RevBrasAnestesiol.2016;66(1):78---81
REVISTA
BRASILEIRA
DE
ANESTESIOLOGIA
PublicaçãoOficialdaSociedadeBrasileiradeAnestesiologiawww.sba.com.br
INFORMAC
¸ÃO
CLÍNICA
Quando
uma
porta
não
apresenta
retorno
sanguíneo:
relato
de
dois
casos
de
causas
raras
de
mau
posicionamento
de
cateter
venoso
central
Sandra
Pereira
∗,
César
Preto,
Carla
Pinho
e
Pedro
Vasconcelos
DepartamentodeAnestesiologia,CentroHospitalardoTâmegaeSousa,Penafiel,Portugal
Recebidoem28dedezembrode2013;aceitoem12defevereirode2014 DisponívelnaInternetem20desetembrode2014
PALAVRAS-CHAVE
Catetervenoso central; Hidrotórax; Alc¸a;
Mauposicionamento
Resumo Apresentamosdoiscasosde mauposicionamento decatetervenoso central.Têm em comumaausênciadoretorno sanguíneolivre em umdoslúmens imediatamenteapósa colocac¸ão.Oprimeiroéumcasodehidrotóraxdireitoassociadoaocateterismovenosocentral, comapontadocateteremlocalizac¸ãointrapleural.Nessecaso,aportadistalnuncaesteve patente.Nosegundocasohouveumaumentodapressãodeaspirac¸ãoatravésdaportamedial porcausadaformac¸ãodealc¸anocateter.
Aausênciadefluxolivrenaaspirac¸ãodeumlúmendocatetercentralnãodeveser subesti-mada.Nessascircunstâncias,ocateternãodeveserusadoedeveserremovido.
©2014SociedadeBrasileiradeAnestesiologia.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Todosos direitosreservados.
KEYWORDS
Centralvenous catheter; Hydrothorax; Looping; Malposition
Whenoneportdoesnotreturnblood:twocasereportsofrarecausesformisplaced centralvenouscatheters
Abstract Wepresenttwocasesofmisplacedcentralvenouscathetershavingincommonthe absenceoffreebloodreturnfromonelumenimmediatelyafterplacement.Theformerisa caseofrighthydrothoraxassociatedwithcentralvenouscatheterizationwiththecathetertip inintra-pleurallocation.Inthiscasethedistalportwasneverpatent.Inthelattercasethere wasanincreasedaspirationpressurethroughthemiddleportduetoacatheterlooping.
Theabsenceoffreeflowonaspirationfromonelumenofacentralcathetershouldnotbe undervalued.Inthesecircumstancesthecathetershouldnotbeusedandneedstoberemoved. ©2014SociedadeBrasileiradeAnestesiologia.PublishedbyElsevier EditoraLtda.Allrights reserved.
∗Autorparacorrespondência.
E-mail:sandra.mgpereira@hotmail.com(S.Pereira).
Relatodemauposicionamentodecatetervenosocentral 79
Introduc
¸ão
Cateterismovenosocentraléumprocedimentocomumna prática de anestesia, usado para fins terapêuticos e de diagnóstico,como monitorara pressãovenosa centrale a administrac¸ãodelíquidosemedicamentosnoperíodo peri-operatório.
Em geral, essa técnica tem uma taxa de complicac¸ão de aproximadamente 15%,1 incluindo trombose, infecc¸ão,
obstruc¸ão e complicac¸ões mecânicas que normalmente ocorremdurante ainserc¸ãoe quedependemdasrelac¸ões anatômicasdasveiascentrais.
Apresentamos dois casos de complicac¸ões raras asso-ciadas ao cateterismo da veia jugular interna direita, com o objetivo de enfatizar a importância de verificar a desobstruc¸ãodecadaportaantesdeprosseguircomoseu uso,mesmoquandoatécnicanãoapresentadificuldades.
Relato
de
caso
1
Paciente do sexo feminino com 33 anos, 54kg, 155cm, estadofísicoASAI(deacordocomaclassificac¸ãoda Socie-dadeAmericanadeAnestesiologistas)eadenomahepático, apresentou-separahepatectomiaesquerdaeletiva.
Apósainduc¸ãodaanestesia,umcatetervenosocentral de lúmen triplo (7.0-French) foi inserido na veia jugular interna direita (Certofix® Trio--- B. Braun), com o uso de referênciasanatômicasedatécnicadeSeldinger.Ainserc¸ão foifeitaemumatentativaporumanestesiologista experi-enteedeacordocomoprotocolodecondutadohospital. Nessemomento,oretornosanguíneofoiobservadoapartir das portasproximale medial docateter, masnão da dis-tal.Todasasportasforamfacilmentelavadas.Ocateterfoi fixadoem12cmdecomprimento.Amonitorac¸ãodapressão venosacentralfoiconectadaàportadistal.
A cirurgia transcorreu sem intercorrências. A pressão venosacentralfoimantidaabaixode5mmHg,sem necessi-dadedevasodilatadores.
No fim do procedimento,a paciente estava acordada, sem sinais de distúrbio respiratório. Posteriormente, na saladerecuperac¸ãopós-anestésica(SRPA), seishorasapós acirurgia,queixou-sededornopeitodireitoedispneia.À ausculta,nãohaviasonsrespiratóriosnohemitóraxdireito comembotamentodapercussão.Ocatetervenosocentral nãoestavapermeávelenãohaviaretornosanguíneo.
Aradiografiadetóraxmostrouopacidadenohemitórax direito e observou-se que a ponta do cateter estava em direc¸ãoopostaàsilhuetacardíaca(fig.1).
Umdrenotorácicofoiinserido,comdrenagemimediata de2.500mLdelíquido seroso,seguidopor alívio sintomá-tico.Apaciente foitransferidaparaaenfermaria. Otubo torácicofoiremovidoapóscincodiaseapacienterecebeu altatotalmenterecuperada.
Relato
de
caso
2
Pacientedosexofeminino,67anos,ASA III,apresentou-se aodepartamentodeemergênciacomhistóriadediarreiae dorabdominalhaviaduassemanas.Umcorpoestranho(osso degalinha)foiencontrado presonasigmoide.Após tenta-tivafrustradaderemovê-loporcolonoscopia,propôs-seque
Figura1 Raio-Xdetóraxtomadonoleitoquemostra
hidrotó-raxdireitonovehorasapósainserc¸ãodocatetervenosocentral.
apacientefosselevadaparaumalaparotomiaexploratória. Suahistóriamédicaincluíaobesidademórbida(peso,110kg; altura,150cm),doenc¸acardíacaisquêmicacomanginaao esforc¸omoderado,diabetesmellitus,doenc¸apulmonar obs-trutivacrônicaehipotireoidismo.
Um cateter venoso central foi indicado por causa da dificuldade de obtenc¸ão deum acesso periférico e possí-velnecessidadedeterapiavasopressora.Apósainduc¸ãoda anestesia,umcatetervenosocentraldelúmentriplo (7.0-French)foiinseridonaveiajugularinternadireita(Certofix® Trio---B.Braun)comousodereferênciasanatômicaseda técnicadeSeldinger.Ainserc¸ãofoifeitaemumatentativa porumanestesiologistaexperienteedeacordocomo pro-tocolodecondutadohospital.Oprocedimentotranscorreu sem intercorrências, excetopor uma pequena resistência inicialpararecuperarofio-guia.Aportamedialdocateter nãoapresentouretornopassivodosangue, oquepodeser obtidosomentecomaspirac¸ãoàpressãonegativamoderada. Umleveaumentodaresistênciaduranteainjec¸ãotambém foiobservadonessaporta.Asportasrestantesestavam per-meáveise facilmente retornandoo sangue. O cateter foi fixadoem11cmdecomprimento.Umainfusãocom crista-loidesfoiiniciada.
Acirurgiaprosseguiue apacientefoisubmetida auma sigmoidectomiaaberta.Nopós-operatórioimediato,a paci-entefoitransferidaparaaunidadedeterapiaintensiva(UTI) paramanterosuporteventilatóriomecânico.Terapia vaso-pressoranãofoinecessária.
NaUTI,umaradiografiadetóraxfoifeitaeaalc¸aformada pelocatetervenosocentralfoiobservada(fig.2).
80 S.Pereiraetal.
Figura2 Raio-Xdetóraxtomadonoleitoquemostraaalc¸a
formadapelocatetervenosocentral.
Discussão
Hidrotórax é umacomplicac¸ão rara descrita em cercade 0,5%doscasosemadultoscomcateterismocentral,2oque
é explicado pela proximidade da veia cava superior com apleura direita.3 Essacomplicac¸ão é geralmentedescrita
em casos de erosão vascular progressiva de um cateter intravascularinicial4---6epodeestarassociadaaomau
posi-cionamentodapontaouàfixac¸ãoinseguradocatetercom osmovimentosdevaivém.7Porém,emnossocaso,a
ausên-ciadoretornosanguíneoaoaspiraraportadistalsugerenão umaerosão,masumalesãovascularduranteainserc¸ão,o que representa, pelo que sabemos, o único caso de uma complicac¸ãodessetipo.
Aerosãovascularcomconsequentehidrotóraxapós cate-terismo da veia jugular interna direita é extremamente raraefoi descritaem 5% detodososcasosde hidrotórax associadoao cateter.2 Talraridadepodeestar relacionado
ao fato de que a veia jugular interna direita cursa dire-tamente com a veia cava superior.8 Após uma revisão da
literatura,observamos que o posicionamento venoso cen-tralda subclávia esquerda se constitui um fator de risco paraessacomplicac¸ão.Dutleyetal.descreveramasviasde cateterizac¸ãoquecausaramhidrotórax:subcláviaesquerda em46%doscasos,subcláviadireitaem18%,jugularinterna esquerda em 20%, jugular interna direita em 5%, jugular externaem6%ebraquialem5%.2
Asmanifestac¸õesclínicasdedornopeitosão semelhan-tesàsdescritas naliteratura em casosdehidrotorax.Um hidrotóraxhipertensivotambémpodeserdesenvolvido.7
Emnossocaso,arestric¸ãodefluidoterapia,destinadaa manterumapressãovenosacentralbaixadurantea hepa-tectomiaparcial,provavelmentecontribuiuparaoatrasono diagnóstico.
Aformac¸ãodeumaalc¸aemcatetervenosocentraléuma complicac¸ão rara, descrita em 2,9% das cateterizac¸ões.9
Aformac¸ãodealc¸aem nójá foidescrita, principalmente duranteocateterismodeartériapulmonaroudeveia sub-cláviadireita.10---12
A formac¸ão de alc¸a pode ocorrer por causa do fecho daponta docateternoóstiodeumaveiaafluente,o que permite a consequente progressão do cateter de modo a formarumaalc¸a.9Emnossocaso,aalc¸aformadapodeter
resultadodainterferênciadaponta docateternoóstioda veiasubcláviadireitaoudaveiabraquiocefálicaesquerda. Adificuldadederecuperarofio-guiaedeaspirac¸ãodo san-gue a partir daporta medialsugere que o cateter estava parcialmentedobrado,masmantinhasuapermeabilidade.
Váriosestudosdemonstraramqueapunc¸ãovenosa cen-tralguiadaporultrassompodeaumentarastaxasdesucesso ediminuirascomplicac¸ões.13---15Osprincipaisbenefíciosdo
usodeultrassomincluemoaumentodataxadesucesso glo-baleareduc¸ãodotempodepunc¸ãoporagulha,reduc¸ãode punc¸ãodacarótidaedehematomadacarótida,reduc¸ãode hemotóraxepneumotórax.13
Hidrotórax foi descrito após canulac¸ão da veia jugu-lar interna guiadapor ultrassom.7 Não encontramos caso
de formac¸ão de alc¸a em cateter ou fio-guia guiado por ultrassom.Acanulac¸ãocentralguiadaporultrassomparece incapazdepreveniressascomplicac¸õesraras.
Complicac¸ões mecânicas associadas ao cateterismo venosocentralpodemocorrernomomentodainserc¸ãoou surgirmaistarde.Ainvestigac¸ãoradiológicaprecoce, prin-cipalmente com uma radiografiade tórax, pode ajudar a identificaroproblema eaplanejar aextrac¸ãodocateter. Emsituac¸õesespecíficas,outrosexamescomoaangiografia outomografiacomputadorizadapodemserúteis.12
Em ambos os casos clínicos que descrevemos, a única característica foi a dificuldade do retorno sanguíneo em uma das portas mediante aspirac¸ão, o que sugere que essa característicanão deveser subestimada.Mesmo que o procedimento transcorra sem intercorrências, em caso deausênciadefluxo livremedianteaspirac¸ãodetodosos lumenso cateter não deveser usadoe precisa ser remo-vido.
Conflitos
de
interesse
Osautoresdeclaramnãohaverconflitosdeinteresse.
Referências
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Relatodemauposicionamentodecatetervenosocentral 81
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