Sá Pedreira – que participou da Banca de Qualificação – e Profa. Dra. Julie Antoinette Cavignac, pesquisadoras do Grupo de Pesquisa “Festas, Identidades e Territorialidades”, o qual sou membro.

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RESUMO

A cidade de Natal/RN apresenta-se como palco para múltiplas manifestações culturais, entre as quais se encontram as tribos de índios carnavalescas. O presente estudo procurará compreender a produção do carnaval destas agremiações enquanto uma manifestação de lazer e trabalho. Pautado numa visão pluralista, percebemos que os vários usos do espaço implicam em territorialidades que envolvem as dimensões política, econômica e simbólica, intermediadas pela cultura. Sob a análise proposta, pretendemos desvendar as dinâmicas espaciais e os vários agentes sociais que engendram relações de poder, trabalho e

sociabilidades, mostrando neste “mundo” carnavalesco seus aspectos culturais e suas práticas sociais, guardando, em seu cerne, o caráter popular e ordinário do cotidiano. A pesquisa mostra que, para além da racionalidade hegemônica, existem outras racionalidades, manifestadas em microterritorialidades, que acionam mecanismos e táticas cotidianas, valorizando-se o fenômeno do estar-junto, existentes no interior dos centros urbanos, nos bairros e nas ruas.

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RÉSUMÉ

La ville de Natal/RN se présente comme scène pour plusieurs manifestations culturelles, qui sont les tribus d'indiens du carnaval. Cette étude cherchera comprendre la production du Carnaval de ces groupements comme une manifestation de loisir et travail. Réglé en vue pluraliste, nous percevons que les différentes usages de l'espace impliquent territorialités que enveloppent les dimensions politique, économique et symbolique, par intermède de la culture. Sous l'analyse proposée, nous voulons à dévoiler les dynamiques spatiales et les divers agents sociaux, qui engendrent des relations de pouvoir, de travail et de sociabilité, montrant ce "monde" carnavalesque et leurs aspects culturelles et pratiques sociales, gardant, en son cerne, la caractère populaire et ordinaire du quotidienne. La recherche montre que, au-delà de la rationalité hégémonique, il y a des autres rationalités, manifestée dans microterritorialités, que actionnent mécanismes et tactiques quotidiennes, valorisant le phénomène de l'être-ensemble, existants dans les centres urbains, dans les quartiers et les rues.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Mapas

Mapa 1 – Localização espacial das tribos de índios do carnaval de Natal/RN ... 14

Mapa 2 – Barracões e os agenciamentos socioespaciais ... 92

Mapa 3 – Configuração espacial do desfile e a des(ordem) do carnaval natalense ... 100

Mapa 4 – Representação espacial dos ensaios da Tribo de Índios Gaviões-Amarelo ... 120

Mapa 5 –Representação espacial do “assalto” carnavalesco dos Apaches ... 121

Mapa 6 – Trajetória ritualizada da Tupi-Guarani ... 122

Mapa 7 – Redes socioespaciais da tribo de índios Tabajara ... 137

Figuras Figura 1 –“Ritual” de entrega da subvenção estadual para o carnaval de 2012 ... 90

Figura 2 – Territorialidades da economia informal no desfile carnavalesco ... 101

Figura 3 – O espaço normatizado para o consumo ... 103

Figura 4 – Montagem da alegoria da tribo Tabajara na manhã do desfile ... 106

Figura 5 – Discurso do presidente da tribo de índios Guaracis ... 108

Figura 6 –Ensaio da tribo de índios Tapuias e o “desrespeito” do veículo ... 117

Figura 7 – Limites da Tribo de índios Gaviões-Amarelo ... 119

Figura 8 – Quarto: de dormitório a depósito de fantasias... 140

Figura 9 – Co-presença: Gaviões-Amarelo e o entorno ... 145

Figura 10 – Homens construindo as alegorias da agremiação... 149

Figura 11 – Mulheres confeccionando as fantasias da agremiação ... 149

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AESTIN Associação das Escolas de Samba e Tribos de Índios de Natal FUNCARTE Fundação Capitania das Artes

GPS Global Position System (Sistema de Posicionamento Global)

ONG Organização Não-Governamental

RMN Região Metropolitana de Natal

SEMOB Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana

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1. INTRODUÇÃO ... 10

1.1. PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS... 14

1.2. UMA ETNOGRAFIA DOS TERRITÓRIOS E LUGARES DAS TRIBOS ... 22

1.3. DE QUAL CULTURA ESTAMOS FALANDO? ... 29

1.4. A FIGURA DO ÍNDIO NO CARNAVAL: COMO SURGIU? ... 35

1.5. APRESENTANDO OS CAPÍTULOS ... 41

2. A ORIGEM E O ATUAL DO CARNAVAL NATALENSE ... 43

2.1. REVISITANDO O CARNAVAL NA CIDADE DE NATAL ... 46

2.1.1. Nos entrudos do carnaval natalense: tudo junto e misturado ... 47

2.1.2. A institucionalização e a suposta decadência do carnaval natalense... 60

2.2. A ATUAL CONFIGURAÇÃO DA FESTA MOMESCA EM NATAL ... 71

3. O CARNAVAL DAS TRIBOS: ARRANJOS E PRÁTICAS ESPACIAIS ... 77

3.1. OS ASPECTOS ECONÔMICOS DO CARNAVAL DAS TRIBOS ... 78

3.2. OS USOS POLÍTICOS DO TERRITÓRIO NO CARNAVAL DAS TRIBOS ... 87

4. AS TRIBOS DE ÍNDIOS E SUAS PROJEÇÕES NO ESPAÇO CITADINO ... 95

4.1. A CONFIGURAÇÃO ESPACIAL E A (DES)ORDEM DA “AVENIDA” ... 98

4.1.1. O espaço do carnaval e seus agentes ... 99

4.1.2. O acontecer da tribo na avenida: atos preparatórios e o desfile carnavalesco ... 105

4.2. A RUA DAS TRIBOS E A REFUNCIONALIZAÇÃO DO LUGAR ... 111

4.3. AGENCIAMENTOS ESPACIAIS: O COTIDIANO DO BAIRRO ... 125

4.3.1. A tribo de índios Tabajara e o bairro Felipe Camarão ... 130

4.3.2. O lugar da tribo de índios Gaviões-Amarelo: as táticas socioespaciais ... 139

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 151

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1. INTRODUÇÃO

A contemporaneidade vislumbra-se como um espaço-tempo de transformações diante do estabelecimento de novas relações sociais, potencializadas pelas redes de sociabilidade1 e pela dinâmica das transformações culturais, de onde emergem discursos e práticas que valorizam a diversidade cultural e se contrapõem à ideia de homogeneização da sociedade. Neste cenário, encontram-se as tribos de índios do carnaval de Natal.

O estudo procurará compreender o processo de produção do carnaval das tribos de índios2 enquanto manifestação de lazer e trabalho, desde a preparação – os ensaios e a confecção das fantasias e alegorias – até o desfile na “passarela do samba”, acionando as dimensões política, econômica e simbólica e discutindo o cotidiano3 como uma prática geradora de sociabilidade.

Seguimos de perto o entendimento de Cavalcanti (1984), para quem o carnaval “não

designa, portanto, a festa simplesmente mas todo o processo que nela desemboca. E, do ponto de vista de uma escola, a totalidade do carnaval pode ser dividida em duas realidades

distintas: ‘uma coisa é o contexto do carnaval’, tudo o que é exterior à escola e decorre da

existência do desfile; ‘outra coisa é o samba’ que remete à interioridade da escola” (CAVALCANTI, 1984: 176-177).

O interesse surgiu da ausência de estudos geográficos acerca da temática na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ademais, os trabalhos acadêmicos sobre o carnaval pesquisados não tinham como objeto de estudo as tribos de índios carnavalescas.

Partindo-se do questionamento sobre como as tribos carnavalescas apropriam-se do espaço, entendemos que os usos territoriais das tribos constituem relações político-econômicas e momentos de realização do lazer – subjetiva e objetivamente. Neste sentido, o

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Partilhamos da ideia de sociabilidade enquanto associação que expressa vontades humanas e mantém múltiplas relações compostas de “exigências, ajuda, assistência e de suas forças. O grupo formado por esse tipo positivo de relação, concebido enquanto objeto ou ser que age de forma unitária interna e externamente, é denominado associação” (TÖNNIES, 1995: 231). A sociabilidade é, pois, os laços pessoais estabelecidos pelas pessoas se relacionando.

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Este folguedo, marcado pelo som ritmado, lento, expressivo e pela representação teatral, cujas raízes, acreditamos estar nos negros africanos, representa uma manifestação que resgata e ressignifica a presença indígena. As tribos de índios carnavalescas encontram-se presentes no espaço como uma manifestação cultural subdominante e emergente, codificados na paisagem e aguardando estudos geográficos (COSGROVE, 1998).

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leitmotiv do estudo encontra-se na visão pluralista em se perceber os vários usos do espaço, tendo como pressuposto a noção de que os encontros sociais verificados nas agremiações são mediados por relações culturais, que englobam lazer, sociabilidade, reprodução do capital e consumo:

Todavia – e é isso que, especificamente, nos interessa –, o efeito-emprego do lazer não é exclusivo das formas organizadas e burocratizadas de uso do tempo livre, praticadas nas sociedades industriais e pelas camadas superiores e médias dos países menos desenvolvidos. Nestes, há também um lazer popular, rebelde às estatísticas, produzindo, de baixo para cima, formas ingênuas de distração coletiva, provindas do exercício banal da existência, criadas na emoção e geradoras de solidariedade e de trabalho. Sua espontaneidade é, na base da sociedade, a garantia de sua permanência, criatividade e renovação (SANTOS, 2000: 34).

Atribuímos ao espaço das tribos de índios uma construção social que engendra e correlaciona elementos (i)materiais, com vistas a não negligenciar nem valorizar as lógicas político-econômicas e a dimensão simbólica, pois na interpretação do espaço, compreendemos que os homens não vivem “sem dar um sentido àquilo que os cerca[m]” (CLAVAL, 2001a: 293).

Ao contrário do pensamento popular que imagina as tribos carnavalescas enquanto uma aglomeração de pessoas vestidas de índios e fazendo batuques, o presente trabalho vem demonstrar que estes grupos se organizam e instituem relações sob complexos laços de solidariedade e vizinhança, numa malha de deveres e funções.

Essa visão heterotópica, caracterizada por um estudo que aborda uma visão não dicotômica e não polarizadora nos desautoriza submetermos a um colonialismo intelectual4, já tradicional na academia, especificamente no caso brasileiro em que certos objetos são considerados como propriedades de algumas disciplinas (RATTS, 2003). É neste sentido que Duncan (2000) assinala que a Geografia Cultural hodierna se transformou em heterotopia:

Estou sugerindo que concebamos a geografia cultural como um único espaço disputado de poder/conhecimento, mas como uma espécie de heterotopia epistemológica, que, segundo Foucault (1986, 25), “é capaz de justapor

4Duncan (2000) traz uma importante crítica ao que convencionamos chamar de “colonialismo intelectual”: “O

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vários espaços num só lugar real, vários espaços que são em si mesmos incompatíveis” (DUNCAN, 2000: 64-65).

É necessário ultrapassarmos algumas dimensões totalitárias dos paradigmas científicos e disciplinares, que, por vezes, adotam uma postura despótica, constituindo-se em verdadeiras tiranias paradigmáticas (AMORIM FILHO, 2007). Utilizar uma corrente epistemológica de forma dogmática traz danos para a evolução do pensamento geográfico e limita a pesquisa à reprodução dos conhecimentos existentes, não deixando os pesquisadores tomarem

“consciência das possibilidades que teriam de produzir, por si mesmos, elementos de um

saber novo” (LACOSTE, 2006: 86).

Acreditamos que a presente discussão não deve ser “encaixada” em determinado segmento da ciência geográfica que separa e, por vezes, dicotomiza. Pretendemos analisar as tribos de índios de carnaval, enquanto manifestação cultural presente na realidade urbana e, portanto, realizada no espaço. A dissertação se filiará a uma abordagem teórico-metodológica que reconhece a dimensão concreta do espaço inseparável da subjetividade, enquanto duas faces de um mesmo fato, realizados no espaço e intermediados pela cultura.

Para a problemática proposta, partiremos do pressuposto do espaço enquanto instância social (SANTOS, 1985; 2005), indissociável do sistema que compõe a sociedade, imbricando-se com eles. Assim, não devemos compreender o sistema social disposto em camadas estruturais, onde, conforme Althusser (1979), ao discutir as instâncias através da metáfora arquitetônica do edifício, considera a sociedade composta por três níveis, onde a instância econômica – infraestrutura – se encontra na base da estrutura social, tendo uma importância maior que os níveis jurídico-político e ideológico, que consistem a superestrutura. Santos (1986) critica a exclusão do espaço ao enfatizar:

Os que consideram a sociedade como um sistema ou uma estrutura (ou mesmo como uma totalidade) quando tratam de definir-lhes as instâncias excluem o espaço. Nesse particular e por mais incrível que pareça, teóricos marxistas fazem boa companhia aos pensadores “burgueses” (SANTOS, 1986: 141).

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Procedendo desta forma, não isolaremos qualquer dimensão, de modo a prejudicar o

trabalho empreendido, visto que a “consistência, a lei e a ordem que se revelam em cada

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Essa orientação abrangente que a abordagem cultural nos proporciona – relacionando

as variáveis concretas e simbólicas na “leitura” do espaço–encaminha a “um outro” olhar da

dimensão espacial dos fenômenos. Gomes (2001) sinaliza que procedendo dessa forma,

poderemos “compreender este jogo complexo entre as dimensões física e simbólica, entre

signo e sentido e, desta forma, pode vir a se constituir como a oportunidade ideal para aprofundar esta discussão epistemológica que comumente nos tem escapado” (GOMES, 2001: 95).

As tribos de índios encontram-se compreendidas em cinco municípios da Região Metropolitana de Natal, pertencentes à mesorregião do leste potiguar. Nesta área distribuem-se onze tribos carnavalescas na zona urbana da Região Metropolitana de Natal, englobando os municípios de Natal, Ceará-Mirim, Macaíba, São José de Mipibu e São Gonçalo do Amarante.

Fazendo um recorte na capital potiguar, verificamos um espraiamento destas agremiações pela cidade. Não há uma concentração nos bairros conhecidos pela sua efervescência carnavalesca, sobretudo o bairro Rocas, que já congregou inúmeros grupos carnavalescos, entre tribos de índios e escolas de samba, e Alecrim. Não obstante as primeiras tribos – Guaranys e Potiguares – tenham surgido nestas duas localidades, estes grupos, atualmente, encontram-se distribuídos em seis bairros da capital, com presença na Zona Norte

– Tapuias da Redinha e Gaviões-Amarelo de Igapó, Zona Leste – Potiguares das Rocas, Tupinambás de Santos Reis e Guaracis de Mãe Luiza, e Zona Oeste – Tabajara de Felipe Camarão.

É interessante observar que não existe tribo de índios na Zona Sul de Natal, tampouco há registros de que já houve qualquer manifestação carnavalesca indígena nesta Região Administrativa. Não obstante, é no Bairro Ponta Negra que existe, há oito anos, o bloco

“Poetas, carecas, bruxas e lobisomens”, organizado pelo atual vereador natalense Hugo

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Mapa 1 – Localização espacial das tribos de índios do carnaval de Natal/RN

Fazendo uma Cartografia Cultural, a disposição espacial das tribos de índios sugere

uma leitura do cotidiano a partir dos “de baixo”, pois estas agremiações se localizam nos bairros menos abastados dos municípios onde se encontram compreendidas, os quais alguns registram um alto índice de violência e pobreza, contudo dispostas a organizarem-se por meio

de redes de sociabilidade e consciência do seu espaço vital que os conduzem a “fruir, gozar,

ampliar a cultura territorializada, onde se dá a fusão entre tempo e lugar, como expressão da

vida em comunhão, na solidariedade e na emoção” (SANTOS, 2000: 35-36).

1.1. PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

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entregamos o trabalho “a um exercício cego sem uma explicitação dos procedimentos

adotados, sem regras de consistência, adequação e pertinência” (SANTOS, 1996a: 18).

Na presente pesquisa buscaremos identificar o carnaval das tribos de índios enquanto um processo iniciado antes mesmo da festividade, desde os preparativos – ensaios e produção das fantasias e alegorias –até a passagem do bloco na “avenida”5, com o intuito de verificar a dinâmica espacial existente nesta manifestação cultural. Para esta empreitada, faremos um recorte empírico no carnaval de 2012.

Nosso recorte atinge uma fração do acontecer humano, mas que, igualmente ao todo concreto, é dotado de várias temporalidades, pois o tempo é heterogêneo em qualquer divisão do espaço (SANTOS, 1997: 165). Esta escolha se deu pela necessidade de compreender não somente os dias festivos do carnaval, mas, sobretudo, o conjunto de arranjos e ações que antecedem o desfile carnavalesco. Poderíamos de forma satisfatória propor apenas um dos enfoques, entretanto, para uma melhor compreensão é imprescindível analisar as várias dimensões do processo de produção do carnaval.

No que concerne aos procedimentos metodológicos, fez-se necessário o trabalho de campo, porém, sem dogmatizar teorias (SERPA, 2006). De forma qualitativa, pudemos compreender como os participantes das tribos de índios carnavalescas experienciam o processo desde a confecção das fantasias ao desfile.

A escolha das técnicas relaciona-se à natureza e adequação dessas com o objeto de pesquisa, portanto, a pesquisa de campo e, como consequência, as entrevistas, foram preponderantes em nosso trabalho, pela necessidade de uma perfeita compreensão dos diversos usos territoriais. Teve importância, também, a pesquisa de gabinete – como o levantamento prévio das tribos de índios –, o que nos permitiu planejar as ações com base num conhecimento precedente do estudo proposto e contribuiu sobremaneira para o trabalho de campo. Ademais, a busca por informações nos possibilitou adentrar no empírico de modo a sistematizar as entrevistas com questionamentos pertinentes.

É oportuno enfatizar que a pesquisa de gabinete não é somente antecedente ao trabalho empírico; ao contrário, serve-lhe de subsídio, mas também é subsidiada por ele. Neste sentido, alerta Venturi (2006):

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[...] ele [o pesquisador] deve ter consciência do risco que existe em transformar seu trabalho no chamado ‘trabalho de gabinete’ e, sobretudo, ter consciência de que o campo e as informações que ali podem ser obtidas são insubstituíveis (VENTURI, 2006: 76).

É o diálogo entre o empírico e o gabinete que nos permite escolher o recorte espacial,

posto que “recortar espaços de conceituação na realidade, em coerência com os fenômenos

que se deseja estudar e analisar é questão central para operacionalização do trabalho de campo

em Geografia” (SERPA, 2006: 12), livrando-nos de cair em armadilhas teórico-metodológicas, ideias e questionamentos pautados no senso comum.

Buscando a heterogeneidade das tribos de índios do carnaval, focamos a abordagem numa escala local. Buscar a coerência “entre o sistema de arranjo dos objetos e a organização dos comportamentos sociais relacionados aparece com muito maior expressão quando

estamos neste patamar de observação” (GOMES, 2001: 102), enxergando as relações sociais

que se estabelecem por laços de solidariedade e vizinhança, bem como os mecanismos de ajuda-mútua e capital-trabalho, estabelecidos pelas redes criadas no cotidiano, sobretudo no interior dos bairros populares que fortalecem as redes relacionais destas agremiações carnavalescas6. Nosso enfoque aproxima-se daquele de Magnani (1998):

O enfoque que propomos, entretanto, supõe outro ponto de partida. Frente ao universo do trabalho, já subjugado pela lógica do capital que tenta programá-lo inteiramente, existe um espaço regido em parte por outra lógica, e aberto ao exercício de uma certa criatividade: a vida familiar, o bairro, as diferentes formas de entretenimento e cultura popular que preenchem o tempo do lazer (MAGNANI, 1998: 29).

Não proporemos, portanto, a desarticulação entre o local e o global, pois o mundo – enquanto totalidade – particulariza-se no lugar – que, por sua vez, é uma totalidade – e

pensá-lo “não é copensá-locar somente os problemas no quadro pensá-local; é também articulá-los eficazmente

aos fenômenos que se desenvolvem sobre extensões muito mais amplas” (LACOSTE, 2006:

91).

Aqui pensamos também no movimento contraditório da globalização: a dialética entre o local e o global. Na medida em que os lugares se mundializam, estes microespaços reagem

6“[...] o que fundamenta o conjunto é a sua inscrição local, a espacialização e os mecanismos de solidariedade

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às verticalidades do global, tencionando-se com elas, através de suas territorialidades geradoras de identidades territoriais que revelam e expressam suas horizontalidades e singularidades.

Cada totalidade – mundo, nação, cidade, bairro – encontra-se em sucessivas totalizações, sempre dinâmica, e o tempo-espaço deve ser entendido numa complexa diacronia; pensar estes espaços é compreender os processos que se formam em seu interior em articulação com o que ocorre, também, fora dele. Há, no lugar, conforme Santos (1996a), uma razão global e outra local que convivem dialeticamente.

Muito embora se trate de uma mesma manifestação carnavalesca, cada tribo de índios é dotada de procedimentos e táticas que a individualiza e, por isso, não podemos, de modo abstrato, homogeneizá-las, mas buscar semelhanças e diferenças nas ações. Compreendemos, pois, que as tribos carnavalescas devem ser estudadas de modo a ultrapassar a dimensão concreta das estruturas econômicas e políticas, sob pena de transformar nosso trabalho num modelo economicista de estudo social.

De igual modo, também não é interessante para a pesquisa adotar procedimentos metodológicos que nos permitam somente uma leitura funcional do espaço (CLAVAL, 2004). Adotamos a descrição densa (GEERTZ, 2008) e analisamos os processos, recusando o simples inventário dos artefatos e rechaçando a compreensão das estruturas de forma cartesiana. Gomes (1997) ilumina essa discussão ao afirmar:

Parece que a descrição simples da forma não pode dar conta de todos os significados e todas as práticas sociais que têm sede aí. Parece que tampouco nos interessa sua geometria se não a relacionarmos às relações sociais, conflitos, usos e contextos sob os quais esta forma existe e resiste em tempos diversos. O ‘visível’ depende assim dos nossos óculos conceptuais (GOMES, 1997: 25).

A leitura do espaço aproxima-se da iconologia do historiador da arte Panofsky, que propôs a análise interpretativa dos valores simbólicos e as significações das imagens. Tal perspectiva foi amplamente utilizada por geógrafos, tais como, Cosgrove, Duncan e Daniels. Acompanhando este modelo de análise, tributamos da ideia de que os usos territoriais advêm de ações humanas e revelam valores que devem ser interpretados hermeneuticamente:

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dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 2008: 10)7.

Neste ínterim, o pesquisador deve perceber o arbitrário da vida social ao analisar a sociedade – seja ela longínqua ou a do próprio investigador. A sociedade moderna permite ser colocada diante do processo de estranhamento ainda que em seu próprio cotidiano, pois “a vida social e a cultura se dão em múltiplos planos, em várias realidades que estão referidas a

níveis institucionais distintos” (VELHO, 1980: 18).

Esta análise será alcançada se estudarmos a sociedade de maneira interpretativa, nos moldes geertzianos, cujo objetivo de reflexão é a forma como a sociedade e os grupos inseridos nela – e suas variadas culturas – representam, classificam e organizam as experiências sociais (VELHO, 1980). Maffesoli (2000), fazendo coro com a perspectiva do antropólogo Gilberto Velho, argumenta acerca da existência de uma cultura vivida no

dia-a-dia, feita a partir do conjunto de pequenos “nadas”, que é essencial à vida societal. Para o

cientista social:

[...] são coisas que dão conta de uma sensibilidade coletiva, sem muito que ver com a dominância econômico-política que caracterizou a Modernidade. Essa sensibilidade [...] é vivida no presente, e se inscreve num espaço dado [...]. E assim sendo, faz cultura no cotidiano (MAFFESOLI, 2000: 34).

Não se trata de sugerir um empirismo puro e simples, banalizando o trabalho de campo e transformando-o no próprio método, “fruto do predomínio de uma concepção empirista que despreza a teoria e atribui à descrição da realidade a condição de critério de

verdade” (ALENTEJANO; ROCHA-LEÃO, 2006: 53). Propomos, por outro lado, que os procedimentos metodológicos e a prática empírica, aliados aos conceitos e teorias, sejam articulados, consistindo numa unidade orgânica:

Fazer trabalho de campo representa, portanto, um momento do processo de produção do conhecimento que não pode prescindir da teoria, sob pena de tornar-se vazio de conteúdo, incapaz de contribuir para revelar a essência dos fenômenos geográficos (ALENTEJANO; ROCHA-LEÃO, 2006: 57).

O olhar do pesquisador, já sensibilizado pela teoria, deve ser, nas palavras de Oliveira

(2000), teoricamente “domesticado”, não permitindo uma visão “ingênua”. Se o olhar

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permanecer ingênuo – “o olhar por si só” (OLIVEIRA, 2000: 21) – não será suficiente para apreender a realidade observada. Esta é, portanto, a atividade de percepção da pesquisa,

completada com o “ouvir”, para se chegar à estrutura das relações sociais e à significação das coisas: “se o olhar possui uma significação específica para um cientista social, o ouvir

também goza dessa propriedade” (Ibidem).

É essa mediação do trabalho empírico com os conceitos e teorias geográficas que nos autoriza a compreender a dinâmica da produção do carnaval das tribos de índios. Neste ínterim, analisamos a dimensão espacial dessas tribos carnavalescas em suas distintas variáveis de compreensão. Buscando pensar as especificidades dessas agremiações,

escolhemos “compreender o território a partir de seu uso, entendendo essa operação como

uma discussão contextualizada principalmente no momento presente e baseada no exercício

do recorte metodológico da cultura” (DOZENA, 2009: 34).

Concordamos com DaMatta (1986) ao estabelecer que o caminho não é feito de dicotomias mas de conjunções e elos, posto que as teias de significações vivenciadas pelos homens, permitem, ao pesquisador, promover interpretações de outras interpretações e estas

relações podem ser descobertas a partir de uma análise sociocultural, bem como “discernir as

intenções de quem está interpretando o drama” (DAMATTA, 1986: 14). Estas interpretações

são “construtivas no sentido de que elas não querem perder de vista nem o processo nem o instante” (Ibidem: 15).

Como anteriormente apontado, optamos pelo procedimento das entrevistas, utilizando a técnica da gravação, que nos permitiu capturar as informações dos entrevistados, tendo em vista que, procedendo de forma diferente, deixaríamos de observar detalhes interessantes ao trabalho. Conforme lembra Venturi (2006): “ao se estudar um tema em que a relação sujeito-objeto exija intersubjetividade, há que se lançar mão das técnicas de aplicação de

questionários ou entrevistas” (VENTURI, 2006: 72). A operacionalização desse procedimento

realizou-se por meio de entrevistas com os presidentes e integrantes das tribos de índios, em que exploramos questões de forma mais ampla.

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realidade, compreendida a partir das observações detalhadas e minuciosas, para que

possamos, no interior do enquadramento social, perceber “as realidades da vida humana”

(MALINOWSKI, 1997: 30). Esta importância se dá em virtude de adentrarmos na cotidianidade dos indivíduos e grupos estudados, preocupando-se, também, com as ações banais do dia-a-dia que, por vezes, os estudos deixam escapar por as considerarem desinteressantes:

[...] existem vários fenômenos de grande importância que não podem ser recolhidos através de questionários ou da análise de documentos, mas que têm de ser observados em pleno funcionamento. Chamemos-lhes os imponderabilia da vida real. [...]

Na verdade, se nos lembrarmos que estes fatos imponderáveis mas muito importantes da vida real fazem parte da verdadeira substância do tecido social, que são eles que tecem os inúmeros fios que mantêm a coesão familiar, clânica, comunitária e tribal, o seu significado torna-se claro (MALINOWSKI, 1997: 31-32).

Sob a análise dos usos do território e das territorialidades8, isto é, o conjunto de relações dinâmicas que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo (RAFFESTIN, 1993), podemos desvendar as dinâmicas que perpassam esses agentes não-hegemônicos, considerando a indissociabilidade dos objetos e ações singularizados em seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal.

Milton Santos (1996a) esclarece sobre a possibilidade dos agentes – homúnculos ou marionetes – surpreenderem o pesquisador – ventríloquo – e “alcançarem alguma vida, produzindo uma história inesperada” (SANTOS, 1996a: 19), recebendo vida e importância na

pesquisa pelo próprio pesquisador, desde que o olhar geográfico perceba o “pulsar” do

espaço, revelando suas dinâmicas socioespaciais, por vezes imprevistas. É neste sentido que Marcos (2006) reflete:

[...] o trabalho de campo enquanto um instrumento de pesquisa dos mais importantes para a produção do conhecimento geográfico, momento em que o tema de estudo se desvenda diante dos olhos e obriga a estarmos atentos, de modo a que nada fuja à investigação. É preciso olhar com profundidade e

8

(23)

observar, sobretudo aquilo que não havíamos considerado antes de sair para campo (MARCOS, 2006: 106).

Novamente recorremos a Malinowski (1997), ao instruir que o pesquisador não pode cair na armadilha das ideias preconcebidas, devendo alterar ou até abandonar suas perspectivas se assim for necessário diante das novas evidências que o trabalho de campo revele:

Estar treinado e atualizado teoricamente não significa estar carregado de “ideias preconcebidas”. Se alguém empreende uma missão, determinado a comprovar certas hipóteses, e se é incapaz de a qualquer momento alterar as suas perspectivas e de as abandonar de livre vontade perante as evidências, escusado é dizer que o seu trabalho será inútil (MALINOWSKI, 1997: 23).

Ressaltamos, alicerçados em Gomes (2001), a existência, na Geografia, de uma dificuldade epistemológica em criar um quadro de análise para a relação entre espaço e

cultura “que ultrapasse o aspecto morfológico, ou melhor, que o associe à dinâmica

socioespacial, sem que precise renunciar ao domínio de legitimidade próprio pertencente à

Geografia” (GOMES, 2001: 101). O desafio metodológico de erigir caminhos, deliberando

aquilo que é relevante na construção do objeto de pesquisa é instigante, mas também árduo, pois a sua aplicabilidade à pesquisa geográfica necessita da abertura dos horizontes

metodológicos, inclusive disciplinares, pois cremos “que outras solidariedades disciplinares

podem ser estabelecidas por uma microgeografia. [...] Assim, uma abordagem nova indica

também a necessidade de estabelecer novas solidariedades disciplinares” (Ibidem: 112), para que nos permita ler as ações e seus significados no lugar em que elas foram praticadas, seja na cidade, no bairro ou na rua.

Hodiernamente, estas pesquisas culturais presentes nos mais variados campos das Ciências Sociais – Geografia, História, Antropologia e Sociologia –, fazem ressurgir os temas das festas e folguedos populares9, como podemos ver em recentes trabalhos que abordam a temática do carnaval. Com relação às tribos de índios de carnaval, alguns importantes trabalhos já levantaram a temática, como os escritos de Góes (2008) e Mitchell (2002) que estudaram o Mardi Gras de Nova Orleans. No carnaval brasileiro são escassas as referências a

9

(24)

estas agremiações10 e em trabalhos acadêmicos na UFRN, encontramos um único trabalho antropológico, que se restringiu a estudar o “ritual do fogo” da tribo de índios Tapuias. É interessante observar que o principal incentivador destas agremiações indígenas em Natal, conforme foi informado pelos entrevistados, o historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo, foi silente em sua vasta obra quanto aos grupos de índios que desfilam no carnaval.

1.2. UMA ETNOGRAFIA DOS TERRITÓRIOS E LUGARES DAS TRIBOS

Após abordar os objetivos a que se destinou o presente trabalho e os procedimentos teórico-metodológicos, faz-se importante percorrer os caminhos da pesquisa. Foi imprescindível recorrer a um importante recurso, utilizado, sobretudo, nas pesquisas antropológicas: a etnografia. Aqui ela é vista como um instrumento que possibilita o diálogo entre o agente e o pesquisador, atuando nesta comunicação dialógica que minimiza a

hierarquia e possibilita uma “comunicação não violenta” (BOURDIEU, 2003b).

O que está em jogo é o social e, deste modo, o estudo deve estar pautado em como os indivíduos são agentes sociais. Dito de outra forma, o importante é a dimensão social das relações existentes e não o caráter individual das pessoas, construindo-se “a tessitura da vida

social em que todo valor, emoção ou atitude está inscrita” (FONSECA, 1999: 64).

Fazê-la, contudo, foi difícil e requereu muitos cuidados. Em trabalhos etnográficos, o

momento da chegada do pesquisador é fundamental, pois, a primeira entrevista pode “abrir várias janelas” exploratórias, apontando para uma riqueza de material, mas, por outro lado, pode recair em profundos obstáculos. Isto depende do “como iniciar” e, neste momento,

vários fatores podem contribuir ou não para uma boa pesquisa etnográfica.

Um primeiro ponto consiste na corporalidade, isto é, como o pesquisador irá “mostrar

-se” ao outro – interlocutor. Quando me reporto a corporalidade – ou corporeidade – não me refiro apenas ao aspecto físico do pesquisador (o que pode se tornar um obstáculo

10As referências aos “índios de carnaval” em sua grande maioria volta

(25)

intransponível), mas, sobretudo, ao comportamento, à linguagem e à vestimenta, que carregam marcas simbólicas:

Do mesmo modo que quando vamos a um dado lugar, em exploração, o nosso modo de andar naquele local, e de desvendá-lo enquanto coisa real (feia ou bonita, suja ou limpa, preciosa ou vulgar), depende de nossa relação com um mapa que é preciso traduzir, entender, interpretar. Sem o mapa não acharíamos o tal lugar com seus tesouros, mas ele não é de modo algum um texto fixo ou um código que representa a realidade de forma determinativa (DAMATTA, 1986: 12).

Encontramos, na pesquisa, um interacionismo simbólico que permeia o campo social formado entre o pesquisador e seus interlocutores, onde aquele adentra no mundo social destes. Neste sentido, é importante saber qual a melhor forma de se inserir no universo do outro, sem, contudo, criar obstáculos que impeçam uma maior aproximação com a pesquisa.

A entrevista produz certa “violência simbólica” – mesmo sem a intenção do pesquisador – pelo simples fato da posição de superioridade frente ao pesquisado, em virtude da apropriação do capital cultural. É imprescindível, assim, que o entrevistador reduza ao máximo essa violência que pode ser exercida, colocando-se disponível ao entrevistado e ciente de que as pesquisas constituem trocas materiais e simbólicas.

Após a entrada no campo empírico, surge outro percalço que se coloca à investigação científica: a imparcialidade. O dogma acadêmico do distanciamento do pesquisador ainda é premissa nas ciências sociais, cujo requisito primordial é a distância entre o investigador e o objeto de pesquisa, garantindo-se as “condições de objetividade em seu trabalho” (VELHO, 1978: 01), de forma a impedir o envolvimento na pesquisa. Mas a distância, a proximidade e a familiaridade, como descreve Velho (1980), “são noções que devem ser relativizadas e

colocadas no contexto adequado de discussão” (VELHO, 1980: 15).

Tal dogma, contudo, não merece prosperar na pesquisa, pois entendemos que o contato é imprescindível, de modo a captar as vivências cotidianas. Ainda nesta perspectiva, anotamos que tal imprescindibilidade se deve ao fato do investigador adotar uma subjetividade própria que se expressa através da interpretação por ele dada à realidade estudada:

(26)

Neste trabalho, as contribuições dos agentes foram valiosas, pois representou suas opiniões e experiências, ou seja, interpretações da realidade que, por sua vez, passaram por outras interpretações pessoais do pesquisador. Esta é a natureza da descrição densa: interpretações de interpretações que produzem uma versão do real11. Assim, trajetórias, experiências e vivências específicas permitem que os grupos e indivíduos de uma sociedade sejam diferentes, provindas de tradições culturais diversas.

Preferindo um olhar de perto e de dentro, a cidade pôde ser pensada como um lugar de

ações e encontros realizados pelos moradores da urbe, que “em suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos, etc., constituem o elemento que em definitivo dá vida à metrópole” (MAGNANI, 2002: 15):

Para tanto, é preciso fazer como o antropólogo diante de costumes ou ritos “exóticos”: deixar de lado uma postura etnocêntrica e observá-los de perto e em seu próprio contexto, pois se existem é porque possuem um significado para aqueles que os praticam (MAGNANI, 1998: 19).

Ocorre, todavia, que o caminho, muito embora prazeroso, trilhou-se com alguns

percalços. Um destes “momentos estorvantes” foi a experiência de proceder a etnografia na

tribo de índios Guaracis, no bairro Mãe Luiza. A realidade local me era conhecida somente através do noticiário e da referência que a população tinha do bairro, porém, eu não havia adentrado à localidade.

Ao receber o convite pelo presidente da tribo Guaracis, Joselito Xavier, hesitei alegando que tinha outras atividades. Preferi realizar a entrevista no local de trabalho do entrevistado. Ao entrevistá-lo, recebi um novo chamado para comparecer ao ensaio da tribo e, antes que eu falasse, o interlocutor tentou mostrar que o bairro Mãe Luíza

não é o que “as pessoas pintam”. O termo utilizado refere-se à estigmatização do bairro relacionado à contra-imagem de uma cidade, ainda, relativamente ordenada e segura,

contrastada com um local onde impera o tráfico de drogas e a “bandidagem”. Afirmou que existem problemas, assim como em outros locais da cidade, mas que era tranquilo e, estando com ele, eu não tinha com o que me amedrontar. Diante disto, resolvi ir ao bairro.

11A metáfora do concerto de DaMatta (1986) clareia alguns problemas pois indica que “na interpretação e na

(27)

“Subir o morro de Mãe Luíza”12

foi complicado, por se tratar de uma realidade até então por mim desconhecida. Utilizando um aparelho de posicionamento – GPS, onde havia traçado o caminho para a rua onde ocorriam os ensaios, adentrei ao bairro. Primeiramente, encontrei uma Igreja Evangélica no momento em que se realizava o culto; percebi vários carros, inclusive alguns importados de marcas japonesas e francesas. Dirigi-me a alguns metros e pude ouvir o som do surdo e do agogô, característicos do batuque das tribos de índios. Antes de me direcionar ao local seguindo a sonoridade já conhecida, resolvi estacionar o meu veículo próximo aos outros carros em frente à Igreja.

Ao encontrar com o presidente, que já estava ensaiando, percebi a felicidade ao ver-me assistindo. Após conversarmos alguns minutos, ele retornou ao comando da tribo. A curiosidade de pesquisador não me restringiu a capturar os momentos do ensaio, mas também de verificar o que ocorria no entorno. Assim, observei uma movimentação intensa de jovens e adultos numa determinada rua, nas proximidades de onde eu me encontrava.

Neste momento, tive receio em registrar o ensaio com fotos ou vídeos por dois motivos: ser roubado ou coagido a apagar os dados obtidos. Imaginei que estas pessoas poderiam pensar que eu seria um policial – o que de fato é verdade – ou um jornalista, e fiquei bastante apreensivo com a situação.

Quando já se passava uma hora de ensaio, vislumbrei uma situação inusitada: um jovem estava numa rua paralela dançando e totalmente “fora de si”, talvez pelo efeito

psicotrópico de alguma droga ou bebida. Foi tenso, pois me senti “encurralado”, pelo fato de

não querer atrapalhar o ensaio se resolvesse ir ao outro lado da rua. O jovem aproximava-se e distanciava-se, enquanto as pessoas não se preocupavam com este “bailado” em plena rua. Senti-me, diante deste fato, como alguém que se encontrava fora do “pedaço”, por não reconhecer aquela situação, provavelmente corriqueira no interior do bairro:

Entre uma [o público] e outra [o privado] situa-se um espaço de mediação, cujos símbolos, normas e vivências permitem reconhecer as pessoas diferenciando-as, o que termina por atribuir-lhes uma identidade que pouco tem a ver com a produzida pela interpelação da sociedade mais ampla e suas instituições (MAGNANI, 1998: 117).

Ao final do ensaio, fui, mais uma vez, recepcionado pelo “anfitrião”. Conversamos por

algum tempo e por já ser bastante tarde, resolvi retornar à minha casa. Quando já estava de saída, o interlocutor achou melhor me conduzir até onde eu havia estacionado o carro,

12

(28)

alegando que não seria interessante sair sozinho pelas ruas do bairro naquele horário, pois eu

poderia ser abordado. Mais uma vez recorro à ideia de “pedaço”, por ser um ponto de

referência sobre o qual as relações se definem e se circunscrevem: “não menos perceptível que a valorização dos vínculos de coleguismo e vizinhança é a prevenção contra ‘os de fora’,

vistos sempre como os responsáveis por qualquer violação das regras” (MAGNANI 1998:

129). Por não ser do bairro, não ser conhecido e reconhecido pelos “de dentro” através dos

laços de parentesco ou de vizinhança, isto é, por não ter uma base identitária com o lugar, eu me encontrava como um possível violador das regras intrínsecas àquele “pedaço”, assim, foi preciso estar acompanhado para legitimar minha estadia.

Se, por um lado, houve percalços que me foram intransponíveis – não que seja a todos, mas, para mim, no momento da pesquisa, foi preferível não trilhar – por outro, vários caminhos que se mostraram interessantes e trilháveis. Exemplo disto foi a tribo de índios Gaviões-Amarelo, onde edifiquei várias amizades.

A primeira entrevista com a presidente da tribo, Zeneide Diniz, ocorreu na residência dela, que também é a sede da agremiação. Anteriormente, havia realizado um contato e falado com a interlocutora, alegando que consegui o telefone dela com Valdir, presidente da tribo de índios Tapuias. Ao adentrar a residência, fui recebido com bastante alegria e o primeiro questionamento partiu da própria entrevistada: “Você é repórter?”. Esta primeira interação –

chamada por Goffman (2010) de “interação desfocada” – permitiu recolher uma informação sobre mim, que, embora errônea, reveste-se de uma falsa verdade, pois eu me encontrava enquanto entrevistador13. É neste sentido que, ao escrever acerca da linguagem corporal das

pessoas que os obrigam a transmitir informações, o sociólogo coloca que o “indivíduo não pode não dizer nada” (GOFFMAN, 2010: 45). O próximo passo seria passar a uma “interação focada”, onde se permite um melhor conhecimento de ambos.

No momento seguinte à pergunta parei para pensar qual seria a melhor resposta: eu iria ocultar minha condição de pesquisador ou deveria expor quais os reais motivos. É imprescindível, na pesquisa de campo, que o pesquisador atribua princípios éticos ao seu estudo e, na situação, verifiquei que seria melhor relatar que estava em pesquisa. Foi um

13“[...] quando indivíduos entram na presença imediata uns dos outros onde não é preciso nenhuma comunicação

(29)

tempo considerável dispendido às explicações sobre a pesquisa e os objetivos que buscaria alcançar. Colocar o entrevistado a par dos propósitos da pesquisa é indispensável.

Posteriormente, iniciamos uma conversa acerca do carnaval, da tribo de índios e outros temas atinentes à pesquisa. Numa breve pausa, foi-me oferecido café com bolo aprazivelmente com o intuito de estreitar os laços. A interlocutora se mostrou bastante

satisfeita com a “visita” e a conversa caminhou cordialmente. Na verdade, ultrapassamos uma

simples conversa: ela me mostrou fotografias e documentos da tribo. Nesta interação entre o

“eu” pesquisador e o “outro” interlocutor, fomos construindo significados. Cabe lembrar que

interagir é algo dramatúrgico onde as pessoas performatizam as relações, cujas intencionalidades exigem certa teatralidade (GOFFMAN, 2011).

O ato de oferecer um “café” envolve um caráter moral e exige, por sua vez, uma resposta também moral, qual seja, a de aceitar o que me foi oferecido. Torno-me obrigado a preservar a fachada14 (GOFFMAN, 2011), num complexo jogo realizado com o interlocutor (BOURDIEU, 2003b). Apesar das reclamações pela falta de “dinheiro” para a compra de materiais, tais como uma simples cola, não impediram que fosse comprado o bolo e outros alimentos gentilmente ofertados como acompanhamento. Este momento foi importante para a pesquisa, pois, a avaliação é recíproca e mútua – pesquisador e interlocutor formulam a ideia do outro –, e formará a base onde se desenvolverá a relação entre pesquisador e pesquisado.

Aqui nos referimos à “ocasião social” de Goffman (2010): pesquisador e pesquisado adentram em presença imediata, limitado no tempo-espaço, propondo um padrão de comportamento de ambos.

É nesta ocasião social que o pesquisador deve preservar sua fachada e garantir que a fachada do interlocutor, e também a sua própria, não seja perdida (to lose face) ou envergonhada (shamefaced), pois, ocorrendo qualquer destas hipóteses, o encontro tornar-se-á prejudicado, o que desemboca no prejuízo para a pesquisa15. É o que pensa Goffman (2011)

ao escrever que o “efeito combinado da regra do respeito próprio e da regra da consideração é

14“O termo

fachada pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da linha que os outros pressupõem que ela assumiu durante um contato particular. A fachada é uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados – mesmo que essa imagem possa ser compartilhada, como ocorre quando uma pessoa faz uma boa demonstração de sua profissão ou religião ao fazer uma boa demonstração de si mesma” (GOFFMAN, 2011: 13-14).

15“Quando uma pessoa realiza a preservação da fachada, junto com seu acordo tácito de ajudar as outras a

(30)

que a pessoa [pesquisador] tende a se conduzir durante um encontro de forma a manter tanto a sua própria fachada quanto as fachadas dos outros participantes” (GOFFMAN, 2011: 19).

No decorrer das andanças pela agremiação, surgiu-me uma indagação: “A simpatia entre pesquisador e pesquisado é um problema de pesquisa?”. Este fator subjetivo, passível de perder o controle, em alguns momentos se mostrou um problema, noutros potencializou o trabalho realizado. Exemplo disto foi o “ar de reprovação” da tesoureira quando deixei de filmar o pajé da tribo fazendo a reverência aos jurados, pois o meu interesse foi, justamente, perceber a recepção pelo júri deste ato reverenciador. A reprovação foi digna do comentário:

“você deixou de filmar a melhor parte do desfile”. E o aprendizado foi este: o que tem importância para alguém, não necessariamente vai ter o mesmo valor para o outro. Porém, o próprio fato de me achar dentro do desfile já demonstra que a simpatia entre a minha pessoa e a presidente – assim como os outros membros – foi boa e oportuna para a pesquisa.

Minha participação no desfile como pesquisador e, sobretudo, “membro” da tribo de índios Gaviões-Amarelo, inclusive vestindo a camisa da agremiação, pôs à prova a

“neutralidade” imprescindível à pesquisa. Fui questionado quanto a isto, por estar “tomando

partido” pela tribo, sendo partícipe e não mais pesquisador. O intenso processo de socialização possibilitou a interação ao ponto de se tornar uma “neutralidade relativizada” ou, como prefiro chamar, uma “neutralidade apaixonante”, perpassando a tênue linha entre razão e emoção.

A empatia é, pois, imprescindível para uma boa pesquisa! O fato de sermos distintos, de gerações diferentes e portadores de linguagem, cultura e saberes diversos, pode ocasionar uma difícil barreira entre o entrevistador e o entrevistado, o que reflete diretamente na qualidade da entrevista e dos dados coletados. Quanto mais adentrava ao mundo da agremiação, mais eu passava da situação de “plateia” para a de “bastidores”, conhecendo os meandros e as peculiaridades da tribo de índios.

(31)

1.3. DE QUAL CULTURA ESTAMOS FALANDO?

Hodiernamente, a cultura é bastante debatida na seara acadêmica, não se atendo apenas à ciência antropológica. A Geografia, ainda no século XIX, já compreendia a importância cultural para a análise da sociedade. Todavia, congelava-se na materialidade para o estudo dicotômico do homem-meio. O próprio Sauer (1998), quando trata da paisagem cultural, compreende-a como formas a partir de obras humanas, e completa afirmando que,

baseado neste entendimento, “em Geografia não nos preocupamos com a energia, costumes ou crenças do homem, mas com as marcas do homem na paisagem” (SAUER, 1998: 57).

Para os geógrafos alemães, franceses e americanos das primeiras décadas do século

XX, a cultura era compreendida em seu aspecto material, como “um conjunto de artefatos utilizados pelos homens em sua relação com o espaço” (CLAVAL, 2001b: 22). Esta noção

reificada internalizava uma forma homogênea nos grupos, numa visão global e estática da sociedade16.

Uma abordagem supra-orgânica17 da cultura não interessa atualmente, dada a heterogeneidade da sociedade, a coexistência de línguas, etnias, gêneros, posições políticas, econômicas e sociais diversificadas em seu interior. Além disso, o indivíduo não é um recipiente passivo determinado por certa cultura – a “força ativa” que fala Duncan (2003) – absorvida em sua totalidade e somente reproduzida, mas ele é passível de mudá-la. Assim, a

“passagem da descrição de lugares e momentos para uma interpretação de espacialidades e

temporalidades exige a observação sensível e crítica do sítio onde o grupo humano constrói sua existência” (RATTS, 2003: 41).

16

A presente passagem de um importante texto de Sauer (1998), precursor da geografia cultural norte-americana, demonstra essa visão materialista e estática da cultura: “a paisagem cultural é modelada a partir de uma paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o resultado. Sob a influência de uma determinada cultura, ela própria mudando através do tempo, a paisagem apresenta um desenvolvimento, passando por fases e provavelmente atingindo no final o término do seu ciclo de desenvolvimento. Com a introdução de uma cultura diferente, isto é, estranha, estabelece-se um rejuvenescimento da paisagem cultural ou uma nova paisagem se sobrepõe sobre o que sobrou da antiga” (SAUER, 1998: 59).

17“O supra

(32)

Devemos, no entanto, reconhecer a importante contribuição daqueles teóricos dos séculos XIX e XX, mas transpor a visão de gênero de vida para a análise dos papéis da

sociedade, pois, no “mundo urbano e industrial, faz-se necessário executar estudos mais

refinados: a descrição dos papéis permite isto” (CLAVAL, 2001a: 51). Tal descrição, seja das pessoas, empresas, instituições ou grupos, nos auxilia a compreender e analisar o conjunto de teias de significados existentes no meio social. Cosgrove (2000) salienta que o geógrafo cultural busca compreender a relação entre os homens e o mundo a partir da cultura, lidando com a interrelação e ações dos grupos humanos, reconhecendo o pluralismo cultural e interessado em submeter as culturas modernas “à análise crítica e o reconhecimento de que elas são compostas de uma pluralidade de vozes que constroem, de formas diferentes, o

significado para o mundo” (COSGROVE, 2000: 53).

A cultura é uma realidade mutável, “concebida como o conjunto daquilo que os homens recebem de herança ou que inventam [...]; ela é feita de tudo aquilo que é

transmissível” (CLAVAL, 2002: 141). Seguindo o mesmo raciocínio, Santos (1987)

entende-a como umentende-a “formentende-a de comunicentende-ação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um

resultado obtido através do próprio processo de viver” (SANTOS, 1987: 61). A postura teórica destes geógrafos é aquela já trazida por Raymond Williams (1992), para quem a cultura consiste num sistema de signos que transmite, reproduz, experimenta e explora uma ordem social, encontrando-se presente nos sistemas sociais, nos campos discursivos dos grupos que compõem a sociedade. Esclarecedora é a compreensão de Cunha (2001) ao filiar tradição, tradução e cultura:

As tradições, afinal, como todos os elementos da cultura, são parte dos repertórios gestuais e simbólicos disponibilizados para diferentes sujeitos pelo hábito e pelas linguagens conhecidas. Elas se traduzem a cada momento, adquirindo significados novos em diferentes temporalidades, situações, lugares e dependendo de quem as mobilize para expressar seus próprios valores (CUNHA, 2001: 293).

Esses traços culturais podem ser aceitos, rejeitados ou modificados. Portanto, a cultura

“não é vivenciada passivamente por aqueles que a recebem como herança” (CLAVAL, 2001a:

(33)

dotadas de sentidos18 – e constitui um conjunto de significações, que devemos apreender na análise geográfica dos fenômenos.

Por essa capacidade de mutação e diante da diversidade cultural encontrada na

sociedade devemos ter em mente que a “cultura” tem limites indefinidos, sendo construída

“socialmente e, portanto, requer explicação e interpretação social e histórica” (BURKE, 1989: 21). O historiador a define, resguardando-se dos limites ao abordar a conceituação, como “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações e

objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados” (BURKE, 1989: 25).

Tal acepção de Burke (1989) leva em conta o cotidiano a partir das construções culturais (artefatos) e as formas de comportamentos (apresentações) e sugere que este cotidiano é consumido através de produção e criação, imprimindo uma significação aos objetos, ao que ele chamou de bricolage, isto é, “a prática de fazer as coisas por si próprio” (CLAVAL, 2001a: 303)19.

Verificamos que é possível um estudo da cidade e do urbano a partir da perspectiva cultural em Geografia, pois as várias culturas existentes na sociedade espacializam suas

dinâmicas na urbe. Neste sentido, “[...] a cultura – entendida como o conjunto de saberes, técnicas, crenças e valores – é vista como associada à vida cotidiana e re-elaborada constantemente no seio das relações sociais. A cultura é ao mesmo tempo um reflexo, uma

mediação e uma condição social” (CORRÊA, 2003a: 181).

O espaço carrega a marca da cultura e serve de matriz cultural, contribuindo “para a

transferência, de uma geração para outra, dos saberes, crenças, sonhos e atitudes sociais”

(CLAVAL, 2002: 146), funcionais e/ou simbólicas provindas do passado e impregnadas de valores a serem transmitidos:

[...] paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também uma matriz porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de

18

Segundo Claval (2001), a reconstrução da geografia cultural esboçada no início dos anos 1970 manifesta uma outra forma de “fazer geografia” ao constatar que “os lugares não têm somente uma forma e uma cor, uma racionalidade funcional e econômica. Eles estão carregados de sentido para aqueles que os habitam ou que os frequentam” (CLAVAL, 2001a: 55).

19

(34)

ação – ou seja, da cultura – que canalizam, em um certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza” (BERQUE, 1998: 85).

É, portanto, nesta relação da sociedade no/com o espaço que compreendemos a dinâmica das tribos de índios do carnaval natalense, considerando indissociável do espaço a inscrição de uma identidade territorial20 formada por processos inconscientes e em permanente construção (HALL, 2003), cujas transformações espaciais provocam questionamentos identitários, com a necessidade de reformulá-los ou reconstruí-los sobre novas bases. É possível, neste prisma, perceber como os sujeitos constroem e reivindicam

identidades. E, nesta discussão, os geógrafos “se interessam particularmente pela identidade

dos lugares e pelos papéis que eles desempenham na formação de consciências individuais e

coletivas” (BOSSÉ, 2004: 158).

Cabe-nos responder a pergunta que iniciou o tópico, “de qual cultura estamos

falando?”. Como vimos, a cultura é ordinária e presente na sociedade. Se, por um lado, existe uma cultura de massas, cujo movimento vertical tende à homogeneização social, não se preocupando com as diferentes realidades dos lugares, por outro, existe uma cultura resistente a esta tentativa de imposição hegemônica que Santos (2008) denominou de cultura popular:

[...] exerce sua qualidade de discurso dos ‘de baixo’, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias. Se aqui os instrumentos da cultura de massa são reutilizados, o conteúdo não é, todavia, ‘global’, nem a incitação primeira é o chamado mercado global, já que sua base se encontra no território e na cultura local e herdada (SANTOS, 2008: 144).

Santos (2008) acrescenta que a cultura popular é gerada a partir das relações de vizinhança, valorizando-se a experiência da escassez, da convivência e da solidariedade que integra o território dos pobres com seu conteúdo humano21. Nestas relações vicinais, conforme Santos (1996a), não devemos apreender tão somente as relações econômicas, mas a

20

Importante anotar a exímia observação de Gomes (2010), ao colocar que o que importa ao estudo geográfico não é perguntar “o que é identidade territorial?”, mas o que significa, em um dado momento ou numa determinada situação, manifestar uma solidariedade construída em torno de uma vizinhança ou de um espaço que qualifica as pessoas como semelhantes, ou seja, a significação que essa contiguidade espacial ganha dentro de um contexto específico, e é isso o que estamos querendo aqui.

21

(35)

totalidade das relações que este vínculo engendra. As pessoas reunidas, no sentido do re-ligare maffesoliano, criam cultura e, de forma paralela, criam, também, “uma economia territorializada, [...] um discurso territorializado, uma política territorializada” (SANTOS,

2008: 144). E, para não cairmos no discurso qualificador de uma cultura popular enquanto instrumento que caracteriza os de baixo (CUNHA, 2001), apontaremos no trabalho as diferenças, conflitos e intenções que, internamente, permeiam o carnaval das tribos de índios. Não é outro o entendimento de Cavalcanti (2006) sobre o carnaval:

[...] a natureza ambivalente e tensa de toda troca social, sempre a um só tempo, embora em graus muito diversos, permeada de acordo e conflito. Com isso, o carnaval revela também, com especial clareza, a importância das passagens e mediações na vida social, iluminando o papel dos mediadores na tessitura de redes de relações extremamente complexas. São esses atores sociais que, com abertura e criatividade, agenciam múltiplos códigos e articulam o conjunto vivo que desemboca anualmente num desfile (CAVALCANTI, 2006: 18).

Os símbolos produzidos por essa cultura popular portam a verdade da existência e revelam a sociedade em seu movimento, contrariamente àqueles da cultura de massas, voltados para o mercado e ideologicamente implantados na sociedade22, cuja linguagem deste

espetáculo carnavalesco é constituída por “signos da produção reinante que são ao mesmo tempo o princípio e a finalidade última da produção” (DEBORD, 2003: 10). Os signos da produção relatados por Debord (2003) são globalizados pelo moderno sistema de produção cultural, deveras global e dinâmico, desenvolvido pela indústria cultural, e têm como finalidade manter predominante a função de produção/distribuição de massas e suplantar as práticas de criação ligadas aos bens e manifestações locais (como, por exemplo, as tribos de índios do carnaval natalense).

Se, por um lado, a moderna cultura urbana, que valoriza o mercado e o consumo globalizado, tendendo a uma homogeneização da sociedade – pelo menos para aqueles que podem adquirir os produtos globais de consumo – e ao fechamento (ou até exclusão) dos usos deste mercado por alguns grupos e agentes (as camadas pobres), por outro, encontramos neste mesmo meio social outras expressões culturais que, paradoxalmente, conduzem-nos a um produto cultural nascido nos de baixo, que nos permite considerar a cultura urbana e a cidade

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como realidades permeadas por inúmeras culturas; os quais são, verdadeiramente, cidades dentro de uma cidade.

Sabemos do perigo em se cair na armadilha de uma visão dicotômica e maniqueísta do

carnaval “tradicional” das tribos de índios de um lado e do carnaval “moderno” de outro,

posto que os indivíduos que participam da cultura popular podem ser os mesmos que aderem à cultura de massas. Não pretendemos fazer um discurso “essencializante” da cultura popular, mas demonstrar que o devir da História criou um mercado carnavalesco de bens simbólicos, normatizado e politizado, mas que guarda em seu cerne o aspecto popular do carnaval. Também não devemos dicotomizar cultura popular e cultura de elite – próximo do modelo de

Redfield: “pequena tradição” e “grande tradição” – pois aquela, dada a informalidade, é aberta a quem quiser participar, sejam aqueles das classes populares quanto os mais abastados (BURKE, 1989).

No processo de produção do carnaval, os agentes que participam das tribos de índios experienciam vivências coletivas, produzindo um conhecimento e uma cultura territorializada. É neste sentido que Santos (1996a) afirma a existência de um novo debate promovido pelos pobres, seja silencioso ou ruidoso:

É assim que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva. [...]

Diante das redes técnicas e informacionais, pobres e migrantes são passivos, como todas as demais pessoas. É na esfera comunicacional que eles, diferentemente das classes ditas superiores, são fortemente ativos (SANTOS, 1996a: 326).

É, portanto, no estudo do cotidiano, que atentamos para uma compreensão do conceito de cultura enquanto uma categoria que nos permite entender o que ocorre na sociedade, de

modo a interpretar a vida social. A concepção de “cultura” tem em seu sentido “um mapa, um

receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam,

estudam e modificam o mundo e a si mesmas” (DAMATTA, 1986: 123). Tal código reside dentro e fora do agente, pois não se trata de uma simples escolha do indivíduo, tampouco é algo dado pela sociedade.

Imagem

Tabela 1  – Investimento Público para o Carnaval/2012
Figura 1  – “Ritual” de entrega da subvenção estadual para o carnaval de 2012
Figura 2  – Territorialidades da economia informal no desfile carnavalesco  150
Figura 3  – O espaço normatizado para o consumo
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Referências

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