A ALTERIDADE: O OUTRO COMO CRITÉRIO
1THE OTHERNESS AS A CRITERION OF BIOETHICS
Maria Lúcia Araújo Sadala*
SAD ALA, M.L.A. A alteridade: o outro como critério. R e v . E s c . Enf. U S P , v. 33, n. 4, p. 355-7, dez. 1999.
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Este estudo é um convite à reflexão a respeito de como o critério da alteridade - o outro como referência para os valores éticos e morais - tornase necessário para pensar as práticas de assistência à saúde, e como transforma tais práticas, remetendo às questões da Bioética. Foi utilizada como referência a Fenomenologia Existencial.
UNITERMOS: Bioética. Assistência à saúde.
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The present paper proposes questions about otherness as a fundamental criterion of Ethics and Bioethics, focusing on health care. The referencial mark used is the concept of otherness based on the Existencial Phenomenology.
UNITERMS: Bioethics. Medical assistance.
No pensamento ocidental moderno, o campo ético-moral está centrado no sujeito ético-ético-moral consciente, dotado de vontade para controlar seus instintos, impulsos e paixões, capaz de deliberar e perceber as situações simulta-neamente determinadas e abertas, necessárias e possíveis. Este sujeito ético-moral é igualmente capaz de definir os fins da ação ético-moral como recusa da violência contra si e contra os outros, e de estabelecer uma relação j u s t a e legítima, entre os meios e os fins da ação. O campo ético-moral, por sua vez, é formado por valores e normas, postos pelos próprios sujeitos ético-morais, n a qualidade de deveres, v i r t u d e s ou bens realizáveis por todos e cada u m (CHAUÍ, 1997). Nas palavras desta autora: "Valores e normas são exteriores e anteriores a nós, definidos pela sociedade e pela cultura onde vivemos; m a s por outro lado somos sujeitos éticos e, portanto, capazes tanto de interiorizar valores e normas existentes quanto de criar novos valores e novas normas". Tais comportamentos éticos contextualizam-se dentro de um mundo de relações intersubjetivas, entre mim e o outro, ambos sujeitos morais, livres e conscientes.
Esta visão contemporânea do campo ético-moral nos remete à noção da pessoa - o sujeito moral- relacionada ao outro, também sujeito - moral - ambos, eu e o outro, como
sujeitos e objetos da ética. Mais propriamente, nos remete ao conceito da alteridade como critério ético fundamental. A n o ç ã o d e r e c i p r o c i d a d e como e l e m e n t o fundamental n a formação do sujeito social e ético - a percepção do outro como constituinte do eu - é recente n a história do pensamento humano. Segundo CORRÊA (1993), apenas a p a r t i r de Hegel, em fins do século passado, o problema do outro é colocado em toda a s u a agudeza. Até então p r e d o m i n a r a a moral formalista kantiana, fundada n a razão universal abstrata. A partir de Hegel, os filósofos começam a se posicionar n a busca do homem concreto da ação moral - o homem situado no mundo das relações interpessoais.
P o d e m o s p e n s a r a s noções é t i c a s , a t é a q u i descritas, aplicadas ao campo da Bioética, nossa área de atuação. A Bioética se constitui no exame sistemático da conduta h u m a n a no campo d a s ciências da vida e da saúde, conduta compreendida à luz de valores e de princípios morais. Abrange os problemas éticos de todas as profissões sanitárias; as pesquisas comportamentais, i n d e p e n d e n t e d a s s u a s aplicações t e r a p ê u t i c a s ; os problemas sociais ligados às politicas sanitárias; e os problemas da vida animal e vegetal em relação à vida do homem (SGRECCIA, 1996, p. 44).
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Critério significa originalmente " aquilo que serve para julgar, aquilo pelo qual reconhecemos uma coisa e a distinguimos da
outra, aquilo que dirige nossa opção" ( CORRÊA, 1993). No texto, pensamos critério como orientações que dirigem as nossas escolhas. ' Enfermeira, responsável pela disciplina Relacionamento enfermeira-paciente no Curso de Enfermagem da Faculdade de
A alteridade: o outro como critério Maria Lúcia Araújo Sadala
A Bioética, como p r o d u t o de u m a sociedade em evolução acelerada, particularmente n a á r e a da saúde, vem exigindo dos profissionais e dos u s u á r i o s dos serviços de s a ú d e novos c o m p o r t a m e n t o s e novos posicionamentos, decorrentes de situações i n u s i t a d a s , c r i a d a s pela ciência e tecnologia. N e s t a perspectiva q u e s t i o n a - s e o poder d a interferência do h o m e m no campo médico-biológico, assim como a necessidade da reafirmação dos direitos dos seres h u m a n o s e dos seres vivos em geral, que potencialmente seriam ameaçados pelo domínio ilimitado dos donos da ciência.
Neste sentido, p e n s a r a alteridade como critério f u n d a m e n t a l d a ética aplicada às situações da s a ú d e r e s p o n d e à s e x i g ê n c i a s a t u a i s de se a t r i b u i r aos pacientes a competência moral e a sua posição de sujeito do próprio cuidado, consciente de si mesmo e u s u á r i o crítico dos serviços de s a ú d e . Ao mesmo tempo, coloca os profissionais d a á r e a em posição de r e v e r s u a s relações profissionais com clientes e demais categorias. Mas sobretudo, a inclusão da a l t e r i d a d e como critério ético confirma os valores humanos como referência p a r a os comportamentos profissionais.
N e s t e e s t u d o nos propomos a refletir a respeito d a a l t e r i d a d e t e n d o como f u n d a m e n t o o referencial fenomenológico (MERLEAU PONTY, 1945 e BUBER, 1979), acrescido de outros autores que se ocuparam do t e m a : VIDAL (1979), DUSSEL (1984), Levinas (citado em CORRÊA, 1993) e SUSIN (1987).
I n i c i a l m e n t e , a p ó s n o t a s i n t r o d u t ó r i a s c o n c e i t u a i s , a b o r d a r e m o s a c o m p r e e n s ã o do ser-no-mundo e d a constituição do ser-no-mundo relacional, segundo a v i s ã o m e r l o p o n t i a n a . N u m s e g u n d o m o m e n t o , t r a r e m o s à reflexão a a l t e r i d a d e - constituição da moral e d a é t i c a , s e g u n d o os a u t o r e s m e n c i o n a d o s a n t e r i o r m e n t e .
P r i m e i r a m e n t e , faz-se necessário compreensão do q u e é a pessoa, e do q u e é o outro (alteridade). A p e s s o a , n a v i s ã o dos a u t o r e s e s t u d a d o s , configura-se como ser social, ser de relação destinado à comunicabilidade. P a r a MERLEAU PONTY (1945), a s relações interpessoais p r e e n c h e m vazios do ser-no-m u n d o . N e s t a concepção o h o ser-no-m e ser-no-m se constitui pessoa pela a b e r t u r a e aproximação com o outro.
B U B E R (1979) fala no ser dialogal. A pessoa t e m u m a e s t r u t u r a dialogal, o eu c o n s t i t u i - s e n a referência eu-tu.
Como se constitui apessoa-abertura no m u n d o , como se constitui o m u n d o dessa pessoa-abertura?
P a r a M E R L E A U PONTY (1945), o h o m e m não existe como consciência fechada em si mesmo: é o homem no mundo - o mundo das relações - e é no mundo que se conhece. É o ser-em-situação. Nunca totalmente livre, m a s n u m m u n d o não t o t a l m e n t e acabado. A oposição e a c o n s t a n t e t e n s ã o e n t r e a p o l a r i d a d e homem-mundo m a n t é m a constante transformação do h o m e m e do m u n d o , n u m movimento incansável, sem
fim. A d i a l é t i c a s e m s í n t e s e , p o r q u e s e m p r e em movimento. Ali o homem é o seu corpo: "Eu sou o meu corpo, sou espaço, sou tempo, sou lugar, sou linguagem, sou gesto". E vive experiências n u m a realidade concreta. N e s t a r e a l i d a d e , n e s t e m u n d o externo que habito, a m i n h a u n i v e r s a l i d a d e e n c o n t r a a u n i v e r s a l i d a d e do outro, que a limita. E n t ã o , n e s t e m u n d o de relações com o outro, quando falo no eu, falo no alter ego, o eu e o eu que é o outro (SADALA, 1995).
O mundo n a m i n h a consciência, portanto, assim como o mundo na consciência do outro, não é um mundo particular. O meu mundo r e s u l t a da m i n h a percepção do mundo, e da percepção de mim no mundo pelo outro, e da percepção que t e n h o do outro, r e s u l t a n d o n u m a
subjetividade objetividade, que Merleau Ponty chama
de intersubjetividade. A constituição do m u n d o de relações, p o r t a n t o , é u m fenômeno i n t e r s u b j e t i v o (MERLEAU PONTY, 1945).
N e s t a condição de ser-em-situação, n u m mundo de relações j á dado, a universalidade do outro me leva a u m a operação seletiva p a r a a adaptação à situação. Cada corpo, com s u a e s t r u t u r a própria, seleciona suas formas de adaptação, que nunca se repetem, nem com os outros, n e m com ele próprio em outros momentos e o u t r o s l u g a r e s . No m o v i m e n t o c o n t í n u o d e transformação.
R e p r o d u z i m o s a q u i , em t r a d u ç ã o l i v r e , a descrição do diálogo, como o vê MERLEAU PONTY (1945, p.81):
A alteridade: o outro como critério María Lúcia Araújo Sadala
Pensamos que esta descrição é tão completa que, ao l ê - l a , é possível compreender como, a p a r t i r dessa relação dialogal e n t r e os h u m a n o s , foi possível a constituição d a linguagem * c u l t u r a * civilização -> história.
A visão merlopontiana da alteridade - que ele chama intersubjetividade - pode ser complementad a por visões similares de outros a u t o r e s , ampliando a compreensão do conceito p a r a os aspectos políticos, morais e éticos, conforme está descrito a seguir.
VIDAL (1979) considera que a alteridade corrige u m a visão individualista e a b s t r a t a do personalismo, resgata o sujeito real concreto p a r a a moral e p e r m i t e -lhe viver em mediação política.
T a m b é m p a r a Levinas (citado em CORRÊA, 1993), n a relação com o outro, n a comunicação com ele, cria-se a consciência moral dos sujeitos: o homem sai de si mesmo pela c h a m a d a exterior do outro, que o desvela e convoca à luz. Ainda, de acordo com o mesmo autor, o outro consiste no meu limite: me obriga a retroceder de i n v a d i - l o . "Ele é a m o r t e d a s m i n h a s expansões ingênuas e me inverte no recuo do remorso e n a t e n t a t i v a de velamento da vergonha". É o convite a nascer de novo. Daí o nascimento da justiça: d a r a cada u m o que lhe é de direito (SUSIN, 1987).
P a r a D U S S E L ( 1 9 8 7 ) , o outro se m o s t r a ou aparece como u m a revelação (epifania), como q u e m provoca e exige justiça. Este outro é o outro sexuado, o outro discriminado, o outro político, o outro estrangeiro, etc. O outro diferente que me obriga a novas atitudes e reflexões.
Aqui nos aproximamos das questões políticas e éticas e morais. É o outro que nos t r a z essas questões. É diante do outro que sou chamado p a r a essas questões. E n t ã o é diante do outro que se constituem as questões éticas e morais.
Chegamos e n t ã o à s relações d a Ética com a alteridade. CORRÊA (1993) traz à discussão a inclusão do critério de alteridade como fundamental n a aplicação dos 3 c r i t é r i o s d a B i o é t i c a : beneficência (e não
maleficencia), autonomia e justiça. U m posicionar-se
dos profissionais da s a ú d e contemplando o outro - o paciente - não m a i s como u m paciente (ser passivo e sofredor, incapaz), m a s como u m s e m e l h a n t e , n u m a relação simétrica (ou o m a i s próximo que possa ser), n a qual ambos se contemplam como seres h u m a n o s únicos. Diríamos a relação dialógica, segundo BUBER (1979). Na v e r d a d e , a fundamentação dos 3 critérios n a a l t e r i d a d e t r a n s f o r m a a p r á t i c a da assistência: p a s s a - s e a atribuir ao paciente tudo que lhe é de direito e dever e, mais que isso, a s u a participação ativa, como fundamento. Sendo u m a relação simétrica, t a m b é m o profissional é contemplado: a p a r e n t e m e n t e tendo de a m p l i a r s u a s a t i v i d a d e s e p r e p a r a r - s e m a i s a d e q u a d a m e n t e ; e m c o n t r a p a r t i d a , n a r e l a ç ã o profissional se colocará de forma m a i s a u t ê n t i c a ,
t a m b é m protegido pelos mesmos critérios da Bioética: beneficência, autonomia, justiça.
N a p r á t i c a p r o f i s s i o n a l , p e n s a m o s q u e t a r d i a m e n t e a h u m a n i d a d e d e s p e r t o u - m a s enfim d e s p e r t o u - p a r a a s q u e s t õ e s d a a l t e r i d a d e . N ã o passivamente. Resultou de l u t a s históricas das classes sociais desprotegidas, h á longo tempo. A p e n a s agora, em fins do milênio, se fala nos direitos do paciente como cidadão. T a m b é m r e s u l t o u de u m a solicitação do p r o g r e s s o c i e n t í f i c o . H á q u e se p r e p a r a r e m a s sociedades p a r a as situações espantosas p a r a o homem c o m u m : t r a n s p l a n t e s , c l o n a g e m de s e r e s v i v o s ,
recriação d a n a t u r e z a . E a visão a s s u s t a d o r a de u m
p l a n e t a v i r t u a l m e n t e d e s t r u í d o . T a i s s i t u a ç õ e s e x t r e m a s a c i r r a m os conflitos relacionais e exigem posicionamentos críticos.
N a E n f e r m a g e m as r e p e r c u s s õ e s d a utilização do critério d a a l t e r i d a d e fazem-se s e n t i r d i r e t a m e n t e n a p r á t i c a da assistência, p a r t i c u l a r m e n t e no que se refere à questão da autonomia - momento no qual enfim se reconhece que o paciente é dono do seu próprio corpo, e sujeito do seu cuidado. Porém, n a nossa visão, o critério da alteridade, aceito e incorporado formalmente, m o s t r a - s e muito vulnerável no confuso e contraditório universo d a s relações h u m a n a s , d e n t r o do contexto desigual d a assistência à s a ú d e no nosso país.
Porém h á que se reconhecer: é u m movimento em direção à evolução das práticas de saúde, e à conscientização dos profissionais em relação às questões éticas.
R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S
BUBER, M. E u e t u . São Paulo, Cortez/ Moraes, 1979.
CHAUI, M. C o n v i t e à f i l o s o f i a . São Paulo, Ática, 1997.
CORRÊA, F. A. A a l t e r i d a d e c o m o c r i t é r i o f u n d a m e n t a l e e n g l o b a n t e d a B i o é t i c a . C a m p i n a s , 1 9 9 3 . 2 3 9 p . T e s e (Doutorado) UNICAMP-SP
D U S S E L , H. Ética da libertação. (Hipóteses f u n d a m e n t a i s ) . C o n c i l i u m , v. 192, n. 2, p. 83, 1984.
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SADALA, M. L. A. E s t a r c o m o p a c i e n t e : a possibilidade de uma maneira autêntica de cuidar. São Paulo, 1995. 235p. Tese (Doutorado). Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
SGRECCIA, E. M a n u a l d e b i o é t i c a 1. Fundamentos e ética biomédica. São Paulo, Loyola, 1996.
SUSIN, L. C. O esquecimento do "outro"na história do ocidente. R e v . E c l e s . B r a s . , v. 47, p. 8 2 0 - 3 8 , 1987.