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Capoeira Angola: saberes, valores e atitudes na formação do mestre

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Academic year: 2017

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Rio Claro

Estado de São Paulo – Brasil Setembro / 2010

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA MOTRICIDADE (PEDAGOGIA DA MOTRICIDADE HUMANA)

C

APOEIRA

A

NGOLA

:

SABERES

,

VALORES E ATITUDES NA FORMAÇÃO DO MESTRE

THIAGO VIEIRA DE SOUZA

Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências da Motricidade.

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C

APOEIRA

A

NGOLA

:

SABERES

,

VALORES E ATITUDES NA FORMAÇÃO DO MESTRE

THIAGO VIEIRA DE SOUZA

Orientador:

Prof. Dr. Samuel de Souza Neto

Rio Claro

Estado de São Paulo – Brasil Setembro / 2010

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THIAGO VIEIRA DE SOUZA

C

APOEIRA

A

NGOLA

:

SABERES

,

VALORES E ATITUDES NA FORMAÇÃO DO MESTRE

Comissão Examinadora

Profº Dr. Samuel de Souza Neto

Profº Dr. Luiz Gonçalves Junior

Profº Dr. Alexandre Janotta Drigo

Rio Claro, 27 de Setembro de 2010

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Agradecimentos

Primeiramente quero agradecer a Oxalá (Jesus), por ter permitido que eu completasse mais esta etapa da minha vida. Aos meus orixás Oxossi, Oxum e Ogum, guias e protetores que sempre me orientaram nos caminhos que trilhei e que se tornaram ao longo de minha vida verdadeiros alicerces, onde obtive a base de minha educação.

Agradeço aos meus pais (Tolentino e Antonia) por toda a compreensão e paciência que tiveram durante minha vida, por sempre me conduzirem ao caminho do bem e por me ensinar o valor que o estudo possui não permitindo jamais que eu desistisse. Amo muito Vocês!

Agradeço aos meus outros pais (Isidoro e Sebastiana) dirigentes espirituais do Templo de Umbanda Cacique Pena Vermelha e Ogum Iara onde nasci, cresci, e permanecerei até o fim. Agradeço por ter sido o local que mais me incentivou a prática da capoeira, sendo posteriormente o primeiro local que ministrei aulas. Sou grato por todos os ensinamentos que me deram ao longo de meus 27 anos de vida.

Agradeço a minha noiva (Simone) por todo seu amor, carinho e compreensão, principalmente nas situações onde precisei estar ausente. Te amo!

Aos irmãos (Jéssica e Geronimo) que sempre estiveram ao meu lado, me apoiando em toda e qualquer situação e sempre sentiram orgulho das minhas conquistas.

Agradeço ao Profo Ms. Adriano Pires de Campos, primeiro orientador que através de seus ensinamentos me fez perceber a capoeira enquanto área de estudos e me levou até o Profo Samuel Souza Neto, que acreditou em meu trabalho e em minha capacidade, me acolhendo em sua grande família chamada NEPEF, na qual me recebeu de braços abertos. Lá fiz grandes amigos, como Camila, Aline, Evandro, Carol, Larissa, Marcelo (grande companheiro de labutas) e tantos outros que mesmo distantes sempre torceram pelo meu sucesso.

A você, Profo Dr. Samuel, o meu mais sincero agradecimento, por toda sua paciência e confiança, por me ensinar, por me preparar e principalmente por me orientar nesta etapa de meus estudos.

A amiga Profa Ms. Mellissa que pacientemente com suas orientações me ajudou em toda estruturação deste estudo.

Ao Profo Dr. Luiz Gonçalves Junior e ao Profo Dr. Alexandre Janotta Drigo que aceitaram o convite para compor a banca de mestrado e me presentearam com suas valiosas contribuições.

A meu mestre Plínio que solicitou aos mestres entrevistados, a confiança neste estudo. A todos os mestres participantes que confiaram a mim seus depoimentos.

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RESUMO

Esta pesquisa teve como objeto de estudo os saberes na formação do mestre de capoeira Angola, considerando os valores, artefatos e atitudes presentes neste contexto. Pressupõe-se que os saberes provenientes de uma escola de vida formam a identidade e um perfil profissional, assim como o habitus que emerge dessa prática social. Há dois objetivos principais neste estudo: (a) Investigar os saberes constitutivos da capoeira Angola, bem como o perfil profissional de indivíduos que atuam no ensino desta atividade; e (b) identificar os elementos que auxiliam na caracterização da capoeira Angola enquanto escola. Entre as técnicas escolhidas adotamos a entrevista narrativa semi-estruturada, complementada pelo método de análise de conteúdo sob a ótica das representações sociais para proceder à análise e interpretação dos depoimentos de 7 mestres da capoeira Angola da cidade de Salvador-BA. Neste contexto, os depoimentos apontaram para uma estrutura e organização da capoeira que se assemelha às escolas de ofícios, onde são constituídos grupos que possuem formas peculiares de ensino, dotados de valores e rituais específicos. Esses valores e rituais formam um conjunto de elementos tais como a música, o canto, o toque, os movimentos e a roda, que se configuram em saberes adquiridos na vivência na capoeira Angola. Os mestres possuem valores pautados em uma tradição que tem sua essência na relação mestre-aprendiz, onde o tempo e a proximidade com o mestre são fatores preponderantes para que se obtenha o conhecimento. Juntamente com suas práticas de ensino, os mestres trazem uma gama de gestos, códigos, sinais e movimentos que os auxiliam durante seu ensino e expressam uma hexis corporal que também é expressa na forma de valores, fundamentos e rituais legitimados no passado e que permanecem vivos no presente. A partir deste panorama, concluímos que a caracterização da capoeira Angola como escola de ofício é uma realidade, principalmente no que se refere ao ensino e à organização de seus espaços de formação. Os valores, as ações didáticas e a postura dos mestres visam sempre à preservação de uma tradição e destacam-se como principais características dos perfis profissionais. Apontamos assim para a existência de um habitus profissional do mestre de capoeira Angola que tem sua constituição a partir de sua trajetória na capoeira Angola. Os resultados dessa investigação contribuem para melhor delinearmos os saberes que constituem o universo da capoeira Angola, assim como o perfil profissional de seus mestres no Brasil.

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ABSTRACT

This research was based on the teaching knowledge of an Angola Capoeira master, involving moral values, artifacts and attitudes around this subject. It is assumed that knowledge acquired from life lessons build up an identity and a professional profile, such as habitus wich emerges from social practice. There are two main objectives to this study: (a) Investigating the standard knowledge on Angola capoeira professionals’ profiles who teach such activity; and (b) identifying elements which feature Angola Capoeira as schooling. Among the chosen techniques, we picked the semi-structered narrative interview, complemented by the method of content analysis under the social representations perspective proceding the 7 Angola Capoeira masters’ brief from Salvador – BA. In this abstract, briefs point to the structure and organization resemblance between capoeira and trade schools in which groups are formed carrying peculiar ways of teaching, full of moral values and specific rituals. These values and rituals build up a series of elements such as music, singing, playing, moves and the circle which become the main knowledge amongst Angola Capoeira experiences. Masters own moral standards based on a tradition which follows the master-apprentice relation pattern. Spending time and keeping close to a master are key factors to obtaining knowledge. Besides teaching techniques, masters bring along a range of gestures, codes, signals and moves that will assist themselves during their teaching process and express a body hexis transmitting other legitimate values, fundamentals and rituals from the ancient times that have survived throughout the years. From this point, we conclude that featuring Angola Capoeira as a trade school is a reality, especially on the educational and organizational content. Values, didactic actions and masters’ postures tend to reach a preservation of traditions and stand out as main features to professional profiles. Thus, we point out to an Angola master’s professional habitus existance which has its foundations carved in his own trajectory inside Angola Capoeira. Results created from this investigation contribute to a better outlined view of the Angola Capoeira knowledge universe, like masters’ professional profiles around Brazil.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Movimentos corporais... 40

Quadro 2 – Características mais relevantes no jogo... 41

Quadro 3 – Toques de Berimbau... 41

Quadro 4 – Saberes dos Professores... 62

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LISTA DE ANEXOS

Anexo 1 - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido... 203

Anexo 2 - Entrevista com o Mestre B ... 204

Anexo 3 - Entrevista com o Mestre C... 208

Anexo 4 - Entrevista com o Mestre J... 214

Anexo 5 - Entrevista com o Mestre JD... 225

Anexo 6 - Entrevista com o Mestre M... 230

Anexo 7 - Entrevista com o Mestre P... 236

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 11

Capítulo 1 - SABERES E PRÁTICA PROFISSIONAL NA CAPOEIRA ANGOLA... 22

1.1 A CAPOEIRA NO TEMPO E NO ESPAÇO..…... 23

1.1.1 Escravidão: origem e inserção do negro na cultura brasileira...

1.1.2Capoeira: uma arte, uma luta, um jogo, uma dança?...

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1.2 OS MESTRES DE CAPOEIRA E A SUA FORMAÇÃO: OS SABERES PROFISSIONAIS... 43

1.2.1 A capoeira na perspectiva das corporações e escolas de ofício...

1.2.2 A questão dos saberes como chave de leitura para a compreensão da produção de conhecimentos na capoeira...

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1.3. A CAPOEIRA ANGOLA COMO REPRESENTAÇÃO SOCIAL...

1.3.1 Representação social...

1.3.2 A presença do habitus nas representações

sociais...

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1.3.3 O habitus como elemento fundamental de um espaço social denominado “campo” que abarca uma illusio... 78

Capítulo 2 - PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...………. 86

Capítulo 3 - OS SABERES E A PRÁTICA PROFISSIONAL NAS TRAJETÓRIAS DE VIDA DOS MESTRES DE CAPOEIRA ANGOLA... 90

3.1 CULTURA, HISTÓRIA E CONHECIMENTO PRESENTES NA TRAJETÓRIA DE VIDA DO MESTRE DE CAPOEIRA ANGOLA... 91

3.1.1 Os mestres de capoeira Angola: uma breve biografia...

3.1.2 A capoeira Angola como cultura e a cultura da capoeira...

91

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3.2 A CAPOEIRA ANGOLA COMO CORPORAÇÃO E ESCOLA DE OFÍCIO: UM CURRÍCULO OCULTO A DESCOBRIR.... 119

3.2.1 Valores, artefatos e rituais presentes na capoeira Angola...

3.2.2 Os saberes profissionais que emergem dos mestres das escolas de capoeira Angola...

3.2.3 A capoeira Angola como um espaço social (“campo”) de lutas: dominantes e dominados...

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3.3.1 O mestre de capoeira Angola ensina pegando pela mão...

3.3.1.1 A ação didática do mestre de capoeira Angola no processo de formação do capoeirista...

3.3.1.2 A dança, o jogo, a musica, o canto e a roda de capoeira como artefatos da hexis corporal do mestre de capoeira Angola...

3.3.1.3 A formação do mestre de capoeira Angola como um “aprendiz de feiticeiro”: a postura no processo de se tornar mestre...

3.3.2 O habitus profissional como identidade do mestre de capoeira Angola...

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CONSIDERAÇÕES FINAIS... 180

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INTRODUÇÃO

Meu primeiro contato com a capoeira ocorreu no final de 1997, quando cursava a oitava série do ensino fundamental. Em uma das aulas de Educação Física, o professor informou que a Educação Física, enquanto componente curricular era muito mais do que apenas a prática do esporte. Envolvia, também, atividades culturais e reflexivas, como discussões sobre temas polêmicos, atividades de circo, entre outras atividades, como a capoeira, por exemplo, um dos conteúdos inerentes a essa disciplina escolar. Assim, aquele professor destinou algumas de suas aulas ao ensino da capoeira, falando um pouco de sua história e de seus fundamentos. Inicialmente, encarei esse conteúdo com reprovação, pois, em minha visão, as aulas de Educação Física deveriam ser voltadas para a prática dos esportes de quadra, como basquetebol, futebol, handebol e voleibol.

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educativa. Tal mudança de pensamento pode ser associada a um remanejamento de estruturas, remodelação de elementos, bem como reconstrução de dados, levando em consideração o contexto de valores, das regras e noções (DOTTA, 2006). Para a autora, esta mudança de perspectiva está baseada no conceito de representação social, conforme definido por Moscovici (1978, p.26 apud DOTTA, 2006, p.17) que a delimita como sendo “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos”.

No ano escolar seguinte, com a falta de apoio para a continuidade no esporte e com a mudança para o ensino médio, o voleibol deixou de ser uma realidade tangível. Interrompi meus treinamentos para me dedicar mais aos estudos e preparação para o mercado de trabalho.

Contudo, influenciado por familiares, fui orientado sobre a necessidade de realizar uma atividade física em que pudesse extravasar minha ansiedade pelo término do voleibol e minha vida. Foi então que optei por prosseguir com a capoeira, seguindo a sugestão de parentes próximos que admiravam essa modalidade. A partir desse momento, comecei a procurar e visitar alguns grupos de capoeira no bairro onde morava. Havia muitos grupos e muitos locais de prática e, após ter visitado alguns deles, decidi, treinar na associação de bairro, em função da capoeira ser parte integrante do quadro de atividades.

Iniciei a prática da capoeira em maio de 1998, época que já tinha escolhido a Educação Física como profissão. No universo da capoeira, pude perceber que havia muitos quesitos ou áreas e que cada um procurava se destacar naquelas de maior interesse. Alguns alunos eram bons no jogo alto, outros no jogo baixo, alguns no jogo de Angola, outros na Regional, nos ataques, nas esquivas, no canto, nos saltos, no berimbau, no pandeiro, no atabaque e, até mesmo, na parte teórica que, mais tarde, percebi como algo muito forte dentro daquele grupo. Neste aspecto podemos, citar Souza e Oliveira (2001) ao considerar que:

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globalizadamente, deixando que o aluno identifique-se com os aspectos que mais lhe convier (p.44).

A parte com a qual me identifiquei inicialmente foi à musicalidade, prática esta advinda da doutrina religiosa que percorro até hoje. Neste ponto, dou-me a licença para discorrer sobre aspectos de minha vida pessoal que se conectam com minhas inquietações acadêmicas no presente estudo. Assim, é importante ressaltar que sou praticante da religião umbandista há vinte sete anos, inclusive frequentando o mesmo templo durante todo esse período. Para os umbandistas, o canto é um fator de grande relevância durante os cultos, pois, através da oralidade musical que se atinge a energia para a realização das práticas espirituais. Os responsáveis pelo canto são chamados de Curimbeiros e devem estar totalmente em sintonia com tudo que esta sendo realizado, sabendo o que cantar, porque cantar e quando cantar, além de dominar os toques no atabaque, instrumento sagrado utilizado pela religião umbandista.

Aos poucos fui percebendo que tal situação também ocorria na capoeira e fui me deixando envolver por aquela infinidade de conhecimentos e domínios que se faziam presentes naquele universo, passando esta prática a tomar conta do meu ser, me dando a certeza de que queria muito mais que praticá-la, mas também ensiná-la. Isso atrelado a minha escolha pela Educação Física como carreira profissional fez com que visse a universidade como um local onde iria aprimorar meus conhecimentos para alcançar este objetivo.

Com o ingresso na graduação no ano de 2001, reconheci em pouco tempo que a Educação Física era mais que uma prática esportiva, era um universo que jamais imaginei como área de estudo e profissão. Esta descoberta me impulsionou ha nesse mesmo ano, ministrar aulas como voluntário, na Organização Não Governamental (ONG) de minha madrinha chamada Projeto Filhos do Cacique, nome este que se dá devido ao templo ter a entidade1 Cacique Pena Vermelha como principal responsável.

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Este projeto teve início em 1987, porém com o nome de encontro de crianças, e era destinado aos filhos dos médiuns que freqüentavam o templo, neste encontro realizávamos atividades artesanais como desenho, pintura, bordados entre outras atividades, além de aulas com algumas das entidades que faziam parte do templo, onde tínhamos oportunidade de conversar desde assuntos diversos como estudo, família, conflitos até o aprendizado de doutrinas que regem nossa religião como respeito ao próximo, caridade, responsabilidade com a humanidade e com a natureza e principalmente sempre agir corretamente e jamais negar a religião, pois éramos umbandistas e deveríamos dar exemplo para que não sofrêssemos discriminação alguma perante a sociedade.

Após o templo inaugurar sua sede própria em 15 de abril de 1995, o encontro de crianças passou a ser chamado de projeto Filhos do Cacique, e já não era mais destinado apenas aos filhos dos médiuns, configurando-se em um espaço social que propiciava atividades gratuitas como pintura, culinária, artesanato entre outras, para crianças do bairro, e como a capoeira foi uma atividade que contribuiu muito em minha adolescência, minha vontade de levar esta prática para outras pessoas era grande e desta forma houve a sugestão que esta fosse uma das atividades oferecidas pelo projeto, considerando que já estava na capoeira há três anos e possuía a graduação necessária para iniciar um trabalho.

Em nosso grupo tínhamos como base o modelo de formação da Federação Paulista de Capoeira (1974) com a seguinte gradação nos cordões: verde, verde-amarelo, amarelo que eram chamadas graduações de alunos, seguidos de amarelo-azul estágio de primeiro grau ou aluno graduado, a graduação azul em nosso grupo era considerado estagiário, seguido das graduações verde-amarelo-azul instrutor e verde-amarelo-verde-amarelo-azul e branco formado ou professor.

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Outrossim, cabe ainda colocar que esta perspectiva é valida no mundo da capoeira não tendo a mesma compreensão no universo ocupacional.

Sobre esta questão, podemos nos apoiar em Rugiu (1998, p.49), que ao explanar sobre a relação mestre-aprendiz, afirma que os aprendizes “eram submetidos à obrigação de estar sob o comando do mestre” sendo “sempre e de qualquer modo, uma relação educativamente relevante e compreensiva de procedimentos do aprendizado formal e informal”.

Quando iniciei, o trabalho foi marcado por alguns embates com relação à maneira como conduzia as aulas, pois era da forma como havia aprendido, não levando em consideração alguns aspectos dos alunos, como faixa etária, nível de desenvolvimento, grau de dificuldade dos movimentos a serem ensinados, e até mesmo os exercícios físicos que utilizava como aquecimento. À medida que avançava nos estudos percebia que algumas estratégias não estavam de acordo, mas outras estavam, buscava modificar algumas formas de ensino que aprendi no meio da capoeira, e em outros momentos acrescentava os conhecimentos que obtinha na universidade como planejar as aulas, levar em consideração as faixas etárias bem como níveis de desenvolvimento dos alunos, formas pedagógicas para o ensino de determinados movimentos, selecionar melhor os exercícios utilizados para preparação dos alunos, entre outros pontos. Desta forma o projeto passou a ser um laboratório onde colocava em prática não só o que havia aprendido na capoeira, mas também os conhecimentos que obtinha durante minha graduação.

Refletindo sobre a prática pedagógica e o ensino da capoeira posso dizer que estas antes eram vistas por mim como fonte de lazer em virtude uma prática desinteressada ou até de perspectiva artística.

No entanto, a partir do momento que entrei no curso de graduação em Educação Física (2003) comecei a entender melhor o universo das práticas profissionais, vendo a capoeira com outros olhos.

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conclusão de curso, investigando os aspectos didáticos e metodológicos no processo de ensino da capoeira, ou seja, a identificação destes processos em mestres sem formação acadêmica. Conclui que os mestres de capoeira dividem a aula em blocos ou em partes, separando os praticantes por faixa etária ou em etapas e com um estilo de ensino que ia do comando ou por tarefa até descoberta dirigida (MOSSTON, 1992), constatando assim a existência de conceitos didático-pedagógicos e a preocupação com o ensino em suas aulas.

Todavia, na medida em que avancei nos estudos e atuação no ensino da capoeira compreendi a sua complexidade enquanto conteúdo que traz consigo uma gama de conhecimentos e formas de transmissão peculiares, bem como um conjunto de saberes que lhe são próprios. Pude observar que os mestres são formados no próprio espaço social em que praticam, sendo constituído de um corpo de conhecimento próprio, advindos de um “saber” e de um “saber-fazer” configurando uma semelhança com o estudo de Pintassilgo (1999). Estes saberes na visão de Tardif (2002), são adquiridos através de um processo mental e social, que consiste em uma inter-relação entre o “eu” levando em consideração suas emoções, cognição, expectativas, história de vida, entre outras e o “outro”, pois partilha de um grupo de agentes, repousa sobre um sistema que garante sua legitimidade e tem em sua essência objetos sociais ou seja agir com outros seres humanos.

Partindo desta perspectiva, pode-se afirmar a priori que estes espaços sociais da Capoeira estruturam-se aparentemente de forma autônoma no que diz respeito ao aprendizado, no sentido de que cada grupo possui sua hierarquização (mestre, contra-mestre, professor, instrutor ou monitor, estagiário ou treinel e aluno), regras e nomenclatura, bem como uma prática pedagógica próprias construídas temporalmente a partir de estruturas sociais e mentais.

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Assim sendo, estas escolas poderiam ser classificadas em artes mecânicas (composta por indivíduos considerados trabalhadores manuais) ou artes liberais (composta por indivíduos considerados intelectuais), sendo que as primeiras ficaram conhecidas como ofício, e as segundas como profissão (SILVA, 2009). No caso da capoeira ela se enquadra na perspectiva da escola de ofício dado às características que assume no decorrer de sua história. Para Sousa Neto (2005, p. 258)...:

[...] o ofício é antes de tudo um dever e exige uma certa disciplina, uma dose de trabalho, ao ponto de se esperar que o profissional seja melhor que o amador, porque não faz apenas uma vez ou outra, quando deseja ou quando lhe convém. Por ofício temos a obrigação de fazer o melhor que pudermos aquilo que nos identifica como profissional em uma determinada área (p. 254).

Deste modo o presente estudo irá considerar a Capoeira como um ofício que possui um perfil profissional formador de uma identidade proveniente do exercício deste ofício. Sousa Neto (2005) assinala também que o exercício de qualquer ofício:

[...] pressupõe que o seu realizador domine os processos que lhe são inerentes e seja capaz de executá-los de maneira a observar como cada momento, cada detalhe por diminuto que seja, cada gesto ainda que automático, resulta de uma unidade em que os fragmentos só justificam sua existência por fazerem parte do todo. E os ofícios, como decorrentes de um dado ritual, requerem oficinas, lugares onde se deve encontrar os artefatos para o trabalho – a matéria-prima que se manipulará, as ferramentas de que se disporá para a tarefa, os espaços em que o corpo se flexionará assumindo várias formas para o uso da força e da delicadeza em diferentes medidas (p.250).

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[...] pressupõe-se a perspectiva de um lugar de onde, a partir desse processo que inclui rituais constitutivos de coisas e idéias, instituem-se regras, códigos, relações que identificam, naqueles que fazem a oficina funcionar, os sujeitos que são feitos pelo ofício que executam.

Em outras palavras, a realização de um ofício no interior de uma dada oficina cria, dentre outras coisas, uma identidade entre os indivíduos e os objetos que estes manipulam, as ferramentas que manuseiam, os processos com os quais interagem. E ainda mais, cria uma identidade entre os indivíduos que são parceiros de rituais comuns, realizadores de um dado ofício e situados no ambiente da mesma oficina (SOUSA NETO, 2005, p. 250).

É no interior desta oficina cultural que a evolução de seus integrantes vem marcada pela adoção de uma simbologia que pode variar, de acordo com cada grupo. No que diz respeito à capoeira, esta possui duas vertentes com saberes diferenciados entre si: a capoeira Angola e a capoeira Regional2. Enquanto a primeira busca, através dos rituais dos preceitos, o preparo para defender-se com uma grande dose de malícia baseada na calma e na velocidade (OLIVEIRA, 2001) a segunda une fragmentos da capoeira Angola com outras lutas como batuque, jiu-jítsu, judô, savate, entre outras, assumindo assim uma característica voltada para luta, defesa pessoal e esporte (REIS, 2000).

Porém, cada uma traz subjacente, formas particulares de transmissão e aquisição de saberes, nos levanto a escolher, nesse momento, a capoeira Angola em função de ser aquela que busca conservar as raízes de uma tradição, bem como a sua arte e jogo. Neste contexto, esta pesquisa apresenta como problema de investigação a seguinte questão:

Os saberes constitutivos da capoeira Angola, o perfil profissional dos mestres, bem como a caracterização da capoeira, enquanto escola de ofício, a partir das representações sociais dos mestres, permite identificar esta segunda pele que se denomina de habitus profissional?

Parte-se do pressuposto (hipótese) de que as representações sociais permeadas de saberes provenientes de uma escola de vida, e de ofício, formam a

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identidade, perfil profissional, assim como o habitus que emerge dessa prática social traz subjacente a ele uma historicidade travestida de cultura presente no corpo do mestre. Da compreensão das nuances desse problema e pressuposto objetiva-se:

• Investigar, nas representações sociais acerca da capoeira, os saberes constitutivos da capoeira Angola, bem como o perfil profissional dos que atuam no ensino desta vertente e;

• Identificar os elementos ou aspectos que auxiliam na caracterização da capoeira enquanto escola de ofício, visando apontar a perspectiva de constituição do habitus profissional do mestre.

A escolha destes objetivos teve como referência o quadro apresentado por Araujo (2005, p.22) ao ressaltar que os estudos de caráter pedagógico no âmbito da capoeira são escassos apesar da “existência de novas bibliografias neste campo de pesquisa, descobrindo o contexto educacional como campo fértil para experiências desta natureza”.

Para proceder à coleta dos dados, utilizar-se-á, como perspectiva, as representações sociais. Segundo Dotta (2006), a utilização da teoria das representações sociais, enquanto fundamentação teórica em estudos tem um grau de importância relevante no país, sendo utilizada nas áreas da educação, saúde e meio ambiente. Deste modo os dados coletados são predominantemente descritivos, sendo submetidos a uma análise de conteúdo.

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No anseio de que os objetivos propostos fossem alcançados, esta pesquisa foi estruturada em três momentos. O primeiro, no qual estamos, constituiu-se na apresentação do problema de estudo, justificativa e objetivos.

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No capítulo dois são apresentados os procedimentos metodológicos utilizados para o desenvolvimento do estudo; enquanto que no terceiro capítulo são apresentados os resultados obtidos na investigação, bem como a discussão dos mesmos em três eixos: “Cultura, história e conhecimento presentes na trajetória de vida do mestre de capoeira Angola”, “Capoeira Angola como corporação e escola de ofício um currículo oculto a descobrir” e “O habitus profissional do mestre de capoeira Angola”.

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Capítulo 1 - SABERES E PRÁTICA PROFISSIONAL NA CAPOEIRA ANGOLA

Este capítulo foi organizado em três eixos, tendo como temas: “A capoeira no tempo e no espaço”; “Os mestres de capoeira e sua formação: os saberes profissionais” e “A capoeira Angola como representação social”.

O primeiro eixo abarca questões históricas pertinentes à capoeira em dois tópicos: “Escravidão: origem e inserção do negro na cultura brasileira”, momento em que falo sobre como se deu o processo de entrada do negro no Brasil, a exploração de seu trabalho, seu cotidiano, suas relações e o seu lugar na sociedade brasileira; enquanto que o segundo tópico, “Capoeira: uma arte, uma luta, um jogo, uma dança?” tratou da sua relação com a escravidão, assim como de seus múltiplos enfoques na constituição de sua identidade.

Ao contrário do primeiro, o segundo eixo buscou apontar para os processos de formação contidos no universo da capoeira em dois tópicos: “A capoeira na perspectiva das corporações e escolas de ofícios”, momento em que se destacam os aspectos do ensino da capoeira como um processo artesanal de formação, apresentando semelhanças com as corporações e escolas de ofício. Nesta direção o segundo tópico “A questão dos saberes como chave de leitura para a compreensão da produção de conhecimentos na capoeira” apontou para os saberes presentes na literatura em relação à capoeira Angola.

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1.1. A CAPOEIRA NO TEMPO E NO ESPAÇO

A história da capoeira esta intimamente ligada à entrada dos negros no Brasil (FONTOURA; GUIMARÃES, 2002), por isso para melhor compreensão deste processo, se fez necessário recorrer aos anais da história do Brasil (AREIAS, 1984). Reis (2000) coloca que a ausência de pesquisas neste âmbito entre os séculos XVI e XVIII, impossibilitou a identificação e a reconstrução do processo que conduziu a capoeira do berço de sua prática até a cidade e talvez por essa razão tratar sobre questões relacionadas ao processo histórico da capoeira muitas vezes torna-se uma difícil tarefa.

Outro dado histórico em que se acredita ter contribuído para a dificuldade de informações a respeito do negro, foi o fato de Rui Barbosa quando ministro da fazenda, ter determinado a destruição de documentos referentes à escravidão (CAMPOS, 2001a; OLIVEIRA, 2001; AREIAS, 1984; FONTOURA; GUIMARÃES, 2002) . Diante desta situação tais autores convergem em afirmar que tal iniciativa tomada pelo então Ministro da Fazenda contribuiu significativamente para falta de esclarecimentos acerca da escravidão, aparentemente refletindo nos estudos no âmbito da capoeira. Rego (1968) em sua obra avaliada como um dos mais importantes estudos a respeito da capoeira, considera que Rui Barbosa, nos prestou um mau serviço, quando afirmou que:

Considerando que a nação brasileira, pelo mais sublime lance de sua evolução histórica eliminou do solo da pátria a escravidão [...] a Republica está obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira. Rui Barbosa (REGO, 1968, p. 10).

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1º - Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula de escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriado na recebedoria.

2º - Uma comissão composta dos Srs. João Fernandes Clapp, presidente da confederação abolicionista, e do administrador da recebedoria desta capital, dirigirá a arrecadação dos referidos livros e papéis e procederá a queima e destruição imediata deles, o que se fará na casa de máquina da alfândega, desta capital, pelo modo que mais conveniente parecer à comissão.

Capital Federal, 15 de dezembro de 1890 – Rui Barbosa (REGO, 1968, p.10)

Todavia com relação ao arrolado, existem também opiniões divergentes, como de Francisco de Assis Barbosa, jornalista e historiador que em seu texto de apresentação ao livro: Rui Barbosa e a queima de arquivos (1988) ressalta: “O historiador não pode nem deve alhear-se do clima da época, muito menos das circunstâncias que cercaram o episódio, para que possa avaliar o ato de Rui Barbosa e seus desdobramentos” (p. 9).

Segundo o autor o ato que levou Rui Barbosa a queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos a escravos nas repartições do Ministério da Fazenda teve por finalidade eliminar os comprovantes de natureza fiscal que pudessem ser utilizados pelos ex-senhores para pleitear a indenização junto ao governo da República, já que a Lei de 13 de Maio de 1888 havia declarado extinta a escravidão, sem reconhecer o direito de propriedade servil. O autor afirma que a incompreensão desse clima e a falta de sensibilidade para aceitá-lo que certamente escaparam aos que condenaram tão veementemente a decisão do Ministro da Fazenda de 1890-1891. Torna-se impossível mensurarem-se os danos, porém é chamada atenção no que mensurarem-se refere à falta de um estudo sério e em profundidade mesmo que em termos de dados aproximativos ou para o levantamento referentes aos danos, destacando:

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são inadequadas, mal-arejadas e mal-equipadas, sem que se observem as normas mais elementares de organização de trabalho e de segurança ambiental (p. 10).

Apontando outros acontecimentos que também contribuíram para a dificuldade de obtenção de dados a respeito da escravidão Barbosa (1988), destaca a mudança de instalação do Ministério da Fazenda da antiga Academia Imperial de Belas Artes para o luxuoso edifício da Esplanada do Castelo como um dos maiores desastres da história da conservação de arquivos brasileiros, e afirma:

Perdeu-se muito mais do que com a incineração das matrículas de escravos ordenada por Rui Barbosa e Alencar Araripe. Grande parte de livros alfandegários, importação e exportação de mercadorias, levou-se de roldão: foi para o lixo nessa mudança (p.15).

Todos estes dados nos remetem a grande dificuldade de obtenção de informações sobre esta temática no período entre os séculos XVI e XVIII, bem como as divergências de opiniões de autores a respeito de um mesmo fato, porém, o que se constata é que todos nós arcamos com os prejuízos causados por estes acontecimentos, pois importantes fontes de informação se perderam ou foram destruídas ao longo de nossa história.

Apontando para outra perspectiva voltada para a capoeira, Sodré (1972, p.5) apud Capoeira (2002, p. 20) comenta:

[...] a questão do começo é um falso problema, a data histórica não tem tanto interesse assim, mas sim o princípio, quais são as condições que a geraram e o que a mantém em expansão. Isto é, o conjunto de condições e circunstancias históricas e culturais para que aquele jogo tenha se expandido.

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anteriormente, discorreremos sobre as condições que contribuíram para sua criação.

1.1.1. A Escravidão como um artefato histórico na construção da capoeira

No fosso da escravidão encontramos os primeiros passos da capoeira, vista como luta/dança, ao longo de um processo histórico, que sobreviveu a inúmeras perseguições, gerando grandes embates na busca pela libertação de um povo que muito sofreu com o regime da escravidão (AREIAS, 1984), criando a capoeira para dar um significado na produção dos sentidos do negro.

Por este motivo apelamos neste momento a falar de um episódio vergonhoso de nossa história para com isso compreender a capoeira em seu berço de criação.

Segundo Lovejoy (2002) a escravidão se constitui como um importante fenômeno da história, estando presente em muitos lugares da antiguidade clássica, como uma forma de exploração transmitindo a idéia de que os escravos eram uma propriedade, ou seja, bens móveis que podiam ser comprados e vendidos, pois:

[...] a escravidão era fundamentalmente um meio de negar aos estrangeiros os direitos e privilégios de uma determinada sociedade para que eles pudessem ser explorados com objetivos econômicos, políticos e/ou sociais (p. 31).

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onde a escravidão ocorria sempre por intermédio da violência, tirando a liberdade do ser humano o reduzindo para uma condição de escravo (LOVEJOY, 2002).

Os negros eram retirados de sua terra e tratados de forma brutal, como nos mostra Campos (2001a):

Esses negros eram transportados nos porões dos chamados navios negreiros ou tumbeiros, em condições precárias onde muitos sucumbiam por não agüentar os rigores da longa viagem, acometidos de doenças em virtude dos maus tratos (p. 21).

Chegando a nova terra, continuavam-se os maus tratos, os negros eram desembarcados, marcados a ferro em brasa, repartidos e empilhados em depósitos (AREIAS, 1984). O contexto social no qual suas personalidades faziam parte já não mais existia, agora divididos em grupos, o que os diferenciavam de seus companheiros era o sexo, idade, aspecto físico e reações imprevistas (FERNANDES, 2006). Neste sentido Campos (2001a) afirma que:

[...] os negros escravos eram desembarcados nos portos, pagando impostos como qualquer outra mercadoria [...] ficavam expostos à venda nos mercados onde os senhores e senhoras os examinavam escolhendo de acordo com os ofícios e serviços que seriam submetidos. Nessa escolha tinha-se preferência por determinado tipo físico, aspecto de saúde e até região de onde vinham (p. 23).

Com isso a região de origem do negro também se constituía em um quesito de grande importância, para que seus compradores os adquirissem, todavia como vimos anteriormente existe uma dificuldade acerca da precisão de informações no que concerne à chegada dos negros no Brasil, bem como suas respectivas regiões de origem, a este respeito Rego (1968) relata:

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Segundo Pinsky (2006) isso ocorria, pois na época o nome era usado de uma forma muito genérica, pois incluía toda região que vai da embocadura do rio Senegal, limite da região desértica entre Senegal e Mauritânia até a do rio Orange no atual Gabão, por este motivo quase todos os escravos eram considerados da “Guiné” mesmo sem ser realmente. Todavia o autor chama atenção para o fato de que o porto no qual o escravo saíra, não possuía necessariamente relação com sua etnia de origem, pois a captação de escravos ocorria com maior freqüência no interior e muitas vezes a distâncias significativas dos portos de embarque. Este fato para Soares (2002) constata que:

[...] as nações do tráfico foram “inventadas” pelo comércio negreiro, em intercâmbio com seus parceiros africanos do mercado de almas. Denominações como Benguela, Angola e Congo não se referiam a grupos étnicos, ou mesmo a federações de povos, mas tinham significado primordialmente geográfico, indicando regiões específicas do continente Negro (p. 124).

Ainda sobre o assunto Adorno (1999) assinala que nos séculos XVI e XVII Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram importantes centros receptores de negros sudaneses como os iorubás, geges, haussas e minas; de bantus como os angolas e os cabindas; e de malês, de idioma árabe e islamizados. Todavia um ponto de vista uniforme entre historiadores, a respeito do local de origem dos primeiros escravos, seria que Angola era o local de maior safra e o centro mais importante da época sendo considerada pelos conselheiros da rainha regente viúva de D. João IV e membros do conselho da fazenda como “o nervo das fábricas do Brasil” (TAUNAY, 1941 p. 211 apud REGO 1968 p.15)

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existia uma facilidade, associada à boa qualidade de suas remessas, que se dá seu pioneirismo no abastecimento de escravos para o Brasil (REGO, 1968).

Fazendo parte de grupos de etnias totalmente distintas, sem conhecerem a nova terra, separados de suas famílias, impossibilitados de praticar seus hábitos e costumes, os negros eram uma valiosa mercadoria, pois com o amargor de seu suor, desempenhavam inúmeras funções que tinham um único objetivo, o de suprir as necessidades de seus senhores bem como trazer grandes lucros para eles (AREIAS, 1984). O que caracteriza Lovejoy (2002) como “modo de produção escravista” que consistia em um sistema integrado de uma determinada sociedade, no processo de escravização, tráfico de escravos e utilização dos cativos. No que se refere à utilização dos cativos o autor cita:

[...] os escravos eram utilizados na agricultura e/ou mineração, mas também podia se referir à sua utilização em transporte como carregadores, capatazes e remadores de canoas. Os escravos podiam ainda exercer outras funções, incluindo concubinato, adoção em grupos familiares, e o sacrifício, mas estas funções sociais e religiosas tinham de ser secundárias em relação aos usos produtivos. (p. 40)

Contribuindo também com relato sobre as funções desempenhadas pelos escravos, Campos (2001a, p. 23) aponta que:

[...] eram usados nos mais diversos tipos de serviços: plantadores, roceiros, semeadores, moedores de cana, vaqueiros, remeiros, mineiros, artífices, pescadores, lavradores, caldeireiros, marceneiros, pedreiros, oleiros e ferreiros; eram domésticos, pagens, guarda-costas, capangas, capatazes, feitores e capitães-do-mato, sendo carrascos de outros negros.

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fugas, ocorrendo de forma individual e até grupal. Aqueles que preferiam de forma isolada misturavam-se a grande massa de negros libertos e escravos que habitavam as cidades, já as fugas em conjunto resultavam na formação de determinados grupos denominados Quilombos, como nos mostra Reis e Gomes (1996, p. 10):

[...] a fuga que levava a formação de grupos de escravos fugidos, aos quais frequentemente se associavam outros personagens sociais (...) No Brasil esses eram chamados principalmente de

quilombos e mocambos e seus membros quilombolas,

calhambolas ou mocambeiros.

Tais movimentos organizados manifestaram-se mais visivelmente nas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Rio de Janeiro, sendo o Quilombo de Palmares o mais reconhecido dentre todos (ARAÚJO, 2005). As invasões holandesas, ocorridas principalmente nos anos de 1624 na (Bahia) e 1630 em Pernambuco, contribuíram para o fortalecimento e formação dos quilombos uma vez que senhores e governantes estariam direcionando sua total atenção a este fato diminuindo assim a rigidez e vigilância exercida sobre o escravo, que vê neste período a possibilidade de alcançar, sua tão sonhada liberdade, ocorrendo assim grandes e frequentes fugas por parte dos cativos (AREIAS, 1984; FUNARI e CARVALHO, 2005). Segundo Reis (2000) a existência da capoeira parece remontar aos quilombos brasileiros na época colonial, quando os escravos fugitivos utilizavam o próprio corpo como arma para sua defesa. A este respeito Mello (2002) e Vieira (1995) também atribuem o período quilombista a gênese da capoeira.

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1.1.2. Capoeira: uma arte, uma luta, um jogo, uma dança?

Como vimos no tópico anterior os negros se utilizavam de várias formas para expressar resistência ao regime escravista. Impulsionados a se autodefender contra os maus tratos e a resistirem à opressão a eles imposta, os negros desenvolveram uma técnica de defesa e ataque no qual utilizavam de seu próprio corpo para enfrentar seus opressores (MELLO, 2002). Todavia não é uma tarefa fácil falar sobre a origem da capoeira devido a várias concepções e opiniões divergentes, sobre esta temática (LIMA, 1991). Não com intuito de esgotar o assunto, procuramos apresentar algumas das opiniões a respeito da origem da capoeira, o que caracteriza um quadro ainda não plenamente definido a respeito desta temática.

No livro, “A arte da gramática mais usada na Costa do Brasil” um dos mais antigos, com edição em 1595, cujo autor é Padre José de Anchieta, apresentado por Silva (1989), consta uma citação referente aos índios tupi-guaranis que se divertiam jogando capoeira.

Em uma outra versão apresentada por Câmara Cascudo (1967), apud Lima (1991), afirma que a capoeira foi trazida pelos negros Bantus, de Angola, que praticavam danças litúrgicas ao som de instrumentos de percussão, transformados em lutas aqui no Brasil.

Segundo Rego (1968) levando em consideração fatores colhidos em documentos escritos, diálogos e convívio com antigos capoeiras, tudo leva a crer que a capoeira seja uma invenção dos negros africanos no Brasil.

Esta divergência entre opiniões apresentadas por diferentes autores para Araújo (2005):

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africanas e/ou ameríndias, para então consolidarem-se como verdades incontestes (p. 28 – 29)

Em seu livro o autor dedica um capítulo onde realiza uma análise historiográfica da bibliografia básica sobre capoeira, na qual se obteve grandes contribuições acerca desta temática. Como ponto de partida ele divide a questão da origem da capoeira em dois focos, sendo eles:

A) Questão espacial macro: referindo-se sobre a região/estado do presumível aparecimento. Autores que defendem ter esta atividade surgida na Bahia; autores que omitem seu parecer sobre esta matéria; autores que se posicionam sobre esta atividade ter origem no seio da comunidade indígena; autores que se posicionam ter sido esta atividade trazida pelos escravos da África para o Brasil com a característica marcial, (p. 32).

B) Questão espacial micro: referindo-se sobre a estrutura orgânica que permitiu o aparecimento, ou seja, senzalas ou quilombos (p. 32). A não apresentação de elementos que atestem a sua veracidade; a escassez de documentos específicos sobre esta prática no seio destes espaços declarados; o não aprofundamento dos pesquisadores brasileiros ou estrangeiros das bibliografias existentes sobre estas temáticas buscando detectar a interpretar as possíveis manifestações sócio-culturais neles presentes (p. 33).

Referente ao quadro apresentado acima, Araújo (2005) acredita que devido à escassez dos dados referente às atividades sócio-culturais nos quilombos, a ausência de análises mais consistentes e aprofundadas sobre suas práticas e a quase inexistência de descrições dos movimentos, danças e festas dos negros escravos no interior das senzalas, torna-se logicamente impossível afirmar-se, como verdade única ter como espaço de surgimento da capoeira o ambiente restrito das fazendas seja nos engenhos ou mesmo em qualquer outro espaço no Brasil, todavia apresenta-nos um posicionamento referente a esta questão:

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ordem corporal, as quais aliadas às condições adversas a que estavam submetidos, por certo concorreram para o nascimento da capoeira, inicialmente como arte marcial, face ao contexto social do período (p. 74).

Contribuindo também para compreensão sobre o surgimento da capoeira Areias (1984), coloca que os negros por não possuírem armas suficientes para se defenderem, quase nem mesmo armas convencionais da época, se fez necessário adquirir uma forma de enfrentar as armas inimigas desta forma:

[...] utilizando-se das estruturas das manifestações culturais trazidas da África como brincadeiras, competições etc. que lá praticavam em momentos cerimoniais e ritualísticos [...] os negros criam e praticam uma luta de autodefesa para enfrentar o inimigo, (p. 15 – 16).

Existem muitas divergências acerca da designação do termo “capoeira3”, dentre elas podemos encontrar as opiniões de Areias (1984) e Oliveira (2001) que convergem quando destacam que o termo teria sido atribuído em virtude das tentativas de captura dos negros fugidos por parte dos capitães-do-mato responsáveis por tal função, que travavam combates mortais com os negros no interior das matas. Os que conseguiam voltar relatavam a utilização por parte dos negros de um estranho jogo de corpo, desferindo coices, e marradas como se fossem animais, vindos de repente do interior das capoeiras.

Diante de tal situação podemos citar Soares (2002, p. 43) que apresenta a visão de um articulista anônimo que escreveu em uma revista especializada em assuntos de criminalística chamado Vida Policial no qual consta:

Nasceu, pois a capoeiragem, de uma necessidade imperiosa de defesa humana contra o ataque desumano. Eram os exercícios de agilidade que faziam frente aos escravocratas que tentavam reaver os pobres pretos.

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Desde sua criação a capoeira era praticada de maneira “clandestina”, enquanto arma de luta, era coibida veemente pelos senhores de engenho, submetendo os infratores, praticantes, a castigos e torturas. Os primeiros colonizadores perceberam o poder fatal da capoeira, proibindo-a e rotulando-a como a arte negra (FONTOURA; GUIMARÃES, 2002).

Segundo Reis (2000, p.14-15) entre as primeiras décadas e a metade do século XIX a capoeira configura-se como uma atividade eminentemente escrava que sempre causou incomodo ao poder público que por sua vez destinou punições através da criação de decretos aos chamados “capoeiras” como nos mostra a autora:

[...] entre 1821 e 1834 veremos três deles que aludem explicitamente aos “escravos capoeiras” (6 de outubro de 1822; 13 de setembro de 1824; 9 de outubro de 1824), outros três referem-se ao castigo dos açoites, aplicado aos escravos (31 de outubro de 1821; 5 de novembro de 1821; 30 de agosto de 1824); (...) quatro decretos pedem providencias sobre “negros chamados capoeiras”(5 de novembro de 1821), “pretos capoeiras” (17 de abril de 1834), “capoeiras e malfeitores” (27 de julho de 1831; há uma nota neste decreto esclarecendo que “capoeiras” era dada a negros que “viviam no mato e assaltavam passageiros”)

Diante de tal situação a repressão policial ganha forças, o que acarretou em um número maior de prisões de capoeiras, onde através do levantamento das ocorrências policias é que se torna possível afirmar o panorama relatado (SILVA, 2001). Na segunda metade do século XIX, segundo a autora, a capoeira até então escrava, espalha-se adquirindo outros adeptos, dentre eles imigrantes, portugueses, negros forros, brasileiros, entre outros, atingindo basicamente a camada popular e assim se fortalecendo e configurando-se em:

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Segundo Reis (2000) essas maltas possuíam uma rivalidade na disputa pelo domínio político espacial da cidade, ameaçavam através da força a ordem social vigente, seus embates se davam principalmente por divergências políticas, pois algumas destas organizações apoiavam a causa republicana enquanto outras se posicionavam a favor da monarquia, alguns dos integrantes destas organizações não compartilhavam dos mesmos ideais, mas se mantinham no grupo apenas para usufruir de vantagens políticas ou financeiras.

Com isso temos a capoeira como uma prática que ao longo de seu processo histórico esteve envolvida em conflitos tanto de ordem política quanto social sendo coibida pela lei de diversas formas, contribuindo assim para que no ano de 1890 fosse considerada “fora da lei” pelo código penal da República, tendo como penalidade a prisão para quem ousasse praticá-la, através do Decreto 847, de 11 de outubro de 1890 que no capítulo XIII, intitulado Dos vadios e capoeiras, constam os artigos:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal,

Pena – de prisão celular por dois a seis meses

Parágrafo único. É considerada circunstancia agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta.

Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro

Art. 403. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira, no graus máximo, a pena do art. 400.

Parágrafo único se for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.

Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público e particular, perturbar a ordem, a tranqüilidade ou cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes, (REGO, 1968, p. 292).

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Art. 1.º. O governo fundará uma colônia correcional no próprio território nacional “Fazenda da Boa Vista”, existente na Paraíba do Sul, ou onde melhor lhe parecer, devendo aproveitar, além da fazenda, as colônias militares atuais que a isso se prestarem, para correção, pelo trabalho, dos vadios, vagabundos e capoeiras que forem encontrados, e como tais processados na Capital Federal, (REGO, 1968, p. 292 – 293).

Posteriormente com o Decreto 6.994, de 19 de julho de 1908, “Título II, Capítulo I – Dos casos de internação. Art. 51. A internação na Colônia é estabelecida para os vadios, mendigos, capoeiras e desordeiros” (p. 293).

A autora ainda ressalta que com a marginalização da capoeira em 1890, observa-se a desorganização gradativa das maltas. Os praticantes que provinham dessas antigas organizações e que conseguiram escapar à perseguição policial irão praticá-la em locais próprios e refugiados da repressão, porém construindo lentamente um novo significado para esta manifestação.

Toda essa coerção caracterizava uma representação social sobre os capoeiras sendo associados a vadios, vagabundos ou gatunos, todavia o registro de profissões revela que os ramos de atuação dos capoeiras contavam de artesãos, vendedores, empregados nos transportes e serviços urbanos e muitos deles trabalhando nas ruas (REIS, 2000).

A partir deste cenário, ao longo de sua história foram feitas adequações, transformando-a em uma verdadeira luta acrobática, aperfeiçoada e mesclada com artifícios, buscando evitar estas visões estereotipadas (AREIAS, 1984).

Na capoeira sua constituição, foi caracterizada em duas principais vertentes que permanecem até os dias atuais: a capoeira Regional e a capoeira Angola. A primeira foi desenvolvida na década de 1920 por Manoel dos Reis Machado, conhecido na capoeira como mestre Bimba, sendo esta uma mistura da capoeira tradicional com outras lutas que visavam caracterizá-la como uma verdadeira luta, possibilitando a melhora física e mental (CAMPOS, 2001a; SILVA, 2002).

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[...] que criou a regional, pois achava a Angola muito fraca como divertimento, educação física, ataque e defesa pessoal [...] que se valeu de golpes de batuque, como banda armada, banda fechada, encruzilhada, rapa, cruze de carreira e baú, assim como detalhes da coreografia de maculelê, de folguedos outros e muita coisa que não se lembrava, além dos golpes de luta Greco-romana, jiu-jitsu, judô e a savate, perfazendo o total de 52 golpes, (REGO, 1968, p. 33).

Silva (2002) destaca que o intuito de mestre Bimba, no momento em que cria a Luta Regional Baiana, era de elevar o status da Capoeira. Para que isso ocorresse, ele se apropriou de vários elementos provenientes das instituições legais vigentes no período, tal como a escola formal e os órgãos ligados ao esporte e Educação Física, com isso, o aprendizado da capoeira passou a ser realizado em ambiente fechado, e esta passou a ser vista como modalidade esportiva na academia, tirando assim a Capoeira da rua, um local que estaria associado às práticas de contravenção. Com isso em 1937 a secretaria de Educação, Saúde e Assistência Pública do Estado da Bahia outorga-lhe o certificado de professor de Educação Física e reconhece oficialmente sua academia sendo a primeira a obter tal reconhecimento (VIEIRA; ASSUNÇÃO, 1998).

Seu método pedagógico de ensino consta de uma seqüência lógica de movimentos, sendo estes de ataque, defesa e contra-ataque, podendo ser ministrada aos iniciantes de forma que os alunos aprendem jogando com uma forte motivação (CAMPOS, 2001a, REIS, 2000).

No jogo da capoeira Regional, predominam os ataques e esquivas pelo alto, devido ao aumento do repertório de movimentos e das sequências pedagógicas, ocorre também um improviso por parte dos jogadores (REIS, 2000). Neste sentido podemos citar Falcão (2004, p. 37):

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No que se refere à relação mestre aprendiz, Campos (2000a, p.38) relata um momento que classifica como importantíssimo, pois transmite ao aluno coragem e segurança:

Mestre Bimba convidava o aluno para o centro da sala e frente a frente, pegava-o pelas mãos e ensinava primeiramente os movimentos das pernas e a colocação exata dos pés, e em seguida realizava o movimento completo em coordenação com os braços.

Na análise crítica do autor, com a criação da capoeira Regional mestre Bimba apontou para uma nova abordagem pedagógica com a criação de sua academia, pois estabeleceu uma agenda de trabalho que contemplava aulas, lições e turmas de alunos com horários preestabelecidos. O método não se baseava somente na oralidade, mas tinha incorporado a escrita em avisos, lembretes, códigos, gravuras e auxílios pedagógicos que compunham sua técnica de ensino.

A segunda vertente, por sua vez, tem como principal referência Vicente Ferreira Pastinha, conhecido na capoeira como mestre Pastinha, contemporâneo de mestre Bimba, que funda o Centro Esportivo de Capoeira Angola, alguns anos depois na década de 1940, com ênfase no estilo tradicional – denominado de Capoeira Angola (FONTOURA; GUIMARÃES, 2002). Neste sentido Pastinha, segundo Reis (2000):

[...] reafirma a raiz africana da luta, que teria sido trazida ao Brasil pelos escravos provenientes daquela região, sendo que na Bahia estes teriam-se notabilizado em sua prática. Daí explica o mestre, a designação capoeira Angola. Entretanto continua Pastinha, em sua terra nativa a capoeira recebia o nome de “dança da zebra”, também conhecida como N’Golo (p.112-113)4.

Deste modo, pressupõe-se que da vertente tradicional da capoeira originou-se a capoeira Angola, tendo como pressuposto a performance dos escravos de

4

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origem angolana em sua maestria. Em sua configuração esta modalidade assemelha-se a uma dança com “ginga” maliciosa baseada na calma e na velocidade de movimentos, trazendo subjacente a ela os elementos de uma luta violenta. O mestre angoleiro procura passar para seu discípulo todos os rituais, bem como uma grande dose de malícia, caracterizando-se um tipo de escola.

Neste âmbito, a partir de Reis (2000, p. 192), pode-se caracterizar a capoeira Angola desta maneira:

O jogo na capoeira Angola chamado de vadiação pelos angoleiros, predominam os movimentos corporais rasteiros, sendo que os capoeiristas jogam boa parte do tempo com as mãos e os pés apoiados no chão. Demonstram possuir um total domínio sobre seu próprio corpo [...] acabam por reinventá-lo criando posições novas e surpreendentes. Seus movimentos giratórios consistem em contorcionismos inusitados [...] parecem desarticular o corpo [...] são fundamentais o improviso e a inventividade.

Segundo Silva (2002) a capoeira Angola busca uma maior aproximação à cultura africana, existe uma preocupação por parte dos angoleiros em manter algumas características encontradas na forma com a qual estavam acostumados a praticar a Capoeira, mantendo dessa forma sua tradição destacando:

• a musicalidade é mais valorizada, pois adquire a função de

narrar o jogo, sendo executada pela charanga, composta por

três berimbaus (berra-boi, médio e violinha), um atabaque, um agogô, um reco-reco e um ou dois pandeiros;

• uma maior participação de instrumentos ligados à herança cultural africana (o atabaque, o reco-reco, o agogô);

• não adota o ritual de formatura. Sendo assim, o aluno está apto a exercer a função de mestre através de sua experiência na Capoeira Angola e seu reconhecimento pela comunidade capoeirística;

• o berimbau é tocado com os toques característicos do jogo de Angola;

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No âmbito desse processo, a capoeira e os capoeiristas conseguiram atravessar esse período e obter maior reconhecimento ganhando maior espaço na sociedade civil (na década de 1950) durante governo Vargas (1930 – 1945 e 1950 – 1954)5 como um esporte autenticamente brasileiro, favorecendo a prática dessa modalidade em locais fechados (REIS, 2000; VIEIRA; ASSUNÇÃO, 1998; CAMPOS, 2001a; SCALDAFERRI, 2009).

Com a divisão da capoeira a partir do surgimento destas duas escolas, emergem alguns embates entre ambas por parte de seus adeptos, estas disputas tem origem e contornos de acordo com o contexto em que está inserida cada escola (REIS, 2000). Talvez pelo fato de a Capoeira Regional ter se expandido amplamente pelo Brasil, principalmente como uma modalidade de luta, passou-se a difundir a idéia de que a Angola não dispunha de recursos para o enfrentamento, afirmando-se ainda que as antigas rodas de capoeira, anteriores a Mestre Bimba, não apresentavam situações reais de combate. Porém, os velhos mestres fazem questão de afirmar que estes ocorriam de uma forma diferente da atual, em que os lutadores se valiam mais da agilidade e da malícia ou da "mandinga6", como se diz na capoeira do que da força propriamente dita (SILVA, 2002).

Diante das características particulares de cada vertente, Reis (2000) elabora quadros sintetizando-as nas seguintes categorias:

Referência

Capoeira Movimentos Corporais

Capoeira Angola

Jogo mais pelo chão; ginga baixa; jogo mais na defesa; jogo mais lento; corpos não se tocam; ginga mais dançada; ênfase no lúdico; maior teatrabilidade.

Capoeira Regional Jogo mais pelo alto; ginga alta; jogo mais no ataque; jogo mais rápido; corpos se tocam; ginga menos dançada; ênfase na competição; menos teatrabilidade.

Fonte: adaptado de Reis (2000) Quadro 1. Referente aos movimentos corporais

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Diniz (2004).

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Referência

Capoeira Características mais relevantes no jogo Movimentação constante pela ginga baixa;

Os jogadores mantêm-se aparentemente na defesa e atacam quando o oponente menos espera;

O alvo é o ataque é a cabeça do outro; Os corpos não se tocam;

Apenas as mão e os pés devem tocar o chão (o bom capoeirista de angola não suja a roupa);

A intenção deve ser sempre a de desequilibrar o outro, o que é conquistado menos pela força e mais pela malícia, pela mandinga, no sentido dado ao termo anteriormente de simulação e dissimulação da intenção do ataque; Há uma ênfase na dança, como podemos notar na chamada de Angola exclusiva dessa modalidade, onde os passos de dança são explícitos; Capoeira Angola

Há uma maior preocupação com o ritual da roda: benzer-se antes de entrar, dar a mão ao parceiro antes e depois do jogo, aguardar a ordem do berimbau para entrar na roda, entrar nela pela boca da roda, etc.

Movimentação constante pela ginga alta; O jogo deve ser centrado no ataque;

Há uma ênfase na luta, pois os movimentos devem ser traumatizantes com velocidade e exposição;

Quando não há espaço suficiente para se movimentar, o capoeirista deve usar os golpes cinturados ou ligados, tocando o corpo do outro;

O alvo é a cabeça do outro; Capoeira Regional

A intenção deve ser sempre a de derrubar o outro, em geral com a aplicação de golpes desequilibrantes (a rasteira e a tesoura são muito utilizadas).

Fonte: adaptado de Reis (2000) Quadro 2. Referente às características mais relevantes no jogo

Referência

Capoeira Toques de Berimbau

Capoeira Angola Angola, São Bento Pequeno, São Bento Grande de Angola, Santa Maria de Angola.

Capoeira Regional São Bento Grande Regional; Cavalaria; Banguela (também chamado Benguela); Santa Maria de Regional; Iúna; Amazonas; Idalina.

Fonte: adaptado de Reis (2000) Quadro 3. Referente aos toques de berimbau

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A formação nestas duas vertentes também ocorre de maneiras diferentes, a capoeira Angola não possui graduação e também um período estabelecido de aprendizado como nos mostra Castro Junior (2003, p. 95):

A revelação do segredo é um processo de rigorosidade na dinâmica cultural entre mestre-aprendiz. O tempo de revelação não é padronizado para todos os aprendizes; cada um tem o seu próprio momento. Cabe ao mestre, na sua sutileza, iniciar o aprendiz nos ensinamentos mais secretos. São formas legítimas oriundas da tradição africano-brasileira que não obedecem à lógica formalista da racionalidade do mundo europocêntrico. O segredo na capoeira aparece enquanto uma essência das formas mais primitivas. Ele é revelado a partir de um conjunto de elementos estéticos na corporalidade do capoeirista. Desse modo, o aprendiz

iniciado na capoeira captura e revela um significado de constante

busca dos saberes ancestrais.

Na capoeira regional através da “pedagogia” instituída por mestre Bimba o curso ainda não possuía um tempo estabelecido, porém existia uma expectativa sobre a duração do mesmo variando de acordo com o desenvolvimento de cada discípulo.

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Vemos, com a inclusão da formatura, a busca de mestre Bimba em legitimar sua invenção, dando a ela o status de um ensino formal com os elementos apropriados do modo de vida ocidental. No entanto, estes entravam em confronto com a forma de relacionamento entre o professor-aluno, porque o mestre é o detentor do conhecimento da Capoeira. Poderíamos dizer que a relação entre quem ensina e quem recebe o ensinamento aproxima-se muito mais das artes marciais milenares, da cultura oriental, do que da cultura ocidental. Nas comunidades africanas, esse tipo de relação também existe e demonstra que o conhecimento deve ser repassado pela figura ancestral, ou seja, o mais velho é quem ensina, pois possui mais experiência de vida [...] Essa atitude encontrada na Capoeira valoriza em demasia o mestre e a caracteriza de forma marcante. Cabe a ele, entre outras tarefas, reconhecer o momento certo de amadurecimento de seu discípulo e preparar seu ritual de passagem, estabelecido na Capoeira Regional como o batizado. Tal como no candomblé, no qual existem momentos de passagens de seus adeptos determinados pela figura do pai ou mãe de santo, a Capoeira também irá se valer desse mecanismo. (grifo do autor)

Todavia em ambas vertentes o aprendizado ocorre em um processo interno, ou seja, as próprias escolas são responsáveis pela gênese de seus procedimentos pedagógicos de ensino, que deriva de uma relação que se estabelece entre mestre e aprendiz. No próximo tópico discorreremos sobre como se estabeleceu a origem desta relação onde o ensino acontecia em um processo de formação artesanal.

1.2. OS MESTRES DE CAPOEIRA E A SUA FORMAÇÃO: OS SABERES PROFISSIONAIS

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suas formas de produção e de transmissão de saberes com as chamadas “Escolas de ofício”. A partir deste cenário surge a necessidade de estendermos nossa compreensão a respeito do funcionamento, organização e importância destas escolas enquanto espaços de formação como aponta Rugiu (1998):

As histórias da pedagogia ou da educação quase nunca tratam do artesanato e da sua importância formativa, elas também submissas ao princípio segundo qual a educação diz respeito somente a quem se forma através dos livros (p. I).

Nesta fala o autor aponta uma posição tradicionalmente firmada pelas classes dominantes, que pregam que a verdadeira educação e instrução ocorrem apenas através do exercício intelectual estudando-se os livros.

Todavia a pedagogia do “aprender-fazendo” é tão antiga quanto os primeiros artesãos, é quase tão antiga quanto o antigo desprezo que encontrou ao fazer frente ao saber oficial (falar e raciocinar), que os distinguia do saber fazer, onde um representava o saber do homem livre (livre da necessidade de trabalhar), e o outro o saber do trabalhador (RUGIU, 1998)

A palavra ofício é derivada do latim officiu que significa o cumprimento de uma obrigação a partir de um ritual já determinado (SILVA; SOUZA NETO; BENITES, 2009, p. 876). Ela é atribuída a um saber-fazer àqueles que partilham do mesmo conjunto de conhecimentos e habilidades e rituais bem como a reprodução de certos objetivos (SOUSA NETO, 2005). Neste sentido o termo corporação nos remete a escola, grupo ou associação de artesãos (RUGIU, 1998). Temos assim a constituição de “espaços de formação” onde o aprendizado ocorre de uma forma artesanal de ensino. Silva, Souza Neto e Benites (2009, p. 876) classificando estes espaços de formação artesanal colocam:

As corporações de ofício podem ser compreendidas como “locais” que tem a arte como um dever a ser cumprido, e as escolas de ofício são a maneira pela qual a arte é ensinada para que venha a se tornar um ofício.

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