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Análise da Casa do Caminho

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Academic year: 2017

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RITA DE CÁSSIA SOARES MACHADO

“ANÁLISE DA CASA DO CAMINHO”

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RITA DE CÁSSIA SOARES MACHADO

“ANÁLISE DA CASA DO CAMINHO”

Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (Faculdade de Ciências e

Letras), Campus de Assis, para a obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Drª. Maria Regina Ribeiro Salotti

ASSIS

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RITA DE CÁSSIA SOARES MACHADO

“ANÁLISE DA CASA DO CAMINHO”

Comissão Julgadora

Dissertação para obtenção do título de Mestre

Presidente e Orientadora:... 2º Examinador... 3º Examinador... 4º Examinador... 5º Examinador...

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DADOS CURRICULARES

RITA DE CÁSSIA SOARES MACHADO

Nascimento 1.1.1974 – Londrina/Pr. Filiação - Josias de Araújo Machado Ivette Toledo Soares Machado

1992/1996 - Curso de Graduação em Psicologia Universidade Estadual de Londrina

1998/2003 - Curso de Pós-Graduação em Psicologia, nível de Mestrado, na Universidade Estadual Paulista (Faculdade de Ciências e Letras), campus de Assis.

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A minha filha, Vitória, cujo nome sempre me deu força nas horas de cansaço, para que eu não esmorecesse nesta árdua tarefa.

Ao meu marido, Fábio, que sempre se mostrou companheiro e disposto a ajudar nas horas em que precisei.

Ao meu pai Josias, já falecido, que iluminou toda a minha infância com sua bondade infinita.

A minha mãe, Ivette, e aos meus irmãos Vítor Hugo, Carlos Henrique e, sobretudo, ao Lúcio Mauro que sempre foi um modelo de vida para mim e que, infelizmente, partiu, deixando meu coração dolorido de tanta saudade.

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AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho só foi possível graças à colaboração direta ou indireta de muitas pessoas. Manifesto minha gratidão a todas elas e de forma especial:

a Deus por estar viva e pelos dons que me tornam capazes de concluir minhas metas: “Tudo posso Naquele que me fortalece”;

a minha mãe, pelo seu apoio constante e, principalmente, por seu amor;

a minha orientadora, Drª Maria Regina Ribeiro Salotti, pela paciência, compreensão e por ter me apresentado a caminhos tão diferentes nesta busca do conhecimento;

à professora Drª. Sônia Aparecida Moreira França, por conceder-me a honra de ser aprendiz de seus pensamentos grandiosos;

às crianças e jovens que passaram pela Casa do Caminho e também aos funcionários e responsáveis pela Casa, pelo apoio, confiança e amizade a mim dedicados;

ao professor e amigo, Dr. Paulo Roberto Carvalho por ter me conduzido até o mundo das crianças abandonadas, pelo qual eu me apaixonei, e sobretudo, por ter me incentivado a dar início a esta pesquisa.

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“.... A gente quer ter voz ativa, no nosso

destino mandar, mas eis que chega a

Roda – Viva e carrega o destino prá

lá...”

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RESUMO

Esta pesquisa olha para a infância como um sujeito em suas múltiplas imagens e representações constituídas em diferentes épocas. E, da mesma forma, analisa a história do nascimento das instituições assistenciais, as práticas, saberes e poderes que as constituem. Este enfoque, remete ao fato de que o surgimento das instituições de assistência às crianças e jovens abandonados caminha simultaneamente com as inúmeras medidas de cuidados e preservação da infância. Tal embasamento teórico norteou toda esta pesquisa, ao ponto em que o olhar sobre o abandono infantil e suas formas de atendimento, perpassou os séculos passados e foi deslocando-se até o contexto atual. Tudo isso aconteceu com o intuito de se resgatar a pluralidade de sentidos que inscreveram a história da Casa do Caminho, instituição de atendimento infantil, objeto deste estudo, situada em Londrina no estado do Paraná. Os resultados mostraram que a Casa já é um efeito das práticas disciplinares da Sociedade Moderna, Sociedade esta, que, através da sua política de desigualdades, facilita os processos de exclusão, ao mesmo tempo em que cria espaços de atendimento aos considerados errantes. Sendo assim, as crianças e jovens excluídos pelo sistema, são objetos do poder institucional que faz uso dos seguintes mecanismos disciplinares para controle de seus corpos: a organização do tempo, do espaço, a observação de cada gesto, palavra, ou, olhar. Esses sujeitos são aqueles sobre os quais o poder assistencial está autorizado a se exercer, com o objetivo de torná-los disciplinados e produtivos. Deste modo, a Casa do Caminho, é, enquanto instituição, objeto e sujeito das relações que estabeleceu em seu projeto histórico. Concomitantemente, as crianças e jovens que ali vivem, foram constituídos no desdobramento das tramas históricas que lhes deram identidade.

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ABSTRACT

This work takes childhood as an individual in its multiple images and meanings built up in different phases. And in the same way, it analyses the history of how guidance institutions started, their practice, knowledge and also the power that make them. This focus leads to the fact that the emergence of the institutions for the abandoned children and youth move simultaneously with ways of care and childhood conservation. This theory led to the conclusion of this work, so as to the way we see child abandonment and how it is treated, through the past centuries and the present time. All these things happened with the intention of bringing back the plurality of reasons which built the history of Casa do Caminho, childhood institution in Londrina, Paraná and the corpus of this work. The results pointed out that this institution is already an effect of the regiment of modern society. This society through inequalities makes the exclusion processes easier and at the same time work up ways of treating those considered wrong doers. Thus, the children and youth that are excluded by the system are objects of the institutional power that uses skilled mechanisms to control their bodies, such as time and space management, the observation of each gesture, work or way of looking. These individuals are those over whom the assistencial power is licensed to be practised, with the aim of being self-controlled and obedient. This way the Casa do Caminho is an institution, object and subjet of the relations which established in its historical project. And the young children who live there are built through out the history events that gave them their identity.

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SUMÁRIO

I INTRODUÇÃO... 10

1 O Objeto de Estudo: primeira aproximação... 10

2 A Roda do Tempo... 12

3 A Política Higienista... 19

4 As Práticas Disciplinares... 28

5 O Abandono Infantil e as Instituições no Contexto Brasileiro... 33

6 Abrigo: Uma Nova Página na História das Instituições Assistenciais... 44

7 A Casa do Caminho... 55

7.1 Fundação e Princípios Morais ... 55

7.2 Espaço Físico:Uma História de Assistência à Infância Desamparada ... 65

7.3 A Trajetória da Exclusão Infantil e o Papel Social da Casa do Caminho ... 76

7.4 A Casa do Caminho: Dispositivos de Atendimento ... 81

7.5 Pedras no Caminho ... 86

7.6 Casa do Caminho: Na Mira de um Olhar ... 91

7.7 A Nova Política de Gestão de Corpos da Casa do Caminho ... 92

7.8 Dossiês: A Individualidade num Campo Documentário ... 98

II CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 108

III REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 113

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I INTRODUÇÃO

1 O Objeto de Estudo: primeira aproximação

O objetivo deste trabalho é analisar o funcionamento de uma instituição, a Casa do Caminho, que presta assistência a crianças e jovens abandonados.

Falar sobre instituições infantis e a respeito de crianças e adolescentes abandonados, pode não ser um tema novo, inédito, mas nem por isso, menos rico e interessante que não mereça ser abordado.

Tais instituições surgem em um contexto de grandes disparidades sociais (que prevalecem), tendo como intuito inicial o de dar “guarida”, ou então de servir como depositário de crianças abandonadas. Na maioria das vezes, estas crianças são encontradas nas ruas, pedindo esmolas, roubando, usando substâncias tóxicas ou se prostituindo.

Entretanto é preciso desconfiar das interpretações que demandam o surgimento das instituições de cuidado à infância em relação de causalidade com a existência de crianças abandonadas. Longe de se constituir como um solo originário para a fundação das instituições, o abandono infantil é igualmente um efeito das práticas sociais que engendram domínios de saber e de poder, construídos historicamente.

Pode-se pensar que a criação destas instituições caminha pari passu com as

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Deste modo, analisar a Casa do Caminho (responsável pelo cuidado de infantes e púberes), significa compreender os processos históricos e sociais que constituem o campo do saber e de poder relativos à infância abandonada. Significa, também, problematizar os procedimentos que a instituição utiliza para produzir um campo de subjetivação, no qual os sujeitos institucionais irão se perceber, se relacionar, falar de si mesmos e do mundo.

Pesquisar esta instituição, significou compreender qual a sua política e os procedimentos por ela adotados para adestrar os corpos que ali se encontram e, finalmente, que conjunto de técnicas, saberes, descrições, receitas e dados ela coloca em uso para a formação desses corpos?

Visto desta forma, este estudo visa problematizar o nascimento da Casa do Caminho, na cidade de Londrina, localizando as forças históricas que impulsionaram o aparecimento desta instituição, bem como os seus desdobramentos políticos no que se refere ao modo de compreensão da infância abandonada, visto pela ótica da comunidade.

Este trabalho teve início a partir de um estudo teórico sobre como a figura da criança abandonada foi, ao longo da história, ganhando visibilidade e, simultaneamente, constituindo, estratégias de cuidado. Em seguida, fez-se necessário uma análise das proposições filosóficas, morais e filantrópicas presentes no nascimento desta instituição assistencial. Este acontecimento implica numa primeira organização do trabalho, objeto de estudo desta pesquisa, qual seja: a leitura do estatuto e regimento da Casa do Caminho, a leitura e pesquisa de jornais que fizeram alguma menção sobre este local de 1981 até 1996, bem como, encontros com a assistente social e funcionários desta instituição, seguidos de entrevistas com os fundadores da Casa do Caminho e com as funcionárias mais antigas desta entidade culminando com a análise dos prontuários das crianças e jovens que se encontram na Casa até os dias de hoje.

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2 A Roda do Tempo

O ato de abandonar bebês é um fato que vem ocorrendo há muito tempo. Por esta razão, o conhecimento das práticas de abandono infantil em diferentes momentos da história poderá dar visibilidade na compreensão de como se desenvolveram as formas assistenciais de proteção à infância ao longo dos anos. Tais formas assistenciais tiveram início no Velho Mundo e, depois, foram estabelecidas no Brasil já em sua colonização.

A história da infância abandonada brasileira possui suas raízes entranhadas no modelo europeu, sendo assim, torna-se difícil contextualizar o abandono de crianças e jovens no Brasil, sem fazer menção aos costumes da sociedade européia ligados a esta mesma prática. Isto se deve ao fato de o Brasil sempre ter tido um forte vínculo de dependência cultural em relação à Europa, considerando-se o hábito secular de se impor as idéias do Velho Mundo aos povos por ele colonizados. Em se tratando de abandono infantil, esta dependência não poderia ser diferente também em nosso país.

Nas grandes civilizações ocidentais da Antigüidade, têm-se notícia de vários casos de crianças abandonadas. A civilização que mais se destaca quanto a este aspecto é a grega. Sabe-se que na Grécia clássica:

“... o poder do pai sobre os filhos era absoluto. Era-lhe permitido matar, vender ou expor os filhos recém-nascidos. A deformidade da criança, ou a pobreza da família bastavam para que a justiça doméstica decretasse sua morte ou seu abandono. O aborto era legítimo e o infanticídio admitido.” (MARCÍLIO, 1998, p.23).

De acordo com Ariès (1995), os romanos também tinham o costume de rejeitar seus filhos, deixando-os na sarjeta; para eles, isto era visto de forma natural, pois fazia parte de seu mundo. Isto se comprova desde o início de Roma cujos fundadores, segundo Marcílio:

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Na Roma antiga, uma criança podia ser abandonada, ou não, de acordo com a vontade de seu pai, denominada de Patrio Potestas. Segundo esta vontade, o chefe da

família era quem determinava o destino do recém-nascido. Quando um pai tomava seu filho nos braços e o erguia, significava que o futuro desta criança estava “garantido”. Se, porém, acontecesse o contrário, tal criança seria deixada na rua, a sua mercê.

Além do costume de abandonar as crianças indesejadas, verifica-se que o infanticídio era, igualmente, outra prática comum tanto entre romanos, como entre os gregos da Antigüidade. Percebe-se, ainda, que tudo isso acontecia por motivos diversos: em casos de pobreza da família, os pais se livravam de seus filhos por não terem condições de criá-los. Já os ricos abandonavam suas crianças por duvidarem da fidelidade de suas esposas, ou, então, por terem feito a divisão dos bens entre os herdeiros existentes, não sobrando espaço para mais nenhum filho dentro da família.

Como todas estas práticas eram comuns, verifica-se que o número de crianças mortas, ou deixadas na rua, aumentava a cada dia. Para tentar diminuir a exorbitância desses números, os romanos (assim como os gregos) passaram a criar algumas leis que proibiam tanto o infanticídio, como a venda ou o abandono de crianças saudáveis. Tais situações somente seriam aceitas quando praticadas em casos de bebês defeituosos. Estas leis chegavam até a vigorar por algum tempo, mas logo caiam no esquecimento.

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filhos isto era visto apenas como uma forma de salvaguardar o nome da família, defendendo, assim, os seus interesses políticos e econômicos.

Verifica-se, desta maneira, que no Império Romano, as alternativas para as crianças enjeitadas eram: ser entregues à adoção, ou permanecer ao relento, sozinhas, à espera da morte, ou, de alguém que porventura as quisesse.

Marcílio (1998), comenta ainda que, somente a partir do século V (caracterizado pela queda do Império Romano), a Igreja resolveu tomar a dianteira nesta situação, encarregando-se do destino dos pequenos enjeitados. Tal fato vem de encontro ao pensamento da época (assistência caritativa), em que um verdadeiro cristão deveria entregar-se às obras de caridade para obter a salvação de sua alma. Quando o principal motivo do abandono infantil era proveniente da situação miserável em que algumas famílias viviam, a Igreja perdoava esses pais, recolhendo e abrigando suas crianças. Neste período de assistência caritativa, todos os que quisessem salvar sua alma e garantir um lugar no céu, deveriam ser solidários para com o próximo menos favorecido.

Com o intuito de abrigar os miseráveis, fossem eles: crianças ou adultos, é que foram criados, através da iniciativa de bispos e pessoas da comunidade, os hospitais. Como o próprio nome o diz, hospital, proveniente do latim hospitale, era uma instituição onde se ofereciam diferentes tipos de assistência, desde a enfermagem até o abrigo aos necessitados. Nesses hospitais, os bebês, os adultos e os enfermos coabitavam o mesmo ambiente.

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oblata (instituição monástica) para servir a Deus. Nesse caso, entretanto, deve-se fazer a

seguinte ressalva: além das crianças enjeitadas, chegavam igualmente à oblata crianças de

diversas classes sociais. Como foi visto, anteriormente, na época da assistência caritativa, a toda pessoa que realizasse obras de caridade era prometida felicidade eterna.

A oblata também era praticada por pais de classe média que abriam mão de

seus filhos para oferecê-los a Deus. Além dos propalados propósitos divinos, na verdade, muitos pais se utilizavam da oblata, também como forma de controlar sua herança, uma vez

que o filho oferecido à oblação fazia votos de pobreza, de obediência e castidade.

Após a Igreja resolver tomar a si o encargo de cuidar dos pequeninos enjeitados, houve, aproximadamente entre os séculos VII e XII, uma violenta explosão demográfica, provocando, de repente, um aumento assustador de crianças abandonadas. A Igreja viu-se, desta maneira, diante da clara percepção de que os hospitais e as oblatas destinados aos cuidados das mesmas tornaram-se insuficientes, havendo, assim, a necessidade premente de se tomar novas providências.

A partir do século XI, segundo Marcílio (1998) começam a surgir as obras de misericórdia, em que pessoas de classes sociais mais abastadas (nobres) passam a financiar hospitais e outras obras de caridade em prol dos necessitados. É neste contexto que vai se delineando o movimento de caridade pública, no qual a responsabilidade pela assistência passa a ser assumida, igualmente, pelas autoridades locais.

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significativas, pode-se dizer que foi a migração das pessoas do campo para as cidades. Com o aumento assustador da população citadina surgem vários problemas como: proliferação de epidemias (conhecidas como doenças de carência), número exorbitante de pessoas sem um teto para morar e, conseqüentemente, altos índices de abandono infantil. Era o caos invadindo, enquanto a Europa e as instituições monásticas não davam conta de tamanha demanda de necessitados.

Percebe-se, então, que as obras de caridade precisavam ser renovadas; sendo assim, aproximadamente no fim do século XII, os municípios e a sociedade em geral passam a assumir, juntamente com a Igreja, os cuidados relacionados aos pobres, doentes e desvalidos.

“O número crescente de pobres, de pessoas incapazes de assegurar por si mesmas sua existência material, pôs em dura prova a doutrina tradicional de beneficência e de assistência aos pobres. As formas existentes, ou seja, as instituições eclesiásticas, mostraram-se totalmente despreparadas, enquanto a proteção dos deserdados continuou sendo uma das principais missões temporais da Igreja. As iniciativas caritativas se multiplicam, a partir de então, fora da Igreja, encorajadas pelos predicadores: a caridade torna-se uma das virtudes mais louváveis.” (GEREMEK, BRONISLAW, 1976, p. 189. In MARCÍLIO, 1998, p. 41-2).

No instante em que a sociedade passou a assumir uma função caritativa, teve que se transformar e se adaptar a esta nova realidade. A Igreja, do mesmo modo, mediante os clamores sociais por mudanças drásticas, teve que fazer alterações em seu aspecto estrutural e em sua organização. Desta forma, coube ao catolicismo europeu criar normas e, neste sentido, controlar cada aspecto da moral familiar e da sexualidade da população.

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a instituir a indissolubilidade, monogamia e locus unico para a multiplicação da espécie como

condições primordiais para a realização do sacramento do matrimônio. Pode-se dizer que tais condições serviram para agravar ainda mais a rejeição destinada aos bastardos que passaram a ser, desta forma, estigmatizados. Esta tentativa de controle familiar foi, de certo modo, em vão, pois não conseguiu diminuir os altos índices de abandono.

Marcílio (1998), acresce, ainda, que nesta época, a adoção anteriormente praticada durante a Idade Média, não foi mais permitida pelas autoridades religiosas e estatais. Tal proibição vinha de encontro ao novo costume da época que era o de destinar os bens familiares às obras de caridade, nos casos em que as famílias não tivessem para quem deixá-los. Convém ressaltar que esta proibição perdurou durante sete sécudeixá-los.

A piedade e caridade para que pudessem ser exercidas, preconizavam a criação de instituições para abrigar os pobres e desamparados. Essa prática vai propiciar uma maior visibilidade a essa população. Como observa Marcílio,

“Os asilos para as crianças abandonadas, para os velhos, para os órfãos, ou para os pobres; os albergues para os andarilhos; os hospitais para os doentes; os recolhimentos para as viúvas e as mulheres sós; e os isolamentos para os leprosos foram surgindo por toda a parte.” (1998, p. 50).

Papa Inocêncio III foi o responsável, no início do século XIII (em 1203), por uma reviravolta nos moldes assistenciais destinados à infância desvalida. Perplexo, após presenciar o recolhimento de inúmeros bebês afogados no rio Tibre, este Papa resolveu designar o hospital de Santo Espírito in Saxia para receber as crianças. No muro lateral desta instituição, foi instalado um cilindro rotatório, denominado Roda, que tinha como finalidade principal receber os bebês rejeitados, de forma a preservar o anonimato dos pais ou da pessoa que os estivessem expondo. É Donzelot que complementa o significado deste dispositivo:

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recém-nascido, ela avisa a pessoa de plantão, acionando a campainha. Imediatamente, o cilindro, girando em torno de si mesmo, apresenta para fora o seu lado aberto, recebe o recém-nascido e, continuando o movimento, leva-o para o interior do hospício. Dessa forma, o doador não é visto por nenhum servente da casa. E esse é o objetivo: romper, sem alarde e sem escândalo, o vínculo de origem desses produtos de alianças não desejáveis, depurar as relações sociais das progenituras não conformes à lei familiar, às sua ambições, à sua reputação.” (1986, p. 30).

A primeira preocupação dos hospitais em relação à criança encontrada na Roda era seu batismo. Após ser batizada, ela era encaminhada para um quarto comunitário, onde convivia com adultos doentes, prostitutas, leprosos. Apesar dos altos índices de mortalidade infantil existentes nestes locais e das condições precárias em que as crianças ali viviam, o mecanismo das Rodas perdurou até o século XIX.

Os administradores hospitalares, diante dos números cada vez maiores de crianças que entravam nas Rodas e acabavam falecendo, resolveram criar, em vista disto, diversas alternativas numa tentativa de diminuir estes números. Uma dessas alternativas foi implementar uma outra forma de assistência à criança exposta: a ama-de-leite mercenária.

Quem eram as amas mercenárias? Geralmente mulheres do povo, simples e pobres. Elas cuidavam das crianças que lhes eram entregues nas mesmas condições precárias com que cuidavam de seus filhos. Os bebês eram retirados dos hospitais e levados às casas dessas camponesas que recebiam em troca dos cuidados, um estipêndio. Este estipêndio era destinado à nutriz até que a criança completasse sete anos de idade. Ultrapassada esta idade, presumia-se que os expostos pudessem iniciar um trabalho na qualidade de aprendiz, se fossem meninos. Se fossem meninas, seriam treinadas e destinadas à vida matrimonial.

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“Fugas de crianças das famílias das amas, maus-tratos, má nutrição, ou imposição de trabalhos muito pesados chegavam ao conhecimento da administração das casas dos expostos por meio de denúncias, dando uma idéia da situação de extrema degradação em que os expostos eram obrigados a viver.” (MARCÍLIO, 1998, p. 67)

Verifica-se, enfim, que as crianças não eram denominadas expostas somente quando deixadas nas Rodas, mas por estarem constantemente expostas a várias situações de dificuldades e sofrimentos. A forma como essas crianças abandonadas eram tratadas, somente começa a ser repensada e revista a partir do movimento higienista, pois, antes disso, tudo era considerado normal, já que não havia um sentimento de proteção ligado à infância.

3 A Política Higienista

Contra a elevada taxa de mortalidade infantil citada anteriormente, surge na Europa, a partir do século XVIII, inúmeros tratados sobre a saúde e preservação das crianças.

O que se instala, nesta época, segundo Donzelot,

“.... é uma reorganização dos comportamentos educativos em torno de dois pólos bem distintos... (...) O primeiro, tem por eixo a difusão da medicina doméstica... (...) O segundo, poderia agrupar, sob a etiqueta de “economia social” todas as formas de direção da vida dos pobres com o objetivo de diminuir o custo social de sua reprodução, de obter um número desejável de trabalhadores com um mínimo de gastos públicos, em suma, o que se convencionou chamar de filantropia.” (1986, p. 21-22).

Conforme o pensamento acima, há uma transformação radical nas formas assistenciais relacionadas às crianças enjeitadas, de modo que o exposto passa, então, a ser visto como elemento útil ao progresso nacional.

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e, por fim, o utilitarismo apregoando que os expostos deveriam ser deportados para as colônias conquistadas pela Europa, auxiliando, desta maneira, na povoação destes lugares.

Pode-se observar, assim, que o tema da conservação de crianças passa a ser largamente difundido, a partir do século XVIII, dando ensejo, desta forma, ao aparecimento de medidas higiênicas, visando o cuidado e a preservação de crianças expostas.

Esta forma de pensar vem de encontro, como já foi relatado anteriormente, a uma necessidade política e econômica que começava a aflorar com a formação do Estado Moderno. Sobre este fato Foucault faz o seguinte comentário (In COSTA, 1979, p.50-51):

“... o século XIX assistiu à invasão progressiva do espaço da lei (repressiva e punitiva, característica do Estado medieval e clássico) pela tecnologia da norma. O Estado Moderno procurou implantar seus interesses servindo-se, predominantemente, dos equipamentos de normalização que são sempre inventados para solucionar urgências políticas.”

A tecnologia da norma busca eliminar as condutas inaceitáveis, produzindo e em seu lugar, novas características do corpo, dos sentimentos e das relações sociais. Já que a modernidade é caracterizada pelo advento da era normativa, de uma sociedade disciplinar, o corpo humano passa a ser um produto da atividade social e a constância de alguns traços depende da fidelidade a certas normas.

Donzelot (In COSTA, 1979, p. 51) mostra como a família se enquadra neste contexto político:

“O Estado Moderno, voltado para o desenvolvimento industrial, tinha necessidade de um controle demográfico e político da população adequado àquela finalidade. Esse controle, exercido junto às famílias, buscava disciplinar a prática anárquica da concepção e dos cuidados físicos dos filhos, além de, no caso dos pobres, prevenir as perigosas conseqüências políticas da miséria e do pauperismo. No entanto, não podia lesar as liberdades individuais, sustentáculo da ideologia liberal.”

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de pensar e de agir da população. Pode-se dizer que a modificação do comportamento familiar era um dos fatores importantes para o desenvolvimento do Estado Moderno.

Na realidade, a higiene familiar foi uma estratégia utilizada pelo governo com o intuito de que as famílias se subordinassem a ele. Isso só seria possível através de um controle minucioso dos hábitos e condutas de cada família, controle esse a ser realizado pelos médicos.

O papel dos higienistas era o de converter os cidadãos aos novos interesses sociais. Para que isso acontecesse, os médicos passaram a freqüentar, assiduamente, as famílias verificando e intervindo em seus costumes. A começar pela modificação de seu espaço físico, separando os quartos das crianças e dos adultos, tornando as casas mais iluminadas e ventiladas, orientando até quanto ao sistema de esgoto da casa.

Percebe-se que a mudança começava pelo ambiente, passando depois pelas vestimentas, culminando, finalmente, nos relacionamentos entre os membros da família.

Tanto a mulher, quanto a criança, passam a ter uma nova visibilidade no Estado Moderno.

A criança passou a ser vista como uma mão-de-obra em potencial que deveria, desde pequenina, ser preservada e treinada para tornar-se produtiva, depois, quando adulta. Quanto à mãe, a ela cabia-lhe o papel de educar seus filhos com o propósito de torná-los adultos de boa índole e, sobretudo, úteis à nação.

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“... Antes, mulheres e crianças partilhavam o mesmo estatuto de irresponsabilidade. O homem, o pai, concentrava o poder de discernir o certo e o errado, o bom e o mau. Agora, as discriminações começavam a existir. Cada indivíduo deveria apresentar responsabilidades proporcionais ao sexo e a idade.” (COSTA, 1979, p. 138)

Passa a haver, desta forma, um ataque direto aos comportamentos dos pais relacionados à educação de seus filhos, quando aqueles não observavam os mínimos cuidados necessários em relação à própria prole. Para se chegar a esta conclusão, é só retroceder a uma fase anterior ao higienismo, na qual cabia às mães tão somente o papel de gerar a criança e dar-lhe à luz, porque logo após o bebê era entregue aos cuidados de uma nutriz, para que ela se encarregasse inteiramente dele. Comenta-se, no entanto, que a mãe escolhia, quase sempre, como nutriz uma escrava que acabara de dar à luz e cujo filho havia sido levado para a Roda. Em virtude disto, os médicos higienistas passaram a questionar de que modo podia uma mãe cujo filho lhe fora bruscamente usurpado, cuidar de uma outra criança, que não a sua? Em resposta a tal questionamento é que os médicos sanitaristas passaram a agir de forma prática, criticando o posicionamento das famílias abastadas que se utilizavam das serviçais para o desempenho das mais variadas tarefas que lhes eram rigidamente impostas. Toda a atividade relacionada aos cuidados para com as crianças era desenvolvida pela nutriz. Seguindo esta linha de raciocínio, é que a medicina social passa a apontar todos os malefícios que os serviçais proporcionavam às crianças ricas, especialmente as amas com suas atitudes descuidadas e, às vezes, até mesmo pervertidas. Passou a haver, deste modo, o incentivo para que os próprios pais, no caso, as mães tomassem conta de seus filhos e desistissem da intenção de entregá-los às Rodas, ou então, às nutrizes.

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acreditavam que uma pessoa só era capaz de se dedicar eficazmente ao seu trabalho, quando recebia um salário que a estimulasse a bem desempenhá-lo. Já o escravo, aquele que tinha sua mão-de-obra explorada, só cumpria seus deveres, por temer as punições que adviria, pelo não cumprimento das tarefas impostas.

Ainda no século XVIII, levando-se em conta os fatos já citados, os higienistas começaram a compreender o porquê das altas taxas de mortalidade infantil. Perceberam, então, que as crianças eram suscetíveis aos maus tratos e à falta de higiene, não só quando se encontravam nas Rodas, mas também quando estavam em suas próprias casas com as amas. Nas Rodas, para piorar o quadro, também eram observadas, além da sua má administração, a ganância das amas-de-leite.

Por este motivo, desde o final do século XVIII, a utilização das Rodas passou a ser condenada, porque, além dos desvios fraudulentos descobertos nestas instituições, descobriram também que havia um número demasiado alto de filhos legítimos entre os expostos.

As famílias menos favorecidas expunham seus filhos, não só porque não tinham condições de criá-los, mas também, com o intuito de mais tarde (sem se identificarem) se apresentarem na Roda a fim de recuperar seus filhos, só que no papel de nutrizes. Desta forma, elas receberiam um estipêndio, uma ajuda do Estado, para cuidar de seus próprios filhos. Além do mais, foi constatado que não somente os pobres abandonavam seus filhos, mas entre os ricos, tal atitude, igualmente era comum. Pode-se concluir, que assim tal procedimento acontecia em qualquer família, independentemente da condição sócio-econômica em que esta se encontrava.

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sistema aberto, (não às escondidas como antes), em que a administração se incumbia de investigar a real situação da família que ali deixara seu bebê. Se tal família tivesse alguma condição financeira, a criança não seria aceita, mas se a família fosse realmente pobre, a própria mãe receberia o salário, antigamente pago às amas-de-leite, dando-lhe assim, condições de cuidar de seu filho.

É nesse contexto que surge, segundo Marcílio (1998), no início do século XIX, o salário-família que, aliado à descoberta da esterilização do leite feita por Louis Pasteur, pôde contribuir para a amamentação feita com leite animal, o que veio melhorar sensivelmente a saúde das crianças. Com todos esses avanços, os serviços das amas-de-leite mercenárias passaram a ser dispensados e este foi um dos mais importantes fatores responsável pelo fechamento das Rodas, cujo desaparecimento definitivo do cenário europeu, se deu no início do século XIX.

Só que as coisas não aconteceram, a partir de então, de maneira tão simples, pois com o fechamento das Rodas todo um aparato foi criado para vigiar e controlar os hábitos familiares. As famílias passaram a sofrer uma influência direta do controle médico-estatal, que passou a ensinar novos hábitos e costumes aos membros da família, segundo os preceitos da pedagogia higienista. E para tanto, foram escritos inúmeros tratados médicos úteis no trabalho de re-educação dos costumes familiares.

Verifica-se que, segundo os preceitos da família higiênica, tanto os pais, como os filhos, deviam re-educar suas vidas para, posteriormente servirem à nação. O antigo

ethos familiar, onde vigorava o Patrio Potestas foi redefinido. Ao invés de todo poder da

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Anteriormente a essa fase, a criança era vista como um acessório familiar, um mero complemento. O pai só se importava com o filho adulto que iria herdar e aumentar ainda mais sua fortuna.

Mas o olhar em torno das relações familiares modificou-se e elas passaram a ser foco da atenção dos médicos higienistas e do Estado. Sendo assim, todos os malefícios que pudessem prejudicá-la começaram a ser severamente criticados, tais como os concubinatos e, conseqüentemente, o aumento excessivo de filhos ilegítimos. Além desses fatores, de acordo com Costa (1979), foram também questionadas as uniões por conveniência, ou por consangüinidade e os casamentos de homens muito velhos com esposas jovens. Para os higienistas, estas três formas de união eram, via de regra, realizadas sem que os parceiros tivessem real afinidade entre si e isso fazia com que, comumente, os casamentos chegassem ao fim logo nos seus primeiros anos, o que favorecia, muitas vezes, as relações extra-conjugais, bastante comuns na época. Além disso, ainda na visão de Costa (op. cit.), as uniões consangüíneas, ou com grande disparidade etária estavam sujeitas a gerar filhos “defeituosos”, no primeiro caso, ou então dificultar, no segundo, ao homem de mais idade, a aptidão para procriar.

Segundo a medicina social, a maior herança que um casal poderia deixar aos seus filhos era a saúde física, moral e intelectual. Esta nova visão da infância, divulgada por toda a Europa, no final do século XIX, veio, em conseqüência, mudar o conceito de família que passou a ser definida da seguinte forma:

“Na família higiênica, pais e filhos vão aprender a conservar a vida para poder colocá-la a serviço da nação.” (COSTA, 1979, p.173)

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crianças temporariamente de seus lares, assim que chegassem à idade escolar. Nesta fase, elas eram levadas aos colégios, lá ficando internadas, até o momento em que seus corpos fossem devidamente adestrados, de acordo com os interesses da nova política vigente.

Junto a esta mudança na estrutura das famílias, concomitantemente, ao seu papel a ser desempenhado, outras modificações ocorreram de igual importância – aos olhos do novo Estado e do higienismo.

A invenção da creche, nesta mesma época, por Firmin Marbeau, veio colaborar com as mães pobres e operárias que, não tendo onde deixar seus filhos para que pudessem trabalhar, acabavam, muitas vezes, abandonando-os. Deste modo, as creches passaram a ser defendidas como locais devidamente preparados, onde as mães poderiam deixar seus filhos, enquanto trabalhavam, prática esta observada até os dias de hoje. Outro fato importante, foi o retorno da prática da adoção de crianças enjeitadas, muito difundida na Idade Média e, logo depois, descartada, por interferência da Igreja, mas que foi retomada na legislação vigente.

Percebe-se que o pensamento de então era o de salvaguardar as crianças a qualquer preço, fosse através da criação de instituições infantis (creches-escolas), ou através da inserção de crianças em famílias que pudessem educá-las. Conforme relatam Veiga e Faria (1999, p.22):

“As instituições serão os espaços promotores da nova civilidade requerida pela e na cidade”, afinal, “... cuidar da infância é cuidar de sua inserção social...”

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Nesta retrospectiva, observou-se que um sentimento filial passou a ser criado pelas práticas higienistas e, portanto, trouxe uma nova representação da infância, conforme as necessidades político-estatais da época. Diz–se uma nova representação da infância pelo:

“... fato dos(as) historiadores(as) pesquisarem a criança como sujeito em suas múltiplas imagens e representações constituídas em diferentes tempos.” (VEIGA;

FARIA, 1999, p. 22)

No Brasil, o movimento filantrópico, também comumente chamado de higiênico, teve seu início vinculado à vinda da família real para o Rio de Janeiro, a partir do século XVIII. Após a descoberta das minas de ouro na colônia brasileira, os portugueses voltaram a se interessar pelo nosso país. Nesta época, quem detinha o poder na colônia eram: o Estado, as famílias latifundiárias (elite) e a Igreja. Com a chegada da corte, houve uma reviravolta na política, na economia e nos costumes locais. É claro que as famílias elitistas tentaram resistir bravamente ao domínio dos portugueses, pois estavam preocupadas com seus interesses individuais. Em conseqüência, houve muitas revoltas, lutas e o novo governo colonial, mesmo através de tentativas como policiamento, repressão, emprego da disciplina militar, não conseguia dominar o caos estabelecido.

Diante da ineficácia do governo mediante o tumulto da cidade (Rio de Janeiro) e de sua população, surge a união entre a Medicina e o Estado, onde novas estratégias de disciplina foram criadas e que, por sua vez, também interessavam à elite agrária.

Para Costa (1979, p. 29):

“A noção chave deste acordo foi a salubridade. A questão da salubridade levantada pela Medicina ligou-se, de imediato, ao interesse do país. As epidemias, as febres, os focos de infecção e contágio do ar e da água sempre foram fantasmas para a administração colonial....”

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novos interesses, o Estado Moderno contou com a inserção da medicina social na vida das pessoas. Com a chegada dos portugueses ao Brasil, houve um aumento populacional exorbitante e, por conseqüência, uma grande cobrança da parte dos estrangeiros em relação às novas medidas higiênicas, medidas estas que eles já estavam acostumados em seus países de origem. Deste modo, os médicos começaram a se inserir nas famílias, com o intuito (inicial) de acabar com os surtos epidêmicos e com as altas taxas de mortalidade existentes na região. Deve-se enfatizar que nem todas as famílias sofreram esta intervenção médica, somente as elitistas. De acordo com Jurandir Freire Costa,

“(....) escravos, mendigos, loucos, vagabundos, ciganos, capoeiras, etc. servirão de anti-norma, de casos-limite de infração higiênica. A eles vão ser dedicados outras políticas médicas”.

(...) “A camada dos “sem-família” vai continuar entregue à polícia, ao recrutamento militar, ou aos espaços de segregação higienizados como prisões e asilos.” (1979, p. 33).

São de grande importância as ressalvas quanto à interferência da medicina social no Brasil, porque apesar de saber que os costumes deste país sempre estiveram intimamente ligados aos de Portugal, não se deve olvidar, no entanto, que existem algumas peculiaridades na história de cada um desses países. Concluindo, verificou-se, porém, que o interesse em se desenvolver adultos higiênicos, robustos e úteis ao Estado, foi basicamente o mesmo, tanto lá, como aqui.

4 As Práticas Disciplinares

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seus filhos. Pode-se dizer que esta pedagogia, denominada higienista, estava fundamentada em uma política de normatização dos corpos e em práticas disciplinares, como foi dito anteriormente.

A norma é laica, produtora de objetividade e técnicas de objetivação. Já a disciplina fabrica indivíduos, é uma técnica de poder que toma as pessoas como objeto e instrumento de seu exercício. Pode-se dizer que a política normativa forja um modo de viver, produzindo novas formas de saber nos especialistas e também novas relações de poder. Passa, deste modo, a veicular modos de produção da subjetividade moldada aos novos interesses políticos e econômicos do Estado, produzindo uma forma de homem, visando atender às exigências que estavam eclodindo junto ao surgimento do Estado Moderno (capitalista).

Donzelot observa que

(...) “O Estado Moderno, voltado para o desenvolvimento industrial, tinha necessidade de um controle demográfico e político da população adequado àquela finalidade. Esse controle, exercido junto às famílias, buscava disciplinar a prática anárquica da concepção e dos cuidados físicos dos filhos, além de, no caso dos pobres, prevenir as perigosas conseqüências políticas da miséria e do pauperismo.” (In. COSTA, 1979, p. 51).

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espaço a ser trabalhado e controlado é o espaço familiar, através de uma nova representação da infância e, por sua vez, dos cuidados necessários em relação à mesma.

Vários processos esparsos deram origem a esta nova anatomia política denominada Disciplinar, que não foi uma descoberta repentina, proveniente de um único caso isolado, mas sim, de uma multiplicidade de processos. Walhausen (in FOUCAULT, 1987) já mencionava, desde o início do século XVII, a “correta disciplina”, como a arte do “bom adestramento”.

As disciplinas podem ser definidas como um conjunto de práticas da norma, cujo papel é de neutralizar perigos, fixar populações inúteis e fazer crescer a utilidade dos indivíduos, visando os corpos como objetos de adestramento. Segundo este conceito, aos olhos do Estado, qualquer instituição que se torna sensível a utilizar o esquema disciplinar, põe-se a serviço do bem, de produções socialmente úteis.

Não se deve dizer, no entanto, que esta prática seja vinculada a uma determinada espécie de instituição, pois na verdade é uma prática de saber e de poder que utiliza uma tecnologia de sujeição própria, denominada por Foucault de “física”, ou “anatomia” do poder. Esta tecnologia é constituinte de qualquer instituição que tenha por finalidade controlar, vigiar, ou domesticar os corpos que ali se encontrem.

Ao contrário do que possa parecer num primeiro instante, as técnicas disciplinares não escravizam os corpos das pessoas, mas sim, reinventa-os, transformando-os, de maneira quase imperceptível, de forma que o indivíduo não se sinta dominado, ou coagido com isso. E assim, sem se dar conta, ele acaba se transformando no protótipo idealizado de sujeito higiênico, ou seja, aquele que se submete docilmente sem reagir.

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chama de tecnologia política do corpo: cria dispositivos de sujeição dos corpos e de suas forças.

Desta maneira, o domínio do corpo se faz por um princípio de decomposição-recomposição, fabrica corpos, opõe o corpo ao corpo, volta-o contra si mesmo.

A política de normatização dos corpos estava presente em todos os ângulos sociais, pois organizava todas as famílias, controlava as ruas, os prostíbulos, os presídios, as escolas, as igrejas, as creches e orfanatos. Ninguém escapava aos olhos vigilantes da sociedade disciplinar. E, para que isso realmente acontecesse, foi necessária uma grande modificação na arquitetura das instituições, modificação esta, bastante significativa, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, considerado o auge do poder normatizador. De acordo com Foucault (1987), em virtude da necessidade constante de vigilância, as instituições foram, fisicamente transformadas de tal modo que todas as pessoas que ali se encontrassem não escapassem aos olhos invisíveis que acompanhavam cada gesto, cada palavra, cada mínimo movimento executado. Tudo isso acontecia de forma que os indivíduos, ali institucionalizados, tivessem consciência de serem observados constantemente.

“O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente. Um ponto central seria ao mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas, e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido: olho perfeito a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olhares convergem.” (FOUCAULT, 1987, p. 146)

Segundo Fonseca (1995), a partir do momento em que o sujeito se conscientiza do estado de visibilidade permanente ao qual está submetido, ele passa a agir de acordo com o que esperam dele, ou seja, o operário se força à produção ininterrupta, o aluno, à obediência e aos deveres, o criminoso, ao comportamento exemplar, e o louco, à docilidade.

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elas agem de forma a fabricar indivíduos.

À sanção normalizadora cabe verificar os comportamentos mais sutis que se referem à forma como o indivíduo se organiza em relação ao tempo: desde ao modo como se comporta, no que diz respeito ao seu corpo e à sexualidade, até mesmo quanto às palavras que pronuncia, observando se elas servem para apaziguar situações de conflito, ou se servem como arma poderosa para criar rebeliões. O que se deseja de um sujeito disciplinado é que ele saiba transitar por todas essas situações, da forma adequada e esperada por aqueles que o vigiam. Os comportamentos vistos como inadequados e que, consequentemente, deveriam ser punidos, seriam os gestos indecentes, os discursos profanos, ou, agitadores, os atrasos, a ociosidade, enfim, tudo aquilo que não fosse esperado, ou desejado pela instância que vigia.

Aqui entram as punições disciplinares com o intuito de corrigir desvios, realizando uma adequação de condutas, com a finalidade de torná-las em conformidade com as regras.

Da inter-relação dos instrumentos de vigilância com os da sanção normalizadora, surge o instrumento do exame. O exame serve para registrar o comportamento humano num campo documentário. Após o indivíduo ser constantemente vigiado, todos os seus gestos, hábitos e reações passam a ser avaliados, catalogados como adequados, ou não. Todas essas informações farão parte de um documento que poderá ser analisado e pesquisado, quando houver necessidade. Um exemplo simples desses documentos são os prontuários utilizados em hospitais, clínicas, presídios, orfanatos, dentre outras instituições.

Em suma, o exame faz com que o indivíduo se torne um objeto de estudo, que poderá ser avaliado, comparado, treinado, punido, mensurado etc..

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domesticação dos corpos. As instituições infantis, como era de se esperar, não lograram escapar deste modelo.

5 O Abandono Infantil e as Instituições no Contexto Brasileiro

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assistência às crianças enjeitadas.

Tais crianças foram encaminhadas ao Brasil, ficando, pois, o número de jesuítas insuficiente para catequizar e educar todos os pequeninos que aqui havia. Assim sendo, os órfãos seriam primeiramente ensinados e depois utilizados como aprendizes nesta tarefa. Ou seja, os órfãos teriam mais serventia aqui, do que em Portugal, sem contar que as instituições européias estavam abarrotadas de crianças em estado de abandono.

Verifica-se, entretanto, que, por não haver instituições específicas no Brasil para aqueles órfãos, eles eram encaminhados para as casas e colégios utilizados pelos jesuítas para educar tanto os filhos dos colonizadores, como os filhos dos nativos. Assim sendo, os portugueses imprimiram em terras brasileiras vários de seus costumes, dentre eles, o de abandonar crianças e de deixá-las em instituições.

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As crianças, em sua maioria, eram abandonadas no Brasil-Colônia pelos seguintes motivos: quando um dos pais acabava falecendo, ou era acometido por doença grave, ou quando nasciam gêmeos, ou, então, bebês com má-formação (estes se tornavam onerosos para a família). E também quando secava o leite da mãe e esta não tinha condições financeiras de nutrir o filho. Percebe-se que, em sua maioria, tais causas estavam associadas ao fator pobreza e que, muitas das crianças enjeitadas provinham de famílias extremamente pobres e marginalizadas.

Como já foi dito anteriormente, quando os portugueses se apropriaram das terras brasileiras, transformando-as em colônia, aqui impingiram sua cultura em nada condizente com os costumes locais. Esta forma de cultura refere-se, inclusive, aos métodos de proteção à infância desvalida, proteção esta que se iniciou no Brasil sob a forma de assistência caritativa, assim como também ocorreu na Europa.

Na assistência caritativa, os indivíduos que almejavam purificar suas almas e alcançar a salvação, saíam pelas ruas, fazendo atos caridosos como recolher crianças das sarjetas e abrigá-las em suas casas. Somente no século XVIII, é que os hospitais locais passaram a atender também crianças desamparadas, surgindo assim, em nosso país, as Rodas dos Expostos. Havia, porém, toda uma série de critérios adotados pela Coroa Portuguesa antes que qualquer dessas instituições fosse aberta e a Coroa achasse por bem mantê-las. O primeiro desses critérios era investigar a real necessidade de determinada instituição.

Com o surgimento das Rodas no Brasil, o número de crianças abandonadas aumentou. Eram deixadas na Roda: crianças muito doentes, ou mesmo mortas (livrando, assim, os pais das despesas com o funeral e enterro), bem como os filhos bastardos (frutos de relações adúlteras) e até mesmo os filhos de pais que haviam perdido sua fortuna.

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Logo que o bebê era deixado na Roda, os responsáveis pela instituição se encarregavam de batizá-lo, dando-lhe um nome, ou então um sobrenome. Esta denominação, normalmente, era escolhida pela “rodeira”, pelo padre, ou qualquer funcionário da Roda. Em sua maioria,

(...)... “o nome arbitrado para o exposto da Roda era tomado do calendário católico, do santo do dia, ou adotavam-se os nomes mais usuais da época. Na Roda da Bahia, em 1790, 22% dos meninos receberam o nome de José; 20%; de Antônio; 14% de Manuel (...). Entre as meninas, os nomes não variavam muito: foram 36% de Marias; 16% de Ritas; e 3% de Ana, Joaquina ou Rosa...” (MARCÍLIO, 1998 p. 268-269).

Já em relação ao sobrenome das crianças expostas, sabe-se apenas que, na Roda de Salvador, tinha-se o costume de oferecer aos pequeninos o sobrenome do maior benemérito da instituição. Desta forma, todos os que ali entravam tinham, geralmente, o sobrenome de Matos, em homenagem a João Aguiar de Matos. Esta tradição perdurou desde 1726 até 1950, após a entrada do último exposto na Roda. Marcílio (1998), comenta ainda que o sobrenome Matos acabou se tornando um estigma, uma marca de abandono no Estado da Bahia e, que, para fugir desta identidade vinculada ao abandono, muitos expostos ao saírem da Roda, trocavam de nome e de sobrenome.

Como já foi mencionado anteriormente, assim que a criança era deixada na Roda, eram tomadas as devidas providências para que fosse batizada e lhe fossem atribuídos um nome e sobrenome. Além disso, o escrivão dos expostos anotava, em um prontuário, suas características e os pertences que os acompanhavam no ato do abandono.

Pode-se perceber que era comum, então, as mães colocarem junto aos bebês abandonados medalhas de santos ou pequenos objetos de família como terço, anéis, ou então, bilhetes, contando o nome e um pouco da história da criança. Através dessas cartas, ou objetos, é que as mães poderiam reaver, mais tarde, seus filhos expostos, se esta fosse sua intenção.

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respectiva ama-de-leite mercenária. Vale a pena ressaltar que, aqui no Brasil, assim como na Europa, era comum observar amas maltratando as crianças que estivessem sob sua incumbência. Algumas delas até passaram a fazer comércio de crianças negras e pardas, colocadas sob seus cuidados. Essas crianças eram comercializadas de várias formas: eram vendidas, trocadas, ou até mesmo ofertadas como presentes.

As crianças que conseguiam sobreviver aos maus-tratos das amas no período de amamentação, eram depois encaminhadas novamente para as Rodas, mas, quando para ali retornavam, defrontavam-se com uma difícil realidade: as Rodas não possuíam infra-estrutura para manter crianças sob a forma de internato. Sendo assim, estes pequenos abandonados acabavam sendo novamente encaminhados para outros locais, desta vez, para a aprendizagem de algum ofício. Os meninos ficavam, às vezes, hospedados na casa de um mestre artesão e as meninas eram levadas, via de regra, para casas de família, para ali aprender as atividades domésticas.

No cômputo geral, pouquíssimas crianças retornavam para a Roda após serem criadas pelas amas. Isto acontecia, porque grande parte delas morria em seus primeiros anos de vida, algumas retornavam ao âmbito familiar (eram raros estes casos, mas existiam) e outras sumiam sem deixar notícias. Desta forma, àquelas poucas crianças que sobreviviam, restava apenas se aperfeiçoar, através do aprendizado de alguma função, para que, no futuro, tivessem em que se respaldar, para não ficarem novamente à deriva.

Nesta época, iniciava-se a filantropia científica, fase em que, de acordo com as novas necessidades do Estado, surge uma nova imagem da infância e, portanto, outras práticas de cuidados.

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A partir de meados do século XVIII, a política higienista passa a vigorar nos costumes, hábitos, formas de pensar e de agir de cada ser humano. Deste modo, os médicos sanitaristas passam a fazer parte das famílias e da sociedade como um todo, com o objetivo de implantar o que Veiga e Faria (1999) denominam de tripé higiênico, cuja principal função era a de formar e educar crianças quanto à higiene corporal, mental, preparando-as para o trabalho. Segundo esta nova forma de pensar, muitas modificações ocorreram no aspecto físico das cidades, das casas, e, sobretudo, no aspecto estrutural e emocional das famílias. Os ambientes familiares que estavam em processo de higienização eram considerados nocivos quanto aos cuidados dos infantes e púberes que ali se encontravam, principalmente pela influência dos negros neste ambiente. Em virtude disto, começou a aumentar o número de colégios internos e de instituições infantis que funcionavam de acordo com os novos regulamentos propostos pela Medicina higienista e pela filantropia científica. Esses estabelecimentos, planejados para educar, disciplinar e, em algumas instituições específicas, também para abrigar crianças abandonadas, possuíam espaços destinados a fins específicos, atividades físicas, intelectuais, ações pedagógicas e moralizadoras direcionadas às características que deveriam ser desenvolvidas. O tempo também deveria ser controlado para evitar as atividades ociosas das crianças e jovens institucionalizados.

Em tais instituições,

(...) .... “o aluno era identificado (cor, altura, peso, sinais característicos) e argüido sobre sua vida pregressa, sua família, os lugares que freqüentara e as pessoas com quem convivera. Era, ainda, aplicado um “teste”, para saber se era alfabetizado, ou se possuía algum conhecimento, ficando tais dados anotados em seu prontuário. Essas anotações não tinham apenas a função de “informação”, mas, muitas vezes, de classificação do aluno.” (VEIGA; FARIA, 1999, p. 87).

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acontecesse, essas crianças além de se desenvolverem física, intelectual e moralmente, também desenvolviam habilidades necessárias ao emprego de várias funções. Era todo esse conjunto disciplinar que tornava os menores aptos para, posteriormente, se reintegrarem ao mundo urbano.

Apesar das inúmeras modificações advindas da reforma higienista, as instituições de assistência à infância possuíam, contudo, seus pontos fracos: não havia sistema de esgoto satisfatório, água encanada, além de não possuírem nem vestuário, nem alimentação suficiente e adequada às crianças que ali se encontravam. Além das condições alarmantes em que comumente viviam, ainda estavam sujeitos a severos castigos físicos, embora isso não fizesse parte de nenhum estatuto das instituições de proteção à infância.

Segundo Marcílio (1998), em um asilo de Niterói (sob a direção de Irmãs Vicentinas), havia duas solitárias, assim como as que existem nos presídios. Nelas, os menores indisciplinados eram castigados. Pode-se dizer, então, que as punições severas não só fizeram parte das instituições do passado, mas, ainda hoje, deixam suas marcas estampadas nos corpos de algumas crianças e jovens institucionalizados. Isto pôde ser visto, há poucos anos atrás, em instituições como S.A.M. (Serviço de Assistência ao Menor), FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) e, na atualidade, isso ocorre com certa freqüência nos prédios da FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor).

Nota-se que apesar dos médicos higienistas terem escolhido a infância como objeto de cuidados especiais, a prática cotidiana era bem contraditória, pois nem todas as pessoas ligadas às crianças estavam totalmente imbuídas pelo sentimento de preservação infantil. Sabendo de todas estas controvérsias é que os médicos buscam mais respaldos, unindo-se a outras especialidades tais como as Ciências Jurídicas e a Pedagogia, entre outras..

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movimento que, criticando os modelos de assistência caritativa, vão privilegiar o uso de técnicas voltadas para ações pedagógicas e moralizadoras que possam dar conta, de forma científica, das questões ligadas à infância.

A caridade foi, aos poucos, sendo absorvida pelas técnicas da filantropia que atribui a si, como tarefa, ordenar a assistência dentro de novos padrões políticos, econômicos e morais.

Na fase de união das Ciências Jurídicas e da Medicina, surgem outras materialidades para a infância.

(...) “De um lado, o termo “criança” foi empregado para o filho das famílias bem postas. “Menor” tornou-se o discriminativo da infância desfavorecida, delinqüente, carente, abandonada. Do início do século, quando se começou a pensar a infância pobre no Brasil, até hoje, a terminologia mudou. De “santa infância”, “expostos”, “órfãos”, “infância desvalida”, “infância abandonada”, “petizes”, “peraltas”, “menores viciosos”, “infância em perigo moral”, “pobrezinhos sacrificados”, “vadios”, “capoeiras”, passou-se a uma categoria dominante – menor. O termo menor aponta para a despersonalização e remete à esfera do jurídico e, portanto, do público. A infância abandonada, que vivia entre a vadiagem e a gatunice, tornou-se, para os juristas, caso de polícia” (MARCÍLIO, 1998, p. 195).

Observa-se, que os menores abandonados, normalmente, vindos de camadas mais pobres, deveriam ser regenerados, pois, devido a sua trajetória social, eles ofereciam um risco às demais pessoas da sociedade. Para tanto, foram criadas instituições especializadas que se encarregariam de corrigir esses menores, conforme as principais necessidades e medos do Estado Moderno. Denomina-se este fato de gerenciamento ou administração de risco, onde é criada uma rede de atendimento (instituições) responsável pela gestão do risco de corpos perambulando pelas ruas. Conforme apontam Veiga; Faria (1999, p.14-15)

“.... A criança desamparada, ou carente, não nos incomoda pelo que ela é, mas pelo adulto que será ou não. O medo dos educadores, dos gestores da cidade, de sua civilização e regulamentação não é dessas crianças, mas do adulto que nelas está germinando. O que orienta os projetos pedagógicos é construir na infância o adulto desejado, ordeiro, trabalhador, civilizado, integrado na ordem moderna.”

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sociedade disciplinar, pois demanda um conjunto heterogêneo de discursos, instituições, organizações arquitetônicas, leis, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas e demanda formações estratégicas de relações de força que sustentam tipos de saber que viabilizam as técnicas disciplinares de adestramento dos corpos.

No início do século XX, o número de leis criadas para salvaguardar a infância brasileira abandonada foi crescendo continuamente. E isto pode ser explicado pelo fato de que os juristas viam os menores abandonados como caso de polícia e que para eles havia a necessidade de uma legislação específica criada pelo Estado.

“Desde o Código de Menores de 1927 até a Política Nacional do Bem-Estar do Menor que ficou consagrada no Código de Menores de 1979 (lei federal nº 6697, de 10 de outubro de 1979), foram vários anos usando da prática de internação para crianças e jovens, independentemente de tratar-se de regime político democrático ou autoritário. Em certos momentos, a ênfase esteve na correção de comportamentos, noutros, na educação para integração social...”

“... Entretanto, estes deslocamentos criaram, sem sombra de dúvidas, um diversificado setor de empregos para especialistas e construtores civis, atingindo-se, ou não, as metas pretendidas com os internos.” (PASSETTI, In Priore, 1999, p. 358)

Após o primeiro Código de Menores ter sido outorgado (1927) passam a surgir com maior freqüência vários sistemas públicos de atendimento aos menores. Dentre eles, vale a pena destacar o S.A.M. (Serviço de Assistência a Menores) que surgiu durante a vigência do Estado Novo no Rio de Janeiro. Ele foi criado com a finalidade de sistematizar e orientar os serviços de assistência aos menores desvalidos e delinqüentes. Porém, o atendimento oferecido pelo S.A.M. foi em muito semelhante com o sistema penitenciário. Neste local, os menores sofriam maus-tratos e nos anos 60 seu caráter repressivo foi publicamente declarado à sociedade, levando-o à extinção. Mas Passetti (In Priore, 1999) declara que o S.A.M sempre será lembrado como a “Universidade do Crime” e “Sucursal do Inferno”.

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Provisório de Menores (R.P.M.). Este Recolhimento tinha como finalidade funcionar como um abrigo de menores, tanto em estado de abandono, como aqueles que haviam cometido qualquer espécie de delito. Os menores ficavam neste local, como o próprio nome já o diz, provisoriamente, até que os devidos encaminhamentos fossem feitos.

Outras instituições tutelares foram sendo criadas, a partir dessa época, dentre elas, a Legião Brasileira de Assistência (L.B.A), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) com o objetivo de treinar o jovem para serviços úteis à comunidade. Este fato demonstra que a preocupação com as crianças abandonadas expande-se a vários campos patronais de assistência e, deste modo, a sociedade, em seus diferentes segmentos passa a se interessar por tal questão.

Foi, porém, durante a década de 60, que uma nova página foi escrita na história da assistência aos menores. Isto aconteceu devido à implantação da Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBM), consagrada, posteriormente, no Código de Menores de 1979. Esta política veio abrir caminho aos programas interdisciplinares, com o ensejo de substituir o antigo tratamento repressivo direcionado aos menores, por uma postura educativa (fundamentada numa visão “Biopsicossocial”).

Vinculada a esta política, surge a Funabem (Fundação Nacional do

Bem-Estar do Menor), substituindo o S.A.M. que deveria formular e implantar a PNBM em cada Estado, representada pelas Febem’s, cuja proposta era a educação de menores infratores sem utilização de violência e com o objetivo de formar indivíduos para o convívio em sociedade.

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compreensiva. É claro que em meio a tantas contradições algo tinha que dar errado, pois como afirma Passeti:

(...) “As unidades da Febem, em cada Estado, se mostraram lúgubres lugares de tortura e espancamentos como foram os esconderijos militares para os subversivos.” (In Priore, 1999, p. 358).

Este mesmo autor ressalta, ainda, que a tentativa de reforma proposta pela Política Nacional do Bem-Estar do Menor:

(...) “... não impediu a disseminação de violências praticadas em seu interior entre internos e pelas autoridades sobre os internos. Reiterou o estigma que associa pobreza e miséria a abandono e delinqüência e fez do seu espaço uma “escola para o crime” sempre atualizada. As tentativas de fugas, por sua vez, chegaram a ganhar a dimensão de rebeliões em que os internos ateavam fogo nos pavilhões, gerando destruição.” (Op.cit., p. 359).

Uma reforma neste cenário conturbado era necessária e entre 84 a 86, foram realizados seminários, encontros nacionais e estaduais com a finalidade de discutir toda espécie de arbitrariedade encontrada nas instituições. Participaram, também, destas reuniões os representantes da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a Comissão dos Direitos Humanos. Todas essas discussões unidas ao advento da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e embasadas pela Constituição de 1988, deram força para o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nele, o Estado abraça para si a responsabilidade de garantir às crianças e aos adolescentes, (não mais denominados menores; abandona-se este termo carregado de preconceito), um futuro melhor. Mas, para isso o Estado, ao mesmo tempo em que traz para si esta causa, delega poderes também às organizações não governamentais (ONG’s), espalhadas por todo o país, entidades filantrópicas e aos Conselhos Tutelares, atuantes nos municípios com a missão de zelar pelo cumprimento das leis existentes no E.C.A.

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“A criança e o jovem se transformam em prioridades de Estado. A legislação pretende protegê-los da família desestruturada e dos maus tratos que venham a sofrer, quer garantir educação, políticas sociais, alimentação e bases para o exercício da cidadania.” (PASSETTI, In. Priore, 1999, p. 36)

Surge assim, mais uma das várias materialidades atribuídas à infância no decorrer da História. Na política atual, a criança passa a ser vista como cidadã com seus direitos bem definidos e assegurados. Conseqüentemente, as crianças em estado de abandono, deveriam ser compreendidas e corretamente educadas para uma posterior reintegração social.

Esta é a proposta do E.C.A.; mas se ela foi, ou está sendo, realmente, cumprida, veremos nos capítulos que se seguem.

6 Abrigo: uma nova página na história das instituições assistenciais

Após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) na década de 90, crianças e jovens passam a ser inseridos no mundo dos direitos, sendo considerados legalmente como cidadãos.

Neste contexto, os infantes e púberes passaram a ser, além de responsabilidade da família, também uma responsabilidade do Estado, que passou a se encarregar de sua proteção, avaliando se as leis do Estatuto estavam sendo realmente cumpridas. Conforme a legislação inserida no E.C.A. (Cap. II, art.15):

“A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas Leis”.

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prática será vista posteriormente, nos comentários a respeito do cotidiano de algumas instituições infantis, principalmente do dia-a-dia da Casa do Caminho – instituição-alvo desta pesquisa.

A proposta é de que, a princípio, seja feito um distanciamento para que se possa apenas compreender o que propõe o E.C.A .

Dentre as várias medidas de proteção presentes no Estatuto, deve-se evidenciar as seguintes: consta como lei que ao jovem infrator só deverão ser aplicadas penas que o privem de sua liberdade em condições extremas, e que, antes disso, serão utilizadas várias medidas sócioeducativas no intuito de reeducá-lo.

Foram também criados os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos níveis: federal, estadual e municipal. Méndez (1998), considera que a criação desses Conselhos foi o elemento mais inovador introduzido no ECA. Um dos frutos dessa inovação é o conhecido Conselho Tutelar (órgão municipal), cujos integrantes são escolhidos pela sociedade e encarregados de fazer com que as leis do Estatuto realmente vigorem.

Outra importante medida de proteção ainda não mencionada foi o sistema de Abrigo. Entende-se por Abrigo uma proposta institucional de caráter temporário dirigida às crianças e jovens abandonados, maltratados, ou negligenciados por seus pais. Esta proposta surge com o objetivo de substituir os internatos, que passaram a ser muito criticados pela sociedade em geral. As críticas a eles dirigidas não eram à toa, pois nestas instituições crianças e jovens ficavam reclusos, para que seus comportamentos desviantes pudessem ser corrigidos. As correções eram feitas através de atitudes repressoras que acabavam deixando os internos em estado de constante medo e tensão.

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“Ao escolher políticas de internação para crianças abandonadas e infratoras, o Estado escolhe educar pelo medo. Absolutiza a autoridade de seus funcionários, vigia comportamentos a partir de uma idealização das atitudes, cria a impessoalidade para a criança e o jovem vestindo-os uniformemente e estabelece rígidas rotinas de atividades, higiene, alimentação, vestuário, ofício, lazer e repouso...”

Quanto a esta padronização de costumes, Guattari (1987, p.65), afirma que as pessoas institucionalizadas tornam-se vulneráveis a um bombardeio freqüente de representações capazes de moldar seu Ego, não sendo respeitadas, desta forma, as singularidades do desejo de cada um.

Nos ambientes institucionais, há uma vigilância constante que capta e registra os gestos e movimentos mais sutis do indivíduo. Isso tudo compõe o modelo disciplinar. De acordo com este modelo, os internos possuem uma rotina diária com atividades controladas que dificultam o aparecimento do gesto inútil e ocioso.

Foucault (1999) faz uma análise dos dispositivos científico-disciplinares, produtores do homem moderno e observa que a sociedade disciplinar nada mais é do que um continuum carcerário, pois aplica em seu corpo social os mesmos mecanismos de controle existentes nas penitenciárias. Um exemplo disso pode ser observado nos orfanatos (instituições de internamento), onde são aplicadas as mesmas técnicas disciplinares existentes nos sistemas carcerários e são observados os mesmos processos de descaracterização dos sujeitos e de reconstrução dos indivíduos, segundo os padrões higienistas.

Referências

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