RevPaulPediatr.2016;34(4):518---521
REVISTA
PAULISTA
DE
PEDIATRIA
www.rpped.com.br
RELATO
DE
CASO
Quilotórax
bilateral
espontâneo
após
vômitos
excessivos
em
crianc
¸a
Antonio
Lucas
Lima
Rodrigues
a,∗,
Mariana
Tresoldi
das
Neves
Romaneli
b,
Celso
Dario
Ramos
b,
Andrea
de
Melo
Alexandre
Fraga
b,
Ricardo
Mendes
Pereira
b,
Simone
Appenzeller
b,
Roberto
Marini
be
Antonia
Teresinha
Tresoldi
baHospitaldeClínicasdaUniversidadeEstadualdeCampinas(Unicamp),Campinas,SP,Brasil
bFaculdadedeCiênciasMédicasdaUniversidadeEstadualdeCampinas(Unicamp),Campinas,SP,Brasil
Recebidoem11dejaneirode2016;aceitoem24demarçode2016 DisponívelnaInternetem16deabrilde2016
PALAVRAS-CHAVE Quilotórax;
Vômito; Ductotorácico; Cintilografia; Crianc¸a
Resumo
Objetivo: Relatar ocaso deuma crianc¸a comquilotórax bilateral devidoa etiologiapouco frequente:lesãodoductotorácicoapósquadrodevômitosexcessivos.
Descric¸ãodocaso: Menina,sete anos, apresentava edema facialcrônico iniciadoapós qua-drodehiperemese.Àavaliac¸ão,tambémapresentavaderramepleuralbilateral,comlíquido quiloso obtido na toracocentese. Após extensa investigac¸ão clínica, laboratorial e radioló-gica da etiologia do quilotórax, foi definido ser secundário a lesão do ducto torácico por aumentodapressãointratorácicapelamanifestac¸ãoinicialdevômitos,corroboradoporachados delinfocintilografia.
Comentários: Àexcec¸ãodoperíodo neonatal, oquilotórax éachado infrequentede efusão pleuralemcrianc¸as.Ascausassãodiversas,incluindotrauma,neoplasia,infecc¸ãoedoenc¸as inflamatórias;contudo,etiologiacomoaaquidescritaépoucorelatadanaliteratura. ©2016PublicadoporElsevierEditoraLtda.emnomedeSociedadedePediatriadeS˜aoPaulo. Este ´eumartigoOpenAccesssobumalicenc¸aCCBY(http://creativecommons.org/licenses/ by/4.0/).
KEYWORDS Chylothorax; Vomiting; Thoracicduct; Scintigraphy; Child
Bilateralspontaneouschylothoraxafterseverevomitinginchildren
Abstract
Objective: Toreportthecaseofachildwithbilateralchylothoraxduetoinfrequentetiology: thoracicductinjuryafterseverevomiting.
Casedescription: Girl,7 years old, with chronic facial swelling started after hyperemesis. During examination, she also presented with bilateral pleural effusion, with chylous fluid
DOIserefereaoartigo:http://dx.doi.org/10.1016/j.rppede.2016.04.003
∗Autorparacorrespondência.
E-mail:antoniollrodrigues@yahoo.com.br(A.L.Rodrigues).
0103-0582/©2016PublicadoporElsevierEditoraLtda.emnomedeSociedadedePediatriadeS˜aoPaulo.Este ´eumartigoOpenAccesssob
Quilotóraxbilateralespontâneoapósvômitosexcessivosemcrianc¸a 519
obtainedduringthoracentesis.Afterextensiveclinical,laboratory,andradiological investiga-tionofthechylothoraxetiology,itwasfound tobesecondarytothoracicductinjurybythe increasedintrathoracicpressurecausedbytheinitialmanifestationofvomiting,supportedby lymphoscintigraphyfindings.
Comments: Except for the neonatal period,chylothorax is aninfrequent finding ofpleural effusioninchildren.Therearevarious causes,includingtrauma, malignancy,infection,and inflammatorydiseases;however,theetiologydescribedinthisstudyispoorlyreportedinthe literature.
©2016PublishedbyElsevierEditoraLtda.onbehalfofSociedadedePediatriadeS˜aoPaulo. ThisisanopenaccessarticleundertheCCBYlicense(http://creativecommons.org/licenses/ by/4.0/).
Introduc
¸ão
Oquilotóraxédefinidocomooacúmulodelinfanoespac¸o pleural, causado por lesão no ducto torácico, e é uma causainfrequentedederramepleuralemcrianc¸as.1,2Pode levaràmorbidaderespiratóriaconsideráveletemumalista extensade causas,com grande dificuldade diagnóstica.1,2 Esteestudotemporobjetivorelatarocasodeumacrianc¸a comquilotóraxbilateralespontâneo.
Descric
¸ão
do
caso
Pacientedosexofeminino,seteanos,branca,encaminhada por suspeita diagnóstica de lúpus eritematoso sistêmico. Relatavahistória,haviacincomeses,deinícioabrupto de vômitos e distensãoabdominal autolimitados, após inges-tão de grande quantidade de chocolate; em sequência, passouaapresentaredemacrônicodeface,decaráter insi-diosoepermanente.Apóstrêsmesesdoiníciodossintomas e extensa avaliac¸ão de quadros alérgicos, foi submetida à tomografia computadorizada de tórax e abdome, que evidencioulinfonodomegaliaabdominale derramepleural bilateral.Foifeitadrenagemdetóraxemoutroservic¸o,com relatodelíquidopleuralleitoso.Fez,também,noservic¸ode origem,avaliac¸õeslaboratoriais,cujamaioriadosresultados estavadentrodosvaloresdenormalidade(incluindo hemo-grama, func¸ão renal, C3, C4, fator reumatoide, anti-Sm,
Figura1 Imagens deradiografia detórax dapaciente em incidência posteroanterior; A ---àadmissão dapaciente, observa--seobliterac¸ãodosseioscostofrênicos bilateralmente,comopacidadepleuropulmonaràdireita;B---seismesesapósaalta,em consultaambulatorial,radiografiasemalterac¸ões.
anti-Ro,anti-La,anti-ds-DNA),excetoporfatorantinuclear positivo,na titulac¸ão de1:640,padrãonuclearpontilhado grosso.
Naprimeiraconsultaambulatorialnesteservic¸o,a paci-ente foi submetida a nova radiografia de tórax (fig. 1A), que evidenciou recorrência do derrame pleural bilateral. Foi feita toracocentese à direita, cujo líquido mostrou cor branca leitosa; leucócitos 1.120mm3 (linfócitos 96%,
neutrófilos3%,plasmócitos1%);hemácias710mm3;
proteí-nas3,7g/dL; glicose 87mg/dL; triglicerídeos 2.855mg/dL. Acrianc¸afoiinternada,mantidaemjejumeiniciada tera-pêuticacomnutric¸ãoparenteral.Após21dias,semreduc¸ão dovolumedoquilotórax,foifeitadrenagemtorácica bila-teral,comretiradade450mLdesecrec¸ãoquilosaàdireita e 300mL à esquerda. Os drenos foram mantidos em selo d’agua,comreduc¸ão acentuadadoedema palpebral.Três diasapósadrenagemfoi iniciadadieta hipogordurosa.Os drenosforamretiradosapós25dias.
520 RodriguesALetal.
Figura2 ImagemdeSPECT/CTdasregiõescervicotorácicae abdominalobtidaapartir doexamede linfocintilografiacom administrac¸ão intradérmica de dextran-99mTC no dorso dos pés;asimagensobtidas18horasapósoiníciodoexamemostram áreafocal deretenc¸ão/extravasamentodoradiotrac¸adornos ductoslinfáticoslocalizadosnatopografiadointroitotorácico bilateralmente,maisacentuadoàdireita.
aumentodapressãointracavitária,provocadapelosvômitos ocorridosnoiníciodoquadro.Apacienterecebeualtaapós 53diasdeinternac¸ão,comacompanhamentoambulatorial, duranteoqualfoiliberadadieta geral,semrestric¸ão lipí-dica.Mantém-se assintomáticanoseguimento (radiografia detóraxdecontrolenafig.1B),semalterac¸õesaosexames laboratoriais,incluindoavaliac¸ãoporreumatologista.
Discussão
O quadro clínico de paciente com quilotórax é insidioso, evolui à medida que se acumula líquido no espac¸o pleu-ral: assintomático no início, cursa posteriormente com tosse e dispneia;1,2 febre e dor pleurítica são achados infrequentes.2,3 Ao exame físico, nota-se macicez uni ou bilateralediminuic¸ãodomurmúriovesicular.3Complicac¸ões deumquilotóraxdeevoluc¸ãocrônicaincluemdesnutric¸ão proteico-calórica,imunodeficiênciapordeplec¸ãode linfóci-toseimunoglobulinas1,4edistúrbioseletrolíticos.5
Odiagnóstico, com base na suspeita em paciente com quadroclínicosugestivoeachadosradiológicoscompatíveis (derramepleuralemradiografiadetóraxsimplesou ultras-sonografia),é feitoapartir datoracocentese.1,3O líquido obtidoé branco,inodoro,deaspectoleitoso,2,3 maspode apresentar-secomoserossanguinolento.3Aavaliac¸ão labo-ratorialmostraníveisdetriglicerídeosnaamostraacimade 110mg/dL erelac¸ão decolesteroldolíquido pleuralsobre sérico <1,0.1,3 Encontra-se, geralmente,celularidade com predomíniodelinfócitos(>50%),conteúdodeproteínaentre 2-3mg/dL5 e baixosníveis delactato desidrogenase.3,5 Se persistiradúvidadiagnóstica,oexamedeeleic¸ãoéa pes-quisa dequilomicrons nolíquido biológico, comresultado positivo.1,3
Após essa confirmac¸ão, pode-se lanc¸ar mão de outros estudosparaauxiliarnainvestigac¸ão,comotomografia com-putorizada e/ou ressonância magnética, além de exames maisespecíficosparaavaliac¸ãodosistemalinfático, como a linfangiografia e alinfocintilografia.1,2 Deacordocom a localizac¸ãodarupturadoductotorácico,considerando tam-bémasvariac¸õesanatômicas, podeserdetectada colec¸ão unilateral(maiscomumenteàdireita)ou,maisraramente, bilateral(emumsextodoscasos).5
Ascausasdequilotóraxemcrianc¸assãodiversas,variam conforme a faixa etária e o mecanismo de lesão do ducto torácico.Umarevisãopublicada em 2014listamais de 35 possíveis etiologias.1 Dentre essas, encontram-se malformac¸ões congênitas do sistema linfático, como lin-fangiomas pulmonares, linfangectasia e atresia do ducto torácico;1,2,6 quilotórax associado a síndromes genéticas, comosíndromedeDown,NoonaneTurner,6entreoutras;1,6 pós procedimentoscirúrgicosdecabec¸aepescoc¸oe torá-cicos (em até 6% das cirurgias cardíacas);1,7 após outros eventosiatrogênicos noperíodoneonatal,como tocotrau-matismoetrombosedeveiacavasuperiorporcateterizac¸ão venosacentral;5,6quilotóraxpós-traumatorácicofechado;1 e quilotórax associado a neoplasias, como neurogênicas, teratomas, sarcomas e, especialmente, os linfomas, nos quais o acúmulo de linfa no espac¸o pleural pode ser manifestac¸ão inicial;1,2 alémde infecc¸õesgranulomatosas como tuberculose.1 A paciente deste caso não apresen-tava achados compatíveis com malformac¸ões congênitas, nãohavia sofrido trauma oucirurgia e foramdescartadas neoplasiaseinfecc¸ões.Outraspossíveiscausasparao desen-volvimento de quilotórax são as reumatológicas, motivo inicial davinda dapaciente ao nossoservic¸o. São relata-dos como possíveis desencadeadores o lúpus eritematoso sistêmico,8 a doenc¸a de Behc¸et,9 a púrpura de Henoch--Schönlein10easarcoidose.11Damesmaforma,apaciente nãoapresentavacritériosclínicoselaboratoriaisparaessas condic¸õesantesetampoucoduranteoseguimento,eforam entãodescartadas.
Quilotóraxbilateralespontâneoapósvômitosexcessivosemcrianc¸a 521
odiagnósticoeaavaliac¸ãodarespostaterapêuticanesses casos.12,13
Dessaforma,excluídastodasaspossibilidades,foi consi-deradaacausarestanteparaoaparecimentodoquilotórax em crianc¸a: aumento de pressão intratorácica causada por tosse ou vômito excessivos.1 Tal condic¸ão associa--se com doenc¸as como as síndromes de Boerhaave e Mallory-Weiss, o pneumotórax e o enfisema subcutâneo.14 Contudo, a associac¸ão dessa condic¸ão com a ruptura do ducto torácico é raramente descrita --- há um relato de uma menina de nove anos com quilotórax após vômitos excessivos14 e de dois adultos (33 e 65 anos) com surgi-mentodederramepleurallinfáticoapóscrisesdetosse.15,16 Pelo antecedente de vômitos excessivos e instalac¸ão abrupta do quadro, essa causa pôde ser inferida para o caso apresentado. Contudo, ao contrário do relatado na literatura, a lesão linfática na paciente aqui descrita ocorreu em nível do introito torácico, e não próximo ao diafragma.2,15
O tratamento do quilotórax, após toracocentese e eventual drenagem torácica, inicialmente é conservador, baseado na introduc¸ão dedieta semgorduras comadic¸ão detriglicerídeosdecadeiamédia,quesãoabsorvidos dire-tamente para a circulac¸ão portal.1,2,7 Na falha da dieta enteraloucomoprimeiraescolhaopcional,pode-selanc¸ar mão de nutric¸ão parenteral.2,7 Terapêuticas adjuvantes, como uso de octreotide,5,7 ainda carecem de mais res-paldo na literaturapara tratamento em crianc¸as.1 Devido a outrascomplicac¸ões,como a hipogamaglobulinemiae o maior risco de tromboses (pela perda de antitrombina), alguns autoresadvogam o uso de imunoglobulina endove-nosaeanticoagulac¸ãoconformecadacaso.7Oroldeopc¸ões no tratamento cirúrgico inclui ligadura do ducto torácico por toracoscopia, pleurodese e shunts pleuroperitoneais; entretanto,essasabordagens,viaderegra,sãoreservadas aospacientesquenãoresponderam aotratamento clínico inicial(sem melhoria após 2-4 semanas e manutenc¸ão de alto débito à drenagem).1,2,5,7 Além dessas terapêuticas específicas,devemseravaliadasaseventuaiscondic¸õesde base,comoneoplasiaouinfecc¸ão,paramelhorresoluc¸ãodo caso.5
Apesar de ser uma causa rara de efusão pleural em crianc¸as (à excec¸ão do período neonatal),1,6 o quilotórax poderesultaremimportante morbidadenesses pacientes. Opresentecasoilustraadificuldadeparaelucidac¸ão diag-nósticadacausadeumquilotórax eservecomolembrete deque,adespeitodediversasoutraspatologiasqueestão maisfrequentemente associadasa essaentidade,também sedeveincluirnosdiferenciaisalesãodoductotorácicopor aumento dapressão intratorácicacausada por tosse e/ou vômitosimportantes.
Financiamento
Oestudonãorecebeufinanciamento.
Conflitos
de
interesse
Osautoresdeclaramnãohaverconflitosdeinteresse.
Referências
1.Tutor JD. Chylothorax in infants and children. Pediatrics. 2014;133:722---33.
2.Soto-MartinezM,MassieJ.Chylothorax:diagnosisand manage-mentinchildren.PaediatrRespirRev.2009;10:199---207. 3.Skouras V, Kalomenidis I. Chylothorax: diagnostic approach.
CurrOpinPulmMed.2010;16:387---93.
4.KovacikovaL,LakomyM,SkrakP,CingelovaD.Immunologic sta-tusinpediatriccardiosurgicalpatientswithchylothorax.Bratisl LekListy.2007;108:3---6.
5.McGrath EE, Blades Z,Anderson PB. Chylothorax:aetiology, diagnosisandtherapeuticoptions.RespirMed.2010;104:1---8. 6.RochaG.Pleuraleffusionsintheneonate.CurrOpinPulmMed.
2007;13:305---11.
7.Panthongviriyakul C,Bines JE. Post-operativechylothorax in children:anevidence-basedmanagementalgorithm.JPaediatr ChildHealth.2008;44:716---21.
8.LinYJ,ChenDY,LanJL,HsiehTY. Chylothoraxastheinitial presentationofsystemiclupuserythematosus:acasereport. ClinRheumatol.2007;26:1373---4.
9.ZhangL,ZuN,LinB,WangG.Chylothoraxand chylopericar-diuminBehc¸et’sdiseases:casereportand literaturereview. ClinRheumatol.2013;32:1107---11.
10.CogarBD, GroshongTD,TurpinBK,GuajardoJR.Chylothorax inHenoch-Schonleinpurpura:acasereportandreviewofthe literature.PediatrPulmonol.2005;39:563---7.
11.SoskelNT,SharmaOP.Pleuralinvolvementinsarcoidosis.Curr OpinPulmMed.2000;6:455---68.
12.Xu KF, Lo BH. Lymphangioleiomyomatosis: differential diag-nosis and optimal management. Ther Clin Risk Manag. 2014;10:691---700.
13.YoungL,LeeHS,InoueY,MossJ,SingerLG,StrangeC,etal. SerumVEGF-Daconcentrationasabiomarkerof lymphangio-leiomyomatosisseverityandtreatmentresponse:aprospective analysisoftheMulticenterInternational Lymphangioleiomyo-matosisEfficacyofSirolimus(MILES)trial.LancetRespirMed. 2013;1:445---52.
14.YekelerE,UlutasH.Bilateralchylothoraxafterseverevomiting inachild.AnnThoracSurg.2012;94:e21---3.
15.AdasG,KaratepeO, BattalM,DoganY, KaryagarS,KutluA. Coughingmayleadtospontaneouschylothoraxandchylous asci-tes.CaseRepGastroenterol.2007;1:178---83.