PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ALYSON THIAGO FERNANDES FREIRE
MICHEL FOUCAULT E A DOMINAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES PARA A SOCIOLOGIA
MICHEL FOUCAULT E A DOMINAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES PARA A SOCIOLOGIA
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Orientadora: Profª Drª. Lore Fortes
Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Freire, Alyson Thiago Fernandes.
Michel Foucault e a dominação: contribuições para a sociologia / Alyson Thiago Fernandes Freire. – 2014.
146 f. –
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais, 2014.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lore Fortes.
1. Sociologia. 2. Poder (Ciências sociais). 3. Foucault, Michel – 1926-1984. I. Fortes, Lore. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
MICHEL FOUCAULT E A DOMINAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES PARA A SOCIOLOGIA
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Orientadora: Profª Drª. Lore Fortes
BANCA EXAMINADORA
Profª Drª Lore Fortes – UFRN
____________________________________________________________
Profº Drº. Edmilson Lopes Junior - UFRN
____________________________________________________________
Profº Drº. Wanderson Flor do Nascimento - UnB
A realização deste trabalho não seria possível sem o suporte, a compreensão, a colaboração e afeição de algumas pessoas e instituições.
Agradeço a Capes pelo auxílio concedido, indispensável para viabilizar a atenção e os esforços necessários para o estudo e a escrita de uma dissertação.
Agradeço a minha orientadora, professora Lore Fortes, pela generosidade, as conversas leves e pela gentileza costumeira - prova de que a dedicação ao conhecimento possui, também, matizes singelos. Agradeço pelo respeito e incentivo à autonomia intelectual, virtude pedagógica rara, pela leitura atenta de meu trabalho e pelos conselhos e oportunidades acadêmicas.
Agradeço ao PGCS-UFRN, aos professores, colegas e funcionários.
Agradeço aos meus pais, José Ronaldo Freire e Eliane Fernandes Freire, exemplos máximos em minha vida de vontade e doação. Aos meus irmãos, Anderson, Bruno e Diego por compartilharem o mesmo espírito de paixão pelo conhecimento, criando desde cedo em nossa convivência um ambiente e momentos estimulantes de debate de ideias.
Agradeço a Dayana, pela paciência, confiança e, sobretudo, pela doçura e paixão. Sem você não seria possível suspender e esquecer, nos momentos certos, a gravidade e a pressão que pesam sobre esta jornada. Ao pequeno Matheus, brilho maior da minha vida.
Agradeço a direção e coordenação pedagógica da Escola Estadual Padre Edgar Barbosa pela compreensão, apoio e prestatividade no decorrer desta fase da minha carreira.
Agradeço aos meus alunos, cujo brilho nos olhos, a concentração detida e a alegria espontânea fizeram, por vezes, dos momentos em sala de aula os melhores momentos do dia.
Agradeço aos amigos Carlos Eduardo Freitas e Andressa Moraes, pela parceria intelectual nas sendas tortuosas da teoria sociológica, pelos cafés descontraídos e estimulantes e por compartilhar o entusiasmo e a crença nas potencialidades críticas e explicativas das ciências sociais.
Agradeço a Kenia Almeida pela dedicação, prestatividade e rigor na revisão e normalização do trabalho. Agradeço pela afeição sincera que somente o cultivo da amizade abnegada proporciona.
Agradeço ao NUECS – Núcleo de Estudos Críticos em Subjetividades Contemporâneas – cuja criação impulsiona e renova vocações intelectuais.
Agradeço ao professor Edmilson Lopes pelas recomendações na qualificação e pela solicitude que sempre demonstrou com os convites realizados. Muito me lisonjeia tê-lo nos momentos mais importantes da minha trajetória.
“O que conta nas coisas ditas pelos homens não é tanto o que teriam pensado aquém ou além
delas, mas o que desde o princípio as sistematiza,
tornando-as, pelo tempo afora, infinitamente acessíveis a novos
discursos e abertas à tarefa de transformá-los”.
Michel Foucault, 1998, p. XVIII
“Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma
coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto?”“.
que privilegie, em sua obra e esquema teórico, as relações e implicações teóricas,
conceituais e temáticas com a sociologia. Tomaremos como base para nossa argumentação
e análise, um recorte específico em seu pensamento: o problema da dominação nas
sociedades modernas nos escritos genealógicos da década de 1970. Trata-se de identificar e
examinar como Foucault constrói suas análises das relações de sujeição e exercício do
poder com a finalidade de sugerir e sublinhar as suas contribuições para a análise
sociológica da dominação. Exploraremos o programa de investigação da dominação
foucaultiano a partir de quatro unidades de análise: constituição do sujeito, saber, poder e
verdade. A estrutura e divisão dos capítulos seguirá o tratamento específico e detalhado de
cada uma dessas unidades de análise, priorizando os seus nexos teóricos e implicações para
a sociologia. Com isso, a dominação, no pensamento de Foucault, é definida nos termos
das principais pressuposições teórico-metodológicas da analítica do poder, da relação
intrínseca com o cerne do projeto filosófico foucaultiano - a constituição do sujeito -, da
interdependência entre saber e poder enquanto dimensão essencial e opaca das formas de
dominação moderna e, por último, do vínculo entre dominação e produção de discursos de
verdade.
Palavras-Chaves: Michel Foucault; Sociologia; Dominação; Poder; Teoria Social;
In this master’s thesis I intend to carry out an interpretation of Michel Foucault’s thought that points out the relations and theoretical, conceptual and thematic consequences with
sociology in his work and theoretical propositions. For my argumentation and analysis I
take as a base a specific part of his thought: the problem of domination in modern societies in the genealogic texts in the decade of 1970. It’s about to identify how Foucault does his analysis of the relations of domination and the use of the power with the objective to
suggest and point out his contribution to sociological analysis of domination. I will discuss
the foucaultian program of the study of domination from four units of analysis: person
constitution, knowledge, power and truth. The structure and division of the chapters will
follow the specific and detailed study of each of those units of analysis, prioritizing their
theoretical sense and consequences to the sociology. Thus, in the first chapter, I will
highlight a little more the relations of affinity and the convergences between Foucault and
the sociology in a way to offer more elements to justify the general objectives that this
work intends to achieve. In the second chapter, I will analyze the subject of domination in Foucault’s thought, discussing his basic presuppositions and its intrinsic relation with the heart of the foucaultian philosophical project, the person constitution. In turn, in the third
and fourth chapter, I will discuss the interdependence between knowledge and power as an
essential and opaque dimension of the ways of modern domination. In the fifth chapter, I
will analyze the relation between domination and the truth discourse production.
INTRODUÇÃO... 13
1 AFINIDADES ELETIVAS: FOUCAULT E A SOCIOLOGIA... 22 1.1 Foucault e os sociólogos... 22
1.2 Questão de método... 29
2 DOMINAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO... 36
2.1 Dominação e diagnóstico da modernidade... 36
2.2 Racionalização e poder... 40
2.3 Poder e dominação: algumas precisões... 42
2.4 Poder e cotidiano: a sociedade como arquipélago de poderes... 44
2.5 Dominação e a genealogia do sujeito na civilização ocidental... 49 3 SABER E DOMINAÇÃO... 54
3.1 O papel do conhecimento no exercício da dominação... 54
3.2 Conhecimento e sociologia... 55
3.5 Do conhecimento ao saber-poder... 68
4 CIÊNCIAS HUMANAS: A SOCIOGÊNESE DA OBJETIFICAÇÃO DO INDIVÍDUO MODERNO... 73 4.1 O normal e o patológico como o arbitrário cultural das ciências humanas... 74 4.2 Saberes do homem: técnicas de poder e de objetificação do indivíduo... 77 4.3 As ciências humanas: poder disciplinar e biopoder... 83
4.4 Os fundamentos corporais da dominação... 96
4.5 Uma história da razão: racionalidades, problematização e dispositivo... 100 5 DOMINAÇÃO E VERDADE... 113
5.1 Uma concepção construtivista e relacional da verdade... 113
5.2 A economia política da verdade... 114
5.3 Uma história crítica da verdade... 118
5.4 Saber-Poder e a aceitação da produção da verdade... 120
SOCIOLOGIA
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 137
INTRODUÇÃO
“Falo muitos idiomas em minha própria língua”.
Franz Kafka “Em primeiro lugar deve-se admitir que é vão procurar por uma filosofia de Foucault
– o que significaria reinseri-lo num tipo de discurso que ele pretendeu de forma sistemática subverter”.
Gerard Lebrun, 2006, p. 352
Desde sua prematura morte, em 1984, Michel Foucault (1926-1984) se tornou uma
estrela transdisciplinar, cujo brilho percorre e reluz ora mais forte ora mais tênue no céu de
diferentes disciplinas. Oriundo de uma próspera e prestigiada família de médicos da
pequena cidade francesa de Poitiers, sua formação intelectual foi marcada pelo interesse
inicial em psiquiatria existencial e psicologia pavloviana, pelo gosto por um tipo de
literatura excessiva, marginal e maldita, pela admiração da historiografia epistemológica
das ciências e por seu empenho contumaz nas artes da erudição histórica e sua minúcia do
saber. Essa aparente dispersão intelectual que afeiçoa os primeiros anos de sua formação
também se fez perceber, por assim dizer, geograficamente em sua atividade docente e de
pesquisa - Foucault foi professor na França, na Suécia, morou na Polônia e lecionou alguns
anos na Tunísia – assim como nas mudanças de temas e deslocamentos de métodos ao
longo de seu percurso intelectual (ERIBON, 1990).
No aforismo § 638 do primeiro livro Humano demasiado humano, de autoria do
filósofo alemão Friderich Nietzsche, encontramos o retrato deste modo andarilho de ser
filósofo, o qual, a nosso ver, cabe bem como insígnia filosófica para caracterizar o filosofar
errante e heterogêneo de Michel Foucault:
Em que pesem os elementos superficiais de dispersão mencionados no início, o que,
por conseguinte, dificulta encerrar Foucault numa unidade intelectual, teórica e disciplinar,
ele foi certamente um filósofo. Mas, desde o início de seu itinerário intelectual um filósofo
de um tipo bastante singular.
Distante do modelo professoral da moral do comentário e da exegese, ou seja, do “filósofo das ideias filosóficas passadas e presentes”, Foucault foi um filósofo cuja atividade filosófica o conduziu por investigações se não incomuns pelo menos consideradas de “pouca nobreza filosófica” ou mesmo exóticas à filosofia. Estudou a história das instituições psiquiátricas, médicas e penais modernas e suas práticas sociais de
reclusão, observação e punição. Se entre as linhas de pesquisa de seu trabalho intelectual,
encontramos o interesse pela prestigiada história das ciências, que, na França de sua época,
reunia nomes altivos da filosofia como Gaston Bachelard e Georges Canguilhem, Foucault
optou por estudar a história de ciências menos “bem sucedidas” e de rigor científico
contestável: as ciências humanas.
Mais do que nos comentários aos textos filosóficos consagrados, o canteiro
intelectual de sua produção deve ser buscado nos arquivos das bibliotecas, onde vasculhou
documentos sobre parricidas e hermafroditas do século XIX e projetos arquitetônicos de
prisões e registros de cenas de torturas e suplícios do século XVIII.
Como filósofo, Foucault não permitiu que sua atividade filosófica se encerrasse nas
paredes da sala da aula ou nas páginas dos livros que escreveu. Foi um intelectual público
e engajado nos debates políticos e culturais da sociedade francesa de sua época: escreveu
artigos panfletários em jornais, se engajou nas lutas dos estudantes, criou grupos políticos
em favor dos direitos dos imigrantes e dos presos, participou de programas de televisão e
passeatas (ERIBON, 1990).
Com isso, não se trata, de modo algum, de desmerecer ou diminuir a formação
filosófica de Foucault. Suas biografias são enfáticas no que diz respeito à dedicação
disciplinada de Foucault no estudo de filósofos como Kant, Nietzsche, Husserl e
Heidegger. De modo algum, defenderíamos a ideia de que a filosofia ocupa um lugar
secundário em Foucault, pois nela, entre outras coisas, o filósofo francês acredita enxergar talvez “a forma cultural mais geral na qual poderíamos refletir sobre o que é o Ocidente” (FOUCAULT, 2002a, p. 220).
O que gostaríamos de ressaltar, com efeito, é o papel de outros hábitos e
pensamento. Foucault foi um intransigente defensor do rigor científico e de suas regras de
trabalho. Seus livros desconcertam tanto pelo aparato conceitual1 que utiliza para devassar
o real, pelo estilo literário em que se move sua pena quanto pela monumental massa de
dados e documentos que maneja para fundamentar suas interpretações e raciocínios. Por
vocação, um filósofo que amava os conceitos e a reflexão sobre os métodos, as teorias e as
concepções filosóficas sem por isso deixar de ser também um obstinado pelos dados e a empiria, um “positivista feliz”. Para Paul Veyne, Foucault é o historiador em estado pleno, acabado, o primeiro a ser completamente positivista por ser o autor que empreendeu a
revolução científica que todos os historiadores ansiavam e aguardavam (VEYNE, 2008, p.
239).
Seu interesse pelo pensamento, pela história dos sistemas de pensamento2, se dá sob
a condição de introduzi-lo não nas representações, na racionalidade e na continuidade por trás dos discursos e das ideias, mas de “introduzir na raiz mesmo do pensamento o acaso, o descontínuo e a materialidade” (FOUCAULT, 1996, p. 59).
É verdade que, por vezes, Foucault flertou e cedeu às tonalidades mais acadêmicas, escolásticas e clássicas de “ser filósofo” – o estilo grandiloquente e hermético de As Palavras e as Coisas e seu retorno ao mundo das éticas greco-romanas nos últimos livros a
partir do comentário de textos clássicos confirmam. Certamente, Foucault pensou sobre “o” conhecimento, “a” verdade e “a” ética, esses assuntos de filósofos. Analisou problemas filosóficos profundos relacionados à razão, à linguagem, à racionalidade, à realidade e ao
sujeito, mas o fez de modo herético, profano, rompendo as fronteiras entre a filosofia e a
não-filosofia, valendo-se de autores e metodologias exteriores ao templo filosófico e,
sobretudo, sem deixar de relacionar aqueles problemas fundamentais à questões telúricas e
plebéias, como a história, o poder, o corpo, a sexualidade, a administração política, o
hospício, a prisão. Em síntese, o que Foucault ambicionava consistia em levar todas essas
grandes questões do pensamento ocidental e os pretensos “universais” que as acomodam
em nossa tradição de pensamento para “descer ao nível das práticas concretas”.
Se quisermos situar suas investigações no interior da filosofia, somente podemos
fazê-lo, penso, sob a condição de entendermos que Foucault praticou a investigação
filosófica para além dos signos filosóficos convencionais e de uma visão institucionalizada
1
O índice do livro A Arqueologia do Saber e os diversos dicionários dedicados a sumarizar o vocabulário conceitual de Foucault ilustram a importância da produção de conceitos em sua reflexão. Ver, por exemplo, o dicionário de Edgardo Castro: CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte. Autêntica Editora, 2009.
2
da filosofia enquanto atividade intelectual unitária e fechada. É, em conformidade com
uma concepção de filosofia como exercício aberto e pluridisciplinar de investigação
histórica, como crítica do presente e forma de experiência ética do sujeito consigo mesmo,
que devemos conceber o pensamento de Foucault enquanto pertencente – nas margens e
bordas – à filosofia 3.
Nos últimos trinta anos, os estudos de Foucault desdobraram-se em contribuições
substantivas para diferentes áreas do conhecimento das relações humanas, e não apenas
para o discurso filosófico4. A maneira singular pela qual praticou a reflexividade filosófica
constitui, sem dúvida, uma das razões pelas quais a influência de seu pensamento
transbordou os limites da filosofia, alcançando o campo das ciências especializadas e
públicos extra-acadêmicos, inspirando, inclusive, grupos ativistas e militantes.
A utilização de sua abordagem, procedimentos e de seus conceitos encontrou abrigo
nas mais diversos campos do conhecimento: teoria literária, criminologia crítica,
historiografia, direito, ciências da educação, arquitetura, geografia, psicologia, sociologia,
antropologia, pesquisas nos campos da enfermagem e dos esportes, urbanismo, entre outras
mais. A dispersão e a capilaridade do modelo analítico foucaultiano na ordem dos saberes
ultrapassam os limites institucionais das disciplinas consolidadas, reverberando, e, em
alguns casos influenciando diretamente e em outros produzindo literalmente5, até aquilo
que autores, como o sociólogo Andrew Sayer (1999), intitulam de campos pós-disciplinares; os “Estudos Feministas”, os “Estudos Pós-Coloniais”, os “Estudos Queer”, os “Estudos Culturais”, entre outros.
3 A inscrição de Foucault na filosofia corresponde ao entendimento do trabalho filosófico em pelo menos
dois sentidos, os quais se opõem aos modos intelectualistas e escolásticos de conceber o que é a filosofia e o seu papel: primeiro, filosofia como crítica da razão e atitude crítica diante do presente e, segundo, como “biosphilosophikós” – vida filosófica -, isto é, a filosofia enquanto ascese e constituição de um modo de vida através da prática de um conjunto de exercícios éticos, políticos e físicos levados a cabo sobre o pensamento, a conduta e o corpo com a finalidade de cultivar e governar a si mesmo, uma estética da existência. Trata-se de uma concepção com um duplo pertencimento; de um lado, Kant e Nietzsche, sobretudo, de outro, as éticas antigas gregas e latinas, notadamente os estoicos e cínicos. Nesse sentido, Foucault distancia-se de uma tradição de pensamento filosófico que concebe a filosofia como uma prática intelectual definida pela aquisição de saber e operações de conhecimento cuja tarefa consiste na construção de sistemas teóricos globais que permitam esclarecer os fundamentos a partir dos quais se poderia ter acesso à totalidade do mundo, do conhecimento, da verdade, da história, da ética e do sujeito.
4 A contribuição de Foucault ao discurso filosófico contemporâneo pode ser observada em diferentes áreas da
filosofia, tais como nos trabalhos recentes em torno do conceito de biopoder de Giorgio Agamben e Antonio Negri, na filosofia da ciência de Ian Hacking e nos estudos pós-estruturalistas sobre gênero e sexualidade de Judith Butler.
5Este é o caso particular dos chamados “governamentality studies” (estudos em governamentalidade) posto
O “efeito Foucault” espalha-se e ramifica-se. E, diante desse efeito e do deslumbramento provocado ocorre, muitas vezes, que campos de saber consolidados, isto
é, com paradigmas, abordagens, premissas e métodos razoavelmente estáveis, adotam os
conceitos e abordagem foucaultiana sem maiores ponderações em termos de reflexividade,
suspeita e avaliação epistemológica. Quer dizer, sem expor os novos aportes a alguma
crítica e problematização segundo as premissas teóricas e a história temática do próprio
campo.
Por exemplo, o largo uso de Foucault e de seus aportes em sociologia, parece-me,
não ser devidamente acompanhado, com um grau similar de atenção e entusiasmo dos
pares, de uma avaliação, ou ao menos de uma comparação e aproximação de sua obra e
abordagem em termos das premissas, tradição de problemas e esquemas conceituais do
campo sociológico. Um primeiro passo, penso, para começar a enfrentar este desafio é
empreender uma leitura e interpretação de Foucault à luz das referências e pressupostos da
sociologia com o intuito de objetivar os liames mais significativos de sua obra e princípios
teóricos e metodológicos com a ciência da sociedade. É a partir deste empreendimento que
podemos começar a compreender as razões teóricas da fertilidade operatória do
pensamento foucaultiano em nosso campo.
De tal desafio, derivam, inevitavelmente, algumas perguntas: É possível uma leitura
sociológica do pensamento de Foucault? Quer dizer, informada pelos pressupostos,
conceitos e problemas que caracterizam a sociologia, seus autores, escolas e teorias. Que
conexões, podemos encontrar entre sua obra e a sociologia? Em que uma interpretação à
luz da teoria sociológica poderia impactar e contribuir com a compreensão do trabalho
filosófico e teórico elaborado por Michel Foucault? E, em contrapartida, quais as
contribuições de Foucault para a sociologia?
Esta dissertação se coloca como uma tentativa inicial de realizar uma
problematização sociológica do pensamento social e filosófico de Foucault, perscrutando
as convergências, contribuições e críticas. O nosso problema mais geral, no qual este
trabalho se inscreve, inicia-se, portanto, com o questionamento acerca das possíveis
relações teóricas, conceituais e temáticas entre o pensamento de Michel Foucault e a
sociologia, confrontando a natureza singular de suas contribuições analíticas ao nosso
campo disciplinar. Este será o pano de fundo de nosso investimento intelectual. Um
investimento a ser aprofundado e levado devidamente em seus termos mais adiante no
Como a amplitude do problema que colocamos excede, e muito, as exigências e
condições de uma dissertação, nos deteremos, com efeito, numa questão de menor monta e
mais modesta para viabilizar nosso projeto, sem por isso, diga-se, deixar de ter no
horizonte o problema geral aspirado e mencionado no parágrafo anterior.
Dessa maneira, neste trabalho, nos propomos a realizar uma leitura sociológica de
um dos aspectos essenciais para avaliar as contribuições analíticas de Foucault para a
sociologia, qual seja: o tema da dominação nas sociedades modernas.
Evidentemente, a contribuição de Foucault para a sociologia não se encerra, é certo,
no tratamento do tema da dominação, ou do poder. A contribuição foucaultiana para a
sociologia abarca decisivamente aspectos teóricos, conceituais e outras temáticas, abrindo
o horizonte epistemológico e metodológico da disciplina a novas categorias, entendimentos
e perspectivas sobre novos e velhos problemas sociológicos e à aplicabilidade empírica na
investigação social que seu programa de pesquisas suscita. Suas investigações
arqueológicas sobre a constituição dos saberes e das epistemes e suas investigações
genealógicas sobre a constituição de dispositivos de poder e suas formas de objetivação do
indivíduo moderno implicam sofisticadas metodologias e aportes de interpretação e análise
dos dados da realidade social e histórica.
A nosso ver, a partir da investigação teórica do modo pelo qual Foucault aborda o
problema da dominação nas sociedades modernas, dispomos, de uma só vez, de um mote a
partir do qual ler sociologicamente a sua obra e pensamento, haja vista tratar-se de uma
temática e conceito bastante relevante, documentado e recorrente na sociologia e, também, um mote para sistematizar um parte significativa da “caixa de ferramentas” – os instrumentos conceituais construídos e utilizados - e o programa de investigação
foucaultiano. Além do mais, o problema da dominação nos proporcionará um ponto de
apoio a partir do qual situar e comparar seu esquema de análise com outras abordagens do
campo sociológico, conferindo assim maior substância para avaliar contribuições e déficits.
Toda obra de Foucault é uma longa e sofisticada investigação filosófica,
empiricamente fundamentada, sobre as múltiplas práticas de sujeição nas sociedades
modernas; sujeição da subjetividade e de sua experiência, sujeição dos corpos e dos seus
gestos, sujeição dos desejos e dos prazeres, sujeição das populações e seus processos vitais,
sujeição das formas de existência, sujeição dos saberes e da palavra. Práticas de sujeição
que são múltiplas não somente do ponto de vista numérico mas nas formas próprias de
possibilidades das condutas, dos pensamentos e do real. A obra e o pensamento do filósofo
francês, quer em suas investigações do ciclo arqueológico quer em suas investigações do
ciclo genealógico, estão sob o signo da problematização das múltiplas formas de
dominação que podem se exercer na sociedade e seu cotidiano; na família, na escola, nas
relações sociais, na política, na cultura etc., e de seus efeitos produtivos na constituição de
saberes e formas específicas de sujeito.
A atenção dispensada às práticas de sujeição e às formas de exercício da dominação
social nos trabalhos de Michel Foucault, assim como a originalidade teórica e temática de
sua abordagem, alçam a obra de Foucault a um patamar incontornável no tocante ao
tratamento teórico da dominação no campo da filosofia e das ciências sociais. Eis o porquê
de discutirmos nesta dissertação essa questão em seu pensamento e suas implicações para a
sociologia.
Desse modo, cabe perguntar: qual a singularidade teórica de Foucault na temática
da dominação? Quais são as possíveis contribuições para a sociologia? Qual a conexão de
sentido que suas análises do exercício do poder descortinam acerca da natureza da vida
social e política da modernidade? Como é possível o exercício e a legitimação da
dominação, sua aceitação e eficácia sobre os indivíduos?
Ainda que em função de uma única temática e aspecto de seu pensamento,
esperamos, com efeito, fornecer alguns argumentos, dados, sugestões, proposições e
reflexões que permitam uma inicial aproximação do modelo analítico construído por
Foucault segundo um olhar da teoria sociológica e das preocupações da sociologia.
Não obstante à profícua e fértil produção sociológica em torno do conceito e da
análise das formas de dominação, penso que Foucault oferece contribuições inegáveis e
inestimáveis para uma compreensão sociológica desta ordem de fenômenos e relações
sociais classificadas, convencionalmente em sociologia, como “formas de dominação”.
Neste trabalho, concentraremos nossos esforços para expô-las e discuti-las em suas matizes
teóricos e metodológicos.
De modo geral, a dominação em Foucault, revela-se a partir das relações entre as
formas de conhecimento, o exercício do poder, a constituição do sujeito e a produção da
verdade sobre um determinado campo de experiência das relações humanas. Estas últimas
caracterizam as unidades de análise que compõem o programa de investigação
foucaultiano da dominação nas sociedades modernas: sujeito, saber, poder e verdade. A
unidades de análise, priorizando os seus nexos, pois são eles que dão consistência teórica e
operacionalidade ao programa foucaultiano de investigação da dominação em estudos
históricos e empíricos.
Cada capítulo está dividido em subseções. Nelas, temas e questões pontuais e
laterais serão desenvolvidas, tais como, a noção de sociedade, de conhecimento, de
cotidiano no pensamento de Foucault, o estatuto do corpo e a concepção de racionalidade
nas análises foucaultianas das relações de poder, entre outros mais.
Dessa maneira, no primeiro capítulo, nos dedicaremos a precisar um pouco mais as
relações de afinidade e as convergências entre Foucault e a sociologia, de modo a oferecer
mais elementos para justificativa das pretensões gerais que o trabalho almeja. Neste
capítulo, definiremos alguns conceitos dos quais nos valemos para abordar o pensamento
do filósofo francês, como a noção de programa de investigação. No segundo capítulo,
começaremos propriamente a explorar a temática da dominação no pensamento de
Foucault, discutindo suas pressuposições básicas, e sua relação intrínseca com o cerne do
projeto filosófico foucaultiano, a constituição do sujeito. Por sua vez, no terceiro e quarto
capítulo, trataremos dos meios pelos quais a dominação se exerce e se organiza, com
destaque a centralidade das formas de saber e seu vínculo com o exercício do poder
enquanto dimensão essencial e opaca das formas de dominação modernas. Discutiremos,
ainda, no capítulo quatro, a gênese das ciências humanas para ilustrar a interdependência
entre saber e poder e a concepção plural de racionalidade. No quinto, e último, capítulo,
abordaremos o papel da verdade, ou melhor, o estatuto dos discursos de verdade em seu
vínculo com as relações de dominação sobre o sujeito e sua identidade.
De resto, acrescentamos um excurso, uma breve reflexão sobre o potencial e alguns
limites do método genealógico para a realização de história da sociologia. As notas de
rodapé serão particularmente importantes quando se tratar de temas laterais - que merecem
um breve desenvolvimento e esclarecem pontos interessantes do pensamento de Foucault.
Assevere-se que os capítulos não se resumirão a um tratamento descritivo e
resenhista da obra e dos conceitos. Também não iremos percorrer e discutir todos os livros
e demais escritos de Foucault nem construiremos uma sistematização global de seu
pensamento, fases e produção de maneira mais detida e rigorosa. Procuraremos antes, de
acordo com os nossos objetivos e recortes, selecionar passagens, livros, entrevistas e
Em razão de fins didáticos, sintetizaremos, brevemente, alguns dos seus livros para
melhor situar o leitor quanto ao conjunto da reflexão proposta por Foucault e sua relação
com o que dela extraímos. Apontaremos, também, alguns dos principais fios condutores de
sua obra, em particular, as preocupações com a constituição do sujeito, as relações entre
racionalidade e poder, a centralidade do saber e o estatuto dos discursos de verdade na
sociedade ocidental moderna, com o propósito de enlaçar nossas hipóteses, interpretações e
conclusões aos principais aspectos do seu pensamento e projeto filosófico.
Exploraremos as contribuições e implicações dos conceitos, aportes e metodologia
foucaultianos para a sociologia e para a análise sociológica da dominação. Como já dito,
esta dissertação trata das implicações e analogias do programa de investigação
foucaultiano das relações entre saber e poder para pensar a dominação, em especial
segundo um recorte da análise e teoria sociológica.
Prioritariamente, nosso recorte na obra do filósofo recairá sobre os escritos
genealógicos6, em que o papel do poder e das formas de dominação na vida social é mais
notório e explícito do que em suas primeiras obras – cujas preocupações centrais giravam
em torno das práticas discursivas e das regras e condições de existência dos enunciados e
das formações discursivas7. De modo que, as principais obras trabalhadas serão Vigiar e
Punir e A Vontade de Saber. Isso porque, além da razão acima, os temas e os conceitos
sociológicos que orientarão nossa leitura de Foucault encontram-se, a nosso ver, de
maneira mais clara nessas obras e nesse recorte, em particular por conta da preocupação
como exercício do poder e suas técnicas.
6 Cronologicamente, podemos definir como escritos genealógicos os trabalhos produzidos ao longo da década
de 1970, em que se destacam as obras Surveiller et Punir, de 1975 e Histoire de la Sexualité I. La Volonté de Savoir, de 1976. De um ponto de vista teórico-temático, refere-se aos escritos e trabalhos, profundamente influenciados por Nietzsche e seu método de análise histórica – genealogia –, em que se busca examinar como as relações de poder e as técnicas de poder constituem e transformam os discursos.
7 Neste recorte de investigações, chamado de ciclo arqueológico, envolve, cronologicamente, os trabalhos
1 AFINIDADES ELETIVAS: FOUCAULT E A SOCIOLOGIA
“Se Michel Foucault é imediatamente compreensível para muitos sociólogos críticos é porque, de alguma maneira, fala a mesma língua que eles, e porque, como eles, buscou sempre romper com as evidências do senso comum - corrente ou acadêmico.”
Bernard Lahire, 2006a, p. 113
1.1 Foucault e os sociólogos
Foucault não é sociólogo, nem a sociologia figura entre as grandes influências
intelectuais do seu pensamento8. De fato, entre as ciências sociais, mesmo a antropologia
culturalista norte-americana goza de mais proeminência na formação do pensamento de
Foucault do que a ciência da sociedade – aliás, como destaca Didier Eribon (1996), o papel
da escola norte-americana de antropologia na formação de Foucault costuma ser pouco
notado e lembrado. Foucault foi um leitor fascinado e empenhado dos trabalhos
etnográficos, etnológicos e antropológicos, sobretudo no período da redação de seus
primeiros ensaios e de sua tese. E não nos referimos aqui apenas ao ilustre Lévi-Strauss, o
mais consagrado dos etnólogos. Antropólogos como Franz Boas, Ruth Benedict, Ralph
Linton e Margareth Mead foram mais do que nomes em citações esparsas. Eles serviram
como verdadeiras fontes de inspiração para temas, conceitos, e, em especial, para postura
metodológica culturalista diante de objetos pretensamente naturais, constantes e
invariáveis, como a loucura, a personalidade. Não por acaso, no começo da década de
1950, uma das propostas de tese de Foucault versava a propósito da “noção de cultura na
psicologia contemporânea” (ERIBON, 1996, p. 66-7).
Voltemos à sociologia. Decerto, Foucault não era um entusiasta da sociologia
enquanto uma disciplina científico-social rigorosa e capaz de revelar, tal como as ciências
naturais, leis gerais do comportamento social e do desenvolvimento da sociedade. Talvez,
até concordasse com o seu amigo Paul Veyne quando este dispara, num libelo em favor da história, que a sociologia “não revelou nada que já não se soubesse, nenhuma anatomia da
8 Entre as principais influências intelectuais que marcaram, em diferentes momentos, a formação e o
sociedade, nenhuma relação causal que o bom senso já não conhece” (VEYNE, 2008b, p.
225) 9.
De fato, Foucault se interessa pela sociologia enquanto uma questão residual ou
subjacente de outros problemas mais fundamentais de pesquisa. Por exemplo, a
problematização da emergência do campo epistemológico das ciências humanas na
episteme moderna levou-o a analisar as condições de possibilidade do discurso sociológico
sobre o homem como positividade – problema arqueológico abordado em As Palavras e as
Coisas. Neste livro, sustenta o filósofo, a sociologia emerge, na episteme moderna, tal
como as demais ciências humanas, definida pela relação e o domínio discursivo aberto pela
biologia, economia e filologia no espaço do saber10. Assim,
a ‘região sociológica’ teria encontrado o seu lugar lá onde o indivíduo que trabalha, produz e consome se confere a representação da sociedade em que se exerce essa atividade, dos grupos e dos indivíduos entre os quais ela se reparte, dos imperativos, das sanções, dos ritos, das festas e das crenças mediante os quais ela é sustentada ou regulada (FOUCAULT, 2000, p. 491-2).
Ou, então, o papel da sociologia ou o do discurso sociológico como peça e produto
em dispositivos de poder de disciplinamento e normalização dos indivíduos, em particular do “indivíduo delinquente” – problema genealógico (FOUCAULT, 2004).
A despeito do lugar modesto e problemático da sociologia em sua formação,
pensamento e obra, isso não significa que o projeto intelectual de Foucault seja estranho ao
campo sociológico ou represente uma recusa sistemática da sociologia. Como outras
disciplinas das ciências do homem, também a ciência da sociedade sentiu de maneira significativa o peso do “efeito Foucault”.
Ramos inteiro da sociologia possuem no filósofo francês uma referência central e
imprescindível: da sociologia da educação (VARELA & ALVAREZ-URIA, 1993) aos
estudos de gênero e sexualidade (SEIDMAN, 2003) passando pela sociologia do crime
(GARLAND, 1995), a sociologia das organizações (CLEGG, 1998) e a sociologia da
saúde (PETERSEN, 1993) e do corpo (BRYAN, 1996).
9 Convém fazer justiça a Paul Veyne para evitar mal-entendidos: sua crítica aparentemente demolidora da
sociologia consiste, na verdade, numa crítica à história, de uma concepção estreita que a prende e limita ao estudo e descrição das sociedades do passado, deixando de lado, ou para a sociologia, a história da civilização contemporânea. Para Veyne, a sociologia é história, sem ter esse nome, ela faz história, sem se reconhecer com tal. A ambição do historiador nesse texto é sugerir uma história completa, total, “pois descrever o concreto é um trabalho infinito” (VEYNE, 2008b, p. 217).
10 Para maiores detalhes, ver o último capítulo de As Palavras e as Coisas, mais especificamente a seção o
A presença de Foucault na sociologia se dá, inclusive, de modo institucional nos
currículos de graduação e programas de pós-graduação. Seu nome integra até mesmo o rol
das teorias sociológicas contemporâneas presentes nos grandes manuais da disciplina
(CALHOUN et al, 2007, p. 287).
Os grandes nomes das elaborações sociológicas mais recentes, Pierre Bourdieu
(1996), Anthony Giddens (1998; 2003) e Jürgen Habermas (2002), não prescindiram do
tratamento crítico dos aportes foucaultianos. É particularmente sintomático que, o “movimento de síntese”, na precisa expressão de Jeffrey Alexander (1987), em sua tarefa de redefinir os rumos da teoria sociológica para além das velhas dicotomias que até então
estruturavam a sociologia do pós-guerra tenha dedicado um espaço à discussão do filósofo
francês e de sua perspectiva sobre o mundo social.
Giddens, aliás, considera que o trabalho de Foucault sobre o poder, “talvez seja a
contribuição mais significativa para a teoria do poder da administração desde os textos clássicos de Max Weber sobre a burocracia” (GIDDENS, 1998, p. 319).
Alguns importantes sociólogos da segunda metade do século XX escreveram obras
relevantes num diálogo direto com o filósofo de Poitiers e sob o sol da pesquisa
arqueogenealógica foucaultiana. É o caso de Jacques Donzelot e seu livro a Polícia das
Famílias, dos primeiros trabalhos de Robert Castel sobre a ordem psiquiátrica e o papel de
controle social na vida cotidiana realizado pela psicanálise11, assim como o seu clássico As
metamorfoses da questão social, uma verdadeira genealogia da sociedade salarial e suas
formas de individuação. Por último, cabe lembrar o sociólogo norte-americano Richard
Sennett, o qual reconhece, nos agradecimentos de seu livro Carne e pedra, sua dívida para
com Michel Foucault, com quem iniciou no final da 1970 as pesquisas sobre a história do
corpo (SENNETT, 2003, p. 12; 25).
Outros sociólogos, inclusive, concedem um lugar a Foucault na chamada “virada praxiológica” na teoria social, isto é, o conjunto de autores e teorias sociais que alçaram as práticas sociais como o quadro teórico-metodológico de análise do mundo social e da ação
social, do qual fazem parte sociólogos como Bourdieu e Giddens. O filósofo francês possui, também, um assento reservado na intitulada “sociologia crítica” (POWER, 2011).
11 O trabalho de Robert Castel, O psicanalismo, foi, inclusive, elogiado por Foucault nas conferências que
Mesmo um sociólogo como Bernard Lahire12, notório e intransigente defensor das
ferramentas intelectuais e dos predicados distintivos que definem o ofício do sociólogo, reconhece em Foucault um “espírito sociológico” invejável e um autor que fala a mesma “língua dos sociólogos”. Para Lahire, Foucault foi, sem dúvida alguma, o filósofo francês mais próximo e familiar ao universo de pensamento próprio dos investigadores em ciências
sociais – sociólogos, antropólogos e historiadores, sobretudo (LAHIRE, 2006ª, p. 109).
Lahire celebra na obra de Foucault o tratamento original que este conferiu ao tema
do sujeito, pensado a partir de uma duplicidade do laço social. Para Lahire, além de
articular as condições políticas e culturais de sua constituição dentro de contextos
históricos bem determinados, Foucault se esforça por articular, sob os mesmos princípios
teóricos e metodológicos anteriores, a relação do sujeito consigo mesmo. Ou seja, segundo
a leitura do sociólogo francês, o autor de Vigiar e Punir constrói ao longo de sua obra
estudos e conceitos que exprimem o vínculo íntimo entre, por um lado, as formas de
governo do outro, ou seja, as formas de exercício do poder sobre o outro e, por outro, as
formas de governo e domínio de si13 (LAHIRE, 2006a, p. 117).
Em suas palavras, Foucault seria um “filósofo impuro”, munido de um ethos de investigador14, pois sua reflexão e conceitos estão alicerçados em denso material empírico
(LAHIRE, 2006a, p. 114).
De fato, o ethos de investigador em Foucault é mais do que uma disposição
intelectual de fundamentar empiricamente suas pesquisas e análises. Impressiona,
igualmente, a habilidade com que manuseia fontes de documentos incrivelmente diversas.
Em seus livros, o corpus empírico é formado por pinturas, obras de teatro, novelas
literárias, taxonomias naturalistas, manuais terapêuticos, textos filosóficos e religiosos,
códigos jurídicos, literatura pedagógica, decretos administrativos, planos e disposições
arquitetônicas, entre outros documentos.
12 Bernard Lahire afirma que as orientações intelectuais do trabalho de Foucault foram fundamentais em duas
razões: primeiro, para contrabalancear a influência de Pierre Bourdieu em seu pensamento e, segundo, por servir como uma verdadeira proteção contra as formas sociológicas de pensar mais rotineiras (LAHIRE, 2006a, p. 110; 112).
13 Nota-se, nesse ponto, aliás, como Lahire se apropriou de Foucault para elaborar o seu próprio projeto de
“sociologia em escala individual”, isto é, compreender sociologicamente as biografias e singularidades individuais a partir dos modos plurais pelos quais o social é interiorizado nos e pelos indivíduos. Para maiores detalhes ver: LAHIRE, Bernard. A cultura dos indivíduos. Porto Alegre. Artes Médicas, 2006b.
14 Didier Eribon, em sua biografia sobre Foucault, destaca a obstinação empírica do filósofo francês cujo
A heterogeneidade de fontes responde as próprias exigências e pressupostos da
noção de multicausalidade com que trabalha e de sua abordagem nominalista e
radicalmente histórica na investigação do que é o coração de seu projeto filosófico, qual seja, “a genealogia do sujeito na civilização ocidental” (FOUCAULT, 2006ª, p. 95).
Questão ambiciosa, com efeito, a qual Foucault aborda por múltiplos caminhos, mas sempre observando a regra de que é preciso, em suas próprias palavras, “descer ao nível das práticas concretas”. Indubitavelmente, a projeção alcançada por Foucault no campo das ciências sociais contemporâneas possui na sensibilidade teórica e metodológica
em relação às práticas sociais concretas uma de suas principais razões de êxito. “Descer ao nível das práticas concretas” significa, no trabalho do filósofo francês, investigar a emergência de campos de conhecimentos, de instituições, de práticas sociais incorporadas
e institucionais diversas e de relações de poder variadas assim como articular os
decorrentes efeitos no real a partir da constituição de experiências heterogêneas e
historicamente singulares como a loucura, a delinquência, a sexualidade, as éticas de si.
A produção intelectual de Foucault possui algumas convergências e afinidades que,
a nosso ver, também justificam o intento de uma aproximação ao seu pensamento a partir
de um ângulo sociológico. O historiador Paul Veyne não deixou de perceber uma certa
relação do projeto geral de Foucault com uma “história sociológica das verdades”, título
que dá a um dos capítulos do seu mais recente livro sobre Foucault (VEYNE, 2009).
Não é preciso muito esforço para encontrar em Foucault alguns dos pressupostos
epistemológicos básicos da sociologia. Mesmo uma leitura superficial e introdutória de sua
obra logo se depara com posturas analíticas e metodológicas bastantes familiares ao ofício
do sociólogo. Por exemplo, a ruptura com as pré-noções ou com senso comum, que de
Emile Durkheim à Pierre Bourdieu, constitui uma verdadeira pedra de toque da
epistemologia das ciências sociais.
O projeto arqueogenealógico foucaultiano não é outra coisa senão uma
problematização radical da evidência de nossas práticas, valores, crenças e normas.
Problematização que, na esteira de Kant, Nietzsche e Bachelard, assume a forma da
investigação histórica enquanto crítica do presente e das naturalizações que transformam o
que é singular, histórico e contingente em evidências incondicionadas ou em universais
antropológicos. No vocabulário do autor, em verdades aceitas como tais.
Foucault questiona a naturalização de um conjunto de ideias, esquemas
verdadeiras: a loucura como patologia mental, o internamento terapêutico, a prisão como
modelo de punição, o sexo como lugar da identidade e verdade do sujeito, a prática da
confissão, entre outras. No mesmo sentido, Foucault coloca em suspeição um conjunto de
figuras de subjetividade com as quais nos acostumamos como verdadeiras evidências
empíricas do universo humano e de nosso cotidiano; o louco, o doente mental, o
delinquente, o perverso, a histérica, o monstro humano, o anormal...
Nesse ponto em particular, Foucault não está muito distante da empresa teórica do
sociólogo Pierre Bourdieu.Tanto num e como no outro, trata-se de abordar e demonstrar os
fatos humanos, isto é, os produtos da ação e do pensamento humano, sejam instituições
sociais, ideologias, formas de classificação e divisão do mundo sejam relações e práticas
sociais cotidianas como arbitrários e contingentes, retirando o véu de evidência e de coisa
natural que recobrem os olhos contemporâneos leigos e doutos15.
No caso de Foucault, a ruptura com as pré-noções tem como alvo um ente mais
concreto e empiricamente mais identificável do que o chamado “senso comum”, qual seja:
os conhecimentos científicos e os saberes institucionais. É sobre estes que o filósofo
francês lança o seu exercício da suspeita e sua crítica histórica, revistando, num trabalho
arqueológico, empoeirados documentos, tratados científicos, planos, programas, para
compreender como os saberes aparecem, se impõem e se transformam, tanto num nível
discursivo quanto num nível não-discursivo, compondo com as relações de poder
estratégias sociais e políticas de dominação, exclusão, desqualificação.
Foucault divide com a sociologia um interesse obstinado pelo tempo presente, isto
é, no sentido de realizar um diagnóstico sobre a atualidade. Diagnóstico não apenas no
sentido de identificar os dilemas específicos e questões prementes que tem sua origem em
embates e temas de sua sociedade e tempo, senão, sobretudo, de identificar, pela crítica
histórica (arqueologia e genealogia) os constrangimentos e limites historicamente
configurados que nos determinam, no presente, como sujeito do que pensamos, dizemos e
fazemos, e isto com vista a uma ultrapassagem possível desses limites historicamente
15O trabalho sociológico de Bourdieu empenha-se em desvendar os mecanismos históricos e o trabalho
arbitrários, quer seja na forma de “pensar diferentemente” quer na forma política e ética de estilização e condução da vida16.
Sua obra, como sugeriu o belo título de um artigo escrito por Jürgen Habermas em
homenagem a Foucault por ocasião de sua morte, é uma “flecha no coração do presente”
(HABERMAS, 1994).
Nesse sentido, ele prolonga a vocação original dos clássicos da sociologia. Quer
dizer, aquela vocação que une em um mesmo vínculo, Marx, Simmel, Weber e Durkheim:
diante das exigências e da singularidade do presente, e movidos por uma poderosa inquietação intelectual, tomar como tarefa irrecusável a interpretação profunda de “nosso tempo”, das condições históricas, das práticas culturais e relações sociais que conformam quem somos, o que pensamos e o que fazemos na atualidade.
Foucault compartilha com a sociologia um conjunto de objetos e temas próprios e
consagrados desse campo de estudo. Temas, como disciplina, ascese, punição, normas,
práticas divisoras do normal e do patológico, a medicalização, Razão de Estado,
instituições sociais, corpo, controle social, delinquência, desvio social são questões
largamente trabalhadas em sociologia nas suas diferentes escolas e tradições. De uma
maneira esquemática e grosso modo, vejamos mais de perto.
A inquietação de Foucault com a gênese das instituições que originaram o
indivíduo moderno, ou com as formas de racionalidade estruturante das práticas sociais
mais familiares e dos saberes aparentemente mais neutros das sociedades modernas,
conduziu o seu trabalho a um campo de problemas, interesses e preocupações muito
próximo da sociologia17.
A temática das instituições disciplinares e de enclausuramento abordadas de
maneira tão desconcertante em História da Loucura e em Vigiar e Punir, é objeto de uma
pesquisa sociológica clássica, realizada pelo sociólogo canadense Erving Goffman em
meados dos anos 1950, sobre o que este classificou de “instituições totais”: manicômio,
conventos, colégios internos, orfanato, quartéis. A questão do disciplinamento dos corpos e
16
Foucault intitulará esta reflexão crítica sobre o presente de “ontologia da atualidade” ou “ontologia histórica de nós mesmos”, cuja paternidade, no campo do pensamento, ele identificará em Kant, mais especificamente no opúsculo deste de 1784 chamado “Was ist Aufklärung?” – O que é Iluminismo? Para maiores detalhes ver: FOUCAULT, Michel. “O que são as Luzes?” In. Ditos & Escritos: Arte,
Epistemologia, Filosofia e História da medicina (VII). Rio de Janeiro. Forense universitária, 2011, p. 259-268.
17 A modernidade como questão é um mote tão contundente na sociologia que, por exemplo, Anthony
do autocontrole na relação entre poder e corpo reluz fortemente, e também abordados
numa perspectiva histórica, nas obras de gigantes da sociologia como Max Weber e
Norbert Elias.
A démarche espaço-temporal privilegiada do programa de investigação
foucaultiano está inscrita, sobretudo, nas sociedades burguesas modernas da Europa dos
séculos XVIII e XIX, assim como os trabalhos pioneiros e formadores da tradição
sociológica clássica, formada por Marx, Durkheim, Simmel e Weber (NISBET, 1969).
De um ponto de vista mais teórico e conceitual, encontramos na empresa intelectual
de Foucault uma série de conceitos que, há muito, compõe o léxico e o patrimônio
conceitual da disciplina; racionalidade, poder, dominação, instituição, ação, conhecimento,
discurso, prática social. Metodologicamente, algumas das premissas centrais da perspectiva
sociológica, como a desnaturalização dos objetos, a pluricausalidade dos fenômenos
humanos, a ênfase nas práticas sociais, a problematização das pressuposições familiares
sobre a realidade e a ruptura com o senso comum, entre outras, encontram no trabalho de
pesquisa de Foucault um tratamento e desenvolvimento constante e singular.
A constatação da existência de um ar de familiaridade entre Foucault e a sociologia,
e de sua presença - em alguns aspectos difusa, em outros marcante - em nosso campo
disciplinar, se, por um lado, auxilia na tarefa de justificar o problema a que nos propomos,
de outro, ele não resolve por si só o problema das relações teóricas e temáticas entre o
filósofo francês e a sociologia. Mais do que catalogar as familiaridades e afinidades é
preciso abordá-las mediante uma avaliação do seu pensamento e obra conforme uma
análise mais aprofundada e nuançada dos possíveis caminhos por onde passam essas
relações, suas contribuições e déficits. Somente assim, parece-nos, podemos avaliar, com
alguma segurança e propriedade, as contribuições e avanços e dificuldades e insuficiências
que o pensamento de Foucault e suas análises podem sugerir à sociologia e assim como
esta ao seu pensamento. Porém, tal inferência leva-nos à questão do método; quer dizer,
como e a partir de que perspectiva teórica e analítica interpretar e analisar a obra de
Foucault?
1.2 Questão de método
Se há diversos pontos de cruzamento entre Foucault e a sociologia, são inúmeras,
Para traçar as linhas de comparação entre um e outra, abordar as relações entre o
pensamento foucaultiano e a sociologia para compreender as possíveis contribuições e
afinidades e as incompatibilidades e déficits em relação a nossa área, poderíamos recorrer a
diversas ancoragens e a pontos de apoio analíticos.
Por exemplo, eleger uma subárea da sociologia a partir da qual tentar-se-ia situar
Foucault no quadro interpretativo da sociologia; a sociologia do conhecimento, a
sociologia histórica, a sociologia das organizações, a sociologia da modernidade, etc.. Ou,
ainda, seguir uma proposta metateórica segunda a qual abordaríamos os pressupostos
ontológicos e epistemológicos tácitos sobre a natureza da realidade, da ação, do sujeito, do conhecimento a fim de apreender o “esquema explicativo básico” do programa de investigação foucaultiano. Por último, seria possível, também, empreender uma
investigação sobre as condições institucionais e os fatores sociais e políticos pelos quais
Foucault e seus conceitos adentraram no campo da sociologia – quer dizer, uma sociologia
da difusão, recepção e institucionalização no campo intelectual sociológico de seu
pensamento que identifique, com indicadores empíricos, os atores e rede de atores desse
processo de transferência e acomodação.
Evidentemente, cada uma dessas possibilidades de interpretação comporta suas
pertinências, riscos e insuficiências. Cada uma delas abre-nos perspectivas e limites sobre a
obra, a abordagem foucaultiana e o problema de suas relações teóricas, analíticas e
disciplinares com a sociologia. Elas constituem olhares e entradas a partir dos quais se
pode se aproximar e investigar o problema dessas relações com diferentes rendimentos e
potenciais interpretativos e analíticos. Contudo, não adotaremos integralmente nenhuma
delas – muito embora, reconheçamos que tais entradas, tomadas de maneira integral ou
combinadas, resultem como imprescindíveis e instigantes para compreender a um só tempo
a natureza do problema acima e o poder de atração, fascínio, hostilidade e intimidação
intelectual que Foucault e sua abordagem exercem no campo da sociologia.
Para tratar e discutir as relações teóricas de afinidade e distanciamento e de
contribuição e déficit entre Foucault e sociologia, nos propomos a realizar uma leitura de
seu pensamento que privilegie, em sua obra, o tratamento e a discussão de problemáticas,
temas e conceitos sociológicos, ou, pertencentes e afins ao patrimônio dessa disciplina.
Nesse sentido, trata-se de identificar e discutir como Foucault, em sua obra, aborda alguns
dos temas e questões consagrados ou debatidos na sociologia. Esta será a estratégia
Portanto, uma aproximação entre Foucault e a sociologia, o estabelecimento de um
diálogo crítico entre este autor e esta tradição de pensamento e disciplina, passa
necessariamente pela questão de identificar e argumentar como este autor enfrentou
questões e lançou mão de aportes consagrados na disciplina – ainda que sem a intenção de
fazê-lo ou com declaração explícita de herança ou interlocução. Será a partir e mediante
essa estratégia de abordagem e comparação que as diferenças significativas, os impasses
teóricos e as convergências analíticas serão identificados, estudados e relacionados.
Nossa aproximação entre Foucault e a sociologia é, com efeito, temática e teórica.
Entretanto, na vasta, agitada e difusa constelação da sociologia, o que privilegiar como corpus de problemas e conceitos sociológicos “consagrados”? Ao falarmos de sociologia, com tanta naturalidade e convicção, esquecemos que estamos nos referindo a
um campo discursivo extremamente heterogêneo, atravessado por uma diversidade de
teorias, enfoques teóricos, escolas, tradições, epistemologias e metodologias concorrentes.
Fato constatável, aliás, pela série de antinomias que configura o espaço epistemológico da
sociologia: holismo/individualismo, racionalismo experimental/interpretativismo,
estrutura/ação, objetivismo/subjetivismo, macro/micro, quantitativo/qualitativo
A sociologia é uma ciência que, desde sua infância, luta pela consolidação de sua identidade epistemológica; uma “ciência condenada à eterna juventude”, no dizer de Max Weber, ou, conforme o gosto de Bourdieu e companhia, uma “ciência como as outras”,
mas que enfrenta obstáculos peculiares para ser reconhecida como as demais. Apesar de
todos os esforços teóricos de reconstrução, unificação e síntese18, a sociologia continua a
ser um campo discursivo multiparadigmático e plural19. Com o agravante de ser hoje muito
mais fragmentado do que no período clássico e pós-clássico da disciplina. A ciência da
sociedade caracteriza-se pela existência de diferentes correntes teóricas e diferentes
tradições nacionais, modos de fazer sociologia e campos de especialidade. Isso significa
que o seu caráter pluriparadigmático e seu estado de fragmentação colocam, de maneira
premente e ininterrupta, o problema de sua unidade.
18 De Talcott Parsons com A Estrutura da Ação Social ao assim chamado “novo movimento de síntese”, com
Pierre Bourdieu, Anthony Giddens e Jürgen Habermas, temos diferentes empreendimentos intelectuais que tentaram lidar com a pluralidade do legado sociológico clássico e moderno.
19 Essa variedade de paradigmas pode ser observada na disciplina em diferentes períodos e na existência de
Os investimentos intelectuais que tentaram conferir alguma estabilidade e
composição teórica, epistemológica e disciplinar à ciência do mundo social contribuíram,
por conseguinte e de uma só vez, para manter sempre aceso o debate teórico na disciplina,
portanto, alimentar sua reflexividade sobre si mesma, como também para a construção de “mapas teóricos”, “marcos conceituais básicos” e “princípios” dedicados a organizar e integrar, em alguma medida, o patrimônio de conhecimentos, pensadores e obras da sociologia. Sem o auxílio desses “mapas teóricos” e “marcos conceituais básicos”, e a reflexividade resultante, nossa tarefa de definir um espaço analítico de problemas e
conceitos a partir do qual empreender uma aproximação entre Foucault e a sociologia seria
muito mais difícil e ingrata.
Entre esses investimentos de redução da complexidade teórica da sociologia,
cumpre destacar duas estratégias analíticas: uma de caráter mais abstrato-formal e outra
mais temática. Em linhas gerais, a primeira, mais contemporânea, tem como representante
os trabalhos de Jeffrey Alexander (1995) cujo mote é a reconstrução multidimensional da
teoria sociológica em função da articulação dos pressupostos ontológicos e
epistemológicos subjacentes às tradições teóricas e suas respectivas formas de tratamento
do que Alexander intitula como os dois problemas fundamentais da sociologia, quais sejam: o problema da “ordem” e da “ação”.
A segunda, mais clássica, refere-se aos estudos de Robert Nisbet (1969) para quem
as tradições de pensamento se organizam em torno de um núcleo de ideias, valores e
questões fundamentais que perduram e atravessam diferentes teorias e autores, conferindo
a estes últimos um grau de coerência, pertencimento e continuidade. Esse núcleo fundamental de “ideias-elementos” combina uma tensão entre valores, preocupações e conceitos que, em sociologia, formam, conforme Nisbet, a base do pensamento sociológico. Essas “ideias-elementos” são: comunidade, autoridade, status, o sagrado e alienação, estas são as inquietações essenciais que formam a tradição sociológica clássica
para Nisbet, isto é, Alexis Tocqueville, Karl Marx, Émile Durkheim, Georg Simmel e Max
Weber (NISBET, 1969, p. 18).
Tomaremos, como modelo, a inspiração de Nisbet, mas sem tomar de empréstimo as “ideias-elementos” em sua integralidade, as quais ele definiu enquanto as inquietações morais e filosóficas mais essenciais durante o período formativo da sociologia clássica. De