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A experiência do aprender no ensino de filosofia por entre signos e afectos

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Academic year: 2017

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FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CAMPUS DE MARÍLIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

SILMARA CRISTIANE PINTO

A EXPERIÊNCIA DO APRENDER NO ENSINO DE FILOSOFIA POR

ENTRE SIGNOS E AFECTOS

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Silmara Cristiane Pinto

A experiência do aprender no ensino de Filosofia por entre signos e

afectos

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Filosofia e História da Educação no Brasil.

Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Pelloso Gelamo

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SILMARA CRISTIANE PINTO

A EXPERIÊNCIA DO APRENDER NO ENSINO DE FILOSOFIA POR ENTRE SIGNOS E AFECTOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para

a obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Filosofia e História da Educação no Brasil.

BANCA EXAMINADORA

Orientador: _________________________________________________________________

Dr. Rodrigo Pelloso Gelamo Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília

2º Examinador: ______________________________________________________________

Dr. Pedro Ângelo Pagni Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília

3º Examinador: ______________________________________________________________

Dr. Alexandre Filordi de Carvalho Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP/Guarulhos

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AGRADECIMENTOS

Agradeço e dedico esta dissertação à minha família pela compreensão e apoio incondicional durante todos os anos de minha trajetória acadêmica.

A todos os meus amigos e amigas pela acolhida, risadas e choros partilhados, por me fazerem descobrir que o real valor de uma família não se mede somente pelos laços de sangue.

Ao mais que orientador Dr. Rodrigo Pelloso Gelamo pelo afeto, paciência e persistência incansável junto às minhas experiências de pensamento, de angústia e de escrita.

Aos professores Dr. Pedro Ângelo Pagni e Dr. Alexandre Filordi de Carvalho pela honestidade e cuidado na leitura deste trabalho, e pelo frutífero debate realizado em meu exame de qualificação.

A professora Dr. Lúcia Arraes Morales por demonstrar que a vida intelectual é possível dentro dos espaços ―margem‖ da Universidade.

À Renata Alonge pela amizade sem medidas, um amor para toda vida.

À Sara Morais da Rosa, pelo companheirismo e ternura sem igual do começo ao fim dessa experiência de mestrado.

Aos integrantes do antigo Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Ensino de Filosofia (ENFILO), pelas sementes inquietas plantadas em meu pensamento, através das calorosas discussões sobre o ensino da Filosofia.

A todos os funcionários e funcionárias da UNESP de Marília e do Programa de Pós-Graduação em Educação, pelo suporte e assistência universitária.

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As coisas nunca se passam lá onde se acredita, nem pelos caminhos que se acredita. Gilles Deleuze

Não fossem os caminhos de emoção que leva o pensamento, pensar já teria sido catalogado como um dos modos de se divertir.

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RESUMO

Pensar a possibilidade de uma experiência filosófica no aprendizado da filosofia envolve, de início, perguntar pelas características dessa experiência, ou seja, no que consiste a aprendizagem filosófica. Diante dessa questão, é preciso considerar também a conjuntura para a qual a filosofia e seu ensino convergem. Nesse sentido, observamos que o pressuposto da transmissão de conhecimentos no ensino, se apresenta como fator determinante à experiência de formação escolar, cujo aprendizado se confunde com a assimilação e a reprodução de conceitos, e o ensino com a explicação de conteúdos articulados segundo um conjunto de saberes pré-estabelecidos. Conforme a tese defendida por Gilles Deleuze em Diferença e Repetição (2006) verifica-se que as imagens do pensamento enquanto representações pré-filosóficas constituem os problemas fundamentais relacionados à debilidade da criação conceitual nos planos de imanência da filosofia. Assim, entendemos que explicação mecânica de conteúdos no ensino, também denota um modo de transmitir representações, gerando implicações adversas para o devir filosófico da aprendizagem. Tendo em vista esse tênue encadeamento entre ensino e aprendizado, buscamos problematizar nesta pesquisa, em que medida o ensino pode ou não constituir um campo potente para o aprender face uma experimentação filosófica do pensamento. Para tanto, Jacques Rancière (2002) foi um autor que nos permitiu enunciar essa problemática, à medida que apresenta um limite significativo entre aquilo que o mestre ensina e aquilo que o aluno é capaz aprender sem as suas mediações. O primeiro enfoque deste trabalho consistiu, portanto, em introduzir um campo problemático sobre o ensino, com base na aventura intelectual de Jacotot, personagem simbólico d‘O mestre Ignorante. Na sequência, procuramos perguntar o que caracteriza uma experiência de aprendizagem filosófica, e quais as possibilidades de sua efetuação, apesar da proeminência da recognição e da representação no ensino de Filosofia. Tratar tais questões nos colocou em correspondência com o pensamento deleuziano, especialmente com a obra Proust e os Signos (2003), no que diz respeito ao afecto e aos signos como matéria do aprendizado. De forma concomitante, o encontro com Clarice Lispector foi o passe final que nos permitiu estabelecer, no diálogo entre literatura e filosofia, intercessores para pensar o aprendizado na direção dos encontros, ou melhor, sob disparações do desconhecido e sobre as entrelinhas da invenção artística e filosófica. A aprendizagem enquanto desdobramento da potência transformadora do signo foi, portanto, o ponto de vista através do qual pudemos indicar as respostas ou os caminhos decisivos deste trabalho.

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ABSTRACT

To think the possibility of a philosophical experience in the learning of philosophy involves, firstly, to question the characteristics of this experience, in other words, in what could be conceived as philosophical learning? From this question, is needed to consider as well the conjecture to which the philosophy and it‘s philosophical learning converge. In this sense, we observed that the assumption of knowledge transmission is presented as a determining factor in the experience of scholarly formation, which the learning is conflated with the assimilation and the reproduction of concepts, and the teaching with the a explanation of the contentes articulateds according to a set of pre-established knowledge. In accordance to the thesis defended by Gilles Deleuze in Difference and Repetition (2006), turn out that the images of thought as pre-philosophical representations constitute the fundamental problems related to the debility of the conceptual creation in plans of immanence of the philosophy. Thus, we understand that mechanical explanation of the contents in education, also denotes a way of transmitting representations, generanting adverse implications for the philosophical learning moviment. Having in sight this tenuous enchainment between teaching and learning, we seek to discuss in this research, in which extent the teaching may or may not constitute a potent field to the learning face to a philosophical experimentation of thought. For this purpose, Jacques Rancière (2002), was an author who allowed us to formulate this problem, as it shows a significant boundary between what the teacher teaches and what the student is able to learn without their mediations. First focus of this work, consisted, therefore, in the introdution a problematic field of education, based on the intellectual adventure of Jacotot, a symbolic persona of The Ignorant schoolmaster. In the sequence, we seek to investigated what could possibly characterize a philosophical learning experience, and what are the possibilities of its effectuation, despite the prominence of recognition and representation in the teaching of philosophy. Treating these issues connected us with Deleuzian's thought, especially with the book named Proust and Signs (2003), regarding to affection and the signs as matter of the learning. In the same way, the encounteurs of Clarice Lispector was the final step which allowed us to establish, in the dialogue between literature and philosophy, intercessors to think the learning in the direction of the encounteurs or better, under disparations to the unknown and on the interlines of artistic invention and philosophical. The learning as unfolding of the transforming pontential of the sign was, therefore, the point of view through which we could indicate the answers or the critical paths of this work.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO... ... ...11 2. CAPÍTULO 1 – TRANSMISSÃO E EXPLICAÇÃO NO ENSINO DE

FILOSOFIA: O SURGIMENTO DE UMA PROBLEMÁTICA ... 17 1.1 A transmissão de conhecimentos no ensino ... 18 1.2 A ordem explicadora e o aprendizado do mestre ignorante ... 30 3. CAPÍTULO 2 –DELEUZE E OS SIGNOS: PARA PENSAR UMA

EXPERIÊNCIA DA NÃO REPRESENTAÇÃO NO ENSINO DE FILOSOFIA... 41 1.1 O problema da representação no ensino de Filosofia ... 42 1.2 O signo como potência para a experiência filosófica ... 48 4. CAPÍTULO 3 –UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO ABERTO DOS

AFECTOS. A EXPERIÊNCIA DO APRENDER NO ENCONTRO COM

CLARICE LISPECTOR ... 63 3.1 O que a aprendizagem d‘O livro dos prazeres nos diz sobre as possibilidades

do aprender em filosofia? ... 67 3.2 Os signos de Ulisses e os afectos de Lóri: uma (outra) Odisseia do

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1. INTRODUÇÃO

...estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio. E é quebrando o silêncio que muitas vezes tenho matado o que compreendo. Se bem que – glória a Deus

– sei mais silêncio que palavras. (LISPECTOR, 1999, p. 375).

Ressoar os planos de composição da arte e da filosofia, como se algo nascesse do encontro entre os dois. Esta dissertação é uma luta visceral por estilhaçar o silêncio. É também um dilaceramento próprio, pois as palavras são como golpes que rasgam nossa compreensão deixando à mostra os mundos que ignoramos. Ora, quebrar o silêncio pressupõe esse risco, o de trazer à superfície tudo o que não compreendemos e, possivelmente, a insignificância daquilo que julgamos saber.

Mas, o que interessa das palavras é que, se por um lado elas quebram o silêncio, por outro nos faz retornar a ele. Nesse entremeio há uma aprendizagem e, em nosso caso, uma busca quase improvável pela linguagem que a expresse. Em última análise, o valor dessa experiência só se poderá sentir através dos signos que estilhaçam que dilaceram e que nos transformam.

Clarice Lispector é testemunha da força enigmática das palavras, da linguagem enquanto esforço humano de morte e renascimento. Morte, porque talvez a linguagem não sirva para explicar, mas para fazer morrer a compreensão. Renascimento, porque tudo o que nos leva ao incompreensível é mais importante do que aquilo que nos conduz ao saber. É no incomensurável à razão que reside a possibilidade de se perder, se recriar e aprender.

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gostaríamos de tratar neste trabalho não é nada mais do que o que se passa nas tessituras desse aprendizado.

Conforme Gilles Deleuze pode-se dizer que o exercício da aprendizagem se caracteriza essencialmente entre não saber e saber, na passagem viva de um ponto ao outro1. Pretendemos trabalhar em torno desta concepção, pois ela nos permite desdobrar a potencialidade de estar entre as fronteiras do saber e do não saber. É nesse intermediário que acontecem os encontros, que se traçam as linhas do aprendizado. Linhas que nos compõe de maneira muito diversa e, que segundo Deleuze, não sabemos necessariamente, sobre qual delas estamos passando nem por onde podemos fazê-las passar. ―Há toda uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga‖. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 18).

Nesse sentido, a aprendizagem enquanto devir, e não como instrumentalidade do saber, é precisamente o tema que nos afeta, é a linha de fuga pela qual temos sido capturados e junto à qual temos atravessado os anos de nossa formação universitária. Contudo, a experiência da aprendizagem, no contexto da instituição educacional, nos arremessa ao núcleo de um choque entre duas tendências discrepantes no que diz respeito à formação em Filosofia: de um lado a disciplina da recognição e de outro a estrutura involuntária do corpo que aprende, ambas constituindo uma relação de forças distintas, cujo choque se converte no signo fundamental desta pesquisa.

Perguntamo-nos, à vista disso, em que medida o ensino de filosofia pode vir ao encontro das nossas capacidades involuntárias de aprender? Será possível experimentar uma aprendizagem filosófica nos domínios do ensino? Obviamente, estas interrogações não são fáceis de serem respondidas, inclusive porque delas desenrolam-se outras igualmente importantes. A título de exemplo questionamos o que é experimentar essa aprendizagem? Conduz ao desafio de pensar? Ao próprio choque de experiência?

Arrisquemo-nos prescindir das respostas que embrutecem a pergunta. As características do aprender, tal como pensado por Deleuze, não nos instiga a darmos soluções, mas a problematizarmos de que modo o ―intermediário‖ do aprendizado pode se tornar potência filosófica dentro das possibilidades e também dos limites do ensino de filosofia.

1 Talvez seja necessário atribuirmos um valor relativo ao termo ―passagem‖, pois o que interessa na aprendizagem não é apenas ―passar‖ de um ponto a outro, no sentido de superar etapas, mas considerar a

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Alguns temas e problemas acerca do ensino de filosofia emergiram e começaram a configurar nosso objeto de pesquisa, desde os afetos experimentados nos encontros do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Filosofia (GEPEF) da UNESP de Marília. Foi por esses encontros que pudemos adentrar numa dimensão outra dentro do espaço universitário, lugar em que muitas vezes não conseguimos encontrar o vigor do próprio trabalho intelectual.

A potencialidade de pensar o ensino como problema filosófico se deu graças às frutíferas discussões feitas no subgrupo do GEPEF, o Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino de Filosofia (ENFILO), que se dedicava às questões do ensino, num envolvimento clandestino com a filosofia, às margens do próprio ―núcleo filosófico‖ universitário2.

Nesse período, nossa hipótese de pesquisa, bem como a praxe de leitura, debates, vivências e conflitos partilhados, foi constantemente atravessada, pela complexidade referente à problemática do Ensino de Filosofia. No mesmo contexto, o que era latente no ruído produzido acerca dos problemas do ensino no plano teórico, tomava forma em nossa primeira experiência docente, o que configura outro acontecimento basilar de nossa proposta atual.

Adentramos inicialmente no âmbito propriamente dito de ensino, através do vínculo com o projeto de pesquisa associado ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), que teve como objetivo verificar os limites e as possibilidades do ensino da filosofia na escola pública do Estado de São Paulo a partir da Proposta Curricular e das condições oferecidas pelos seus materiais didáticos de apoio, quanto à sua recepção e uso. Mediante considerações resultantes desse processo de formação, que se prolongou em nossas experiências posteriores com o ensino, engendramos ainda uma experiência diferente.

2 Referimo-nos à clandestinidade de nosso grupo de pesquisa, considerando que as questões sobre o

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Fugindo do registro formal, decidimos criar o projeto ―Ensino de filosofia em espaços não formais‖, com a intenção inicial de nos deslocarmos dos lugares fixos e seguros nos quais o ensino institucionalizado se alicerça, bem como, oferecermos aos participantes um espaço no qual o pensar pudesse emergir na sua potência de criação. Este foi um projeto de extensão, financiado pela PROEX que teve sua proposta desenvolvida junto a uma instituição socioeducativa de semiliberdade em nosso município. Convidamos os jovens em cumprimento de medida judicial a realizar conosco encontros semanais, que poderiam ocorrer em diferentes espaços, desde que marcados por uma relação desinstitucionalizada e não formal.

Daquilo que projetamos para aquilo que vivenciamos no programa, pudemos descobrir que o que procurávamos, de fato, não era um espaço desinstitucionalizado para o ensino da filosofia, mas sim os tempos não formais do espaço escolar. Chegar à essa consideração marcou para nós, o limiar de uma nova abertura para pensar a aprendizagem no contexto do ensino, já que sua efetuação acontece por entre cortes seja no plano do ensino, seja além dele.

Com base no estudo teórico produzido no decorrer dessa trajetória, sobretudo nas experiências de choque, conflito e também de descobertas que nos foram significativas, optamos em um primeiro momento, pelo levantamento algumas questões referentes ao ensino. Isto envolve uma problematização sobre alguns de seus pressupostos, ao mesmo tempo em que são norteadores das concepções tradicionais da aprendizagem. Desse modo, discorrer sobre a aprendizagem como elemento central desta dissertação demanda, antes, um movimento que é o de retornar ao tema do ensino. Embora o exercício de aprender constitua uma temporalidade própria nos espaços educacionais, foi o debate relativo ao ensino de filosofia que deu origem ao signo que mobiliza este trabalho. Assim, nos amparamos numa literatura específica que se consolida na área de pesquisa acerca do ensino de filosofia no Brasil, especialmente de autores como Silvio Gallo e Rodrigo Gelamo, além de algumas considerações de Arruda3 que, embora não se deteve à pesquisa sobre o ensino, estabeleceu um

3 Antonio Trajano Menezes Arruda foi um dos professores mais antigos, cativantes e originais do

Departamento de Filosofia da UNESP de Marília. Tendo obtido a graduação (1969) e a formação de mestre (1978) pela Universidade de São Paulo, doutorou-se na University of Oxford-UK no ano de 1985. Em uma entrevista concedida à Revista Kíneses (2013), aproximadamente um ano anterior ao seu falecimento, Trajano, como era comumente chamado pelos demais colegas e alunos, conta sobre o seu processo de formação, levando em consideração a situação da Filosofia no Brasil que, seguramente, o direcionou a buscar pela pesquisa temático-filosófica fora do país. Docente na Universidade Estadual

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questionamento igualmente importante sobre a formação do estudante nesta área de conhecimento. Apropriamo-nos também dos referenciais filosóficos de Gilles Deleuze e do aporte crítico pedagógico proposto por outro filósofo francês, Jacques Rancière, em O Mestre Ignorante (2002).

Nossos pressupostos não devem envolver uma generalização. É importante especificarmos e pensarmos a relação do questionamento geral sobre o ensino, e o estudo de fontes específicas relativas a um contexto curricular particular. Não pretendemos confundir procedimentos metodológicos, por isso queremos ponderar a ideia de mantermos, por um lado, um estudo de fontes de um sistema educativo concreto e, por outro, uma reflexão teórico-filosófica sobre o ensino da filosofia. Para vinculá-los, queremos pensar as fontes curriculares como uma singularidade na qual ressoam ou se expressam as idealidades dos fenômenos educativos. Enquanto singularidade elas constituem uma perspectiva que permite encarar e estudar as problemáticas do ensino, sem por isso nos fecharmos em uma generalização em que se perca a sua especificidade.

Seguindo-se tal exposição, ocorre-nos, num segundo momento, conceituar as características que cercam a noção de aprendizado, de modo que se faz necessário uma compreensão filosófica do tema abordado por Gilles Deleuze, especialmente em Proust e os Signos (2003) e Diferença e Repetição (2006). Servimo-nos, inclusive, da elaboração teórica e crítica apresentada pelo filósofo no terceiro capítulo desta última obra, denominado ―A imagem do pensamento‖.

Em conexão com os textos filosóficos, pretendemos apresentar uma leitura própria do romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), cujo fio condutor é a ideia de um aprendizado se desdobrando em roteiros desenhados pelos afetos. Neste aspecto, a pesquisa depende de dois princípios norteadores. Em primeiro lugar, ela visa expor os eixos ou momentos principais que compõem diacronicamente o caminho da aprendizagem. Mas, esta tarefa exige a ressalva da diacronia não depender necessariamente de uma leitura estrutural, e sim de coincidir com o devir dos personagens que vivem as experiências de pensamento e questionam nossas significações do conceito de aprendizagem.

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Por outro lado, a exploração da narrativa se desdobra em uma análise das ressonâncias que ela produz no campo da conceptualização e problematização da aprendizagem. Este segundo momento implica, portanto, uma rearticulação do ponto anterior, à medida que os conceitos que definem a aprendizagem são, desta vez, reavaliados a partir das experiências de pensamento descritas nos eixos do devir afetivo dos personagens lispectorianos.

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CAPÍTULO 1 – TRANSMISSÃO E EXPLICAÇÃO NO ENSINO DE FILOSOFIA: O SURGIMENTO DE UMA PROBLEMÁTICA

Este capítulo apresenta a ideia da transmissão de conhecimentos no ensino como referência inicial de nossa pesquisa, uma vez que nos abre uma senda importante de onde podemos investigar alguns problemas emergentes na formação escolar. A princípio, tomamos a ideia da transmissão como um dos focos característicos de um problema mais elementar que é o da representação no ensino. Este viés nos permite traçarmos uma problemática em torno da transmissão e da explicação, desenvolvendo tais noções enquanto diagnósticos do sistema de educação tradicional.

A transmissão de conhecimentos no ensino caracteriza um dos pressupostos pedagógicos basilares à educação nacional. Este é o mesmo princípio norteador das concepções tradicionais de educação que se estende também nos dias atuais, a despeito de todas as transformações e reformas feitas nesse âmbito. Para nós, a instrumentalização da formação humana no período em que se segue a instrução escolar, representa uma das consequências de um sistema educacional fortemente marcado pela ideia da transmissão. Este é o tema que entra em debate na primeira sessão deste capítulo.

Do que se compreende do sistema educacional mencionado a pouco, ressaltamos uma característica primordial que encontramos tanto na educação básica quanto na educação superior e que nos serve de parâmetro na argumentação, é a explicação de conteúdos como prática sua reguladora. O método da explicação funciona como efeito do pressuposto pedagógico geral de transmissão no escopo das relações mais elementares de ensino. Transmissão e explicação são, portanto, mecanismos intrincados na escola. Cada um reproduz a seu modo e de forma concomitante a ordem e a disciplina que reverenciam seus valores enquanto instituição a serviço do Estado. Esta é, inclusive, uma das críticas feitas pelo filósofo francês Jacques Rancière (2002) em O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual, autor que nos auxilia a refletir, no segundo tópico, a ordem explicadora e suas implicações para aprendizagem.

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de nossa disciplina nos Departamentos das Universidades Brasileiras mais tradicionais ajuda-nos a compreender o quanto a formação de estudantes de filosofia no Brasil é marcada, de forma considerável, pelo modo acadêmico francês de trabalhar a disciplina, sobretudo de forma histórica4.

Esse quadro antecipa uma discussão que pretendemos desenvolver nos capítulos seguintes, cujo repertório filosófico de Gilles Deleuze, sobretudo sua tese Diferença e Repetição (2006[1968]), nos servirá de base para algumas considerações. No capítulo terceiro d‘A imagem do pensamento, Deleuze apresenta o conceito de representação como lócus a partir do qual são postuladas imagens que pressupõem o que significa pensar e fazer filosofia, o que para nós tem reverberações significativas também no seu ensino. Ora, se há pressupostos sobre o que significa filosofar, parece-nos que há, na mesma medida, uma ideia do que seja ensinar e aprender filosofia. Nesse sentido, sustentamos que a determinação corrente sobre este fazer no ensino, está pautada pelas imagens da transmissão e da explicação.

Assim, levaremos ao termo desta sessão, algumas considerações acerca do ensino, alinhavando perspectivas para o tema da aprendizagem, em função da qual daremos seguimento nas páginas posteriores. Por enquanto, objetivamos introduzir, sob o viés do ensino, as modalidades da transmissão e da explicação, emblema que nos deu passagem para encontrar na aprendizagem a questão primordial desta dissertação.

1.1 A transmissão de conhecimentos no ensino

A fórmula da transmissão do conhecimento no âmbito da educação sintetiza um pressuposto comum ao pensamento pedagógico tradicional, norteador dos padrões básicos de ensino. A concepção do ensino é fortemente marcada pela noção de transmissão em que, ensinar é o mesmo que transmitir de forma sistemática os saberes historicamente acumulados pela humanidade. Este ideal fundamenta os objetivos da instituição pedagógica e reproduz-se inquestionavelmente no sistema escolar.

No sentido geral, o conceito de transmissão opera como um dispositivo pedagógico e metodológico de ensino5. De acordo com os princípios organizadores da Proposta

4 Sobre os pressupostos discursivos que estabeleceram os parâmetros metodológicos da escola francesa,

os quais repercutiram na consolidação do método histórico-historiográfico no ensino de filosofia nas universidades paulistas, enfatizamos a tese do historiador da filosofia Ubirajara Rancan de Azevedo Marques, publicada no livro A escola francesa de historiografia da filosofia (2007).

5Entendemos por ―dispositivo‖ o mesmo conceito cunhado pelo historiador e filósofo

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Curricular Paulista formulada em 2008, especialmente para os ciclos Fundamental II e Médio do Estado de São Paulo, a escola deve ser o ―espaço para a transmissão, entre as gerações, do ativo cultural da humanidade, seja artístico e literário, histórico e social, seja científico e tecnológico.‖ (SEE/SP, 2008, p. 16).

Ademais, a Secretaria da Educação do Estado entende que este perfil de educação ―(...) constrói, de forma cooperativa e solidária, uma síntese dos saberes produzidos pela humanidade, ao longo de sua história e de sua geografia, e dos saberes locais‖ (SEE/SP, 2008, p. 11). Justifica tal ―(...) capacidade de síntese como uma das condições para o indivíduo acessar o conhecimento necessário ao exercício da cidadania em dimensão mundial‖ (SEE/SP, 2008, p.11).

Nota-se que a implementação do novo Currículo (2011) efetivo, cujo resultado se deu a partir da Proposta Curricular implantada em 2008, reforça os pressupostos de um sistema tradicional de educação. Ela se apresenta como alternativa de organizar o sistema educacional de São Paulo, diante das orientações gerais previstas desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB)6. Teoricamente, os parâmetros que fundamentam a educação nacional, supõem assegurar a chamada ―formação comum indispensável ao educando‖ (BRASIL, 2014, p. 25). Esta formação seria responsável pelo aprimoramento da pessoa humana, sua preparação para o trabalho e, sobretudo, o exercício da cidadania, paradigmas percorridos, em longo prazo, da educação básica até a educação superior7.

Embora um dos deveres reguladores da escola seja concatenar o ensino de um conjunto de conhecimentos adquiridos ao longo da história e a formação ética e social do sujeito, o que temos analisado, do ponto de vista das disciplinas escolares, é uma

Giorgio Agamben (2011) sintetiza os três aspectos fundamentais do conceito foucaultiano. Segundo o autor italiano, trata-se de 1) um conjunto heterogêneo, que inclui discursos, instituições, leis, proposições filosóficas e morais, até construções arquitetônicas, nas quais se destacam as prisões com sua vigilância hierárquica e função disciplinar. Em segundo lugar, o dispositivo tem 2) uma função estratégica concreta, sempre inscrita numa relação de poder e que, além disso, 3) resulta da articulação das relações de saber e de poder. São estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. A análise de Foucault parece estar atrelada aos dispositivos muito específicos, como o segundo caso (função estratégica concreta) que aparentemente não permite uma abertura às análises históricas mais gerais. Isso nos possibilita articular a dimensão da transmissão enquanto um dispositivo sob a ótica da teoria foucaultiana, uma vez que, o conceito de transmissão, tal qual pretendemos problematizar, tem uma função estratégica específica com suas variações vinculadas, de um lado, aos pressupostos e, de outro, aos métodos pedagógicos, dois domínios que se implicam e se sustentam no interior das relações escolares.

6A Lei de Diretrizes e Bases, (nº 9394/96)foi sancionada em Dezembro de 1996, e regulamentada em

1998 pelas Diretrizes do Conselho Nacional de Educação e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, a fim de definir e regularizar o sistema educacional brasileiro conforme seus princípios constitucionais.

7No que se refere à Educação Básica, o Artigo 22ª explicita: ―A educação básica tem por finalidade

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árdua tentativa de transmitir conhecimentos mediante a explicação de conteúdo. Em consequência, a avaliação dos estudantes tem a função de qualificar o nível de competências e habilidades que passam, necessariamente, pela sua capacidade de reprodução da matéria explicada.

Esta ideia de transmissão é um princípio que atravessa gradativamente a instituição escolar, desde concepções pedagógicas tradicionais até os pressupostos atuais da formação. Para citarmos um exemplo, no caso da instituição superior, os enunciados do Projeto Pedagógico do Curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP de Marília, ilustram nitidamente esta concepção. No documento, o ―perfil profissional‖ oferecido pelo curso espelha no bacharel e licenciado uma formação filosófica, porém, escorada especialmente no domínio historiográfico dos conteúdos. Transcrevemos aqui um fragmento que diz por si mesmo tal objetivo:

O bacharel em Filosofia é profissional capacitado ao trabalho de docência e pesquisa no ensino superior, plenamente habilitado para o trabalho intelectual, desenvolvendo ensaios cuja característica é a originalidade da reflexão, bem como comentários de alta especificidade técnica e erudição histórico-filológica. Igualmente familiarizado com a técnica da ―explicação de texto‖, tornando-a privilegiado instrumento do ensino da Filosofia no 2º grau, o licenciado deverá, também, promover o contato produtivo de seus alunos com os mais significativos movimentos da cultura ocidental, no domínio das ciências e das artes8.

A transmissão, nesse sentido, configura uma estrutura de pensamento mais abstrata que têm implicações significativas nas práticas de ensino. No caso do ensino de filosofia, o trabalho intelectual do estudante é rigidamente cerceado pela compreensão histórico-filológica e pela habilidade técnica de uma escrita direcionada a conservar a tradição. Além do domínio adestrado da filosofia, o estudante deverá pautar na explicação de textos filosóficos a sua ferramenta básica de ensino do segundo grau. Com a explicação ele deverá transmitir aquilo que lhe foi comunicado nos seus anos de formação. A tradição filosófica ocidental constitui, nessa medida, a ―espinha dorsal‖ na formação curricular, estrutura que endossa o fato de que as práticas de ensino, em todos os níveis escolares, convergem na tentativa de levar a cabo a exigência da transmissão.

No entanto, nota-se que este tipo de formação indica um déficit expressivo à medida que não parece atingir com êxito nem o ideal liberal iluminista de educação – pautado nos valores da razão e na transmissão da tradição cultural para o

8 O Projeto Político Pedagógico do curso de filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp de

Marília pode ser encontrado na página oficial do curso no endereço eletrônico:

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desenvolvimento humano, nem as operações básicas de aprendizagem. Na maioria dos casos, o papel da instituição limita-se a uma prática mecânica de ensino, à explicação de saberes compartimentados, no qual os próprios estudantes não conseguem reconhecer o sentido formador que a escola insiste em fabular.

Abrindo um parêntese para pensar o pressuposto da transmissão no ensino de filosofia, utilizamos o exemplo do Projeto Pedagógico para o curso de Filosofia na universidade mencionada que demonstra justamente essa característica. Ele minimiza a possibilidade de uma formação que, conforme a própria natureza do exercício filosófico deveria estimular a potência filosófica do pensamento. Diferente disso observa-se que a capacidade dos estudantes é trabalhada em função de um modus operandi que, nesta área do saber, procura conservar a transmissão e a reprodução fiel daquilo que se considera o cânone tradicional da filosofia, ou seja, a epistemologia dominante europeia.

Desse modo, temos que o contexto atual do ensino de filosofia, especialmente nos cursos superiores, tenta-se engendrar um tipo de formação histórica que, segundo Arruda (2013) não pode produzir Filosofia propriamente dita – que, conforme ele é temática 9. De acordo com Arruda, ―(...) historiadores só podem formar historiadores, do mesmo modo que só filósofos podem formar filósofos‖ (2013, p. 14). O autor assinala ainda que a filosofia foi gestada em nosso país por um ―pecado original‖, uma vez que ―não vieram filósofos para instaurar a investigação temática, e original, a deformação comentarista/historiográfica foi se transmitindo de geração em geração até chegar nos dias atuais‖ (ARRUDA, 2013, p. 14).

Se os primeiros indícios do ensino de filosofia no Brasil, ainda no período colonial, demonstravam uma tendência teológica, dogmática ou clássica na leitura de obras filosóficas, que eram por sua vez bastante delimitadas, nos dias atuais a cultura que se estabelece nesta área do conhecimento, consolida ainda uma tendência de base teológica e histórica na atividade de leitura de textos, além do comentário

9 ARRUDA, A. T. M. Entrevista com o Prof. Dr. Antonio Trajano Menezes Arruda. Revista Kínesis, Vol.

V, n° 09 (Edição Especial), Julho 2013, p. 01-20. Entrevista a João Antonio de Moraes e Marcio Tadeu Girotti. Arruda foi um dos poucos pesquisadores brasileiros a trabalhar a filosofia de eixo temático. Ele insistia na atividade da investigação dos temas filosóficos, como uma possibilidade de pensar e produzir

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historiográfico. Isto, porque com a criação da Universidade de São Paulo (USP) a partir de 1934, a filosofia foi instituída formalmente como disciplina de ensino e pesquisa sob o rigor dessa tendência histórica que posteriormente deu vazão à orientação estruturalista na leitura e análise dos textos filosóficos10. Na época, o cunho histórico era prerrogativa inicial para os interessados na formação em Filosofia, o que não difere do que observamos em nosso contexto atual. É uma disciplina que estabeleceu progressivamente a subordinação das formas de aprendizagem filosófica a uma perspectiva eurocêntrica de formação.

Notadamente, o contexto histórico da recepção da filosofia na universidade brasileira com todos os valores e metodologias aí implicadas, tiveram repercussões significativas na consolidação da tradição europeia ocidental como centro referencial da pesquisa e da chamada ―formação filosófica‖. Compreendemos esse aspecto explicitamente através do valor que esta premissa tem nas concepções e práticas de ensino, que atualmente vigoram nos departamentos de filosofia em nossas universidades.

Mas este não é o ponto que queremos desenvolver. O que interessa neste trabalho é observarmos o quanto a ideia de uma possível formação filosófica11 permanece desvirtuada, na esteira desse percurso, em favor de um tipo de instrução responsável pela formatação de comentadores e historiadores ou especialistas da filosofia. Conforme os objetivos pelos quais foi instituído, esse ensino está voltado para a especificidade do comentário, muitas vezes pautado em outros comentadores mais do que na própria obra filosófica, o que também confirma outra nuance do empobrecimento da aprendizagem filosófica.

10 Damos destaque ao livro de Paulo Arantes Um departamento francês de ultramar (1994), no qual

reflete a formação da cultura filosófica que se estabelecia na Universidade de São Paulo, onde estudou filosofia na década de 60. Ele descreve a mentalidade e o método disseminado pelos professores franceses, como indicativos de rigor ao conhecimento filosófico, porém, histórico e relata também como essa forma de ensino dirigia-se à margem oposta à possibilidade do filosofar. A experiência de Arantes é relevante para entendermos o contexto que influenciou a concepção herdada pelas demais universidades brasileiras que persistem nesse registro de análise descritiva de filósofos e das correntes de pensamento da filosofia. Vale ainda mencionar um texto muito interessante de Victor Goldschmidt um dos grandes nomes que discute e defende a metodologia científica em história da filosofia que, juntamente com Martial Guéroult, tiveram impacto significativo na formalização do ensino e pesquisa em filosofia na USP. O texto intitula-se ―Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos‖,

conclusão do livro La religion de Platon, publicado originalmente em 1949 na França, traduzido para o português pelo prof. Oswaldo Porchat Pereira (1970).

11 O que entendemos de uma formação filosófica é o aprendizado voltado para a criação de conceitos em

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Nesse sentido, podemos notar a visibilidade que tem a transmissão no ensino como pressuposto primeiro, sobretudo no ensino de filosofia. Ao mesmo tempo, podemos entrever sua responsabilidade pelo desfecho ruinoso daqueles que almejam, mais do que especialistas, historiadores ou comentadores, serem filósofos ou pelo menos desenvolverem esta tarefa com seriedade. Assim como a universidade, a escola também produz balizas sobre as formas de aprender filosofia, seja pela formação universitária que trazem os professores imiscuídos naquela doutrina de ensino, seja pela própria estrutura de controle escolar. Obviamente, nesta esfera institucional, a filosofia não adquire o desempenho do rigor tal qual na universidade, mas há, sem sombra de dúvidas, componentes que detém as condições de projetar e adstringir os destinos da (de)formação.

No livro Deleuze & a Educação (2003), Silvio Gallo introduz um deslocamento do conceito de literatura menor, criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari 12, para o campo educacional. Tal deslocamento permite pensar as potências de uma educação minoritária no interior da ―educação maior‖. Para Gallo, esta última é pauta dos ―planos decenais e das políticas públicas de educação, dos parâmetros e das diretrizes, da constituição e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, produzida pelas cabeças bem-pensantes a serviço do poder (GALLO, 2003, p. 78).

Para nós, é a idealização dessa ―educação maior‖, discutida por Silvio Gallo, que permeia e controla o cenário escolar e acadêmico. Na verdade, Gallo observa que a rotina da escola é minoritária, pois, constitui um espaço ocupado de resistências, povoado da militância manifestada mesmo de forma inconsciente, sobretudo, pelos alunos (considerados rebeldes). Mas, o que faz o corpo pedagógico é seguir o projeto da ―educação maior‖, é reterritorializá-la por meio das práticas disciplinares que, no entanto, demonstram um diagnóstico conflitante na efetivação de um propósito que é transmitir, sejam conteúdos de informação, sejam doutrinas morais.

12 Em Kafka por uma literatura menor (1977), Gilles Deleuze junto a Félix Guattari elaboram o conceito ―literatura menor‖, e utilizam esta categoria para pensar filosoficamente a obra de Franz Kafka.

Sabe-se que Kafka foi um judeu tcheco que escreveu seus livros na língua alemã, dado a ocupação alemã em sua região. A partir disso, os autores observam na literatura kafkiana uma criação revolucionária, um exemplo de subversão da língua (consequentemente da cultura e da tradição alemã), na qual Kafka produz uma desterritorialização veiculada no seu próprio uso. Nesse horizonte, o termo menor se relaciona às

―condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (estabelecida)‖. É

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Em um recente artigo intitulado ―A Transmissão cultural assediada: metamorfoses da cultura comum na escola‖, Inés Dussel (2009) reflete sobre a crise na transmissão escolar. A autora questiona a ideia da cultura comum que a escola ―deve transmitir‖, assinalando que a transmissão tanto quanto a ideia de cultura comum encontram-se em decréscimo nos dias atuais. Este fato se explica, segundo ela, devido ao declínio das humanidades modernas como centro referencial da chamada cultura comum, e também em razão das transformações consideráveis acerca dos pressupostos de transmissão e reprodução cultural.

A autora se apoia em uma análise de estrutura sociológica, apresentando o declínio da tradição humanista na escola como parte de um processo de transição dos valores da própria vida social. Conforme aponta Dussel, a cultura comum na educação esteve definida, de modo geral, por um eixo de humanidades modernas que garantiam uma estrutura aos saberes a serem transmitidos para as novas gerações. Este núcleo de humanidades ocupava um lugar de distinção e de referência, através do qual deveriam ser oferecidos os princípios culturais básicos de uma tradição, tendo em vista a orientação basilar para a vida social eminentemente hierárquica. A cultura ensinada na escola passava por critérios seletivos, privilegiando uma tradição de tendência aristocrática, bem como didáticas rígidas de ensino.

Evidentemente, o currículo tradicional humanista não deixava de apresentar as fragilidades em seu modelo clássico de educação, sobretudo, porque era dedicado aos interesses dos letrados e a uma disciplina excludente com relação à voz dos jovens, das culturas populares e contemporâneas. Tais críticas não são recentes, pois estão impressas na história do pensamento ocidental e, inclusive, nos movimentos reformistas da educação na América Latina. Dussel resgata o pensamento de Walter Benjamin a partir dos ensaios direcionados ao movimento estudantil de sua época, nos quais o filósofo chama atenção para a escola e sua característica essencialmente depositária da tradição cultural.

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humanidades, mas também fazer frente à imposição de um presente entendido a partir das necessidades impostas pelos valores do mercado13.

A autora analisa que, atualmente, este modelo de educação encontra-se em declínio. Isso se deve a diversos fatores tendo início na exigência de um sistema educativo democrático e a necessidade de renovação perante a novidade dos desafios tecnológicos de informação e comunicação. A escola hoje compete com a exposição massiva dos meios de comunicação e há de se reconhecer que ―compete em condições desvantajosas, já que por suas características ‗duras‘, por sua gramática estruturante, a escola se mostra menos permeável a essas novas configurações da fluidez e da incerteza‖ (DUSSEL, 2009, p. 357).

Em suma, a transmissão escolar, outrora, demarcada por um projeto iluminista europeu de educação com um objetivo muito preciso que era a passagem desta tradição delegada a uma parcela muito específica da sociedade, necessitava de reformas legítimas. Em virtude desta reivindicação, a escola deveria reformular seu currículo com base numa aproximação à realidade do povo notadamente marcado por demandas mais elementares. Entretanto, desde os primeiros movimentos reformistas no sistema educativo – que não deixam de representar uma luta considerável em termos de democracia nacional – até as condições recentes que se impõem para a reformulação curricular, a escola tenta gerar novas referências, reproduzindo velhas expectativas14.

Mantém-se o ideal de ilustração como projeto de formação humana, dentro deuma cultura que não é mais a do sujeito que se quer ilustrado. Em outras palavras, a escola busca sustentar um núcleo que sincronize a cultura tradicional com novas formas de produção do conhecimento, ao mesmo tempo, procura conservar um ideal de transmissão, quando este mesmo ideal encontra-se superado pelo imperativo da difusão de informações, efeito dos hábitos de comunicação no mundo globalizado.

Nesse sentido, a autora lança a pergunta, ―Que lugar pode ser proposto então para a transmissão cultural na escola?‖ (DUSSEL, 2009, p. 356). Evidentemente, Dussel busca o entendimento dos limites da transmissão com a intenção de repensá-la numa perspectiva de possibilidades, ou seja, de um lugar possível para sua retomada com base nos critérios da escola contemporânea. Nesse sentido, defende que

13 ―O ensino da moral‖, de 1913. BENJAMIN, W. Obras. Madrid: Abada, 2007. Primeros trabajos de

crítica de la educación y la cultura, libro 2, v. 1, p. 54.

14 Nesse sentido a autora destaca o argumento da pedagoga argentina Natalia Fattore, sobre algumas

desvantagens do progressivismo pedagógico: “O progresso de uma pedagogia „sem tradição‟ foi o ideal

a ser alcançado de todo progressivismo pedagógico. [Porém] ...o „novo‟, longe de nos liberar das

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(...) a escola, essa depositária do passado que se encontra com o futuro nos jovens, deve evitar a nostalgia e sobretudo a amargura por não ser mais o centro das referências culturais. ‗Não há dor maior que a de ser proprietário de instrumentos subitamente descartados. Quanto dos conteúdos escolares de hoje não reitera essa amargura, e se quer cobrar dos jovens essa dor? (DUSSEL, 2009, p. 362).

Para a autora, é importante que encontremos um modo de afirmação da transmissão que não parta de um gesto amargo e desencantado de seus proponentes (2009, p.361). Entretanto, sua análise relativa à crise da transmissão, e da escola como detentora e transmissora de conhecimentos, nos conduz a outro foco de reflexão sobre a mesma temática. Sugerimos, em contrapartida, outra ordem ao problema: qual o propósito da escola perante esta lógica da transmissão que mesmo sob a hipótese de uma progressiva decadência, ainda persiste nos eixos do ideário pedagógico atual?

De acordo com o que discutimos anteriormente e a despeito dos pormenores que caracterizam a crise da transmissão no perfil atual de escola, alinhavamos nosso foco problemático retomando a própria noção de transmissão a partir de seus pressupostos. Mais do que enfatizar os aspectos restritivos pelos quais ela passa, queremos problematizar o que, de fato, se pressupõe com a transmissão e de que modo isto reverbera na prática do ensino, bem como nas experiências de aprendizagem.

Com efeito, afirmar o discurso da transmissão de conhecimentos na escola evoca uma realidade de ensino estritamente disciplinar, com exercícios padronizados e conteúdos destituídos de contexto. Nesse viés, a transmissão faz cumprir o imperativo de um aprendizado específico, consolidando um critério convencional de educação, no qual o método da explicação ganha espaço para sua função coercitiva. Além disso, é muito importante salientar que este mesmo discurso tem sua origem na ideia de que o professor é o detentor do conhecimento e, por isso, irá transmiti-lo ao aluno. Este, por sua vez, será o receptor que deverá submeter sua inteligência e assimilar a matéria de forma correta.

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À primeira vista, uma das razões deste critério que se impõe na transmissão deriva de uma ordem comum no meio institucional escolar que é o dever de um aprendizado determinado de antemão pelo governo, pela escola e pelo professor. O objetivo nos parece evidente: manter um currículo sustentando, em última instância, o télos da escola como espaço do saber por excelência, e de transmissão desse saber. Entretanto, percebemos que esta exigência norteia uma situação de empobrecimento do aprender e das relações entre estudantes e professores, pois estabelece um limite ao que deve ser ensinado e como deve ser aprendido.

A aprendizagem, nesse contexto, é comumente reduzida à assimilação do aluno acercado objeto explicado pelo professor. Sua aprendizagem se basta num tipo de compreensão que é técnica e num tipo de reprodução de conhecimentos entendidos de forma superficial e abstrata. Este aprender é medido e avaliado conforme a disposição do aluno para compreender o que foi ou está sendo explicado. É um tipo de aprendizagem determinada pelas regras do professor. Ele só poderá certificar-se de que o aluno aprendeu desde que o conteúdo que assimilou na compreensão seja reproduzido de forma adequada ao que o professor aparentemente transmitiu. Garcia e Gelamo (2012) argumentam que esta maneira de avaliar a aprendizagem é muito restrita ao modelo representacional da transmissão:

(...) pressupõe-se que emissor e receptor compartilhem, ou precisem compartilhar, as mesmas representações que estão sendo transmitidas; caso contrário, o processo se torna inviável, pois a compreensão do outro poderá estar inadequada ou estar ―errada‖ diante do que se pretendeu comunicar. (GARCIA; GELAMO, 2012, p. 50).

A escola que, em princípio, diz fornecer aos jovens as possibilidades para o progresso pessoal na posse de um relacionamento livre com o conhecimento, decreta na realidade barreiras à sua inteligência, reiterando coações tradicionais. Sua aprendizagem é mensurada com base nos limites do correto ou do incorreto que a escola tem o poder de determinar.

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valores quantificados. A escola inicia os jovens num mundo onde tudo pode ser medido, inclusive a imaginação e o próprio homem.‖ (ILLICH, 1985 p. 53) 15.

É justamente pela centralidade da transmissão que a escola incute sua própria necessidade de existir, ou seja, ela nos ensina que a instrução produz a aprendizagem e, por isso, seremos sempre dependentes neste domínio. Além disso, o discurso da transmissão se encarrega em dissimular o jogo de controle e subordinação pelo qual passa nossa sensibilidade e nosso intelecto. Por isso, é preciso insistir e problematizar os meandros pelos quais somos levados a perpetuar este modelo legitimando a estrutura dominante da instituição. É necessário que observemos a progressão deste problema no contexto do ensino, especialmente no ensino de Filosofia que consiste no foco central de nossa investigação.

Como apresentamos anteriormente, a chamada ―formação filosófica‖ em nosso contexto de formação passa significativamente pela mediação de um currículo que privilegia a modalidade técnica da filosofia, ou seja, uma instrução predominantemente histórico-filológica. Espera-se que o docente, nesta área do conhecimento, seja capaz de dominar o cânone tradicional da filosofia que tem a cultura europeia ocidental como referência. Seu instrumental básico será a explicação de texto a fim de iniciar os alunos neste campo de saber.

Igualmente, espera-se que os alunos desenvolvam um estudo produtivo de tal conteúdo e, uma vez instruídos pela sua compreensão histórica e sistemática, possam exercer o trabalho intelectual na elaboração de ―ensaios‖ definidos, acima de tudo, pela estrutura do comentário. Seu exercício intelectual se restringirá a reproduzir ideias filosóficas assentadas na tradição, o que a nosso ver encontra-se ainda distante de uma atividade filosófica do pensamento, ideia que percorreremos mais adiante 16.

Não muito diferente disso, nas séries do Ensino Médio, onde a filosofia se estabelece entre um rol mais amplo de disciplinas, a tarefa do professor consiste em explicar o conteúdo, transmitindo aos alunos não mais do que informações prontas. Geralmente, a filosofia que se apresenta na escola está baseada nos comentários produzidos naquele âmbito mais específico da formação superior. Tais comentários, por

15 ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Editora Vozes: 7ª ed.

Petrópolis, 1985. Não cabe aqui encabeçarmos a proposta deste autor frente às políticas da instituição escolar. Tomamos um aspecto significativo de sua tese, na intenção de colocarmos em pauta o modo como reproduzidos os valores institucionais da escola em nossas concepções e práticas de ensino.

16 Em O que é filosofia? Deleuze já alertava: ―Mesmo a história da filosofia é inteiramente

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sua vez, se encarregarão de facilitar o entendimento, substituindo a originalidade dos textos filosóficos por termos mais acessíveis que servirão de apoio ao professor, inclusive através dos livros didáticos. Nesse processo, a explicação do professor levará às últimas consequências a simplificação e o esvaziamento do conteúdo filosófico.

Desde a implementação da Filosofia como disciplina obrigatória no currículo escolar do Estado de São Paulo em 2008, esta área de conhecimento segue intrincada na rotina escolar por diversos motivos que não nos cabe desenrolar neste contexto. Ocorre que a formação filosófica, já limitada pela hegemonia da especificidade técnica na educação superior, se constitui na escola de forma simplificada gerando o esgotamento dos problemas filosóficos, bem como o esvaziamento das formas de aprender e de pensar filosoficamente. De acordo com Gelamo (2009),

Essa lógica do ensino encaminha a relação ensinar/aprender para uma função: ensinar é transmitir as verdadeiras representações sobre aquilo que os filósofos disseram e aprender é compreender adequadamente aquilo que foi explicado, fazendo uma correlação entre a explicação do professor e o que se encontra nas obras filosóficas para, posteriormente, repetir de modo claro e distinto aquilo que se aprendeu (GELAMO, 2009, p. 114).

A partir disso, observa-se que o ponto em comum que se estabelece entre esses dois campos específicos do ensino de filosofia, o superior e o médio, tem como característica central a transmissão. Ambos reproduzem tal pressuposto que não têm condições de subsistir a senão por uma estrutura que lhe dê sustento. A explicação, nesse sentido, é o que mantém o sistema da transmissão constituindo um dispositivo pedagógico e metodológico determinante nas práticas de ensino.

Sendo assim, a explicação parece não contemplar apenas a exigência de uma metodologia de ensino, ela não dá consistência simplesmente a uma técnica de ensinar. A explicação aparece como um veio didático mantenedor do pressuposto peremptório da transmissão. Desse modo, o explicador é quem carrega e simultaneamente produz as marcas de um adestramento enraizado à sua própria inteligência.

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Pretendemos, portanto, problematizar a ideia da explicação na próxima sessão deste capítulo.

1.2 A ordem explicadora e o aprendizado do mestre ignorante

No primeiro capítulo da obra ―O mestre Ignorante‖ – cinco lições sobre a emancipação intelectual, o filósofo francês Jacques Rancière (2002) discute alguns princípios pedagógicos tradicionais que representam naturalmente os interesses dessa instituição. Ele identifica um desses princípios operando de forma muito comum e recorrente nas práticas mais elementares de ensino que é amparado pelo método da explicação.

Segundo o filósofo, além da explicação ser um recurso didático de ensino, ela se constitui como norma na escola já que alimenta a lógica institucional encerrada na transmissão. Rancière denomina esse sistema de ensino de ordem explicadora como forma de resguardar o exercício da autoridade e a submissão dos sujeitos.

A ordem explicadora instaura um regime de educação orientado pela ideia de que o aluno será sempre dependente das representações do professor para se emancipar. Através da explicação o professor espera transmitir aos alunos a matéria a ser ensinada e assim preencher o espaço que separa o estudante do saber. Trata-se de uma lógica que pressupõe a inteligência do mestre e a ignorância do aluno, prerrogativa de uma desigualdade de inteligências que o autor procura interpelar em sua obra.

Para Rancière, a função da pedagogia tradicional, da transmissão neutra do saber, consiste basicamente em estabelecer o princípio de igualdade como objetivo tomando a desigualdade como ponto de partida. Todavia, ele adverte que a igualdade não pode ser consequência, um resultado a ser atingido. Ela deve ser o critério primeiro de toda relação que se pretenda igualitária. Estabelecer a igualdade como objetivo e não como base é o mesmo que postergá-la indefinidamente, pois, supõe que o sujeito deva obedecer uma ordem, compreendê-la, assumir que deve obedecê-la para tornar-se um igual. Igualar-se ao mestre depende da submissão a ele e nada mais eficaz que uma instituição pedagógica para reproduzir este ideal.

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– não ultrapassa os limites do entendimento de seu próprio mestre, visto que ocupa uma posição de subordinação. Ele deverá compreender o que lhe é transmitido e demonstrar que seu entendimento segue o do mestre. Sua experiência possível com o objeto do conhecimento estará submissa às representações do explicador.

Conforme o que nos diz Rancière, este pressuposto longe de tornar possível a emancipação faz consolidar o embrutecimento, pois interfere de modo restritivo o movimento daquele que está a aprender. Quanto mais o professor assume a perspectiva do esclarecido, mais lhe parece evidente a distância que vai de seu saber à ignorância dos ignorantes. Parece-lhe óbvio, portanto, a necessidade de suas explicações para que o aluno aprenda. Com isso, sua voz substitui a autoridade do livro e o procedimento da explicação decreta a impotência do aluno como se não fosse possível aprender com o recurso de sua própria inteligência.

A mais severa consequência desta lógica é o embrutecimento. Pelo ato de explicar o mestre limita as chances do aluno em construir relações de saber por meio de suas próprias definições. Uma vez explicado, o aluno ―investirá sua inteligência em um trabalho do luto: compreender significa, para ele, compreender que nada compreenderá, a menos que lhe expliquem.‖ (RANCIÈRE, 2002, p. 21). Nessa subsequência da explicação à compreensão, o aluno adquire a racionalidade do mestre, sobrepõe-no ao movimento de sua própria razão para adaptar-se às suas explicações. Mais tarde, ele poderá, por sua vez, converter-se em um explicador (2002, p. 21).

A contundente crítica do autor se dirige especialmente à ideia de que a explicação é necessária para solucionar o suposto problema da incapacidade de compreender. Para Rancière esta incapacidade, tal como pensada no senso comum pedagógico, é que estrutura o princípio da ordem explicadora (2002, p. 20). Este discurso apenas reproduz a crença de que o mestre detém todo conhecimento necessário ao aprendizado que supostamente falta ao aluno.

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Evidentemente, este mito pedagógico não é produto de uma concepção ingênua de educação. Pelo contrário, ele converge aos interesses daqueles que fazem uso da instituição, reforçando o princípio de autoridade do professor e gerando no aluno certa dependência a este modelo de escolarização. Nesse sentido, Rancière adverte que ―(...) Explicar algo a alguém é, antes de tudo, demonstrar-lhe que não pode compreendê-lo por si só‖ (2002, p. 20). Com isso, podemos perguntar: há realmente um critério que permita ao mestre determinar o ponto onde se inicia e/ou se completa o aprendizado? O que torna sua explicação mais potente que as palavras do próprio texto? O livro não pode expressar por si mesmo sua razão de existir17?

Encontramos sobre o verbo ―explicar‖, uma série de definições entre as quais, ganha significado preponderante, a de explicar uma lição ou uma doutrina; fazer conhecer; tornar inteligível ou claro; explanar; comentar; desenvolver; apresentar razões ou motivos. Explicar, nessa acepção, ganha sentido como encargo daquele que sabe o conteúdo que precisa ser conhecido pelos que não sabem. Logo, a explicação garante ao professor sua tarefa e, ao mesmo tempo, seu prestígio. Isso nos leva a compreender que tudo o que é passível de ser apreendido pelo aluno depende da explicação do professor. As palavras de um livro não podem ser apreendidas senão pela explicação daquele que já o compreendeu possivelmente por meio de outra explicação. Por isso, Rancière argumenta que ―A lógica da explicação comporta o princípio de uma regressão ao infinito‖ (2002, p. 18), ela é o ponto onde se inicia e se completa todo aprendizado.

Entretanto, quase tudo o que aprendemos não diz respeito apenas às explicações de outrem. Aliás, segundo Rancière, de tudo o que aprendemos nada aprendemos por explicação. Como assinala o autor, as crianças, por exemplo, nunca aprendem a língua materna através da explicação dos seus familiares. Sem a necessidade de um mestre explicador, e antes de qualquer mestre explicador, elas aprendem a falar e a se comunicar por sua própria inteligência, por suas experimentações, suas descobertas.

Eles escutam e retêm, imitam e repetem, erram e se corrigem, acertam por acaso e recomeçam por método, e, em idade muito tenra para que os explicadores possam realizar sua instrução, são capazes, quase todos — qualquer que seja seu sexo, condição social e cor de pele — de compreender e de falar a língua de seus pais (RANCIÈRE, 2002, p. 19).

17 Não é nossa intenção respondermos de forma categórica a estas questões. É justamente porque é

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Segue-se que o jugo da explicação representa uma cega evidência de todo o sistema de ensino. O que pressupõe a distância entre o mestre que sabe e o aluno que ignora não pode ser uma discrepância intelectual, consiste unicamente em uma desigualdade prenunciada por Rancière de maneira inequívoca como uma desigualdade de inteligências.

Mas, Gilles Deleuze nos propõe um significado diferente acerca do conceito ―explicação‖. Aliás, ele pensa a explicação na colateralidade com o termo implicação. Neste caso, a definição de implicação corresponde a envolvimento e explicação a um desenvolvimento. Ambas, são categorias que remetem ao aprendizado que parte dos signos18. Este aprendizado, porém, não depende da boa vontade e não parte do esforço voluntário do aprendiz, mas do signo como intensidade, disparação e violência que força-o a pensar, dando início à experiência de aprendizagem19.

Conforme comentado por Zourabichvili (2004) ―Os signos nos obrigam a pensar por que englobam o que ainda não pensamos‖ (ZOURABICHVILI, 2004, p. 53). Nesse viés, eles complicam sempre um sentido implícito que deve ser explicitado. Portanto, conhecer o que esconde um signo, demanda o trabalho de desenrolar, desenvolver, explicar seu sentido. Mas esta é uma tarefa empreendida por qualquer indivíduo que esteja impelido a buscar o sentido de um signo. Por isso, tal atividade não se iguala com a explicação forjada na representação do professor durante a exposição de um conteúdo.

18Proust e os signos (2003 [1964]) é o livro em que Gilles Deleuze trabalha a noção de signo de modo

mais expressivo, muito embora não haja em sua filosofia uma teoria sistemática do signo, nem uma definição unívoca e totalizante desse conceito. Ele aparece em suas obras, tais como Lógica do Sentido

(1969), O Anti-Édipo (1972), escrito junto à Felix Guattari, entre outras, sob tonalidades diversas e em relação com os conceitos e problemas respectivos à cada uma delas. Desse modo, a temática dos signos, em Deleuze, está sempre atrelada à construção de sua filosofia da diferença, por isso, também ele ganha sentidos diversos àqueles da semiótica clássica. Utilizamos em nossa pesquisa o desdobramento da noção de signo apresentado em Proust e os signos. Esta obra, enquanto signo artístico é tomada como objeto de um aprendizado que se dá no tempo. Um tempo, sinônimo de multiplicidade e devir, que reúne uma tipologia de intensidades através de encontros fortuitos gerados nas relações sociais, nas experiências sensíveis, na memória, nos amores tal como mostra o desenvolvimento da ficção proustiana. Cada uma dessas dimensões emite signos que trazem consigo uma diferença a ser apreendida, numa temporalidade específica de decifração e interpretação por parte do protagonista. É o ―aprendizado do homem de letras‖

(2003, p. 3) de Marcel Proust que serve à interpretação de Deleuze e que se apresenta, na voz do filósofo, como imagem de uma aprendizagem não representacional.

19Mencionamos o termo ―disparação‖ de forma intencional, uma vez que podemos encontraruma conexão

Referências

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