58
gETuLIOjulho 2010 julho 2010
gETuLIO 59
O
ambiente bom de verdade atrai gente interessante, ativa a ima-ginação, planta mais um olho em nossa testa, seduz, gera mo-vimento e criação. Mas como se faz um ambiente assim? É sempre a mesma coisa: há alguém, uma pessoa inspiradora. Para a geração de publicis-tas brasileiros que, como eu, se formou com tempo ruim, durante a ditadura militar, ou mesmo na passagem para a democracia, Geraldo Ataliba foi o cara. Ele personiicou a terceira fase da ideia de Constituição no Brasil. Na primeira, a Constituição – então a do Império, de 1824 – teve inluência so-bre a política, não exatamente soso-bre os proissionais e as instituições judiciais. Pimenta Bueno, o marquês de São Vi-cente, grande político do Império, foi o rosto dessa época. Um novo regime, outra Constituição – agora a da Repú-blica, de 1891 – abriria nova fase, em que o documento começaria a se juridicizar de verdade, a virar lei, aparecer nas pe-tições, frequentar os tribunais. Alguém tinha de encarnar essa transição da po-lítica para o Direito; uma igura de sín-tese, advogado militante, mas também político: Rui Barbosa, que hoje lembra-mos menos pelas campanhas cívicas que pelos habeas corpus com que ajudou oentão noviço Supremo Tribunal Fede-ral a juridicizar a Constituição.
Já estamos hoje em uma quarta fase. A Constituição – agora a democrática, de 1988 – não só vale como lei, como também virou lei para tudo, não só para as grandes questões de Estado e para os direitos fundamentais clássicos (os te-mas “verdadeiramente constitucionais”, como se dizia), mas para qualquer tópi-co, de qualquer ramo (família, contratos, crime, processo, responsabilidade e
mui-to mais). É estranho para os contempo-râneos. Vivemos agora o quarto tempo, o da onipresença constitucional, quando até o mais clássico dos direitos, o civil, já caiu na vida, se constitucionalizou. E pensar que, para chegar aqui, a Cons-tituição teve, antes, de ganhar a força normativa que, a despeito dos discursos, em verdade não teve na primeira fase! Rui Barbosa, por assim dizer, empurrou a Constituição para dentro do Direito.
Mas o que veio depois de Rui? Veio o projeto expansionista, tirando a Consti-tuição de seu pequeno oásis – os cursos de Direito constitucional e os acórdãos do STF – para lançá-la à conquista do continente ao redor, bem antes que se sentisse forte o bastante para arriscar-se, na quarta fase, ao domínio do mundo jurídico inteiro. Nessa terceira fase, a do início de sua irresistível expansão, o alvo da constitucionalização foi o vizi-nho: o Direito Público; mas todo ele, todos os seus ramos (o administrativo, o tributário, o inanceiro etc). Nessa fase, Geraldo Ataliba cresceu e dominou.
É irônico que, no Brasil, a grande ebulição do movimento de constitucio-nalização do Direito Público tivesse de ocorrer justamente durante uma dita-dura militar, sob a vigência de Consti-tuições – as de 1967 e 1969 – nada de-mocráticas. Mas foi assim. Hoje, pode soar paradoxal que a constitucionaliza-ção geral do Direito público tenha sido a bandeira de juristas democráticos, como Ataliba. Mas isso fazia sentido, pois não só a Constituição autoritária teve de render-se a certas tradições civis – assegurando direitos fundamentais, mesmo enfraquecidos, mantendo no-minalmente a Federação e a autono-mia municipal, por exemplo –, como assumiu alguns compromissos com a Por Carlos Ari Sundfeld
O ENTuSIASTA
DO DIREITO PúBLICO
Professor e jurista, geraldo Ataliba
foi um dos defensores da Constituição
hOMENAgEM
hOMENAgEM
modernização do Estado, ao realizar a reforma tributária e manter os concur-sos públicos. Assim, mesmo na Consti-tuição autoritária havia o que usar para melhorar o país, no dia a dia da prática jurídica. Ademais, o que nela não pres-tava sempre se podia tentar contornar ou amenizar pela via da interpretação, dentro das velhas tradições jurídicas.
Produção escrita discreta
Para os publicistas, o movimento pela constitucionalização generalizada do Direito Público teve também um sentido intelectual. Os juristas culti-vam a aspiração de serem considerados cientistas, deixando de ser despreza-dos como aprendizes ou mestres de um simples ofício – antigo, é verdade, mas de qualquer modo coisa de arte-sãos. Como fazer o caminho de ofício a ciência? Para os publicistas, a Cons-tituição foi se delineando no decorrer do século XX como o elo de união, o princípio uniicador, que seria capaz de dar dignidade cientíica a seu campo de atuação. No caso brasileiro, pela me-tade dos anos 1960, ainda jovem, Ge-raldo Ataliba apanharia essa bandeira que vinha circulando por algumas mãos e a carregaria com vigor novo, que foi contagiando uma geração. Tributaristas não deveriam ser simples especialistas em questões iscais, mas membros de uma ampla comunidade cientíica, a dos constitucionalistas, que abarcaria administrativistas e outros mais.
A produção escrita de Ataliba foi relativamente discreta. Seu texto mais conhecido, e ainda hoje lido entre tri-butaristas (ou melhor, entre “constitu-cionalistas tributaristas”), é apenas um pequeno livro, embora instigante, cha-mado Hipótese de Incidência Tributária.
Nele, é visível a aspiração de fazer uma teoria de valor universal sobre a norma tributária e, ainda, de extrair da Consti-tuição categorias suicientes para, mal ou bem, estruturar todo o Direito tribu-tário brasileiro. O autor publicou muitos trabalhos, é certo, inclusive em outros campos do Direito Público, mas foram artigos e pareceres de ocasião. Só que a inluência de Ataliba não veio exata-mente do valor de sua produção escrita – interessante, provocativa, militante; tinha estilo –, mas, muito mais, de seu poder pessoal de seduzir e inspirar, em
cursos, seminários e congressos que or-ganizou, frequentou e estrelou incansa-velmente, por toda sua carreira.
Ataliba foi o maior animador jurídi-co que jurídi-conheci. Na PUC-SP, onde foi inclusive reitor, iniciou nos primeiros anos da década de 1970 os cursos de es-pecialização, mestrado e doutorado em sua área mais especíica, o Direito Tribu-tário, e em outros ramos do Direito. O sucesso foi imediato e, durante um bom período, a Turma das Perdizes deu a tô-nica do Direito Público brasileiro e foi a maior formadora, no Brasil, de profes-sores e proissionais para a área. Para um empreendedor como Ataliba o ambien-te universitário era um limitador, mes-mo sendo professor atuante e inluente em duas escolas, a PUC-SP e a USP. Por isso, criou e impulsionou a criação de institutos de direito para congregar espe-cialistas e organizar seminários, congres-sos e curcongres-sos de especialização.
Essas entidades ainda hoje existem e foram decisivas na nacionalização do movimento de constitucionalização ge-ral do Direito Público, sem contar seu papel, nada desprezível, na formação e atualização proissional de publicistas. Divulgar o Direito Público não foi pou-ca tarefa nessas quatro últimas dépou-cadas, em que milhares de faculdades eram criadas, sem que houvesse, nas escolas mais antigas, mestres e vigor suiciente para formar professores dessa disciplina na quantidade e qualidade necessárias. Esses institutos foram, assim, importan-tes na modernização do país, por aju-dar na disseminação do Direito Público com um mínimo de alma e qualidade.
Começar muito com pouco
Mas não foi só. Ataliba criou duas revistas, inicialmente publicadas pela Editora Revista dos Tribunais e depois pela Malheiros: a Revista de Direito Pú-blico e a Revista de Direito Tributário. Elas rapidamente se tornaram as mais inluentes, abrindo espaço para uma nova geração de escritores e levando ideias e informações a um mercado carente, sobretudo nas Administrações Públicas e órgãos judiciais.
Muita gente não gostava do Ataliba, com ou sem razão. Era então irrequieto, cheio de opiniões. Podia ser bem ríspido, ultrapassava limites, perdia a cabeça. Fa-zia inimigos, falava mal deles, cotovelava.
Às vezes, se não sabia, inventava. Como alguém assim era capaz de inspirar? Bem, esse Ataliba só dava meio expediente. Ha-via outro, no mesmo corpo. Um sujeito mais para fora que para dentro, que ria, vibrante. Escolhia pessoas pela faísca dos olhos: atentava para elas, queria saber, ouvia, sabia rebater e elogiar, espalhava para os outros, convidava, cavava oportu-nidades, jogava na roda; sugeria livros e mandava; surpreendia com bilhetes.
Um líder presente: motivando, reu-nia. Juntava igurões com novatos, cria-va polêmica, punha fogo no circo. Lem-bro-me de um seminário que ele inven-tou para acompanhar a Constituinte, debatendo os projetos, durante meses. Ele estava sempre lá. Prestava atenção não só no grande Seabra Fagundes, mas também nos jovens, que trazia para es-timular. Anotava e discutia, criticava; estava lá. Tenho mais lembranças desse tipo. Saímos de um seminário sobre no-vidades em licitação, e ele me alcança para discordar de um tópico – também para sugerir que, na próxima, eu falasse mais alto. Era um homem prático. O valor de um tipo assim é começar muito com pouco: juntando os olhos que bri-lham, o resto vem com o tempo.
No período que vai de ins da década de 1960 até a metade da década de 1980, contra todas as probabilidades de uma era de ditadura, criou-se no Brasil um ambiente acadêmico muito envolvente, favorável ao desenvolvimento do Direi-to Público. Geraldo Ataliba injeDirei-tou ar fresco, deu vida a esse ambiente. Por isso me encantei com ele. A criação de ambientes, um trabalho coletivo, tem mais valor que os soisticados projetos intelectuais solitários. Hoje há um im-pressionante número de cursos, entida-des e revistas de Direito Público, mas basta puxar o io que sai de cada uma delas, e a ponta dará em alguma das ini-ciativas de Ataliba. Foi onde ele fez real-mente a diferença. Ataliba durou pou-co, morreu em 1995. Mas aqueles de nós que, de algum modo, o vimos atuando ainda somos capazes de reconhecê-lo em muita coisa interessante que se faz por aqui. Por isso o admiro.