UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA
PROFMAT
A SOMA DAS MEDIDAS DOS
ÂNGULOS INTERNOS DE UM
TRIÂNGULO HIPERBÓLICO E O 5º
POSTULADO DE EUCLIDES
Carlos Alberto de Souza
Dissertação de Mestrado
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA
Carlos Alberto de Souza
A SOMA DAS MEDIDAS DOS ÂNGULOS INTERNOS DE
UM TRIÂNGULO HIPERBÓLICO E O 5º POSTULADO
DE EUCLIDES
Trabalho apresentado ao Programa de PROFMAT do DE-PARTAMENTO DE MATEMÁTICA da UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Matemática.
Orientador: Prof. Dr. Thiago Dias Oliveira Silva
Agradecimentos
Primeiramente a Deus, por ter me dado forças nos momentos difíceis e a perseverança para poder atingir este objetivo.
A minha mãe, por me educar mostrando com exemplos o modo correto de agir e fazer as coisas certas. Mulher que sempre esteve e, graças a Deus, ainda está disposta ouvir e dar uma palavra de carinho e apoio a quem a aprocura.
A Ana Rita, esposa dedicada que nunca deixou de me apoiar e incentivar.
Aos filhos Amanda, Bruna, Karla e Carlos Alberto, pessoas que sentiram minha ausência vá-rias vezes por conta das atividades docentes, mas sempre foram e serão motivo de orgulho e inspiração.
A Maurício, Carlos Antônio e José Carlos, irmãos que estão sempre ao meu lado. Em es-pecial, José Carlos, também pai e professor. Por admirá-lo nesta atividade, que segui a carreira docente.
Aos amigos e colegas de trabalho, em particular Eniva Valentim, Mércia Elizabete, Saulo Gui-marães e Josenide Freitas, pois nos momentos mais difíceis de minha vida, eles foram muito compreensivos e, se hoje consegui, é porque eles acreditaram em mim.
A Carlos Bino, Anaxágoras Moraes, Ronaldo Bandim e Emerson Dantas, amigos que con-quistei durante o curso no Profmat e que, nas horas de sufoco estavam lá, ajudando a diminuir as dificuldades.
Ao Dr. Dailton Braz, médico psiquiatra acima da média, responsável por resgatar a minha autoestima.
Agradeço também aos amigos do Jogadores Anônimos, por me ajudarem a entender que as mudanças devem acontecer de forma lenta e contínua e que, mesmo nas recaídas, nunca deve-mos perder a esperança.
Aos amigos do Encontro de Casais com Cristo, responsáveis pelo meu crescimento espiri-tual e, consequentemente, crescimento pessoal e profissional.
viii AGRADECIMENTOS
Resumo
Desde o ensino fundamental o aluno aprende que a soma das medidas dos ângulos internos de um triângulo é igual a π e, para este aluno, isso é uma verdade absoluta. Nem todos terão a oportunidade de verificar que este fato só é verdadeiro no plano euclidiano e que é uma con-sequência direta do5º postulado de Euclides, o postulado das paralelas.
Neste trabalho, vamos mostrar que essa soma depende do plano no qual o triângulo está con-tido. Abordamos apenas a soma das medidas dos ângulos internos de um triângulo nageometria hiperbólica, para podermos compará-la com a soma das medidas dos ângulos internos de um triângulo euclidiano.
Iniciamos o trabalho com um rápido relato sobre esse postulado, o qual levou inúmeros ma-temáticos a cometerem erros na tentativa de demonstrá-lo. Mostramos que, mesmo não tendo sido valorizados quando Saccheri ainda estava vivo, seus estudos foram muito influentes para a descoberta das geometrias não euclidianas.
Para alcançarmos os objetivos do nosso trabalho, construímos uma base axiomática bem pró-xima da proposta por Hilbert e, juntamente com as propriedades existentes noquadrilátero de Saccheri, demonstramos que na geometria hiperbólica,a soma das medidas dos ângulos inter-nos de um triângulo é menor do queπ.
No apêndice, apresentamos os modelos de Beltrami, de Klein e de Poincaré para a geome-tria hiperbólica, destacando o modelo de disco de Poincaré, pois o mesmo é parte integrante de um dos problemas propostos para os alunos do ensino médio, construir no Geogebra um triângulo hiperbólico e movimentar um de seus vértices verificando o que ocorre. Apresenta-mos também outro problema, no qual o aluno deve construir um triângulo euclidiano e também movimentar um de seus vértices, verificando que, neste caso, a soma permanece igual aπ.
Palavras-chave: 5º Postulado de Euclides, Geometria Hiperbólica, Ângulo de Paralelismo
Abstract
Since elementary school the student learns that the sum of the measures of the internal angles of a triangle is equal toπ and, for this student, this is an absolute truth. Not everyone will have the opportunity to verify that this fact is only true in the Euclidean plane and that is a direct consequence of5th postulate of Euclides, the parallel postulate.
In this work, we show that this sum depends on the plane in which the triangle is contained. We approach only the sum of the measures of the internal angles of a triangle in hyperbolic geometry, in order to compare it with the same sum on a Euclidean triangle.
We started working with a quick report on this postulate, which led many mathematicians make mistakes trying to prove it. We show that, even if not valued when Saccheri was still alive, his studies has very influence to the discovery of non-Euclidean geometries.
To achieve the objectives of our work, we built an axiomatic base very close to the propo-sed by Hilbert and, in association with the existing properties in theSaccheri’s quadrilateral, we demonstrated that in hyperbolic geometrythe sum of the measures of the internal angles of a triangle is less thanπ.
In the appendix, we present the models of Beltrami, Klein and Poincaré to the hyperbolic geo-metry, highlighting the Poincaré disk model, which is part of a proposed problems to the high school students, to construct in Geogebra a hyperbolic triangle and move one of its vertices by checking what happens. We also present another problem, which the student must construct a Euclidean triangle and also move of its vertices, finding that, in this case, the sum remains equal toπ.
Keywords: 5th postulate of Euclides, Hyperbolic Geometry, Angle of Parallelism
Sumário
1 Breve História do 5º Postulado de Euclides 3
2 Geometria Neutra 9
2.1 Axiomas de Hilbert 9
2.2 Quadrilátero de Saccheri 31
3 Geometria Hiperbólica 45
3.1 Postulado de Lobachevsky 45
3.2 O Ângulo de Paralelismo 46
A Modelos Planos da Geometria Hiperbólica 49
A.1 Modelo de Beltrami 49
A.2 Modelo de Klein 50
A.3 Modelos de Poincaré 51
A.3.1 O Modelo do Disco de Poincaré 51
A Exercícios Desenvolvidos no Geogebra 57 A.1 Exercício 1 (Soma dos Ângulos Internos de um Triângulo Euclidiano) 57 A.2 Exercício 2 (Soma dos Ângulos Internos de um Triângulo Hiperbólico) 59
Lista de Figuras
2.1 Os pontosA, B eC são colineares, enquanto que os pontosA, B eD são não
colineares. 10
2.2 SegmnetoAB. 10
2.3 Cé um ponto equidistante dos pontosAeB. 11
2.4 Cé ponto médio do segmentoAB. 11
2.5 Os pontos A e B estão do mesmo lado em relação à reta r, enquanto que os
pontosAeCestão em lados opostos em relação àr. 12
2.6 SemirretaAB. 12
2.7 Semirretas opostasABeAC. 12
2.8 Ângulo∠BAC. 13
2.9 O pontoDestá no interior do ângulo∠BAC, enquanto que o pontoE não está. 13
2.10 Os ângulos∠BACe∠CADsão suplementares. 14
2.11 Os ângulos∠BACe∠DACsão retos. 14
2.12 Os ângulos∠BACe∠DACsão consecutivos. 15
2.13 Triângulo△ABC. 15
2.14 ∠DBCé ângulo externo do triângulo△ABC. 15
2.15 Os triângulos△ABCe△A′B′C′são congruentes. 16
2.16 No triângulo△ABC, o segmentoAM é a mediana relativa ao vérticeA. 16
2.17 1º Caso de Congruência de Triângulos. 18
2.18 No exemplo,AB=πeAE=4CD. 18
2.19 Retam, mediatriz do segmentoAB. 19
2.20 Ângulos opostos pelo vértice. 20
2.21 ∠XCAé maior do que∠BAC. 21
2.22 ∠XCAé maior do que∠ABC. 22
2.23 2º Caso de Congruência de Triângulos. 22
2.24 Para provarmos o 2º caso de congruância, construimos triângulo△ABD,
con-gruente ao triângulo△A′B′C′. 23
2.25 O triângulo△ABCé isósceles. 24
2.26 3º Caso de Congruência de Triângulos. 25
2.27 O triângulo△ABDé congruente aos triângulos△A′B′C′e△ABC. 26
2.28 4º Caso de Congruência de Triângulos 26
2.29 Para provarmos o 4º caso de congruância, também construímos o triângulo
△ABD, congruente ao triângulo△A′B′C′ 27
2.30 Se a retarintersecta um lado do triângulo△ABC, então deverá intersectar um
dos outros dois lados. 27
xviii LISTA DE FIGURAS
2.31 O pontoDpertence ao segmentoABe está no interior do ângulo∠CAB. 29
2.32 PontosDno interior de∠CABeF, fora de∠CAB 30
2.33 SemirretaADintersectando o segmentoBC. 31
2.34 ABCDé um quadrilátero de Saccheri. 32
2.35 No quadrilátero de Saccheri, as diagonais são iguais. 33
2.36 Num quadrilátero de Saccheri, a mediatriz deADtambém é perpendicular aBC. 34 2.37 Num quadrilátero em queBADb =CDAb =90 eAB6=CD, os ângulos superiores
são desiguais. 35
2.38 α é agudo quando o ponto P está entre os pontos B eC e o segmentoPQ é
menor do que o segmentoCD. 36
2.39 QuandoCestá entreBePePQ>CD, entãoα é agudo. 37 2.40 No caso em queCestá entreBePePQ<CD, temosα obtuso. 38
2.41 Quadriláteros de Saccheri com ângulos agudos. 39
2.42 Os triângulos△ADGe△BDF são congruentes. 40
2.43 A soma dos ângulos internos do triângulo △ABCé igual a soma dos ângulos
superiores do quadrilátero de SaccheriBCHF 41
2.44 Defeito do triângulo△ABCigual a soma dos defeitos dos triângulos △ABDe
△BCD. 44
3.1 Retasaebpassando emPe paralelas a retar 45
3.2 Se t1 intersecta m e faz ângulo θ1 com AB e t2 faz ângulo θ2<θ1 com AB,
entãot2intersectam 46
3.3 O ângulo de paralelismo paraA′em′é o mesmo que paraAem. 47
3.4 Triângulo△ABCcom soma dos ângulos internos menor do queπ 48
A.1 Tractriz e pseudoesfera de Beltrami. 49
A.2 Triângulo e retas paralelas na pseudoesfera de Beltrami. 50
A.3 Modelo do disco de Klein. 50
A.4 Retas hiperbócas paralelas à reta hiperbólica AB passando em P. 51 A.5 O pontoAnão pertence ao discoD, enquanto que os pontosBeCpertencem. 52
A.6 Circunferênciacortogonal ao discoD. 52
A.7 H-retaABcomo arco dec, circunferência ortogonal ao discoD. 53
A.8 H-reta como diâmetro do discoD. 53
A.9 H-semirretaAB. 53
A.10 H-segmentoAB. 54
A.11 H-ânguloα. 54
A.12 H-triângulo△ABC. 55
A.1 Campo de entrada. 57
A.2 Ferramenta "Polígono". 58
A.3 Ferramenta "Ângulo". 58
A.4 Ferramenta "Mover". 58
A.5 Ferramenta "Círculo Dados Centro e um de seus Pontos". 59
LISTA DE FIGURAS xix
A.7 Janela para escolher "Estilo"e depois "Linha Tracejada". 60
A.8 Ferramenta "Novo Ponto". 60
A.9 Ferramenta "Reflexão em Relação a um Círculo (Inversão)". 60
A.10 Ferramenta "Mediatriz". 60
A.11 Ferramenta "Interseção de Dois Objetos". 61
A.12 Ferramenta "Arco circular Dados Centro e Dois Pontos". 61
A.13 Janela para selecionar a cor desejada. 61
A.14 Ferramenta "Reta Tangente". 62
Introdução
O livroOs Elementosde Euclides tem despertado muito interesse e discussão durante os mais de 2000 anos de sua existência, mas o 5º Postulado de Euclides, o Postulado das Paralelas,
deve ser aquele que, sem sombra de dúvidas, tenha motivado mais discussões, levando grandes matemáticos a passar uma boa parte de suas vidas tentando descobrir se o mesmo era um
pos-tulado ou se tratava de um teorema que poderia ser demonstrado. Como cosequência dessas discussões, novos tipos de geometria foram descobertos.
Neste trabalho, apresentamos um dos temas desses estudos:A Soma das Medidas dos Ângulos Internos de um Triângulo. Nosso objetivo é desenvolver um estudo para, através de postulados e teoremas, mostrar que essa soma depende do tipo de geometria em que o triângulo se encon-tra, mais especificamente, se ela é euclidiana ou não euclidiana.
Para que possamos levar esta discussão aos alunos do ensino médio, montamos dois
proble-mas sobre o tema em questão, (com o uso de um software de Geometria Dinâmica - Geogebra), onde eles poderão verificar que essa soma depende do tipo de geometria em que o triângulo
está inserido. Os problemas trabalhados encontram-se no apêndice deste trabalho.
No capítulo 1, faremos um breve relato sobre o livro Os Elementos, o que levou Euclides a escrevê-lo e como ele é dividido. Mais adiante falamos um pouco das discussões em torno
do 5º Postulado de Euclides, o que motivaram matemáticos a se debruçarem durante anos para estudá-lo, quais suas conclusões e contribuições. Destacamos os trabalhos de Girolamo de
Sac-cheri, János Bolyai, Carl Friedrich Gauss, Lobachevsky e Riemann, responsáveis pelo surgi-mento das Geometrias não Euclidianas. Destacamos também as contribuições de David Hilbert
2 INTRODUÇÃO
ao propor um novo conjunto de axiomas para a Geometria Plana, os quais receberam o nome de Axiomas de Hilbert. Além desses, colocamos em destaque os trabalhos de Beltrami, Felix
Klien e Henri Poincaré sobre um modelo plano para a Geometria Hiperbólica, com ênfase no modelo plano do disco de Poincaré, pois foi com base neste modelo que desenvolvemos um
problema sobre o triângulo hiperbólico.
No capítulo 2, cujo título é Geometria Neutra, apresentamos um conjunto de postulados se-melhantes aos propostos por Hilbert e o quadrilátero de Saccheri, com algumas proposições,
resultados desses estudos, sendo esses suportes para as nossas demonstrações.
Falamos sobre a geometria hiperbólica no capítulo 3, mostramos o Postulado de Lobachevsky, que é a negação do Postulado das Paralelas. Daí demonstramos que, nessa geometria,a soma das medidas dos ângulos internos de um triângulo é menor do queπ.
Para finalizar, no apêndice, apresentamos alguns modelos planos para a Geometria Hiperbó-lica, como o modelo de Beltrami, o modelo de disco de Klein e os modelos de Poincaré, sendo
o modelo de disco de Poincaré apresentado de forma mais detalhada, pois nele podemos repre-sentar qualquer elemento da Geometria Hiperbólica, sem perder suas características.
Gostaríamos de destacar que não é objetivo deste trabalho fazer demonstrações da consistência
desses modelos.
Ainda no apêndice, mostramos dois problemas que desenvolvemos para serem aplicados em turmas do ensino médio, com o uso de um software de geometria dinâmica (Geogebra).
Am-bos versam sobre a construção de um triângulo e o ato de fazer mover um de seus vértices, sendo um sobre o triângulo euclidiano e o outro sobre o triângulo hiperbólico baseado nas
C
APÍTULO1
Breve História do 5º Postulado de Euclides
Este capítulo está fundamentado em [1], [3], [4], [6], [7], [8], [9], [10], [11], [13], [17], [18] e
[20].
Após a morte de Alexandre, o Grande, os generais de seu exército passaram a disputar o con-trole do império grego, porém, no ano de 306 a.C., a parte egípcia do império já estava sob o
controle de Ptolomeu I. Foi Ptolomeu I o responsável de construir, em Alexandria, um instituto conhecido como Museu, tendo chamado um grupo de sábios para serem professores nesse
ins-tituto, dentre os quais estava Euclides.
Com a finalidade de organizar e dar uma base axiomática à matemática conhecida até o mo-mento, no ano 300 a.C., Euclides escreveu o livroOs elementos. Sendo este um trabalho, não só de geometria, mas também de teoria dos números, é considerado até hoje a maior obra de matemática de todos os tempos.
Os Elementosé constituído por 13 volumes, assim divididos:
• Geometria Plana: Livros de I a IV e livro VI;
• Números Inteiros: Livros VII, VIII e IX;
• Razões e Grandezas: Livros V e X;
• Geometria Espacial: Livros XI, XII e XIII.
Para dar uma base axiomática à geometria, Euclides a organiza da seguinte forma:
4 CAPÍTULO 1 BREVE HISTÓRIA DO 5º POSTULADO DE EUCLIDES
Definições:
Euclides inicia sua obra apresentando 23 definições, tais como, ângulo reto, linhas retas per-pendiculares, circunferência, diâmetro, semicircunferência, triângulos, retas paralelas, etc.
Dentre as definições dadas por Euclides, destacamos:
1. Um ponto é o que não tem partes.
2. Uma linha é um comprimento sem largura.
3. Uma linha reta é uma linha que assenta igualmente os pontos sobre ela.
Além dasdefinições, Euclides também apresenta em seu livro uma lista com cinconoções comuns e cinco postulados, sendo este conjunto fundamental para a consistência do sistema axiomático proposto em seu livro.
Noções Comuns:
1. Coisas iguais a uma mesma coisa, são iguais.
2. Se coisas iguais são somadas a coisas iguais, então os resultados são iguais.
3. Se coisas iguais são subtraídas de coisas iguais, então os restos são iguais.
4. Coisas que coincidem com outra coisa são iguais.
5. O todo é maior que qualquer parte.
Postulados:
1. Pode-se traçar uma única linha reta ligando dois pontos quaisquer.
2. Pode-se continuar, de maneira única, qualquer linha reta finita continuamente em uma linha reta.
CAPÍTULO 1 BREVE HISTÓRIA DO 5º POSTULADO DE EUCLIDES 5
4. Todos os ângulos retos são iguais.
5. Se uma linha reta corta duas outras e forma ângulos internos, no mesmo lado, cuja soma é menor do que dois ângulos retos, então as duas linhas retas se encontrarão no lado onde
estão os ângulos cuja soma é menor do que dois ângulos retos.
Como o quinto postulado não era tão claro e direto como os outros quatro, sempre ficou
uma dúvida se realmente era um postulado ou um teorema.
Entre os séculos VIII e IX a obra de Euclides foi traduzida para o árabe, fazendo com que essa discussão chegasse ao oriente, assim como a busca por uma demonstração.
Apenas no século XIX, começou a surgir uma compreensão correta desse postulado. Porém
antes, na tentativa de demonstrá-lo, muitos matemáticos propuseram enunciados de melhor en-tendimento, equivalentes a ele, sendo o mais famoso o Postulado de Playfair, proposto por John
Playfair (1748 - 1819), o qual popularizou-se no século XVIII e diz:
Por um ponto fora de uma reta, existe exatamente uma reta paralela à reta dada. No começo do século XVIII, o padre jesuíta e matemático italiano Girolamo Saccheri (1667 - 1733) tentou, através dos seguintes argumentos, uma nova abordagem do quinto postulado,
considerando que:
• Como no mundo real temos modelos do sistema proposto por Euclides, sabemos então que o 5º Postulado não possui contradições;
• Acreditamos que, a partir dos outros postulados, podemos provar o Postulado das
Para-lelas, porém ninguém ainda conseguiu;
• Suponhamos que o Postulado das Paralelas possa ser demonstrado, logo, ao substituí-lo por sua negação, chegaremos a uma contradição no sistema;
6 CAPÍTULO 1 BREVE HISTÓRIA DO 5º POSTULADO DE EUCLIDES
demonstrado a partir dos outros postulados, sem que, na realidade, tenha sido feita uma demonstração direta.
Deste modo, o Postulado de Playfair, seria dividido em duas partes, ou seja,
1. não existem retas paralelas ou
2. por um ponto fora de uma reta passam mais de uma reta paralela à reta dada.
Da primeira premissa, Saccheri concluiu que as linhas retas são finitas, contradizendo o
se-gundo postulado de Euclides. Daí a rejeitou. Porém, esse resultado hoje em dia é aceito como base daGeometria Elíptica, na qual tanto o segundo como o quinto postulados são rejeitados.
A segunda premissa não foi tão fácil de refutar. Saccheri chegou a provar vários resultados,
mas não conseguia chegar a tal contradição. Esses resultados foram publicados em 1733, no livro Euclides Vindicatus(traduzindo literalmente, Euclides Justificado), o qual foi esquecido por quase um século e, no século XIX, quatro matemáticos o redescobriram, sendo que três deles começaram a considerar a existência de uma geometria plana, na qual, por um ponto fora
de uma reta, existem mais de uma reta paralela à reta dada.
Por volta de 1810, o matemático alemão Johann Carl Friedrich Gauss (1777 - 1855) explo-rou essa possibilidade, porém, para evitar polêmicas, preferiu não publicar seus resultados.
Em 1823, János Bolyai (1802 - 1860) escreveu para o seu pai, Farkas Bolyai (1775 - 1856),
amigo de Gauss, dizendo:
Eu descobri coisas tão maravilhosas que me sinto aturdido ... do nada eu criei um estranho mundo novo.
O jovem Bolyai havia descoberto uma geometria não euclidiana. Ao ser informado dessa
descoberta, Gauss prontamente correspondeu-se com seu amigo, dizendo:
CAPÍTULO 1 BREVE HISTÓRIA DO 5º POSTULADO DE EUCLIDES 7
Porém, János Bolyai não teve o merecido reconhecimento desse grande matemático após publi-car seus resultados em 1832. Decepcionado pela falta de valorização de Gauss às suas teorias,
não voltou a publicar outro trabalho e, assim, seus trabalhos só foram reconhecidos após a sua morte.
Neste mesmo período, o matemático russo Nikolai Ivanovich Lobachevsky (1792 - 1856)
de-dica grande parte de seu tempo ao estudo de tal geometria e, em 1829, publica esses estudos. Em sua homenagem, esta nova geometria viria a ser chamada deGeomeria de Lobachevsky.
Os três chegaram a mesma conclusão:
Se o Postulado das Paralelas for substituído pela segunda parte de sua negação, o sistema que resulta não contém contradições.
Resolvendo, deste modo, todas as questões que duravam mais de 2000 anos em relação ao
Postulado de Euclides, ou seja, o mesmo não poderia ser demonstrado a partir dos outros qua-tro postulados da geometria euclidiana.
O quarto matemático que seguiu os passos de Saccheri foi o alemão Georg Friedrich Bernhard
Riemann (1826 - 1866). Ele examinou a primeira parte da negação do Postulado das Paralelas, indagando:
Pode existir um sistema de geometria plana, no qual, por um ponto fora de uma reta, não passe nenhuma reta paralela à reta dada?
Para o seu estudo, Riemann considerou que uma reta poderia ser “estendida continuamente”, sem que, necessariamente, fosse infinita.
Foi Bernhard Riemann, através de sua tese de doutoramento, o responsável em demonstrar
8 CAPÍTULO 1 BREVE HISTÓRIA DO 5º POSTULADO DE EUCLIDES
as quais se destacam as chamadasGeometrias Riemannianas.
No entanto, a aceitação da geometria não euclidiana só veio se estabelecer após a sua morte.
Sendo assim, em meados do século XIX, existiam três diferentes geometrias, aquelas des-cobertas por Lobachevsky e Riemann foram chamadas de Geometrias não Euclidianas, pois,
em certo ponto, iam de encontro à geometria de Euclides. Todas são sistemas consistentes na Geometria Riemanniana, porém se diferem em relação ao paralelismo.
Essas novas geometrias são bem peculiares. Em regiões muito pequenas, elas se aproximam
bastante da euclidiana, mas em grandes regiões, as duas são bem diferentes da euclidiana.
C
APÍTULO2
Geometria Neutra
2.1 Axiomas de Hilbert
Neste capítulo, apresentamos um conjunto de axiomas semelhantes aqueles propostos por Da-vid Hilbert (1862 - 1943), conjunto este que nos fornece subsídios para termos uma geometria
consistente, intitulada de Geometria Neutra, onde são válidos todos os resultados que não de-pendem do Postulado das Paralelas. Os estudos que apresentamos neste capítulo estão
funda-mentados em [1], [2], [3], [4], [5], [6], [7], [8], [9], [10], [11], [14], [13], [17], [18], [20] e [21].
No século XIX a geometria conquistou um avanço jamais visto, porém foi Hilbert quem pro-curou dar-lhe um caráter puramente formal, que já existia na Álgebra e na Análise. A obraOs Elementos possuía uma estrutura dedutiva, no entanto continha hipóteses ocultas, definições sem sentido, como também falhas de lógica. Hilbert logo notou que nem tudo em Matemática
poderia ser definido, daí estruturou o tratamento dado à Geometria propondo, em 1899 no seu livroGrundlagen der Geometrie(tradução:Fundamentos da Geometria), um conjunto com 21 premissas. O objetivo principal era dar à geometria euclidiana uma abordagem rigorosa e, deste modo, corrigir as falhas encontradas nos Elementos de Euclides. Em seu trabalho ele apresenta
os axiomas em cinco grupos: 1. Axiomas de Incidência, 2. Axiomas de Ordem, 3. Axiomas de Congruência, 4. Axiomas de Continuidade, 5. Axioma das Paralelas. Em sua fundamentação,
Hilbert tomou como base conceitos primitivos, que chamaremos de objetos não definidos e as relações entre estes, que daremos o nome de relações não definidas.
Objetos não Definidos:
1. Ponto;
10 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
2. Reta;
3. Plano.
Relações não Definidas:
1. Estar sobre;
2. Estar em;
3. Estar entre;
4. Ser congruente;
5. Ser paralelo;
6. Ser contínuo.
Objetos Definidos:
D1. Pontos Colineares:Se três pontosA,BeCpertencem a uma mesma retar, então dizemos queA,BeCsão pontos colineares, caso contrário, diremos que são não colineares.
Figura 2.1 Os pontosA,BeCsão colineares, enquanto que os pontosA,BeDsão não colineares.
D2. Segmento de Reta: O conjunto constituído por dois pontos AeBe por todos os pontos que estão situados entreAeBchama-se segmento de retaABouBA. Os pontosAeBsão denominados de extremidades ou extremos do segmento.
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 11
D3. Distância entre Dois Pontos: A todo par de pontos do plano, corresponde um número
real maior ou igual a zero, denominado distância entre esses pontos. Esse número é zero
se, e só se, os pontos são iguais.
D4. Medida de um Segmento de Reta: Dados dois pontos A e B, definimos a medida do segmentoABe denotamos porAB, como a distância entre os pontosAeB.
D5. Congruência entre Segmentos de Reta: Diremos que dois segmentos AB e A′B′ são
congruentes, e escrevemosAB∼=A′B′, quandoAB=A′B′.
D6. Pontos Equidistantes:Dados três pontosA,BeC, tais queAC∼=BC, então dizemos que o pontoCé equidistante dos pontosAeB.
Figura 2.3 Cé um ponto equidistante dos pontosAeB.
D7. Ponto Médio: Chamamos de ponto médio do segmentoABum pontoCdeste segmento, tal queAC=BC.
Figura 2.4 Cé ponto médio do segmentoAB.
D8. Semiplano: Dados um plano Π e uma reta r⊂Π, existem dois subconjuntos disjuntos H1,H2⊂Π(chamados de semiplanos determinados porr), tais queH1∩r=H2∩r=∅ e H1∪r∪H2=Π, com a condição de que dois pontosA,B∈Πpertencem ao mesmo semiplano se, e somente se,AB∩r=∅.
12 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
Bestão do mesmo lado em relação àr, caso contrário, diremos queAeBestão em lados opostos em relação àr.
Figura 2.5 Os pontosAeB estão do mesmo lado em relação à retar, enquanto que os pontosAeC
estão em lados opostos em relação àr.
D10. Estar Entre: Dados três pontos distintos de uma mesma retaA, BeC, diremos que B está entre os pontosA eC se, e só se, a distância entre os pontos AeC é igual à soma da distância entre os pontosAe Bcom a distância entre os pontos BeC. Deste modo, AB<ACeBC<AC.
D11. Semirreta: Dados A, B ∈Π, tais que A6=B, o conjunto constituído pelos pontos do segmento ABe por todos os pontosCtais queB se encontra entreAeC, é chamado de semirreta de origem em A contendo o ponto B, e é representado por−AB→. O ponto A é denominado origem da semirreta−AB→.
Figura 2.6 SemirretaAB.
D12. Semirretas Opostas: Dada a reta←AB→e um pontoCda reta←AB→, tal queAestá entreBe C, dizemos que as semirretas−AB→e−AC→são semirretas opostas.
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 13
D13. Ângulo: Dadas duas semirretas −AB→ e −AC→, de mesma origem A, chamamos de ângulo BAC, e escrevemos∠BAC, a figura formada pelas semirretas−AB→eAC−→, onde−AB→e−AC→são os lados do ângulo e o pontoAo vértice. Podemos também indicar o ângulo∠BACcomo ∠A.
Figura 2.8 Ângulo∠BAC.
D14. Interior de um Ângulo: Dizemos que o interior de um ângulo∠BAC, e denotamos por int∠BAC, é a região formada pelos pontos do plano que estão do mesmo lado de−AB→em relação à−AC→e, ao mesmo tempo, estão do mesmo lado de−AC→em relação à−AB→.
Figura 2.9 O pontoDestá no interior do ângulo∠BAC, enquanto que o pontoEnão está.
D15. Medida de um Ângulo: A cada ângulo∠BAC associamos uma medidaBACb , com 0≤
BACb ≤π, satisfazendo as seguintes condições:
1. Se A,B∈r eH é um dos semiplanos definidos por r, então, para todo 0≤x≤π existe uma única semirreta−AP→contida emH∪rtal quePABb =x.
2. SePABb =0, então as semirretas−AP→e−AB→coincidem; sePABb =π, então as semir-retas−AP→e−AB→são opostas;
14 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
D16. Congruência entre Ângulos: Dois ângulos∠BACe∠B′A′C′são congruentes, e indica-mos∠BAC∼=∠B′A′C′, quando eles têm medidas iguais.
D17. Ângulos Suplementares:Dois ângulos∠BACe∠DACsão ditos suplementares quando
−→
ACé lado comum e os lados não comuns,−AB→e−→ADsão semirretas opostas.
Figura 2.10 Os ângulos∠BACe∠CADsão suplementares.
D18. Ângulo Reto: Um ângulo que é congruente ao seu ângulo suplementar é dito ângulo
reto.
Figura 2.11 Os ângulos∠BACe∠DACsão retos.
D19. Ângulos Obtuso e Agudo: Um ângulo que é maior do que o seu ângulo suplementar
é chamado de ângulo obtuso, enquanto que o ângulo que é menor do que o seu ângulo suplementar é denominado ângulo agudo. Na figura 2.10,∠BACé agudo, enquanto que ∠CADé obtuso.
D20. Ângulos Consecutivos: Dizemos que dois ângulos são consecutivos quando possuem o
mesmo vértice e um lado comum.
D21. Ângulos Adjacentes: Quando dois ângulos consecutivos não possuem pontos internos
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 15
Figura 2.12 Os ângulos∠BACe∠DACsão consecutivos.
D22. Retas Paralelas: Duas retas que estão no mesmo plano e não se intersectam são ditas
retas paralelas.
D23. Triângulo:Dados três pontos não colinearesA,BeC, definimos triângulo como sendo a região compreendida entre os segmentosAB,BCeAC, onde os segmentosAB,BCeAC são os lados do triângulo e os pontosA,BeC, os vértices.
Figura 2.13 Triângulo△ABC.
D24. Ângulo Externo de um Triângulo: Dado o triângulo△ABCe um pontoDpertencente à semirreta−AB→, de modo queBestá entreAeD, dizemos que o ângulo∠DBCé ângulo externo do triângulo△ABC.
Figura 2.14 ∠DBCé ângulo externo do triângulo△ABC.
D25. Congruência entre Triângulos: Dois triângulos △ABCe△A′B′C′são ditos
16 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
∠BAC∼=∠B′A′C′,∠ABC∼=∠A′B′C′e∠ACB=∼∠A′C′B′. Mais adiante, mostraremos os casos de congruência de triângulos.
Figura 2.15 Os triângulos△ABCe△A′B′C′são congruentes.
D26. Mediana de um Triângulo: Dados o triângulo△BAC e o ponto médioM do ladoBC, chamamos de mediana relativa ao vérticeAo segmentoAM.
Figura 2.16 No triângulo△ABC, o segmentoAMé a mediana relativa ao vérticeA.
Axiomas de Incidência:
Os axiomas de incidência estabelecem relações entre os objetos não definidos (ponto, reta e
plano).
I1. Dados dois pontos distintos de um plano, existe uma e apenas uma reta passando por ambos
os pontos.
I2. Toda reta possui ao menos dois pontos.
I3. Existem ao menos três pontos não colineares em um mesmo plano.
Axiomas de Ordem:
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 17
O1. Se o pontoB está entre os pontosAeC, entãoA, BeC são três pontos distintos de uma reta.
O2. Dados os pontosBeD, existem pontosA,CeEincidentes à reta←BD→, tais queBestá entre AeD,Cestá entreBeDeDestá entreBeE.
O3. SeA, BeC são três pontos distintos de uma mesma reta, então um, e um só dos pontos, está entre os outros dois.
O4. Para toda retare quaisquer três pontosA,BeCnão incidentes ar.
SeAeBestão do mesmo lado dereBeCestão do mesmo lado der, entãoAeCestão do mesmo lado der.
SeAe Bestão em lados opostos de re BeC estão em lados opostos der, entãoAeC estão do mesmo lado der.
“Ser congruente” é uma de nossas relações não definidas, sendo esta uma relação entre segmen-tos e entre ângulos. Neste trabalho apresentamos estas relações, nomeando-as em três grupos
de axiomas.
Axiomas de Congruência de Segmentos:
S1. Se A e B são pontos distintos e seA′ é um ponto qualquer, então, para cada semirreta r
emanando deA′, existe um único pontoB′emr, tal queB′=6 A′eAB∼=A′B′.
S2. SeAB∼=CD eAB∼=EF, entãoCD∼=EF. Além disso, todo segmento é congruente a si mesmo.
S3. Se o ponto B está entre os pontos A e C, B′ está entre os pontos A′ e C′, AB ∼=A′B′ e
BC∼=B′C′, entãoAC∼=A′C′.
Axiomas de Congruência de Ângulos:
A1. Dado um ângulo qualquer ∠BAC e dada uma semirreta qualquer −−→A′B′ emanando de um
pontoA′, então existe uma única semirreta−−→A′C′, em um dos semiplanos definidos pela
reta←→A′B′, tal que
18 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
A2. Se ∠A∼=∠B e ∠A∼=∠C, então∠B∼=∠C. Além disso, todo ângulo é congruente a si mesmo.
Axioma de Congruência de Triângulos:
T1. (1º Caso de Congruência de Triângulos - LAL) Dados dois triângulos△ABCe△A′B′C′,
tais queAB=A′B′,BC=B′C′eABCb =A′Bb′C′, então os triângulos△ABCe△A′B′C′são
congruentes.
Figura 2.17 1º Caso de Congruência de Triângulos.
Axiomas de Continuidade:
Estes axiomas são necessários para que se possa corrigir algumas falhas lógicas nosElementos de Euclides. Eles definem elemento de separação entre partes que são adjacentes.
N1. (Axioma da Arquimedes) SeABeCDsão dois segmentos quaisquer, existe um número naturalntal que, se o segmentoCDé produzidonvezes na semirreta−AB→, emanando de A, então atinge-se um pontoE tal quenCD∼=AE eBestá entreAeE.
Figura 2.18 No exemplo,AB=πeAE=4CD.
De forma intuitiva, o axioma de Arquimedes nos diz que, ao escolher-se aleatoriamente uma
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 19
o comprimento deCD.
N2. (Axioma da Completude da Reta ou Axioma de Cantor) Se AnBn, n∈N, é uma cole-ção de segmentos encaixados, então existe pelo menos um ponto Ppertencente a todos os segmentos da coleção.
O axioma da Completude da Reta nos garante a continuidade de uma reta, ou seja, dados um
pontoAde uma reta r e um número real qualquerx, existem dois únicos pontosP eP′ emr,
tais queAestá entrePeP′e, além disso,AP=AP′=x.
A seguir apresentamos algumas definições e proposições, resultados das aplicações dos
axi-omas apresentados. Tais definições e proposições são muito importantes para a fundamentação do nosso trabalho.
Definição 2.1. Um conjunto de pontos do plano constitui um lugar geométrico (L.G.) em
rela-ção a uma determinada propriedadePquando satisfaz às seguintes condições:
a) Todo ponto que pertence ao lugar geométrico possui a propriedadeP;
b) Todo ponto que possui a propriedade P pertence ao lugar geométrico.
Dentre os diversos lugares geométricos, destacamos a mediatriz.
Definição 2.2. O lugar geométrico dos pontos do plano equidistantes de dois pontos A e B
dados é a mediatrizdo segmentoAB.
20 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
Definição 2.3. Dadas as retas,←AC→e←BD→, se estas retas se intersectam no pontoO, de modo que o pontoOestá entreAeCe, ao mesmo tempo, entreBeD, então são formados quatro ângulos:
∠AOB, ∠BOC, ∠CODe∠DOA, onde∠AOB e∠COD são ditos opostos pelo vértice (OPV),
do mesmo modo∠BOCe∠DOA.
Proposição 2.1. Ângulos opostos pelo vértice têm medidas iguais.
Figura 2.20 Ângulos opostos pelo vértice.
Demonstração. Sejam ←AC→e←BD→ duas retas distintas que se interctam no pontoO, então, por D17,∠AOBe∠BOCsão suplementares, do mesmo modo∠BOCe∠COD, daí, porD15, item 3:
AOBb +BOCb =π BOCb +CODb =π Subtraindo a segunda equação da primeira, obtemos:
AOBb −CODb =0 Logo,AOBb =CODb .
Usamos o mesmo artifício para provar queBOCb =DOAb .
De posse destes resultados podemos mostrar o seguinte:
Lema 2.1. (Teorema do Ângulo Externo) Em todo triângulo, a medida do ângulo externo é
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 21
Demonstração. Nossa demonstração será em duas partes:
1. Provaremos queXCAb >BACb .
Sejam△ABCum triângulo qualquer,Mo ponto médio do ladoACeXum ponto qualquer pertencente à semirreta −BC→, de modo queC está entre B e X (figura 2.21). Sobre a semirreta −→BM marcamos o ponto B′, tal que BM =MB′. Considerando os triângulos
△ABMe△CB′Mtemos que:
• Por construçãoAM=CM; • Por construçãoBM=B′M;
• AMBb =CMBb ′(ângulos OPV).
Portanto, porT1 (caso LAL), temos△AMB∼=△CMB′e, daí,B′CMb =BAMb . Logo,
XCAb >B′CAb =B′CMb =BAMb =BACb
Figura 2.21 ∠XCAé maior do que∠BAC.
2. Provaremos queXCAb >ABCb .
Neste caso, consideremosN, ponto médio do ladoBC,X um ponto qualquer pertencente à semirreta −BC→, de modo que C está entre B e X (figura 2.22). Sobre a semirreta −→AN marcamos o pontoA′, de modo queAN=NA′. SejaDum ponto qualquer pertencente à
−→
A′C, tal queCestá entreA′eD. Comparando os triângulos△ABN e△CA′N, temos:
22 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
• Por construçãoAN=A′N;
• ANBb =CNAb ′(ângulosOPV).
Daí, porT1 (caso LAL), temos△ANB∼=△CNA′e, portanto,A′CNb =ABNb , masA′CNb = XCDb (sãoOPV), deste modo,
XCAb >XCDb =A′CNb =ABNb =ABCb
Figura 2.22 ∠XCAé maior do que∠ABC.
Proposição 2.2. (2º caso de congruência - ALA) Dados dois triângulos △ABC e △A′B′C′, tais queAB=A′B′,BACb =B′Ab′C′eABCb =A′Bb′C′, então os triângulos△ABC e△A′B′C′são congruentes.
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 23
Demonstração. Sejam△ABCe△A′B′C′dois triângulos, tais queAB=A′B′,BACb =B′Ab′C′e
ABCb =A′Bb′C′.
Seja D um ponto do lado AC, tal que AD=A′C′. Consideremos, então, o triângulo △ABD
e, comparando com o triângulo△A′B′C′, temosAD=A′C′,AB=A′B′ eBADb =B′Ab′C′, deste
modo, porT1 (caso LAL), os triângulos△ABDe △A′B′C′ são congruentes, logo, como
con-sequência, temos ABDb =A′Bb′C′, mas, por hipótese, A′Bb′C′ =ABCb , portanto, ABDb =ABCb .
Consequentemente, por A1, os lados BDe BC coincidem. Segue que os pontosC e D tam-bém coincidem e, portanto, os triângulos △ABC e △ABD são congruentes, daí, temos que
△ABC∼=△A′B′C′.
Figura 2.24 Para provarmos o 2º caso de congruância, construimos triângulo△ABD, congruente ao triângulo△A′B′C′.
Com esses dois casos de congruência (LALeALA), podemos demonstrar as próximas proposi-ções, porém, antes, vamos definir triângulo isósceles.
Definição 2.4. Um triângulo é dito isósceles se tem dois lados congruentes, chamados laterais
e o terceiro é chamado de base do triângulo.
Proposição 2.3. Em um triângulo isósceles, os ângulos da base são congruentes.
Demonstração. Seja△ABC um triângulo isósceles em queAB=AC. Devemos provar que ABCb =BCAb , deste modo, comparando△ABCcom ele mesmo, fazendo corresponder os
vérti-ces da seguinte maneira:
24 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
Figura 2.25 O triângulo△ABCé isósceles.
B↔C C↔B
Temos, por hipótese, AB=AC e AC =AB, como BACb =CABb , então, por T1 (caso LAL), segue-se que esta correspondência define uma congruência e, em consequência,ABCb =BCAb .
Proposição 2.4. Se, em um triângulo △ABC, tem-se dois ângulos congruentes, então o triân-gulo é isosceles.
Demonstração. Seja△ABC um triângulo em queABCb =ACBb , vamos mostrar queAB=AC. Mais uma vez vamos comparar o triângulo △ABCcom ele mesmo. Fazendo corresponder os vértices do seguinte modo:
A↔A B↔C
C↔B
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 25
Proposição 2.5. (3º caso de congruência - LLL) Dados dois triângulos△ABCe△A′B′C′, tais queAB=A′B′,BC=B′C′eAC=A′C′, então os triângulos△ABCe△A′B′C′são congruentes.
Figura 2.26 3º Caso de Congruência de Triângulos.
Demonstração. Sejam △ABC e △A′B′C′ dois triângulos, tais que AB=A′B′, BC =B′C′ e
AC=A′C′. Para provarmos que△ABCe△A′B′C′são congruentes, vamos, no triângulo△ABC,
construir um pontoD no semiplano oposto ao pontoC em relação ao lado AB, de modo que B′Ab′C′=BADb eAD=A′C′. Deste modo, temos:
• Por hipótese,AB=A′B′;
• Por construção,AD=A′C′eDABb =C′Ab′B′ Portanto,△ABD∼=△A′B′C′.
Para provarmos que△ABD∼=△ABC, devemos traçar o segmentoCD, daí, temos que: • AD=A′C′=AC;
• BD=B′C′=BC.
Então os triângulos△ADCe△BDCsão isósceles, deste modo,
• ADCb =ACDb ; • CDBb =DCBb .
Daí, ADBb =ACBb . Porém, por T1 (caso LAL), △ABD∼=△ABC e, como△ABD∼=△A′B′C′,
26 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
Figura 2.27 O triângulo△ABDé congruente aos triângulos△A′B′C′e△ABC.
Proposição 2.6. (4º caso de congruência - LAAo) Dados dois triângulos △ABC e △A′B′C′,
tais queAB=A′B′,ABCb =A′Bb′C′eACBb =A′Cb′B′, então os triângulos△ABC e△A′B′C′são congruentes.
Figura 2.28 4º Caso de Congruência de Triângulos
Demonstração. Sejam os triângulos△ABC,△A′B′C′de acordo com as hipóteses do teorema.
Seja D um ponto da semirreta−BC→tal queBD=B′C′. Como,
• Por hipótese,AB=A′B′eABCb =A′Bb′C′;
• Por construção,BD=B′C′.
Então, por T1 (caso LAL), concluímos que△ABD∼=△A′B′C′ e, consequentemente,ADBb = A′Cb′B′. Suponhamos que o pontoDestá entre BeC, deste modo, relativamente ao triângulo
△ADC, o ângulo∠ADBé externo e o ângulo∠ACDé interno não adjacente, logo, peloLema 2.1 (Teorema do Ângulo Externo), ADBb >ACDb =ACBb . Mas, por hipótese, ACBb =A′Cb′B′,
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 27
que o pontoC está entre B e D, concluímos queADBb <A′Cb′B′, chegando novamente a uma
contradição. Deste modo,C=D. Consequentemente, os triângulos△ABCe△A′B′C′são
con-gruentes.
Figura 2.29 Para provarmos o 4º caso de congruância, também construímos o triângulo△ABD, con-gruente ao triângulo△A′B′C′
Analisando os resultados apresentados, podemos perceber a importância do 1º caso de
con-gruência (LAL) nas demonstrações dos mesmos. A seguir mostramos o Teorema de Pasch, onde usamos o conceito de dois pontos estarem do mesmo lado em relação a uma reta dada, ou
seja, pertencerem a um mesmo semiplano.
Proposição 2.7. (Teorema de Pasch) Se△ABCé um triângulo qualquer eré uma reta arbitrária que intersecta o ladoAB, num ponto entreAeB, entãortambém intersecta o ladoACou o lado
BC. SeCnão é incidente ar, então pelo menos um dos lados em {ACeBC}rnão intersecta.
Figura 2.30 Se a retarintersecta um lado do triângulo△ABC, então deverá intersectar um dos outros dois lados.
28 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
(1) Supondo quernão passa emC, pois, seCé incidente ar, então o teorema está provado. (2) Por hipótese,AeBnão estão emre o segmentoABencontrar, logo, porD9, AeBestão
em lados opostos der.
(3) Daetapa (1), podemos concluir queCestá no mesmo lado derque o pontoAou no mesmo lado deBem relação ar.
(i) SeCestá no mesmo lado queAcom relação ar, entãoCestá no lado oposto aB, o que implica querencontra o ladoBCe não encontra o ladoAC.
(ii) Do mesmo modo, seC está no mesmo lado queBcom relação ar, entãoC está no lado oposto aA, portanto,rencontra o ladoAC, mas não o ladoBC.
Proposição 2.8. Considere um ângulo∠CABe um pontoDsobre a reta←BC→. EntãoDpertence
ao interior de∠CABse, e só se,Destiver entreBeC.
Demonstração. Divideremos a demonstração em duas partes:
1. Hipótese:Dpertence ao interior de∠CAB. Tese:Destá entreBeC.
Se D pertence ao interior de ∠CAB, então, por D14, D está no mesmo lado de B em relação à reta ←AC→, logo a semirreta −→DBnão intersecta o lado−AC→ do ângulo ∠CAB. De modo análogo, Destá no mesmo lado deC em relação à reta←AB→, então a semirreta−→DC não intersecta o lado−AB→do ângulo∠CAB. Portanto,Destá entreBeC.
2. Hipótese:Destá entreBeC.
Tese:Dpertence ao interior de∠CAB.
SeDestá entreBeC, então, porD10,BD<BC, logo,BDnão intersecta o lado−AC→, deste modo, porD8eD9, Destá no mesmo lado deBem relação a semirreta −AC→. Usando os mesmos argumentos, concluímos queDestá no mesmo lado deCem relação a semirreta
−→
2.1 AXIOMAS DE HILBERT 29
Figura 2.31 O pontoDpertence ao segmentoABe está no interior do ângulo∠CAB.
Proposição 2.9. SeDestá no interior de∠CAB, então:
1. também pertence ao interior de∠CABqualquer ponto da semirreta−→AD, excetoA; 2. nenhum ponto da semirreta oposta a−→ADestá no interior de∠CAB;
3. seAestá entre os pontosCeE, entãoBpertence ao interior de∠DAE Demonstração. Consideremos as semirretas−AB→e−AC→, lados de∠CAB.
1. O ponto A é intersecção da semirreta −→AD com os lados AB−→ e −AC→ de ∠CAB, logo não pertence ao interior de∠CAB.
Seja Pum ponto de −→AD, de modo queP está entre os pontosA e D(o caso em que D está entre os pontos A e P é análogo). Como P está entre os pontos A e D, então, o segmento DPnão intersecta o lado−AB→, logo, porD8 eD9,D ePestão do mesmo lado em relação a semirreta −AB→. Mas, por D14, D e C estão do mesmo lado em relação a
−→
AB, daí, concluímos quePeCestão do mesmo lado em relação a−AB→. Usando o mesmo raciocínio, provamos quePeBestão do mesmo lado em relação a−AC→. Portanto,Pestá no interior do ângulo∠BAC.
30 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
queDeF estão em lados opostos em relação a reta←AC→. Segue que, comoDpertence ao interior do ângulo∠CAB, entãoFnão pertence.
3. Temos que mostrar queBeE estão do mesmo lado em relação a reta←AD→, pois já vimos queDestá do mesmo lado deB em relação a reta←AC→, que contém E. Consideremos o triângulo△BCE. Pelaproposição 2.7 (Teorema de Pasch),←AD→intersectaBCouBE. Se
←→
ADintersectaBC, então, porD8 eD9, BeC estão em lados opostos em relação a←AD→, logo,BeEestão do mesmo lado em relação a←AD→e a prova estaria concluída.
Supondo por absurdo, que←AD→intersecta o ladoBE no pontoX e, de acordo com oitem 1 desta proposição, X está no interior do ângulo ∠BAC, então E e X estão em lados opostos em relação a←AB→, deste modo, o segmentoEX intersecta a reta←AB→em um ponto Y, absurdo, pois teríamos←BE→e←AB→coincidentes, já que têm dois pontos comuns,BeY. Portanto, os pontosBeEestão do mesmo lado em relação a reta←AD→, daí concluímos que o pontoBestá no interior do ângulo∠DAE.
Figura 2.32 PontosDno interior de∠CABeF, fora de∠CAB
Definição 2.5. A semirreta−→ADestá entre as semirretas−AC→eAB−→, se−AB→e−AC→não são semirretas opostas eDpertence ao interior de∠CAB.
Teorema 2.1. (Teorema da barra transversal) Se−→ADestá entre−AC→e−AB→, então−→ADintersecta o segmentoBC.
2.2 QUADRILÁTERO DE SACCHERI 31
proposição 2.9, item 3,Bestá no interior do ângulo∠DAE e, em consequência,BeCestão em lados opostos em relação à reta←AD→, sendo assim, o segmentoBCintersecta a reta←AD→.
Supondo por absurdo que o pontoP, intersecção deBCe←AD→, pertença à semirreta oposta à−→AD, deste modo, pela proposição 2.9, item 2, Pnão pertence ao interior de ∠BAC, absurdo, pois, pela proposição 2.8, se P pertence ao segmento BC, então P pertence ao interior do ângulo
∠BAC. Portanto, a semirreta−→ADintersecta o segmentoBC.
Figura 2.33 SemirretaADintersectando o segmentoBC.
2.2 Quadrilátero de Saccheri
Durante o século XVIII, a matemática na itália pouco avançou. Apenas um padre jesuíta,
Giro-lamo Saccheri, conseguiu chegar mais perto de uma grande descoberta. No ano de sua morte, ele publicou o livroEuclides ab omni naevo vindicatus(Euclides com toda falha retirada), no qual tentou demonstrar o Posutlado das Paralelas. Decidido a aplicar o método da Redução ao Absurdo, construiu um quadrilátero birretangular com dois lados opostos sendo
perpendi-culares à base e tendo medidas iguais, o qual recebeu o nome de Quadrilátero de Saccheri. Sem usar o Postulado das Paralelas, ele provou que os ângulos superiores do quadrilátero têm
medidas iguais, considerando, deste modo, que existem três possibilidades para eles:
1. A hipótese do ângulo agudo;
32 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
3. A hipótese do ângulo obtuso.
A ideia de Saccheri era mostrar que as hipóteses 1 e 3 levavam a um absurdo e, deste modo,
chegaria, de forma indireta, a conclusão que a hipótese 2 seria uma consequência necessária dos Postulados de Euclides, sem o das Paralelas.
Saccheri não teve grandes dificuldades para excluir a hipótese 3, pois considerava que uma
reta é infinitamente longa. No entanto, da hipótese 1, ele obteve diversos resultados, porém, como acreditava que a geometria euclidiana era a única existente, deixou que estas ideias
inter-ferissem nesses resultados, ficando, deste modo, na obscuridade por quase um século.
Nesse capítulo apresentamos alguns resultados encontrados por Saccheri. Iniciamos definindo o quadrilátero de Saccheri, em seguida apresentamos algumas proposições que são de suma
im-portância para calcularmos a soma das medidas dos ângulos internos nas geometrias euclidiana e não euclidianas.
Definição 2.6. Um quadriláteroABCDé dito ser um quadrilátero de Saccheri seDABb =ADCb = π/2eAB=CD.
Figura 2.34 ABCDé um quadrilátero de Saccheri.
.
Proposição 2.10. SeABCDé um quadrilátero de Saccheri, então: 1. AC=BD
2. ABCb =BCDb
2.2 QUADRILÁTERO DE SACCHERI 33
1. Por definiçãoDABb =ADCb =π/2 eAB=CD, além disso,ADé lado comum, portanto, de acordo comT1 (caso LAL), os triângulos△BADe△CDAsão congruentes, deste modo,
AC=BD.
2. Comparando os triângulos △ABC e △BCD, temos que AB=CD, AC =BD (demons-tração doitem 1) eBC é lado comum, portanto, baseado naproposição 2.5 (caso LLL), os triângulos△ABCe△DCBsão congruentes, deste modo, os ângulos correspondentes têm medidas iguais e, em particular,ABCb =BCDb
Figura 2.35 No quadrilátero de Saccheri, as diagonais são iguais.
A proposição anterior nos mostra que em todo quadrilátero de Saccheri as diagonais têm
medidas iguais, fato que aprendemos na geometria euclidiana quando estudamos as proprieda-des do retângulo. Mais adiante, mostraremos que o retângulo é um caso particular do
quadrilá-tero de Saccheri.
Outra propriedade dos retângulos é que essas diagonais intersectam-se em seus pontos mé-dios. Isto é decorrência da próxima proposição, porém não provaremos tal consequência, pois
não é objetivo deste trabalho.
Proposição 2.11. SeABCDé um quadrilátero de Saccheri, então o segmento que une os pontos médios deADe deBCé perpendicular a ambos.
34 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
em um mesmo lado de m, enquanto que os pontosCe Destão do outro lado em relação am. Daímintersecta o segmento BCem um ponto F. DeT1 (caso LAL), temos que os triângulos
△AEF e△DEF são congruentes. Assim,
FAEb =FDEb
AF=FD
Por definição os ângulosADCb eBADb são retos, logo, por subtração, temos: BAFb =CDFb
Então, novamente deT1, os triângulos△BAF e△CDF são congruentes. Deste modo, ABFb =DCFb
BF=CF
e F é o ponto médio deBC. Os dois pares de triângulos congruentes também implica que BFEb =CFEb
MasBFEb eCFEb são suplementares, sendo assim, por D18, ambos são ângulos retos e,
por-tantoEF é perpendicular aBC.
Figura 2.36 Num quadrilátero de Saccheri, a mediatriz deADtambém é perpendicular aBC.
A proposição a seguir nos mostra que qualquer outro quadrilátero, cujos lados paralelos são
2.2 QUADRILÁTERO DE SACCHERI 35
Proposição 2.12. SejaABCDum quadrilátero comBADb =CDAb =90eAB6=CD. Então
ABCb >BCDb ⇔AB<CD
Demonstração. SupondoAB<CDe escolhendoE emCD, tal queAB=DE. EntãoABDE é um quadrilátero de Saccheri eABEb =DEBb , pelaproposição 2.10. Agora,ABCb >ABEb e, pelo
lema 2.1 (Teorema do Ângulo Externo), BEDb >BCDb , portantoABCb >ABEb =BEDb >BCDb . Por outro lado, se ABCb >BCDb , então devemos considerar um ponto E no ladoCD, tal que
ABCb =BEDb , daí temos que mostrar queCD>DE =AB.
• Supondo por absurdo que CD=DE, então o ponto E coincide com o pontoC, deste modo, pelaproposição 2.10,
BCDb =BEDb =ABCb Absurdo, pois, por hipótese,ABCb >BCDb .
• Supondo novamente por absurdo queCD<DE, daí teríamos que∠BCDé ângulo externo do triângulo△BCE e, pelolema 2.1 (Teorema do Ângulo Externo),
BCDb >BEDb =ABCb ,
um absurdo novamente. Deste modo,AB<CD.
Figura 2.37 Num quadrilátero em queBADb =CDAb =90 eAB6=CD, os ângulos superiores são desi-guais.
36 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
podem ser agudos, retos ou obtusos e dependem de um segmento paralelo aos lados paralelos do quadrilátero de Saccheri.
Proposição 2.13. Sejam ABCD um quadrilátero de Saccheri, P um ponto sobre o segmento
BC,PQa perpendicular aADeα=ABCb =BCDb , deste modo, temos:
(a) SePQ<CD, entãoα é agudo.
(b) SePQ=CD, entãoα é reto.
(c) SePQ>CD, entãoα é obtuso.
Demonstração. Consideremos os ângulosβ =BPQb eγ =CPDb e analisemos os três casos: (a) SePQ<CD, entãoPQ<ABe, a partir daproposição 2.12, obtemosα<β eα <γ, mas
β eγ são suplementares, daí 2α<β+γ =π eα < π2. Assim,α é agudo.
(b) SePQ=CD, então os quadriláteros ABPQe QPCDsão quadriláteros de Saccheri, deste modo,α=β =γ, comoβ eγ são ângulos suplementares, então, porD18,α =β =γ = π/2. Daí concluímos queα é reto.
(c) Neste caso procedemos de forma semelhante ao caso (a), invertendo o sentido do sinal de desigualdade.
2.2 QUADRILÁTERO DE SACCHERI 37
Proposição 2.14. SejamABCDum quadrilátero de Saccheri, P um ponto sobre a semirreta−BC→, de modo queCestá entreBeP. Sejam tambémPQuma perpendicular aABeα=ABCb =BCDb ,
deste modo:
(a) SePQ>CD, entãoα é agudo.
(b) SePQ=CD, entãoα é reto.
(c) SePQ<CD, entãoα é obtuso.
Demonstração. Analisemos os três casos:
(a) Assumimos quePQ>CDe escolhemos E em PQtal queCD=QE. ConstruimosBE e CE. Sendo assim, temos três quadriláteros de Saccheri,ABCD,DQEC eAQEB. Sejam α = BCDb , β =DCEb e γ = ABEb ângulos dos quadriláteros ABCD, DQEC e AQEB, respectivamente. Sejaδ=ECPb . Vemos queδ é um ângulo externo do triângulo△BCE, portanto, pelolema 2.1 (Teorema do Ângulo Externo),δ >CBEb =α−γ. Por outro lado, vemos queβ =QECb >QEBb =γ. Daí,
π=α+β+δ >α+γ+α−γ =2α ⇔α<π/2
Portanto,α é agudo.
Figura 2.39 QuandoCestá entreBePePQ>CD, entãoαé agudo.
(b) QuandoPQ=CD, pelaproposição 2.13, item (b),α é reto.
38 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
DQECeAQEB, comα =ABCb ,β =PECb eγ =ABEb . Sejaδ =PCEb , então, novamente pelolema 2.1 (Teorema do Ângulo Externo), δ >CBEb =γ−α. Podemos ver queγ = ABEb =BEQb >CEQb =β. Por outro lado, podemos ver também que α+β−δ =π. Assim, com a combinação destes resultados, obtemos
π =α+β−δ <α+γ−(γ−α)<2α ⇔α>π/2
Portanto,α é obtuso.
Figura 2.40 No caso em queCestá entreBePePQ<CD, temosα obtuso.
A proposição a seguir nos mostra que todos os quadriláteros de Saccheri que possuem o mesmo tipo de ângulo são encontrados em um particular plano de Hilbert.
Proposição 2.15. Em qualquer plano de Hilbert, se um quadrilátero de Saccheri tem ângulos
agudos, todos os quadriláteros de Saccheri terão. Se algum quadrilátero de Saccheri tem ân-gulos retos, então todos terão. Se algum quadrilátero de Saccheri tem ânân-gulos obtusos, então
todos terão.
Demonstração. Vamos dar a prova apenas no caso do ângulo agudo, uma vez que as provas
nos outros dois casos são semelhantes.
Suponha que ABCD é um quadrilátero de Saccheri com ângulos agudos, e que EF é a sua mediatriz. SejaA′B′C′D′um outro quadrilátero de Saccheri com a mediatriz igual aFE.
2.2 QUADRILÁTERO DE SACCHERI 39
usamos o mesmo argumento na ordem contrária. Segue-se que todo quadrilátero de Saccheri com mediatriz igual aEF tem ângulos agudos.
Consideremos agora o segmentoEG, ondeGé um ponto sobre o ladoAD, tal que EG<ED.
Tracemos a perpendicular aADemG, de modo que encontre BCemH. RefletindoGeH em relação a EF, obtemos G1e H1. RefletindoF eH em relação aAD obtemosF2 eH2. Deste modo, G1GHH1 é um quadrilátero de Saccheri com mediatriz EF, portanto, pelo argumento anterior, o seu ânguloβ é agudo. Mas,FF2H2Hé outro quadrilátero de Saccheri com o mesmo ângulo agudoβ e mediatrizEG. Deste modo, usando também o argumento anterior, todos os outros quadriláteros de Saccheri com mediatriz igual a EG têm ângulos agudos. Mas EG é
arbitrária, logo a proposição está provada.
Figura 2.41 Quadriláteros de Saccheri com ângulos agudos.
A proposição a seguir mostra que existe um quadrilátero de Saccheri em que a soma dos seus
ângulos superiores é igual à soma dos ângulos internos de um triângulo.
Proposição 2.16. Dado um triângulo △ABC, existe um quadrilátero de Saccheri, cuja soma dos seus dois ângulos superiores é igual à soma dos três ângulos do triângulo.
Demonstração. Seja △ABC o triângulo dado (figura 2.42). Consideremos D e E, pontos
40 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
Deste modo, por construção, temos:
• AD=DB
• ADGb =BDFb
• AGDb =BFDb
Portanto, pela proposição 2.6, (caso LAAo), os triângulos △ADGe △BDF são congruentes. Usando os mesmos argumentos, concluímos que os triângulos△AEGe△CEHsão
congruen-tes, daí temos queBF=AG=CH.
Figura 2.42 Os triângulos△ADGe△BDF são congruentes.
O quadriláteroBCHF(figura 2.43) tem ângulos retosBFHb eFHCb , portanto é um quadrilátero de Saccheri (de cabeça para baixo). Neste quadrilátero, temos:
• FBCb =DBCb +DBFb
• BCHb =BCEb +HCEb
Além disso, como△ADG∼=△BDF, temos queDAGb =DBFb , do mesmo modo, como△AGE∼=
△CHE, entãoEAGb =ECHb .
Portanto, sabendo queBACb =GADb +EAGb , a soma dos ângulos internos do triângulo △ABC
é:
2.2 QUADRILÁTERO DE SACCHERI 41
ABCb +BACb +BCAb = (ABCb +DBF) + (Eb CHb +BCA)b
ABCb +BACb +BCAb =FBCb +BCHb
Deste modo, a soma dos ângulos internos do triângulo△ABCé igual a soma dos ângulos
superiores do quadrilátero de Saccheri.
Figura 2.43 A soma dos ângulos internos do triângulo△ABCé igual a soma dos ângulos superiores do quadrilátero de SaccheriBCHF
Com as proposições 2.5 e 2.16, podemos mostrar que, se um triângulo possui soma dos ângulos internos menor do queπ ou maior do queπ ou igual aπ, então todos os outros triângulos terão
a mesma propriedade. É o que veremos na proposição a seguir.
Proposição 2.17. Em qualquer plano de Hilbert:
(a) Se existe um triângulo cuja soma dos ângulos é menor do queπ, então todo triângulo tem
soma dos ângulos menor do queπ.
(b) As condições a seguir são equivalentes:
(i) Existe um triângulo com soma dos ângulos igual aπ.
(ii) Existe um retângulo.
(ii’) Todo quadrilátero de Saccheri é um retângulo.
42 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
(c) Se existir um triângulo cuja soma dos ângulos é maior do queπ, então cada triângulo tem
soma dos ângulos maior do queπ.
Demonstração. Vejamos:
(a) Se existe um triângulo com soma dos ângulos menor do que π, então, pela Proposição
2.16, existe um quadrilátero de Saccheri cujos ângulos superiores são agudos. Deste modo, pelaProposição 2.15, cada quadrilátero de Saccheri tem ângulos agudos, e pela Proposição 2.16novamente, cada triângulo deve ter soma dos ângulos menor do queπ.
(b) Provamos de forma semelhante ao caso (a), onde devemos observar que um retângulo é
apenas um quadrilátero de Saccheri com ângulos retos.
(c) Esta prova é semelhante a prova de (a).
De acordo com a soma das medidas dos ângulos internos de um triângulo, definimos o plano
de Hilbert.
Definição 2.7. No caso (a) da proposição 2.17, dizemos que a geometria é semihiperbólica.
No caso (b), dizemos que é semieuclidiana, e no caso (c), dizemos que é semielíptica.
Deste modo, o triângulo pode ser classificado de acordo com a soma das medidas dos seus
ângulos internos, isto é o que podemos verificar na seguinte definição.
Definição 2.8. Dizemos que um triângulo é euclidiano, se a soma dos seus ângulos é igual aπ.
Caso contrário, nós o chamamos de não euclidiano.
Na definição a seguir mostramos que, como a soma das medidas dos ângulos internos de
2.2 QUADRILÁTERO DE SACCHERI 43
Definição 2.9. Para medir a divergência de um triângulo a partir do caso euclidiano, definimos
o defeito (δ) de qualquer triângulo a serπ−(soma dos ângulos do triângulo). Assim,
• Seδ =0, então o triângulo é euclidiano;
• Seδ >0, então o triângulo está contido no plano semihiperbólico;
• Seδ <0, então o triângulo está no plano semielíptico.
Lema 2.2. Se um triângulo△ABCé dividido em dois triângulos por uma única transversalBD, então o defeito do triângulo grande é igual à soma dos defeitos dos dois triângulos pequenos,
ou seja:
δ(△ABC) =δ(△ABD) +δ(△BCD)
Demonstração. Sejam o triângulo △ABC e um segmento AD, de modo que D é um ponto pertencente ao ladoBC(figura 2.44), nessas condições, temos:
• BACb =α • ABCb =β1+β2 • BCAb =γ • ABDb =β1 • DBCb =β2 • ADBb =φ1 • BDCb =φ2 Temos:
δ(△ABD) =π−α−β1−φ1 δ(△BCD) =π−β2−φ2−γ Comoφ1+φ2=π e adicionando essas igualdades, obtemos:
44 CAPÍTULO 2 GEOMETRIA NEUTRA
Figura 2.44 Defeito do triângulo△ABCigual a soma dos defeitos dos triângulos△ABDe△BCD.
Esta proposição nos mostra que, se um triângulo qualquer é dividido em dois triângulos a partir de um segmento que une um de seus vértices ao lado oposto, então o seu defeito é igual á soma
C
APÍTULO3
Geometria Hiperbólica
A história nos diz que Gauss, Yános Bolyai e Lobachevsky desenvolveram a geometria
hiper-bólica ao mesmo tempo e de forma independente. No entanto, a honra da descoberta desta geometria coube a Lobachevsky, pois ele foi o primeiro a publicar seus trabalhos, chamando-a
de Geometria Imaginária. As dúvidas referentes à consistência da geometria hiperbólica, só foram dissipadas no final do século XIX, quando matemáticos como Eugenio Beltrami, Henri
Poincaré e Felix Klein criaram, no universo euclidiano, modelos para esta nova geometria. Um modelo para um determinado sistema axiomático é uma interpretação dada aos conceitos
pri-mitivos de modo que os axiomas sejam todos propriedades verdadeiras.Neste capítulo, nossos estudos estão fundamentados em [1], [6], [7], [9], [13], [14], [15], [17], [19], [20] e [21].
3.1 Postulado de Lobachevsky
Na Geometria Hiperbólica são válidos os postulados da Geometria Neutra e o 5º Postulado de
Euclides é substituído pelo seguinte:
Postulado 1. Por um ponto P fora de uma reta r passam, no mínimo, duas retas paralelas à reta
r.
Figura 3.1 Retasaebpassando emPe paralelas a retar